quarta-feira, 27 de novembro de 2024

José Feldman (A Biblioteca dos Portais)

No coração da cidade de Elidória, cercada por ruas de paralelepípedos e edifícios antigos, havia uma biblioteca que poucos conheciam. Chamava-se "A Biblioteca dos Portais". Seu exterior era modesto, com uma fachada de tijolos desgastados e janelas empoeiradas, mas aqueles que se aventuravam a entrar descobriam um mundo de maravilhas.

A biblioteca era enorme e labiríntica, com estantes que se estendiam até o teto e escadas que pareciam se mover sozinhas. Mas o que a tornava realmente especial eram as portas. Cada uma delas, de madeira antiga e ornamentos intricados, levava a um mundo completamente diferente.

A Biblioteca possui uma magia própria que a torna única e misteriosa. Sua escolha de visitantes não se baseia em critérios comuns, mas sim em uma conexão íntima entre o coração da pessoa e o espírito da biblioteca. Aqui estão algumas maneiras de como essa seleção ocorre:

Intenção Pura
A biblioteca é sensível às intenções dos visitantes. Aqueles que entram com um desejo genuíno de explorar, aprender ou encontrar respostas são atraídos para dentro. A curiosidade e a abertura de espírito são fundamentais para serem escolhidos.

Sinais e Coincidências
Muitas vezes, os futuros visitantes encontram sinais antes de chegarem à biblioteca. Pode ser um livro esquecido em um banco, uma conversa sobre a biblioteca que escutam ao passar, ou mesmo um sonho recorrente. Esses sinais são como convites sutis que a biblioteca envia para aqueles que estão prontos.

Experiências de Vida
A biblioteca também parece reconhecer a jornada de vida de cada um. Pessoas que passaram por desafios significativos, ou que buscam inspiração após uma perda ou mudança, frequentemente sentem uma atração inexplicável pelo local. A biblioteca se conecta com essas experiências, oferecendo mundos que refletem suas necessidades e anseios.

Escolhas do Coração
Quando um visitante entra, a biblioteca parece avaliar o que está em seu coração. Se alguém está lutando com medos, pode ser levado a um mundo como o das Sombras, onde aprenderá a enfrentar suas inseguranças. Se busca criatividade, pode ser atraído para o Reino dos Sonhos. Essa escolha é feita de maneira quase intuitiva, guiada por uma sabedoria antiga.

O Tempo e o Destino
Por fim, o tempo desempenha um papel crucial. A biblioteca é atemporal, e às vezes, os visitantes chegam em momentos específicos de suas vidas, quando estão mais receptivos a mudanças e descobertas. Essa sincronia entre o momento certo e a pessoa certa é o que torna cada visita especial.

A Biblioteca dos Portais não apenas escolhe seus visitantes; ela os reconhece. Cada pessoa que atravessa suas portas é vista e compreendida, e a magia do lugar oferece experiências que ressoam profundamente com suas almas. Assim, cada visita se torna uma jornada transformadora, onde a biblioteca se revela não apenas como um espaço físico, mas como um guia espiritual na busca pelo autoconhecimento e pela aventura.

A primeira porta que Marla, uma jovem curiosa, decidiu abrir era forrada com um veludo azul profundo. Ao atravessá-la, ela se encontrou no Reino dos Sonhos, onde as nuvens eram feitas de algodão-doce e os rios corriam com néctar. Os habitantes eram criaturas etéreas, feitas de luz e sombra, que podiam transformar pensamentos em realidade.

Ela passou dias explorando esse lugar mágico, aprendendo a moldar seus próprios sonhos. Fez amizade com um pequeno dragão de cristais chamado Lúcio, que a ensinou a voar. Quando decidiu voltar, Lúcio lhe deu uma pena brilhante como lembrança, dizendo que ela poderia usar para lembrar-se sempre de que seus sonhos eram possíveis.

A próxima porta que Marla encontrou era coberta por musgo verde e tinha um som suave como o sussurrar do vento. Ao abri-la, ela entrou na Floresta dos Ecos, onde cada palavra proferida se tornava um eco que dançava entre as árvores. As árvores eram altas e antigas, e as folhas pareciam cantar em harmonia.

Ali, ela conheceu uma sábia coruja chamada Eldrin, que a ensinou sobre o poder das palavras. Também aprendeu que as histórias contadas na floresta se transformavam em vida, e que cada eco era uma memória que moldava o futuro. Ao sair, Eldrin a presenteou com um livro em branco, prometendo que cada história que ela escrevesse teria o poder de ressoar na floresta para sempre.

A terceira porta era feita de um metal brilhante, quente ao toque. Ao cruzá-la, Marla se viu no Deserto da Ilusão, um lugar onde as miragens eram tão reais que poderiam enganar até os mais sábios. As dunas brilhavam sob o sol escaldante, e figuras dançavam à distância, sempre fora de alcance.

