quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Aparecido Raimundo de Souza (Quando o Azul e o Branco se misturam...)

DENTRO DO ESTOJO dois lápis de cores diferentes discutem:

O Azul, imponente:
— A minha cor é mais bonita que a sua! 

O branco:
— Seu convencido. Deixa de ser bobo. Eu, o Branco, sou mais querido e amado pela Aninha do que você.

O Azul: 
— Engano seu. Eu sou o preferido dela...

O Branco:
— É mesmo? Desde quando?

O Azul: 
— Desde o momento em que ela foi na papelaria com a mãe, e meu viu dentro da caixinha, entre meus doze irmãos.

O Branco:
— Seu bobo. Bobo e desengonçado. Se acha o tal. 

O Azul:
— De fato, eu não me acho. Eu sou o tal. Se você reparar os cadernos da Aninha, seja o de Matemática, seja o de Português, e até o de Inglês, perceberá que todos os desenhos que ela fez para ilustrarem as páginas, eu me sobressaio. Dou de dez a zero em você!

O Branco:
— Você é um azul metido. Não passa de um desbotado, ou melhor, superado. Já o branco, ou o meu branco, melhor me expressando, está em tudo o que é cristalino... por onde passo, deixo tudo às claras e transparente. O branco mostra os podres do azul.

O Azul:
— Você, seu branco azedo, se esqueceu que eu estou no topo. Sou o azul do céu infinito, o azul das águas do mar imenso. Sou ainda o azul da bandeira e também o azul da Esperança...

O Branco:
— Alto lá. A esperança não é azul. É verde.

O Azul:
— Não mude o rumo da nossa prosa. O seu branco tira o brilho das coisas mais simples. Se você se olhar no espelho, perceberá que em face do descorado que deu origem às suas raízes, você se fez anêmico e quase invisível.

O Branco:
— Olha só o coitadinho, se fazendo de vítima. Cresça, moço. Meu branco está na alvura das nuvens, nos jalecos das pessoas que cuidam dos doentes nos hospitais, no açúcar que desfaz o amargo, na maisena da papa dos nenéns, no sal que tempera os pratos mais sofisticados, igualmente nos refrigeradores (você, por acaso já viu uma geladeira azul?). Também estou no branco da neve que cai, nos cabelos dos longevos, na maioria dos carros que rodam aí pelas ruas da cidade... 

O Azul:
— Não seja por isso: o meu azul está presente nas Araras azuis, nos Gaios azuis, nos Sapos-boi-azuis nas Garças azuis, sem falar que existe uma empresa aérea com aviões azuis cortando os ares deste Brasil imenso. Me faço presente nas campanhas do “Novembro Azul”, que conscientiza o homem a cuidar do câncer de próstata... e um particular que tenho certeza, você nunca ouviu alguém mencionar: as crianças com autismo usam muito o azul em seus desenhos. Mudando o quadro, veja por exemplo, os times de futebol. O Grêmio de Porto Alegre é azul... as mulheres preferem vestidos azuis, sapatos azuis, lingeries azuis... quer mais? O Cruzeiro de Minas é azul. Não posso me esquecer que estou na crista da onda em canções famosas, como “Azul da Cor do Mar”, do Tim Maia, no “Azul” do Djavan, no “Todo Azul do Mar” do KLB...  

O Branco:
— Acabou?

O Azul:
— Sim. Acabei. 

O Branco: 
— Você realmente se acha... cretino de uma figa. Vou lhe dar o troco. Suas proezas são legais e bacanas. Sua cabecinha oca pode até se vangloriar, ou seu ego se imaginar o maioral, o intocável, todavia, ouça o que vou dizer e guarde a sete chaves para nunca se esquecer... você alardeou ser música famosa, time de primeira linha, aviões, carros, o raio que o parta... porém, numa coisa, eu ganho de você. E ganho longe...  

O Azul:
— Diga lá, seu Branco sem noção. Sou todo ouvidos. No que você me ganha?!

O Branco:
— Eu represento a coisa mais importante neste mundo. Maior que seus times, suas músicas, seus cantores, seus aviões... quando tiver um tempinho, pergunte à Aninha... 

O Azul:
— Não vou perguntar nada para ela. Quero saber de você. Fala logo, não estou com paciência.

O Branco:
— Eu represento meu caro companheiro Azul, ou melhor, eu simbolizo, eu patenteio o retrato fiel e sem retorques ao pé da letra, daquilo que toda a humanidade busca incansavelmente: a PAZ!
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APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro "O menino de Andirá," onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal "Municípios em Marcha" (hoje "Diário de Osasco"). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista "QUEM" (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal "O Dia, no Rio de Janeiro." Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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Monteiro Lobato (A mulher dengosa)

Era uma vez um homem que se casou com uma mulher muito cheia de dengues. Fingia não ter apetite. Quando se sentava à mesa era para tocar apenas nos pratos. Comia três grãos de arroz e já cruzava o talher, como se tivesse comido um boi inteiro.

