quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

José Feldman* (Companheiros de Infortúnio)

Era uma fria manhã de dezembro quando o Professor Bruno, um ex-professor universitário de filosofia, acordou em um canto da calçada na cidade de Fênix, interior do Paraná, que antes considerava seu lar. O sol mal havia surgido, e a brisa gelada cortava o ar, lembrando-o de mais um dia de luta. Ao seu lado, um filhote de cachorro, que ele carinhosamente nomeara de Akira, se espreguiçava e se aconchegava em seu casaco velho. Akira não era um cão de raça pura; seu pai era um vira-lata cruzou com uma akita, e o resultado era um adorável, mas pouco convencional, companheiro.

A história de Bruno era uma das muitas tristes histórias que a cidade escondia sob sua fachada vibrante. Ele havia investido todas as suas economias em uma escola que prometia revolucionar a educação da região. Infelizmente, a escola faliu, levando consigo não apenas o sonho dele, mas também a sua família. Sua esposa, sem conseguir suportar a pressão financeira, e seus dois filhos, que cresceram em meio a dificuldades, decidiram deixá-lo. Bruno ficou sem nada, apenas com suas memórias e um sentimento profundo de perda.

Os anos passaram e, enquanto a cidade se enchia de luzes e decorações natalinas, Bruno e Akira sobreviviam nas ruas, buscando restos de comida nos restaurantes e se aquecendo juntos sob cobertores velhos. Ele mantinha sua dignidade; ele nunca pediu dinheiro. Em vez disso, usava seu tempo para observar as pessoas, refletindo sobre a vida e as escolhas que o levaram àquela situação. Akira, com seu olhar inocente e leal, era seu único conforto.

Na véspera de Natal, enquanto Bruno e Akira se aqueciam com o pouco que tinham, um jornalista chamado Lídio passava pela rua. Ele estava em busca de histórias humanas para compartilhar em uma reportagem especial sobre o espírito natalino. Ao ver a cena do professor idoso com seu cachorro, se aproximou, sentindo uma mistura de compaixão e curiosidade.

— Olá, senhor! — disse Lídio, oferecendo um sanduíche que havia comprado. — Quer comer algo?

Bruno, com um sorriso gentil, agradeceu e, em um gesto inesperado, pediu licença para dar o conteúdo do sanduíche a Akira, ficando apenas com o pão.

— Por que você faz isso? — indagou Lídio, intrigado.

— Akira é meu guarda-costas — respondeu Bruno, com um brilho nos olhos. — Quando me deito para dormir, preciso que ele esteja bem alimentado e alerta. Ele me protege enquanto eu descanso. 

Lídio ficou impressionado com a resposta. Ali estava um homem que, mesmo em meio ao sofrimento, ainda encontrava formas de cuidar e valorizar a amizade que tinha com seu cachorro. Bruno começou a contar sua história: suas esperanças, seus sonhos, e a dolorosa queda que o levou àquela vida. O jornalista, emocionado, escutava atentamente, sentindo que havia mais naquele homem do que as circunstâncias da vida haviam deixado à vista.

Movido pela história do professor e a pureza do amor entre ele e Akira, decidiu levá-los para passar o Natal em sua casa. 

Quando chegaram, a casa estava cheia de amigos jornalistas, todos prontos para celebrar. Lídio apresentou Bruno e Akira e, ao contar a história deles, a sala se encheu de emoção. As pessoas estavam tocadas, e as câmeras começaram a registrar aquele encontro inusitado.

A reportagem que Lídio criou trouxe a história de Bruno e Akira para a televisão. À medida que a história se espalhava, algo maravilhoso aconteceu. O espírito natalino despertou nos corações das pessoas. Doações começaram a chegar de toda a cidade. As pessoas se uniram, não apenas para oferecer dinheiro, mas também carinho e apoio. O prefeito, sensibilizado pela história, fez questão de oferecer uma casa para eles.

Na manhã de Natal, Bruno acordou em um lar, rodeado por amigos e pessoas que se importavam com ele. A felicidade não estava apenas nas doações, mas na conexão humana que se formou ao redor de sua história. Ele percebeu que, apesar de todas as dificuldades e das perdas, ainda havia amor e solidariedade no mundo.

Enquanto Akira corria pelo quintal, ele refletiu sobre a nova vida que começava. Ele se sentiu grato não apenas pelas doações, mas pela empatia que havia encontrado nas pessoas. O Natal não era apenas uma data; era uma oportunidade de recomeçar e de lembrar que, mesmo nas piores situações, a bondade humana pode brilhar intensamente.