Lá, conheceu Zara, uma viajante que havia perdido seu caminho. Juntas, elas enfrentaram as ilusões, aprendendo a distinguir o que era real do que era apenas uma miragem. Zara revelou que o deserto testava a coragem e a determinação de quem passava por ele. Quando finalmente conseguiram encontrar a saída, Zara deu a Marla um espelho, dizendo que ele a ajudaria a ver além das aparências.

A última porta que Marla encontrou era feita de madeira escura e emanava um frio intenso. Ao abri-la, ela se viu no Mundo das Sombras, onde as luzes eram escassas e as criaturas pareciam se esconder nas trevas. Contudo, havia uma beleza estranha nesse lugar, com constelações brilhando em um céu noturno.

Ela conheceu um ser chamado Noctis, que guardava os segredos das sombras. Ele a ensinou que as sombras não eram para ter medo, mas sim para serem compreendidas. Com sua ajuda, Marla aprendeu a dançar com as sombras, a transformar o medo em arte. Quando decidiu voltar, Noctis deu a ela uma pequena lanterna, dizendo que ela nunca deveria esquecer a luz que existe mesmo nas trevas.

Após suas aventuras, Marla retornou à biblioteca, onde as portas agora pareciam mais brilhantes do que antes. Com cada objeto que trazia de seus mundos — a pena, o livro, o espelho e a lanterna — ela percebeu que não só tinha explorado novos lugares, mas também descoberto partes de si mesma.

Ao sair da biblioteca, ela não era mais a mesma. Tinha histórias para contar, experiências para compartilhar e, acima de tudo, um novo entendimento sobre a vida e suas possibilidades. A cada visitante que passava pela porta, ela se tornava uma contadora de histórias, levando um pouco da magia da biblioteca para o mundo real, inspirando outros a explorarem suas próprias portas e a descobrirem os mundos que habitam dentro de si.

Existem várias histórias sobre pessoas que tentaram entrar na Biblioteca dos Portais, mas não conseguiram. Essas experiências muitas vezes se tornam lendas na cidade de Elidória, servindo como avisos e reflexões sobre a natureza da biblioteca e a importância da intenção.

Um homem chamado Artur, conhecido por sua visão pragmática e ceticismo em relação a tudo que era mágico, decidiu que queria provar que a biblioteca era apenas uma fábula. Ao chegar à porta, ele empurrou-a com firmeza, mas, para sua surpresa, a porta não se abriu. Ele tentou novamente, mais insistentemente, mas nada aconteceu. A biblioteca, percebendo sua falta de crença e abertura, decidiu que ele não estava pronto. Artur saiu frustrado, mas a experiência o levou a refletir sobre suas crenças, e, eventualmente, ele se tornou uma pessoa mais receptiva ao mistério da vida.

Um grupo de amigos, animados e ansiosos para explorar, chegou à biblioteca em um dia ensolarado. Eles estavam tão distraídos com suas conversas e risadas que não notaram a aura mágica ao redor do lugar. Quando tentaram abrir a porta, ela parecia selada. Confusos, tentaram várias vezes, mas a porta não se abriu. A biblioteca, percebendo que suas intenções não eram genuínas e que estavam mais interessados na diversão do que na descoberta, decidiu não deixá-los entrar. Deveriam dar importância à calma e a atenção ao momento presente.

Uma mulher chamada Eliana, em busca de respostas para uma tragédia pessoal, chegou à biblioteca com o coração pesado e a mente confusa. Ela queria desesperadamente escapar da dor, mas sua ansiedade e desespero eram tão intensos que a biblioteca não a reconheceu como uma visitante pronta. Ao invés de abrir a porta, uma voz suave ecoou em sua mente, aconselhando-a a encontrar paz dentro de si antes de buscar fora. Ela saiu, não sem dor, mas determinada a trabalhar em seu interior.

Um jovem chamado Leo, cheio de curiosidade, decidiu que queria explorar todos os mundos da biblioteca em uma única visita. Ele se aproximou da porta, mal conseguindo esperar para entrar. Sua impaciência era palpável, e quando tentou abrir a porta, ela permaneceu firmemente fechada. A biblioteca, percebendo sua falta de respeito pelo processo e pela jornada, decidiu que Leo não estava pronto para a profundidade da experiência que oferecia. Grandes descobertas requerem paciência e respeito.

Essas histórias ilustram que a Biblioteca dos Portais não é apenas um lugar físico, mas um espaço que exige introspecção e sinceridade. As portas podem ser fechadas, mas cada tentativa frustrada serve como um aprendizado, preparando os visitantes para a verdadeira magia que aguarda aqueles que entram com o coração aberto e a mente receptiva. Cada história de negação se transforma em uma lição valiosa, guiando as pessoas em suas jornadas pessoais até que estejam prontas para cruzar o limiar da descoberta.