O marido desconfiou de tanta falta de apetite, porque apesar daquele eterno jejum ela estava bem gordinha. E imaginou uma peça.

— Mulher — disse ele — tenho de fazer uma viagem de muitos dias. Adeus.

E partiu com a mala às costas — mas deu jeito de voltar sem ser percebido e de esconder-se na cozinha, atrás do pilão.

Logo que se viu só em casa, a mulher dos dengues suspirou de alívio e correu à cozinha.

— Joaquina — disse à cozinheira — prepare-me depressa uma sopa bem grossa, que quero almoçar.

A negra preparou uma panelada de sopa, que a dengosa engoliu até o finzinho.

Logo depois disse à cozinheira:

— Joaquina mate um frango e prepare-me um ensopado para o jantar.

A negra preparou o ensopado, que ela comeu sem deixar uma isca.

— Agora, Joaquina, prepare-me uns bijus bem fininhos para eu merendar.

E merendou os bijus, sem deixar nem um farelo.

— E agora, Joaquina, prepare-me um prato de mandioca bem enxuta para eu cear.

A negra preparou a mandioca, que a dengosa comeu até não poder mais.

O marido então escapou do seu esconderijo e foi bater na porta da rua, fingindo estar chegando da viagem. Era um dia de chuva bem forte.

Quando a mulher abriu e deu com o homem, ficou desapontada. Ele explicou que havia desistido da tal viagem e voltado.

— Mas maridinho, como chegou você tão enxuto, debaixo duma chuva tão grossa?

O marido respondeu:

— Se a chuva fosse tão grossa como a sopa que você almoçou, eu viria tão ensopado como o frango que você jantou; mas como era uma chuva fina como os bijus que você merendou, eu cheguei tão enxuto como a mandioca que você ceou.

A dengosa ficou admiradíssima daquelas palavras e desapontadíssima ao compreender que o esposo tinha descoberto sua manha. E acabou com os dengues.
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MONTEIRO LOBATO (José Bento Renato Monteiro Lobato) nasceu em 1882, em Taubaté/SP, e faleceu em 1948, em São Paulo. Foi promotor, fazendeiro, editor e empresário. Apesar de também escrever para adultos, ficou mais conhecido por causa dos seus livros infantis. Faz parte do pré-modernismo e escreveu obras marcadas pelo realismo social, nacionalismo e crítica sociopolítica. Já seus livros infantis da série Sítio do Picapau Amarelo possuem traços da literatura fantástica, além de apresentarem elementos folclóricos, históricos e científicos.Em 1900, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1903, se tornou um dos redatores do jornal acadêmico O Onze de Agosto. Escreveu também para periódicos como Minarete, O Povo e O Combatente. Se formou em Direito no final do ano de 1904. Em 1908, se casou com Maria da Pureza. Com a morte do avô, em 1911, o escritor recebeu como herança algumas terras. Assim, decidiu morar na fazenda do Buquira. Ele passou a ser conhecido quando, em 1914, sua carta "Uma velha praga" foi publicada n'O Estado de S. Paulo. Em seguida, o autor criou o personagem Jeca Tatu. Três anos depois, desistiu da vida de fazendeiro e se mudou para São Paulo. Nesse ano, publicou o polêmico artigo Paranoia ou mistificação?, que critica as tendências modernistas. No ano seguinte, comprou a Revista do Brasil. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia. Cinco anos depois, vendeu a Revista do Brasil para Assis Chateaubriand (1892-1968) e decretou a falência da editora Lobato & Companhia, que, a essa altura, já se chamava Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Ele se tornou sócio da Companhia Editora Nacional. Se mudou para o Rio de Janeiro, em 1925. Dois anos depois, foi para Nova York, onde assumiu o cargo de adido comercial. Em 1929, devido à crise econômica, vendeu suas ações da Companhia Editora Nacional. No final de 1930, quando Getúlio Vargas (1882-1954) subiu ao poder, o escritor perdeu seu cargo de adido comercial. Retornou ao Brasil no ano seguinte. Em 1932, foi um dos fundadores da Companhia Petróleo Nacional. Anos depois, em 1941, o autor ficou preso, durante três meses, por fazer críticas ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. Se tornou sócio da Editora Brasiliense, em 1946, ano em que decidiu morar na Argentina, onde foi um dos fundadores da Editorial Acteón. Voltou ao Brasil em 1947 e fez críticas ao governo de Eurico Gaspar Dutra (1883-1974). Em 1922, decidiu concorrer à cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras. Porém, desistiu da candidatura por não querer "implorar votos". Já em 1926, voltou atrás e, novamente, concorreu a uma vaga na ABL, mas não foi eleito. Por fim, em 1944, recusou indicação para a Academia, em protesto por Getúlio Vargas ter sido eleito à Academia Brasileira de Letras em 1941