Após o Natal, a vida de Bruno e Akira começou a se transformar de maneira surpreendente. Com o apoio da comunidade e a nova casa que o prefeito havia oferecido, Bruno sentiu que estava finalmente recuperando um pouco da dignidade que havia perdido. Mas, no fundo de seu coração, havia uma dor persistente: a saudade de sua família.

Um dia, enquanto passeava com Akira pelo parque próximo à nova casa, viu um grupo de crianças brincando e rindo. Aquelas risadas o lembraram de seus filhos, de como suas vidas haviam mudado e do quanto ele sentia falta deles. 

Decidido a tentar, começou a escrever cartas. Ele escreveu para cada um deles, expressando seu amor, sua dor e o desejo de se reconectar, mesmo que houvesse passado tanto tempo.

Com a ajuda de Lídio, o jornalista que se tornara seu amigo, enviou as cartas. Lídio ajudou a encontrá-los, e, após semanas de espera, uma resposta finalmente chegou. Sua esposa, Bianca, escreveu que, embora a dor da separação ainda fosse grande, ela nunca deixou de pensar nele. As cartas dele tocaram seu coração e despertaram uma vontade de recomeçar.

Bianca e os filhos concordaram em se encontrar com Bruno. 

O reencontro aconteceu em um dia ensolarado de primavera, no mesmo parque onde ele costumava passear com Akira. Bruno estava nervoso, mas também esperançoso. Quando viu Bianca e as crianças se aproximando, seu coração disparou. Os olhos dela brilharam ao reconhecer o homem que ainda amava, e ele sentiu que, apesar dos anos, o amor ainda estava presente.

As crianças, agora um pouco mais velhas, foram até ele, hesitantes, mas curiosas. Ele se ajoelhou para abraçá-las e, naquele momento, as lágrimas rolaram por seu rosto. Akira, percebendo a emoção, se aproximou, abanando o rabo e buscando carinho.

— Eu sinto tanto a falta de vocês — disse com a voz embargada. — Nunca deixei de amar vocês.

Bianca, emocionada, respondeu: — Nós também sentimos sua falta. A vida não foi fácil, mas suas cartas nos mostraram que ainda existe esperança.

A conversa fluiu, repleta de histórias e risadas, e os ressentimentos começaram a se dissipar. Ele compartilhou como havia mudado, como o amor de Akira o ajudou a encontrar força e dignidade novamente. As crianças estavam fascinadas pelo cachorro, e ele foi cercado por elas, recebendo carinho e atenção.

Com o passar do tempo, o reencontro se transformou em um recomeço. Eles começaram a reconstruir a confiança e a amizade, enquanto as crianças se acostumavam a ter o pai de volta em suas vidas.

O Natal daquele ano foi especial de uma forma que Bruno nunca imaginou. Ele não apenas reconquistou um lar, mas também a possibilidade de um futuro juntos. A empatia e a solidariedade que haviam florescido em sua vida agora se estendiam a sua família, mostrando que, mesmo após as maiores adversidades, o amor pode sempre encontrar um caminho de volta.

E assim, Bruno, Bianca, os filhos e Akira celebraram o Natal juntos, cercados por amor e gratidão, prontos para enfrentar o futuro como uma família unida novamente.

A história de Bruno é um testemunho poderoso da resiliência humana e da capacidade de recomeçar. Ele nos ensina que, mesmo diante das adversidades, o amor e a empatia podem nos guiar de volta à esperança. A conexão que ele reconstrói com sua família, junto ao carinho incondicional de Akira, demonstra que os laços familiares e a solidariedade têm o poder de curar feridas profundas. É uma lembrança de que nunca estamos sozinhos e que sempre há espaço para a renovação e o perdão. Essa jornada nos inspira a valorizar as relações e a buscar a luz mesmo nos momentos mais sombrios.
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* José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Foi professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos, sendo enxadrista de 1a. Categoria; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Paulo Leminski, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente pertence a Campo Mourão/PR. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura, organizador de concursos de trovas, gestor cultural, poeta, escritor e trovador. Diversas premiações em trovas e poesias.

Fonte:s 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
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Antonio Juraci Siqueira*(Meu rio)


Quando ilhado entre alfarrábios,
sinto saudades de ti,
teu nome sai dos meus lábios
numa oração: CAJARI!