E assim, a Biblioteca dos Portais continuava a ser um lugar onde a imaginação não conhece limites, e onde cada porta abre um novo capítulo na história de quem se atreve a cruzá-la.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Vereda da Poesia = 167 =


Trova de
SARAH MARIANI KANTER
São Paulo/SP

A saudade é luz de vela
iluminando o que eu sou:
descolorida aquarela
que uma renúncia pintou.
= = = = = =

Poema de 
LUCIANA SOARES CHAGAS
Rio de Janeiro/RJ

A cadeira

Você cria histórias em um lugar só seu 
E tem apenas uma vida para se encontrar. 
São saudades de conversas na varanda, 
Que trazem memórias junto ao mar.

A cadeira na varanda, os quadros na parede, 
As redes balançando, o sol, dias felizes. 
O cheiro de café, o bolo de laranja na mesa, 
Lembranças surgem, uma lágrima escorre...
Ah pai, nosso amor não morre.

Recordo-me de seu carinho, a mão em minha cabeça, 
Um gesto tão seu, cheio de ternura. 
Levantava-se da cadeira, ia à cozinha, 
Para se deliciar com as guloseimas que adorava.

Será que esses tempos bons vão voltar? 
Acredito que sim, de algum jeito, enfim... 
Mesmo que você não esteja mais presente, 
A cadeira de balanço ainda está aqui, 
Permanece no mesmo lugar, junto a mim.
= = = = = = 

Poetrix de
ALICE DANIEL
Porto Alegre/RS

achados & perdidos
 
revirando minha vida
achei alma e coração
ambos feridos
= = = = = = 

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Em vão

Vivo a procura de mim 
dentro de você...
numa busca interminável; 
nunca lhe encontro!

Tenho a impressão
que afinal, 
como se fosse um castigo
chegou de mansinho o  meu fim...

em igual sentido, ingrata reprimenda segue 
aumentando a minha solidão
e me torturando o coração 
simplesmente... simplesmente assim...
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Desta saudade infinita
não guardo mágoas, porque
foi a coisa mais bonita
que me ficou de você!
= = = = = = 

Soneto de
THALMA TAVARES
São Simão/SP

O anjo e o fauno

Por que tenho de ser de dois extremos feito?...
De um extremo, o melhor, vem a luz que me eleva.
Mas se às vezes sou luz, outras vezes sou treva,
que me impede enxergar o que é certo e direito.

Do outro extremo, o pior, eu direi contrafeito
que há um fauno viril que à luxúria me leva,
contra o qual, com razão, a razão se subleva
e me faz explodir a revolta no peito.

Quantas vezes me ergui do meu lado mais nobre
como quem, com a luz, de pureza se cobre
e a seguir, sem razão, deixa tudo sombrio.

Entre um anjo e um fauno eu passo a vida assim
a suplicar aos céus que afugentem de mim
o lascivo animal que anda sempre no cio.
= = = = = = = = = 

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Cada tropeço me ensina
que a vida é eterno sonhar.
Na vida nada termina,
muda de forma e lugar.
= = = = = = 

Poema de 
IRENE LISBOA
(Irene do Céu Vieira Lisboa)
Arruda dos Vinhos/Portugal, 1892 – 1958, Lisboa/Portugal

Jeito de Escrever 

Não sei que diga.
 E a quem o dizer?
 Não sei que pense.
 Nada jamais soube.  

 Nem de mim, nem dos outros.
 Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
 Seja do que for ou do que fosse.
 Não sei que diga, não sei que pense.  

 Ouço os ralos queixosos, arrastados.
 Ralos serão?
 Horas da noite.
 Noite começada ou adiantada, noite.
 Como é bonito escrever!  

 Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito.
 Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
 No tempo vago...
 Ele vago e eu sem amparo.
 Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, 
este sereno luto das horas. 
Mortas!  

 E por mais não ter que relatar me cerro.
 Expressão antiga, epistolar: me cerro.
 Tão grato é o velho, inopinado e novo.
 Me cerro!

 Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados,
 solta a outra, de pena expectante.
 Uma que agarra, a outra que espera...

 Ó ilusão!
 E tudo acabou, acaba.
 Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?  

 Silêncio.
 Nem pássaros já, noite morta.
 Me cerro.
 Ó minha derradeira composição! 
Do não, do nem, do nada, da ausência e
 solidão.