Fontes:
Monteiro Lobato. Fábulas. Publicado originalmente em 1922. Disponível em Domínio Público.  
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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 12

 

José Feldman (O sonho do poeta)

Texto construído tendo por base a trova de Carolina Ramos (Santos/SP)

Sofredor desde menino 
e tendo o sonho por meta 
quis saber qual seu destino,
diz-lhe o cigano: - Poeta!

Numa pequena cidade do interior de São Paulo, onde as ruas de paralelepípedos contavam histórias de tempos passados, havia um menino chamado Odair. Desde muito jovem, ele se sentia diferente dos outros. Enquanto seus amigos se divertiam jogando futebol ou brincando na rua, ele passava horas observando as nuvens, sonhando acordado e escrevendo os sentimentos que brotavam de sua alma. Era um sonhador, um poeta em formação, mesmo que as palavras ainda não tivessem encontrado seu lugar nas páginas de um caderno.

Ele cresceu em uma família simples, onde o sofrimento e as dificuldades eram companheiros constantes. Seu pai, um trabalhador incansável, lutava para sustentar a família, enquanto sua mãe, sempre otimista, tentava encontrar a beleza nas pequenas coisas do dia a dia. Desde menino, Odair aprendeu que a vida era uma jornada repleta de desafios, mas seu coração pulsava com a esperança de que os sonhos poderiam, um dia, se transformar em realidade.

Certa manhã, enquanto caminhava pela feira da cidade, viu um grupo de pessoas reunidas em torno de um homem distinto, vestido com roupas coloridas e adornos brilhantes. Era um cigano, conhecido por suas previsões e sabedoria. A curiosidade tomou conta dele, e se aproximou para ouvir o que o homem tinha a dizer. Os murmúrios da multidão eram cheios de expectativa, e o cigano parecia ter uma aura mágica que atraía todos a ele.

Quando chegou sua vez, Odair, nervoso, pediu ao cigano que lhe dissesse qual era seu destino. O homem olhou fundo em seus olhos, como se estivesse penetrando em sua alma. Após um longo silêncio, ele sorriu e disse: “Sofredor desde menino e tendo o sonho por meta, quis saber qual seu destino. E eu lhe digo: Poeta!”

Aquelas palavras ecoaram na mente de Odair como um tambor distante. Ele não sabia ao certo o que o cigano queria dizer, mas algo dentro dele se acendeu. O sonho que sempre carregou como um fardo agora se apresentava como uma identidade. Ser poeta era mais do que escrever; era uma forma de viver, de transformar o sofrimento em arte. Sentiu que, de alguma forma, aquele encontro mudaria sua vida para sempre.

Após a feira, ele passou a dedicar-se ainda mais à sua escrita. Cada dor, cada alegria, cada momento de sua vida se tornava um verso, uma estrofe, uma canção. Ele escrevia sobre as lutas de sua família, as belezas do cotidiano, os amores perdidos e as esperanças renovadas. Com o passar do tempo, suas palavras começaram a ganhar vida própria, como se estivessem aguardando o momento certo para florescer.

Porém, a jornada do poeta não era fácil. Odair enfrentou a rejeição de editoras, a crítica de pessoas que não compreendiam sua arte e, por vezes, até a falta de inspiração. Mas, mesmo nos momentos de desânimo, ele se lembrava das palavras do cigano. O sonho de ser poeta era sua meta, e ele não poderia desistir. Assim, continuou a escrever, mesmo quando as palavras pareciam se esconder nas sombras.

Certa noite, enquanto caminhava à beira do lago que tanto amava, sentou-se à sombra de uma árvore e refletiu sobre sua vida. Ele olhou para a superfície da água, que refletia a luz da lua, e sentiu uma onda de gratidão. As dificuldades que enfrentara o tornaram mais forte, mais sensível ao mundo ao seu redor. Ele entendeu que a dor e o sofrimento são partes essenciais da vida, moldando não apenas quem somos, mas também a arte que criamos.

Com o tempo, começou a compartilhar seus poemas em pequenos saraus e encontros literários na cidade. As pessoas começaram a reconhecer seu talento, e suas palavras tocaram os corações de muitos. Aquela conexão que ele sempre buscava finalmente se concretizava. O sofrimento, que antes parecia um fardo, agora se transformava em uma ponte que unia almas.