À primeira vista pode parecer um rio comum, um rio como outro qualquer. Mas não é. Esse é um rio especial: é o rio Cajari, o meu rio. Ele nasce no vale da minha infância e desemboca sereno e caudaloso dentro de mim, dentro de minha memória, lavando minha alma, fertilizando meu coração, devolvendo a minha infância. E não há decretos, leis, mandados nem resoluções que possam tirá-lo de mim. Ele está de tal maneira diluído em minhas veias que nenhuma força do mundo poderá secá-lo nem alterar seu curso. Você pode admirá-lo, banhar-se em suas águas mas não poderá apossar-se dele! Ele me viu nascer, banhou meu corpo, matou minha sede e me deixou brincar de canoeiro em suas águas plácidas tangendo meus barquinhos que hoje navegam na minha imaginação. Ele é a rua onírica onde o poeta perambula à cata de inspiração, onde o Boto mandingueiro vagueia nas noites enluaradas mundiando as cunhãs. Portanto, tratem-no bem, pois o mal que a ele fizerem é a mim que farão, posto que somos um deste o início dos tempos.
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* Antônio Juraci Almeida Siqueira, nasceu em Afuá, no Pará, em 1948). Escreveu diversas obras literárias, entre elas merecem destaque, O Chapéu do Boto (2003), Paca, Tatu; Cutia não! (2008), e Aumentei, Mas Não Menti (2016). Seus poemas, contos e trovas são principalmente inspirados no folclore, nas crenças e saberes populares e pela natureza amazônica. Popularmente ele é conhecido como "o boto" ou o poeta "filho do boto". Em 1978, e foi morar em Belém. cursou Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, atua como instrutor de oficinas literárias, artista performista, contador de histórias, e leciona filosofia na rede pública de educação paraense. É considerado um dos poetas mais prolíferos da região Norte do Brasil. Seus trabalhos variam entre publicações de livros de literatura infantojuvenil, literatura de cordel, livros de poesias, contos, crônicas e textos humorísticos. Todo esse trabalho rendeu-lhe cerca de 200 premiações em concursos literários de diversos gêneros, tanto no âmbito nacional, quanto no estadual.

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Vereda da Poesia = 181


Trova de
MARIA HELENA OLIVEIRA COSTA
Ponta Grossa/PR

O amor, atrás das vidraças,
num peito que não se cansa,
faz descerrar, quando passas,
as cortinas da esperança...
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Poema de
CRIS ANVAGO
Lisboa/ Portugal

Olhas
Inventas perfeições
Sonhos e fantasias
Moldas o rosto e o coração
Sonhas com as noites e os dias
Caminhas numa estrada repleta de flores
Desenhas amores e paixões
Juntas dois corações
Cantas a mesma melodia
Moldas com a imaginação
A pessoa ideal
Leal nas tuas convicções
Não pensas em mais nada
É claro, límpido como a água
Daquele rio com que sonhas
A mão na mão amada
Perfeição
Na imaginação
De um ser que inventas
A descoberta das imperfeições
acabam com o sonho perfeito 
da realidade outrora idealizada!
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Trova de
ANTÔNIO M. CESTARI
Bragança Paulista/SP

A chuva, que habilidade,
varreu todo o meu jardim,
mas não levou a saudade
que habita dentro de mim.
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Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/ Portugal

Quatro estações

No meu corpo nascem flores,
sou a primavera a renascer.
Num jardim sou as cores
nas quais acabas por te prender.

Sou o verão em que mergulhas,
todas os dias, ao amanhecer.
Sou o mar que te beija
e do teu corpo quer beber.

Sou o outono em cada árvore,
cujas folhas acabam por cair.
Sou estrela que te entrega
o seu modo de ser, o seu sorrir.

Ao fim do dia sou o inverno
e o frio percorre-me a alma.
O ar gélido que respiro
recebe o teu calor, doce calma.

Sou amiga do Sol e da Lua,
ambos me fazem companhia.
Acordo na mesma rua
em que mora a alegria.

Em cada estação sou eu mesma,
sou um pouco de tudo e de nada.
Sou menina, sou mulher,
sou a vida, eterna apaixonada.
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Trova de
CARLOS HENRIQUE DA SILVA ALVES
Senhor do Bonfim/BA

Bondade não nasce grande
mas cresce como os açudes:
– devagarinho se expande
nas pequenas atitudes...
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Poema de
CARLOS FERNANDO BONDOSO
Alcochete/Portugal

Ser

quero ser o não ser
para ter olhos e me ver morrer
tenho o encanto da vida
quero ter o poder da poesia
ouvir as ondas e o som da maresia
inundar a minha alma que se esvazia