 Da indiferença.
 Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.
 Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
 Alonga-te.
 A ribeira acordou.
= = = = = = 

Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Disse pra linda tainha
o peixe, muito gamado:
– Casa comigo, peixinha,
que eu estou “apeixonado!”
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Seu sorrir

Eu fico tão feliz com seu alô,
por carta, viva voz, ou celular,
que até me esqueço que sou bisavô,
deixo a bengala e quero saltitar!

Do jeito como estou, borocoxô;
só faço versos para me animar,
passo calado o dia em meu bistrô,
bolando assunto para me inspirar...

Assim, quando você reaparece,
com seu alô gostoso de se ouvir,
minha alegria nesse instante cresce!

Sinto a felicidade bem de perto,
pois sei que o seu alô traz seu sorrir,
que é tudo o que eu preciso. Estou bem certo!
= = = = = = 

Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Velho em plena mocidade,
sem alma, sem ideais,
que faço desta saudade,
se nem ela me quer mais?
= = = = = = 

Hino de
SANTANA DO SERIDÓ/RN

Santana és orgulho do teu povo
Teus campos e serras me fascinam
Teu céu azul, salpicado de estrelas
Em noites de verão, o luar te ilumina.

Tuas ruas verdejadas de algarobas
Acácias, pés de fícus, flamboyants
A igreja guarda tuas tradições
Que o tempo solidificou.

Eu agradeço a Deus eternamente
Por ter nascido em Santana do Seridó
Pequena mas tão bela, 
Minha terra mãe gentil
De um povo varonil.

Do velho casarão sinto saudades
Perfil de nossa colonização
Do cruzeiro lá no pátio da capela
E dos campos alvejados de algodão.

A agricultura, a mineração e a pecuária
Ajudaram a esculpir a tua história
Desejamos de todo coração
Que o teu futuro seja de vitórias.

Santana do Seridó
Teu pavilhão queremos reverenciar
Teu povo com heroísmo e vigor
Com muita luta o teu solo desbravou
Vamos saudar, 9 de abril 
OH! Terra querida 
Iremos sempre te exaltar.
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Quando uma ofensa me oprime
em silêncio enfrento tudo.
Qualquer grito se redime
ante meu protesto mudo.
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
NOSSA CANÇÃO 
(canção, jovem guarda, 1966) 
Luiz Ayrão

Olha aqui, preste atenção
essa é a nossa canção
vou cantá-la seja onde for
para nunca esquecer o nosso amor,
nosso amor

Veja bem, foi você
a razão e o porquê
de nascer essa canção assim
pois você é o amor 
que existe em mim    

Você partiu
e me deixou
nunca mais você voltou
pra me tirar da solidão
e até você voltar
meu bem eu vou cantar
essa nossa canção
= = = = = = = = = 

Trova de
MANUELLA AJALLA PAZ
Cruz Alta/RS

Verdade da luz de Deus
tão clara aí quanto aqui:
– Quem busca o bem para os seus,
encontra o bem para si!
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Célio Simões* (“A bico de pena”)

No ano 4.000 a.C., o homem já sulcava superfícies rochosas com utensílios de osso ou bronze. No ano 3.000 a.C. egípcios e chineses escreviam com  finíssimos pincéis e canetas feitas de junco. Em 1.300 a.C. romanos, asiáticos e anglo-saxões encontraram formas de escrever na cera, usando estiletes de metal. A pena de ganso e de outras aves (corvo, águia, coruja, ganso e peru) foi o instrumento de escrita mais usado no ocidente desde o século VI até o início do século XIX. A mais comum e fácil de conseguir era a de ganso, animal doméstico. O uso das penas de aves na escrita exigia muito tempo para prepará-las, precisavam ser constantemente apontadas e tinham curta durabilidade. No final do século XVIII finalmente apareceram as penas de metal, que se popularizaram depois de 1850, quando ficaram mais resistentes com a utilização de metais como irídio e ródio.

Desde o século XVII houve várias tentativas de produzir uma caneta que tivesse reservatório de tinta. Embora em 1819 John Scheffer tenha produzido sua primeira caneta tinteiro, e em 1832 John Jacob Parker tenha lançado a primeira caneta auto-recarregável, só em 1884 Lewis Waterman patenteou sua caneta "Ideal", ao produzir um modelo que não vazava. Os sucessivos avanços técnicos encontraram novos materiais e soluções cada vez mais práticas e limpas para encher o reservatório de tinta sendo que,  até a década de 1960, as canetas tinteiro eram instrumentos de uso cotidiano, por profissionais e estudantes, embora seu uso na escola fosse restrito aos alunos de famílias mais abastadas. 