é no mar que encontro a libertação
e vejo o equilíbrio do pensamento
tenho força nos meus silêncios
quando escrevo em solidão
a morte pode acontecer num momento de prazer

ainda hoje não sei como começar
talvez eu saiba acabar
vou em direção do Norte não tenho transporte
quero abrir a porta dos ventos para me libertar
de mistérios e seus enigmas 
e ter esperança na visão dos meus caminhos

não tenho medo das chuvas dos temporais
nem de ventos tornados e furacões
a noite cai as estrelas dão luz à escuridão
tenho a força da tempestade dentro de mim
quero escrever sempre com os dedos da mão
e viver até ter alma para dizer que não
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/ RN

Busquei no universo um dia,
uma resposta eficaz;
que transformasse a poesia
num hino de amor e paz!!!
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/ Portugal

Silêncio na voz 

Há palavras com silêncio na voz
usadas e abusadas no gênero
como um qualquer artigo indefinido
mascaradas de transparência
fingem no seu ato de subserviência

Há palavras que carregam no ventre
o malfadado segredo do seu fado
desditosas, rebaixadas
logo irão nascer amordaçadas
que inventam esperança
em nome de um amor que tudo alcança

Há palavras órfãs, amarguradas
esperando ver luz na madrugada
irmãs da tristeza em laços de solidão
lágrimas reprimidas no silêncio da ilusão

Há palavras com silêncio na voz
necessitando abraçar forte a coragem
para gravar as passadas de uma nova viagem.
Há palavras com fome de dizer basta!
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Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

A Lua, que a noite ronda
com o seu lindo clarão,
é a lamparina redonda
que ilumina o meu sertão!
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Soneto de 
ALFREDO SANTOS MENDES
Lisboa/Portugal

Máscara

Por que se escondem vós, forças do mal?
Abandonai de vez vosso covil!
Por que escondeis o vosso rosto vil,
atrás de um rosto puro, angelical?

Já chega de prosápia assaz banal,
de tanto fingimento, vão, servil!
Há muito conhecemos vosso ardil,
p’ra  tudo conseguirem no final!

Pois mal se apanham donos do poder…
Só querem seus discursos esquecer,
e não cumprir promessas propaladas!

E enquanto o Zé povinho vai sofrendo,
vós, tubarões, os bolsos vão enchendo,
sem nenhum preconceito, às descaradas!
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Trova Humorística de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/ RS, 1932 – 2013, São Paulo/ SP

Ao ser preso, o vigarista,
explica, muito matreiro:
- Sou apenas cientista,
faço "clones" de... dinheiro!
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Hino de
FLOR DA SERRA DO SUL/ PR

No encontro de três povos, um novo rumo foi buscado,
Gaúchos e catarinenses com paranaenses irmanados,
Foi com lutas e sacrifícios, palmo a palmo conquistado.
O solo fértil, num planalto cercado com pinheirais,
Com trabalho e justiça expandiu-se mais e mais

Flor da Serra, Flor da Serra, onde o céu é mais azul,
Flor da Serra no passado, hoje Flor da Serra do Sul.

E passados muitos anos, um brado forte ecoou,
Ser distrito era pouco e um plebiscito se criou,
Em dezoito de Junho de noventa, a assembleia aprovou,
Com anseio, com justiça, Flor da Serra emancipou,
Em vinte e dois de Dezembro, a bandeira levantou.

Nos braços do sudoeste, no querido Paraná,
Na rota do Mercosul, és a estrela a brilhar,
A ecologia, nossas culturas, belas fontes a brotar,
É celeiro de fartura, resplandece encantos mil,
Povo gentil e hospitaleiro que engrandece o Brasil.
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/ SP

Os meus desejos de agora,
juntei-os, pus no correio:
(destino, Natais de outrora),
mas a resposta não veio
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Soneto de 
LUIS VAZ DE CAMÕES
Coimbra/Portugal, 1524 – 1580, Lisboa/Portugal

Soneto 125

Este amor que vos tenho, limpo e puro,
de pensamento vil nunca tocado,
em minha tenra idade começado,
tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
sem temer nenhum caso ou duro Fado,
nem o supremo bem ou baixo estado,
nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
tudo por terra o Inverno e Estio
deita, só para meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
e que essa ingratidão tudo me enjeita,
traz este meu amor sempre em desmaio.
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Trova de
CYNIRA ANTUNES DE MOURA
Santos/SP

Mãos macias ou calosas...
mas pouco importa a estrutura,
quando num gesto bondosas,
suavizam a desventura!
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Poema do Folclore Brasileiro de
CHICO RIBEIRO

Negrinho do Pastoreio

A mão da noite fechara
a porta grande do dia,
era noite e dentro dela
a tempestade rugia...