Marcas famosas pontificaram no mercado, como as canetas Sheaffer, Johann Faber, Compactor, Goldem e a cobiçada Parker nas versões 45, 61 e 75, sendo que nenhuma delas foi tão desejada como a Parker 51, considerada verdadeira joia, hoje comparada, guardadas as proporções, à extraordinária e caríssima Montblanc, que dá status social e econômico aos seus donos. Porém, durante a década de 1960, a estudantada carente consagrou as canetas tinteiro Skater, que esteticamente se destacavam por seus coloridos rajados em marrom, azul e verde, afora o preço acessível. Seu caráter utilitário era às vezes desvirtuado pelos jovens estudantes, que empunhando suas canetas, travavam entre si embates com esguichos de tinta na hora do recreio, emporcalhando os uniformes de seus “adversários”, o que lhes rendia a esperada e merecida reprimenda de pais e mestres. 

Em 1938 o jornalista húngaro László Biró, junto com seu irmão György, criou uma caneta recarregável com ponta em forma de esfera móvel que ao girar distribuía tinta de modo uniforme no papel. Biró a patenteou e começou a fabricar esferográfica na Argentina, onde se fixou a partir de 1940. Em 1945 as primeiras esferográficas foram vendidas com muito sucesso no mercado americano, mas como não funcionavam bem logo caíram em desuso. Em 1949 o barão francês Marcel Bich introduziu a esferográfica "Bic" na Europa e em 1958 ele entrou no mercado americano comprando a empresa Waterman Pen Company. Em 1959, com ampla campanha publicitária na TV, a caneta esferográfica Bic foi vendida nos Estados Unidos por apenas 29 centavos de dólar. A Bic chegou ao Brasil em 1961 e seu baixo custo substituiu as de penas metálicas que ainda eram usadas nas escolas. E veio para ficar, pois revolucionou os hábitos de escrita de milhões de pessoas em todo o mundo.

Já o chamado desenho A BICO DE PENA utiliza penas metálicas especiais para criar quadros, cartuns e histórias em quadrinhos. A técnica remonta à Idade Média, quando os monges e escribas copiavam manuscritos à mão. Foi muito utilizada para desenhos no ocidente europeu do século VI até ao século XVIII e até hoje inspira seguidores, como o artista plástico, pesquisador e escritor paraense Sebastião Godinho, membro da Academia Paraense de Letras, que se dedica à produção de belos quadros, retratando monumentos e prédios históricos de Belém, usando essa refinada técnica. 

Na MPB, José Fortuna - cantor, compositor, autor teatral, ator brasileiro e autor de sucessos como a guarânia "Índia", que aparece no disco de "Meu Primeiro Amor" (também de sua versão) gravados originalmente no ano de 1952 - compôs a música que denominou de “BICO DE PENA”, cuja repercussão deve-se ao fato de ser interpretada por Tonico e Tinoco, dupla caipira formada pelos irmãos João Salvador Perez e José Salvador Perez, considerada uma das mais importantes da história da música brasileira, que na primeira estrofe da  extensa letra aborda o tema: 

Com pena peguei na pena
Para com pena escrevê
Alembrando de Ritinha
Que comigo eu vi crescê!
Foi escrevendo estes versos
Comparando meu vivê
Com este bico de pena
Que escreveu o meu padecê...

Atualmente, o computador e os softwares de desenho substituíram o papel, o lápis e a tinta na produção de cartuns e nas histórias em quadrinhos, mas ainda há artistas que preferem a leveza e a sensibilidade do traço manual, minucioso, detalhista e preciso, com que encantam o público mercê do seu grande talento e de sua insuperável arte. (fonte: web)
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(*) O autor é advogado, escritor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Confraria Brasileira de Escritores, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós. 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Francisco Gabriel* (A aurora sobre o mar)


Na década de 1990, tínhamos uma casa de praia, no povoado de Barreta, distante cerca de 50 quilômetros da nossa capital, Natal. Pelo menos uma vez a cada mês, nós frequentávamos esse local. Eu e minha esposa ainda éramos jovens e os meus filhos, André e Aline, ainda eram crianças,

Enquanto estávamos veraneando, o nosso dia era preenchido pelo banho de mar, pelas caminhadas nas areias de um morro que ficava em frente à nossa casa, e pela confraternização com os amigos. Lembro-me muito do meu compadre Antônio Gordo, que não parava de comer e beber, e de diversos familiares da minha esposa, especialmente as suas primas Neta e Marluce.

À noite, juntos com os nativos, liderados por Luiz de Tindor, participávamos da pesca de aratus com facho, além de outras aventuras. Mas o que mais me deslumbrava era ficar contemplando o firmamento; lá não havia iluminação pública, com isso as estrelas pareciam que estavam bem próximas da Terra, formando, simbioticamente, um só véu. A Lua era um espetáculo à parte, parecia uma bola de fogo, saindo de dentro d'água.