O vento! Como ventava!
A chuva! Como chovia!
O trovão de boca aberta!
O raio, de quando em quando,
Soltando-se do trovão,
corria dentro da noite,
cortando em riscos de fogo
o seio da escuridão!

Ia fundo a tempestade:
O vento ventando mais,
a chuva chovendo mais.
E o Negrinho, como a ronda,
dentro da noite perdido!...

A tempestade crescendo,
cada vez roncando mais!...

E o Negrinho acocorado
entre as macegas, ouvindo,
ouvindo, vendo e sentindo,
o bate-bate da chuva,
o martelar do trovão.
E o raio...com que violência
cortava o raio a amplidão!...

E o Negrinho ouvindo tudo!
Tudo lhe vem aos ouvidos,
enche-lhe a vista, os sentidos,
menos o passo da ronda,
que lhe confiara o -Sinhô-,
a ronda que a tempestade
de vento e chuva espalhou...

A tempestade crescendo,
cada vez roncando mais!...

Depois, depois ... oh! Senhor!
Depois que tudo acabou,
que a chuva não mais choveu,
que o vento não mais ventou
e o raio se terminou
porque o trovão se calou.

E o Negrinho também!
A não ser pelos milagres,
pelo bem que ele nos presta
quando se perde um tareco,
ninguém mais dentro do mundo
no vão dos dias, das noites,
acompanhado ou sozinho,
conseguiu botar os olhos,
PODE ENCONTRAR O NEGRINHO!
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Silmar Bohrer* (Croniquinha) 125


Música da calha. 

Quem nunca ouviu a música da calha? 

Quem nunca dormiu, sonhou, acordou com o som mavioso da chuva madrugada a dentro?  Quem nunca ouviu o pinga pingar dos pingos, o ressumar calha abaixo, acordando os pensamentos nebulosos em meio ao chuvejar?

A  música da calha é a música da vida.

A música dos dias, das horas, dos segundos. Leva, enleva, conduz o gotejar do certo e do incerto, do bate lá e bate cá, vida a fora, nos rumos do insondável fim dos dias e no inacreditável final da calha .

Tantas noites, tantas chuvas, tantas águas-pingos que descambam por caminhos irremediáveis que nem sempre sabemos onde vão dar - refrigérios e magias, ou asperezas e dificuldades pondo a vida a ressonar. 

Sonoras calhas da vida!
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*Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).

Fonte: Texto enviado pelo autor. 
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Célio Simões* (O nosso português de cada dia) “Pé-de-meia”


Em novembro de 2023 o Governo Federal, através da Secretaria de Educação Básica do MEC, lançou um programa de incentivo financeiro-educacional na forma de poupança, destinado a promover a permanência dos estudantes carentes do ensino médio nas escolas públicas, intitulado de “PÉ-DE-MEIA”. 

Esse auxílio financeiro tem como objetivo viabilizar o acesso à escola e minimizar a desigualdade social entre a nossa juventude, com vistas à inclusão social através da educação, tendo como parceiros estratégicos o Ministério da Fazenda, o Ministério do Desenvolvimento Social, a CEF e algumas destacadas universidades federais. 

A conhecida expressão popular já inspirara Rita Lee, nossa saudosa “Rainha do Rock” falecida em 2023 (que vendeu nada menos que 55 milhões de discos ao longo da vida), a compor uma música de muito sucesso, também denominada “PÉ-DE-MEIA”, no sentido de reserva monetária, conforme se vê na primeira estrofe da dita composição: 

“Preparar esse pé-de-meia
pra enfrentar a velhice
e se leva a vida inteira
pra saber que é uma boboquice
preparar esse pé-de-meia
pra esconder a idade
a desculpa é costumeira
tem que ter personalidade (...)”

Mas aí vem a pergunta: De onde surgiu essa corriqueira expressão? 

A quase unanimidade das fontes informa que ela tem suas origens nos países da Europa, pelo costume que as pessoas tinham de usar um lado da meia, cujo outro já fora descartado, para guardar suas economias. Nossos avoengos copiaram essa prática trazida pelos portugueses e passaram a dissimular o local onde guardavam suas reservas, utilizando as meias que caíam em desuso, escondendo-as com seus tesouros em armários e baús que existiam nos casarões de então, à míngua da existência dos bancos, que só na segunda metade do Século XX ganharam impulso, disseminando agências nas capitais e no interior, trazendo com elas as bem-amadas cadernetas de poupança, reserva de emergência sob a forma de investimento, que se tornou a preferida dos brasileiros, apesar do diminuto rendimento que atualmente oferece.