Nesse tempo, eu me acostumei a acordar cedo e ficava, ao final de cada madrugada, na varanda, esperando o nascer da aurora. Era de uma beleza indescritível, parecia que o dia estava nascendo do ventre do mar. Nesse período, eu observei também que cada dia a aurora nascia com um colorido diferente, como se dissesse: "Hoje eu estou bela, mas me veja amanhã, que eu estarei ainda mais bela".

Todos os fatos acontecidos naquela praia ou foram sepultados pelo tempo, ou viraram escombros, exceto o deslumbre que eu sentia ao observar a Lua e as estrelas e, especialmente, a beleza da aurora perfumando as minhas madrugadas; isso permanece vivo em um recanto da minha alma.
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* O autor é de Natal/RN

(esta crônica obteve o 5. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Jerson Brito (Asas da poesia) 02

 

José Feldman (O Cruzeiro das Trapalhadas)


Era uma vez um casal muito peculiar: Epitáfio e Etelvina. Eles decidiram que era hora de uma aventura e, com isso, embarcaram em um cruzeiro para as deslumbrantes Ilhas Gregas. O barco, o "Navegador do Sol", estava repleto de passageiros animados, todos prontos para desfrutar do calor e das belezas naturais. Mas, como todos sabem, quando Epitáfio está por perto, a aventura nunca é apenas uma simples viagem, não consegue ficar quieto, parece que tem tachinhas nos pés.

Assim que embarcaram, Epitáfio, sempre entusiasmado, começou a explorar o navio como se fosse uma criança em uma loja de doces.

— Olha, Etelvina! — exclamou ele, apontando para uma escada em espiral. — Vamos ver onde isso nos leva!

— Epitáfio, espera! — gritou Etelvina, mas ele já tinha desaparecido. Quando ela finalmente o encontrou, ele estava em cima de uma mesa de sinuca, tentando “fazer um truque”.

— Epitáfio, desça daí! Você vai quebrar alguma coisa! — disse ela, com a mão na cabeça.

— Não se preocupe, querida! Eu sou um mestre do equilíbrio! — ele respondeu, e, claro, assim que se inclinou para mostrar isso, escorregou e caiu de costas no chão, fazendo a mesa balançar e as bolas de sinuca rolarem pelo convés.

Os passageiros que assistiam à cena começaram a rir. Um senhor idoso até comentou:

— Olha, o novo esporte do cruzeiro: sinuca acrobática!

No dia seguinte, na hora do almoço, Epitáfio decidiu que era sua vez de ajudar. Ele foi até o buffet e, com toda a sua boa intenção, começou a servir comida para os dois.

— Aqui está, Etelvina! Uma especialidade grega! — disse ele, colocando uma porção generosa de tzatziki* no prato dela.

— Epitáfio, isso é demais! — reclamou ela, mas ele não a ouviu. Em um movimento desastrado, ele derrubou um jarro de azeite, que escorreu pelo chão como um rio dourado.

Os passageiros ao redor começaram a rir novamente. Uma senhora, com um olhar divertido, comentou:

— Acho que o Epitáfio está tentando criar um novo prato: “Azeite à la Epitáfio”.

Depois do almoço, Epitáfio decidiu que era hora de se divertir na piscina. Ele pulou na água de forma tão exagerada que fez uma onda gigantesca, que molhou todos os que estavam próximos.

— Epitáfio! Você não pode fazer isso! — gritou Etelvina, que estava secando o cabelo com uma toalha.

— Relaxa, amor! É só um pouco de diversão! — respondeu ele, enquanto tentava nadar, mas em vez disso, começou a se debater como um peixe fora d'água.

Os passageiros, entre risadas e sustos, começaram a se afastar da borda, enquanto um marinheiro observava tudo com uma expressão de incredulidade.

Eventualmente, o capitão do navio, um homem robusto com uma voz que poderia fazer uma tempestade silenciar, decidiu intervir.

— Senhor Epitáfio! — chamou ele, enquanto se aproximava. — Eu preciso que o senhor fique em sua cabine por um tempo. Você está causando caos!

— Mas eu só estava me divertindo! — respondeu Epitáfio, fazendo uma careta.

— Sua diversão está deixando os passageiros um pouco… nervosos! — disse o capitão, tentando manter a compostura.

— Tudo bem, capitão! — Epitáfio se rendeu, enquanto Etelvina soltava um suspiro de alívio.

No entanto, Epitáfio não estava disposto a ficar em sua cabine. Assim que o capitão se afastou, ele viu uma oportunidade e escapuliu.

— Ah, eu só quero dar uma volta! — murmurou ele para si mesmo, caminhando pelo convés. Sem perceber, ele se aproximou da borda do navio e, ao tentar se esconder de um grupo de marinheiros, escorregou e caiu direto no mar.

O grito que ele deu ecoou pelo navio:

— Etelvina! Socorro! Estou afundando!

Os passageiros, agora em um misto de choque e riso, correram até a borda para ver o que estava acontecendo. Etelvina, horrorizada, gritou:

— Epitáfio! Volte aqui!

Os marinheiros, já acostumados com as trapalhadas de Epitáfio, entraram em ação. Um deles, um jovem chamado João, pulou na água e nadou até Epitáfio.

— Calma, amigo, eu estou aqui! — disse João, enquanto puxava Epitáfio de volta para o barco.

Ao ser resgatado, Epitáfio estava todo encharcado, mas com um sorriso no rosto.

— Eu sempre quis experimentar a natação em alto-mar! — exclamou ele, enquanto todos ao redor caíam na risada.

Quando finalmente conseguiram voltar ao convés, o capitão, agora com um sorriso no rosto, não pôde deixar de comentar:

— Bem, senhor Epitáfio, você definitivamente trouxe um novo significado para o "cruzeiro".

Etelvina, com a cabeça nas mãos, não sabia se ria ou chorava. Mas, no fundo, sabia que, com Epitáfio, cada dia seria uma nova aventura.

— Apenas não me faça passar por isso novamente, por favor! — pediu ela, enquanto abraçava o marido.

Epitáfio piscou:

— Prometo que na próxima vez, eu só vou fazer trapalhadas em terra firme!

E assim, o casal continuou sua viagem pelas Ilhas Gregas.

O casal, agora um pouco mais consciente das reações dos passageiros, tentou se comportar, mas a natureza atrapalhada de Epitáfio estava longe de ser domada.

Na primeira parada, Santorini, a beleza das casas brancas e das vistas deslumbrantes deixou Etelvina encantada. No entanto, Epitáfio estava mais interessado na comida local.

— Vamos experimentar aquele prato que dizem que é uma delícia! — sugeriu ele, apontando para uma taverninha.

Etelvina hesitou:

— Epitáfio, lembre-se da última vez que você decidiu experimentar algo novo.

Mas Epitáfio já estava na porta, e em um instante estava pedindo uma moussaka** gigantesca. Quando o prato chegou, ele não conseguiu conter a empolgação e, em sua pressa, derrubou a bandeja, cobrindo o garçom e a mesa ao lado com molho quente.

— Desculpe! — gritou ele, enquanto todos ao redor se esquivavam.

Na segunda parada, o casal decidiu fazer uma excursão de barco para explorar as caldeiras. O guia, um homem charmoso, começou a falar sobre a história da ilha, mas Epitáfio, distraído pelo movimento do barco, decidiu que era hora de tirar fotos.

Ele se levantou abruptamente para captar a vista e, ao fazer isso, quase derrubou a câmera de um passageiro.

— Olha, pessoal! É uma selfie em alto-mar! — exclamou ele, tentando equilibrar a câmera. O resultado foi um álbum de fotos com Epitáfio em posições hilárias, com o fundo das caldeiras sempre desfocado.

Etelvina não sabia se ria ou se ficava envergonhada. Mas, no final, todos estavam se divertindo e tirando selfies com Epitáfio.

Na última noite do cruzeiro, o navio organizou uma festa de gala. Todos estavam elegantes, e Etelvina, em um vestido deslumbrante, parecia uma verdadeira deusa grega. Epitáfio, por outro lado, decidiu que uma gravata borboleta colorida seria o toque final do seu traje.

Durante o jantar, enquanto a orquestra tocava, Epitáfio tentou dançar, mas acabou pisando no pé de um dos dançarinos profissionais, que estava fazendo uma apresentação. O homem, surpreso, girou e, sem querer, acabou arrastando Epitáfio para o centro da pista.

— Vamos lá, Epitáfio! Mostre o seu talento! — gritou um dos passageiros, incentivando-o.

Epitáfio, sem saber o que fazer, começou a dançar de forma desajeitada, fazendo movimentos engraçados que rapidamente contagiou a plateia. Todos começaram a rir e aplaudir, e logo ele se tornou o centro das atenções.

Quando o cruzeiro finalmente chegou ao seu fim, Epitáfio e Etelvina se sentaram no convés, observando o sol se pôr sobre o mar.

— Apesar de tudo, foi uma viagem incrível, não foi? — disse Etelvina, com um sorriso.

— Com certeza! — respondeu Epitáfio, olhando para ela com adoração. — E quem diria que eu seria o rei no final?

— E o herói das selfies! — brincou Etelvina.

Enquanto o navio se afastava das ilhas, o casal percebeu que cada trapalhada de Epitáfio se tornara uma lembrança especial. Eles não apenas viveram uma aventura, mas também aprenderam a rir juntos, mesmo nas situações mais embaraçosas.

Ao desembarcarem, Epitáfio olhou para Etelvina e disse:

— O que você acha de planejarmos outra viagem? Quem sabe para… as montanhas?