O certo é que a expressão chegou para ficar e a exemplo do programa do Governo Federal ou da música de Rita Lee, todo mundo a ela recorre quando deseja apregoar que financeiramente já assegurou seu próprio futuro ou dos filhos, que já está “com o burro amarrado na sombra”, ou que o vidão folgado que leva se tornou “mais manso que jumento de verdureiro”... 

Vou fazer meu “PÉ-DE-MEIA” ou estou fazendo o meu “PÉ-DE-MEIA” ouvimos frequentemente dos recém-saídos das universidades, que ainda não se estabilizaram economicamente na vida. Esse “PÉ-DE-MEIA”, escrito com hífen, diz respeito à suada grana que guardamos para uma situação de emergência, para reforçar a aposentadoria ou realizar aquela sonhada viagem, dando-lhe uma conotação exclusiva de reserva pecuniária. Tanto que um espirituoso sujeito metido a filósofo, famoso pela irreverência, costumava dizer:

- Parente, a gente tem que arranjar um jeito de ganhar dinheiro pra fazer o “PÉ-DE-MEIA”. Nem que seja honestamente... 

Se, entretanto, essa mesma expressão for escrita sem o uso do hífen, não significa que ela está incorreta e sim, que a pessoa está fazendo alusão somente à parte da meia que envolve o pé, sem conotação com a reserva de dinheiro ou com o “porquinho” onde as moedas são guardadas. Regra geral, são essas - e apenas essas - as duas maneiras de grafar tal expressão, assim como literalmente são seus dois únicos significados, acima informados. 

Como toda regra tem exceção, que eu saiba existe um terceiro significado, mas esse era utilizado somente pelo vaqueiro “Raimundão Pureza”, um sujeito rude, de pouca conversa, invocado, festeiro e mulherengo, que errava pelas fazendas do Trombetas, facão embainhado balançando na cintura, ganhando a vida como amansador de cavalos para os fazendeiros da região. 

Assustador em sua estatura solar, avesso aos costumes civilizados, não usava sapatos, desprezava sabonete, loção e creme de barbear, cortava o cabelo sozinho para o barbeiro não passar a mão na cara dele, reclamava que quando vestia cueca não acertava a dançar e só dormia depois calçar seus meiões de jogador de futebol, que ele chamava de “MEUS PÉS DE MEIA”, ritual nunca esquecido para que não perfurasse a rede com as unhas dos pés, que ele jamais cortava e nem deixava ninguém cortar!... 
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(*) Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fonte: Texto enviado pelo autor. 
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segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Jerson Brito (Asas da poesia) 04

 

José Feldman* (Os Ratinhos da Sala 006)

Numa Universidade, a sala de aula 006 tinha uma fama peculiar. Não era pela dificuldade das matérias, nem pelos professores excêntricos. Era pelo ar-condicionado, que, ao invés de refrescar, se tornou o centro das atenções. 

No alto, junto ao teto, morava um casal de ratos, que decidiu fazer do ventilador seu lar.

Era uma manhã ensolarada, e a turma de Introdução à Teoria do Caos se preparava para mais uma aula com a Professora Rivalda, uma mulher de cabelo desgrenhado e uma paixão inabalável por teorias bizarras. Assim que os alunos se acomodaram, notaram algo incomum: os rabos dos ratos balançavam suavemente para frente e para trás, como se estivessem dançando ao som de uma música invisível.

— Olhem! — exclamou Ana, a aluna mais observadora da turma. — Tem ratos no ar-condicionado!

A sala toda virou os olhos para o teto. Os rabos dos ratos pareciam ter vida própria, e a atenção dos alunos se desviou completamente da palestra sobre o caos. A professora, sem perceber, continuou sua explicação sobre como o caos pode ser encontrado até nas coisas mais cotidianas.

— E como a teoria do caos nos ensina que pequenas mudanças podem ter grandes consequências… — ela disse, mas a turma só conseguia pensar nos ratos.

— Olha como eles se movem! — sussurrou João, o engraçadinho da turma. — Parece que estão fazendo uma coreografia!

Os alunos começaram a imitar os movimentos dos rabos com suas próprias mãos, enquanto a professora, sem entender o que estava acontecendo, continuava a falar sobre o efeito borboleta. 

— Se uma borboleta bate suas asas na China… — começou, mas foi interrompida por um grito de Maria, que estava na janela.

— Eles estão se aproximando!

Na verdade, os ratos estavam apenas se espreguiçando, mas a turma entrou em pânico. Alguns alunos começaram a fazer piadas, enquanto outros tiravam fotos dos rabos balançantes. A sala virou um verdadeiro pandemônio.