Etelvina riu, balançando a cabeça:

— Apenas se você prometer não escorregar em nenhuma trilha!

E assim, com o coração leve e o espírito divertido, Epitáfio e Etelvina embarcaram em novos planos, prontos para mais aventuras, sabendo que, independentemente das desventuras, o mais importante era estarem juntos.
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* Tzatziki = é um acepipe típico da culinária da Grécia e da Turquia, mas também difundido entre outros países da Europa Oriental, Oriente Médio e Índia, sob diferentes denominações e com inúmeras variações regionais: seja quanto à consistência, seja quanto às ervas e especiarias adicionadas à preparação básica, que se compõe de iogurte, pepino e alho.

** Moussaka = Mussaca ou Mussacá é uma especialidade gastronômica do Oriente Médio, típico das culinárias grega e turca, entre outras, sendo, na versão árabe, um cozido de grão de bico com berinjelas, muito comum na culinária vegana. Pode ser também uma variação de lasanha italiana, só que grega, muitíssimo saborosa. Essa versão é originalmente feita com carne de carneiro, berinjelas, e tomate, sempre condimentado com azeite, cebola, ervas e fortemente temperado com pimenta ou malagueta.


Fontes: 
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Monsenhor Orivaldo Robles (Ao filho de pais caretas)


Você não lembra, é claro. Nem teria como lembrar. Era muito pequeno. Eles o pegavam no colo. Abraçavam, apertavam, acontecia de mordê-lo. Por vezes, você acabava chorando, sufocado pelo excesso de um carinho que eles não sabiam dosar. Se conseguisse falar, você diria: “Parem com isso. Estão me machucando. Sou muito fraquinho”. Mas reclamar para quem? Os avós faziam pior. Parece que disputavam para ver quem judiava mais.

Você nunca pensou nisso, mas sua vinda foi muito esperada. Desde quando descobriram que estava a caminho, você tornou-se o centro da vida deles. Não havia assunto mais importante, preocupação maior. Tudo era para você, que ia chegar.

Você provocou grande transformação em sua mãe. Ela se tornou mais sensível, emotiva, meio dengosa. Chorava à-toa, parecia insegura, se irritava por nada. Voltou a ser, outra vez, uma adolescente. Ou quase. Seu pai sentiu-se meio perdido. De repente, passou a achar estranha a mulher com quem vivia.

Depois que você nasceu, complicou de vez. Vieram trapalhadas com sua higiene, alimentação, saúde... Em várias situações eles se perdiam. Vinha-lhes à mente perguntar: E agora, fazer o quê? Criança devia vir com manual de instruções.

Hoje você é forte, bonitão e se considera dono de um mundo que se abre aos seus pés. Capaz de tomar decisões, de resolver o que é melhor, o que vale a pena na vida. “Sei o que estou fazendo” diz, com uma segurança que talvez nem eles demonstrem. Você os olha com piedoso pouco caso, como se para outra coisa não servissem além de pegar no seu pé.  De vez em quando, não tem vontade de dizer, se é que já não disse: “Pô, velho(a), dá um tempo?”

Com vinte anos, você está quilômetros à frente deles, não? Eles nada sacam do que acontece hoje. Já tiveram a vez deles; agora é a sua. Por que tanta bronca com seu jeito, se assim fazem todos os seus amigos? Você não precisa de conselhos. Não acreditam que ninguém faz a sua cabeça? Que já é grande para decidir entre o certo e o errado? Que sabe escolher o que o fará feliz? Que sabe afastar-se do que vai prejudicá-lo?

Pois é. As desgraças do mundo, que você tanto condena, foram causadas por gente que julgava não precisar de conselhos. Achava que sabia tudo; os outros, sim, é que não passavam de um bando de tapados. “Foram adultos que construíram o mundo podre que está aí”, dirá você. Está coberto de razão. Adultos que, com a idade que você tem hoje, se comportavam como donos da verdade. Não aceitavam palpite nem admitiam mudar coisa alguma em sua vida.

Se amanhã você entrar numa roubada, daquelas que parecem não oferecer saída, sabe quem ficará do seu lado? Não vão ser os amigos que em tudo lhe dão razão, eu garanto. Nem a gata que só lhe diz aquilo que você gosta de ouvir.

Amar não é coisa de momento. Amor de verdade é para a vida inteira. Enquanto você viver, será amado pelos seus pais. Ainda que lhe custe acreditar. Amar não é concordar sempre e a propósito de tudo. É, muitas vezes, ter coragem de dizer não. Mesmo com lágrimas. Guarde esta verdade: lágrima de pai e mãe não sai dos olhos, sai do coração. Porque é com o coração que se ama. Você nem existia ainda e eles já o amavam.