— E se eles caírem? — perguntou Lúcia, com uma expressão de preocupação. — E se forem gigantescos?

— São apenas ratos comuns! — respondeu João, rindo. — Mas se eles caírem, pelo menos teremos um espetáculo ao vivo!

A professora finalmente percebeu a distração da turma e olhou para o teto. Com um olhar confuso, ela disse:

— O que vocês estão olhando? Isso não faz parte da aula!

Mas, ao olhar para os rabos balançando, ela também não pôde deixar de rir. O ar-condicionado tinha se tornado um cenário mais interessante do que sua aula sobre caos e desordem.

— Muito bem, vamos aproveitar a situação! — disse ela, com um brilho nos olhos. — Que tal uma discussão sobre o que o comportamento dos ratos pode nos ensinar sobre a ordem e o caos?

Os alunos começaram a debater animadamente, enquanto os ratos, sem saber que eram estrelas, continuavam sua dança acrobática. Um deles, que parecia mais ousado, desceu um pouco mais perto da borda do ar-condicionado, como se estivesse pronto para um salto.

— E se ele pular? — perguntou Ana, cheia de expectativa.

— Vai ser a primeira apresentação de ratos da história da universidade! — brincou João, fazendo todos rirem.

Finalmente, o ousado rato decidiu descer, mas, ao chegar na borda, hesitou. O silêncio na sala era palpável, todos segurando a respiração. Com um movimento súbito, ele pulou, mas, em vez de cair no chão, foi direto para o colo de um estudante que estava distraído mexendo no celular.

O grito do estudante ecoou pela sala, fazendo a professora quase perder o equilíbrio. O rato, assustado, correu de volta para o ar-condicionado, enquanto a turma explodia em risadas.

— Isso é caos! — gritou a professora, agora realmente empolgada. — Esse é o verdadeiro efeito borboleta!

A aula, que deveria ser sobre teoria, se transformou em um festival de risadas e histórias absurdas sobre ratos e suas aventuras. No final, todos concordaram que a sala 006 tinha se tornado um lugar mágico, onde até os ratos tinham o poder de transformar o tédio em diversão.

E assim, a fama dos ratos se espalhou pela universidade, fazendo com que todo semestre novos alunos se inscrevessem apenas para ver o espetáculo dos rabos balançantes. E quem diria que um ar-condicionado poderia ser o ponto de partida para tantas risadas e aprendizados sobre a vida?

E assim, entre risos e rabos balançantes, a aula sobre o caos se tornou um clássico da Universidade, eternizando os ratinhos da sala 006 na memória de todos.
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* José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Foi professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos, sendo enxadrista de 1a. Categoria; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Paulo Leminski, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente pertence a Campo Mourão/PR. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura, organizador de concursos de trovas, gestor cultural, poeta, escritor e trovador. Diversas premiações em trovas e poesias.

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Sammis Reachers* (Seu Onório – E o peixe que faz piscar o Universo)


Todos os dias, com sábados e domingos neles, ele aguarda as 17h e sai do Bairro Antonina, no município fluminense de São Gonçalo, numa viagem de dois ônibus até a praia de Gragoatá, em Niterói. Escolhe uma posição aleatória no grande calçadão que separa as praias de Boa Viagem e Gragoatá, sempre o ponto mais vazio da noite. Em seguida, lança sua linha de mão – pois jamais gostou de varas de pesca – e aguarda acontecer.

Nunca entendeu o motivo de tal extravagância do Universo, mas, que importa?

Na primeira vez foi assustador, e ele se acreditou morto. Era a terceira ida até o calçadão do Gragoatá, depois de anos pescando apenas na gonçalense Praia da Luz, local que se tornara inviável pela violência. A pesca de linha era sua forma de descontrair as noites, de embriagar – ele que nunca bebia – e engabelar sua solidão. O filho se fora para Anápolis, trabalhar no agro, mas isso era da vida e para tal fora criado. Mas ela... Ela a partida, ela a finada, ela era a sua dor.

Ia pras 20h quando a linha acusou retorno, rompendo a sonolenta divagação do velho solitário.

Ele puxou, e a dádiva do mar e da noite foi uma bela e inesperada raia viola. Susto imediato, pescar uma raia ali na costa, na potência da simples linha!

Ao apanhar o peixe, com cuidado pois jamais manuseara um daqueles, o velho Onório surpreendeu-se sorrindo – sim, sorrindo depois de três anos de um luto travestido de eternidade. 

Ao abrir cerimoniosamente a boca do peixe para remover o anzol, aconteceu.

Sua visão pareceu escurecer, como sucede quando se está prestes a um desmaio, mas logo foi inundada por um clarão oceânico. Três ou quatro segundos foram necessários para ele voltar a abrir os olhos, e agora já não havia noite nem mar.

Sentado num banco da praça Carlos Gianelli, no concorrido bairro de Alcântara, em São Gonçalo, sua primeira sensação foi daquela mão macia e aquecida segurando a sua. Olhou para o lado, e era ela, Amária. Não era possível! Antes que pudesse falar alguma coisa, ela se antecipou:

– Fique calmo, Onório. Eu estou aqui, eu estou aqui. – Ela disse, deitando a cabeça em seus ombros. Ele respondeu reclinando sua cabeça de encontro a dela, apertando ainda mais aquela mão, e só então fixando o olhar na paisagem, banhada pelo mais aconchegante dos sóis. 

Um Fiat Tempra, retinindo de novo, cruzava a rua. Na outra mão, um ônibus da empresa Santa Isabel parava para o embarque de passageiros. Ele trabalhara naquela empresa que já não era, desfeita que fora em 2006. Só então ele deu-se conta: Aquela praça também já não existia; dera lugar a um obtuso shopping. Amária estava bem mais jovem do que quando partira, e isso tinha motivo, legível na paisagem e nas memórias: ele voltara até os anos 1990.

– Eu te amo tanto, Onório. Essa dor, ela é tanta, mas pra que isso? A vida acontece, e morrer foi da vida. Você precisa ser forte, precisa continuar.

– Eu sei. Eu sei! Mas não consigo, não consigo... De dia fico enfurnado naquela casa, ainda ouço a Rádio Tupi, só pra lembrar de quando ficávamos ouvindo as notícias e causos, eu consertando televisores, você na costura... Mas quando a tarde vai caindo eu não aguento, e preciso esquecer. Saio para pescar, e tentar esquecer você, mas não funciona muito bem. Por tantas vezes pensei em me jogar no mar!

– Nem tem pra que disso, Onório! Te conheci macho, macho te escolhi, então honre o que você foi e é. Tenha brios, homem!

– Ô minha fortuna... Só de estar aqui e falar com você, meu Deus, nunca tive um sonho tão doce, e tão real. Cê voltou dos mortos pra estar comigo!

– Ninguém volta dos mortos, meu carneirinho... E nem tem outra vida além dessa que vivi, que você vive. E sonho não tem cheiro. Sente esse cheirinho de angu à baiana, vindo daquela barraca? Aqui não é sonho nem realidade, é uma outra coisa, não tem nome pra isso. Seu amor que fez esse milagre, Onório.

– Mas é lindo, Amária, é lindo. E como você está linda. Esse vestido azul, nem me lembrava.

– Está na hora de você voltar, meu amor.

– Não, não! Que é isso meu doce, aqui é meu lugar, que voltar o quê!

– Aqui nem é lugar, nem é nosso, Onório. Mas aqui estamos, isso foi uma piscadela do Universo, uma graça de Deus. Mas o Universo já está abrindo os olhos.

– Não, não, meu amor, eu te imploro!

– Vai. Amanhã o Universo vai piscar de novo. 

Outro clarão acometeu aos olhos do viúvo, seguido por um escuro manso – processo do início da visão, mas ao revés.

Onório ainda estava com a raia nas mãos – peixe raro, de estranho nome científico, Zapteryx brevirostris, tão ameaçado de extinção quanto o amor. Nativo da Baía de Guanabara, sua pesca era proibida. O velho o lançou de volta ao mar.

E todos os dias, com sábados e domingos e tempestades neles, religiosamente o velho sai de seu agora já não tão mal cuidado casebre, situado numa travessa sem saída no Bairro Antonina, e vai até aquele calçadão niteroiense para pescar a mesma raia, em cuja boca o Universo pisca – ressuscitando, noite após noite, o moribundo Onório e seu amor.
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* Sammis Reachers Cristence Silva nasceu em 1978, em Niterói/RJ, mas desde sempre morador de São Gonçalo/RJ, ambos municípios fluminenses. Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É autor de dez livros de poesia, três de contos/crônicas e um romance, e organizador de mais de cinquenta antologias.  Aos 16 anos inicia seus escritos e logo edita fanzines, participando do assim chamado circuito alternativo da poesia brasileira, com presença em jornais e informativos culturais. Possui contos e poemas premiados em concursos do Brasil, bem como textos publicados em antologias e renomadas revistas de literatura.

Fontes:  Sammis Reachers. Fabulário Índigo. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2024. Enviado pelo autor.
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