Anos se passaram, e Odair tornou-se um poeta respeitado em sua comunidade. Com suas publicações e leituras, ele inspirou outros a encontrar suas vozes e a expressar seus sentimentos. O cigano, com suas palavras enigmáticas, havia acertado: o destino dele era ser um poeta, e ele havia cumprido essa missão com coragem e determinação.

Certa tarde, ao receber um prêmio por suas contribuições à literatura, Odair subiu ao palco e, antes de agradecer, lembrou-se do cigano. Ele compartilhou com a plateia a mensagem que sempre guiou sua jornada: “Nunca subestime o poder dos sonhos. Eles podem ser a luz que brilha nas horas mais escuras. O sofrimento é apenas um capítulo da vida, e o que importa é como escolhemos contar nossa história.”

E assim, ele se tornou um símbolo de esperança e inspiração, provando que mesmo as jornadas mais difíceis podem levar a destinos extraordinários. Que, ao longo de nossa vida, possamos lembrar que, mesmo nas sombras do sofrimento, os sonhos são a chave para a transformação e a verdadeira realização.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em patologia clínica, não concluiu o curso superior de psicologia. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil-Suiça, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Brasileira de Letras, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, União Brasileira dos Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente assina seus escritos por Campo Mourão/PR, onde pertence a entidades da região. Publicou mais de 500 e-books. Dezenas de premiações em trovas e poesias.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Baú de Trovas “08”


 351
A vida é um túnel estreito
que à eternidade conduz.
- Só o amor nos dá o direito
ao desembarque na Luz.
A. A. DE ASSIS
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352
Bilhete é sempre um recado
para ser dado escondido
a um alguém apaixonado
por outro alguém proibido!
ADEMAR MACEDO
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353
As rosas do amor, colhi-as,
rosas de vários matizes...
Tenho hoje nas mãos vazias
saudades e cicatrizes.
ANDERSON BRAGA HORTA
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354
Mata a revolta em teu peito,
não a deixes florescer:
rio com pedras no leito
não pode alegre correr!...
ANTÔNIO JURACI SIQUEIRA
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355
Do passado, ouço a cantiga
que recorda, ternamente,
que há sempre uma rua antiga
nos velhos sonhos da gente...
ALBERTINA MOREIRA PEDRO
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356
Tropeiro da mocidade
galopando a solidão,
foste conquista, e és saudade
que deixa rastro em meu chão...
APARECIDO ELIAS PESCADOR
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357
Ternura - ponte afetiva
construída de calor,
que serve, quando se avisa,
de passagem para o amor.
APRYGIO NOGUEIRA
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358
Em tudo existe um encanto:
é regra da natureza.
Alguns tentam, e no entanto,
não enxergam a beleza.
ARTHUR THOMAZ
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359
Num simples verso se prova
este mistério profundo:
- Na pequenez de uma trova
cabe a grandeza do mundo
BATISTA SOARES
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360
Singra os mares desta vida
nosso amor, forte veleiro,
bate a procela atrevida
e chega ao porto altaneiro!
BELARMINO FRANCO
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361
Bem feliz seria o mundo
se pudesse a humanidade
ter um lugar bem fecundo
onde plantasse a bondade.
BENEDITO MOREIRA DE CARVALHO
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362
A lua beija a favela...
A estrela no céu reluz...
- Meu bem, apaga essa vela,
o amor não quer tanta luz!…
CAROLINA RAMOS
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363
Encontrei na minha trova
a vontade de escrever.
A paixão por coisa nova
faz a gente renascer.
CECIM CALIXTO
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364
A noite na minha rua
tem encantos sensuais...
sussurros chegam à lua...
na rua ficam os ais...
CECY FERNANDES DE ASSIS
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365
Foi depois de tantas fugas
que acabei por entender
que sem pranto, dor e rugas,
ninguém aprende a viver...
CÉLIA LAMOUNIER DE ARAÚJO
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366
O orvalho que cai agora
nos sobejos da queimada,
traduz o pranto que chora
a Natureza arrasada!...
CLARINDO BATISTA
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367
Todo livro ,quando aberto,
é pólen, é flor, é fruto...
fechado: é sombra, é deserto,
é silêncio, é campa, é luto.
CYRO ARMANDO CATTA PRETA
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368
Por um futuro de Paz
flores nós vamos plantando,
neste momento fugaz,
por onde vamos passando!
CYROBA BRAGA RITZMANN
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369
Com cautela... Sem conflito,
aprendo a lição do mar:
- foi contemplando o infinito
que eu aprendi a sonhar.
DJALDA WINTER SANTOS
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370
O poeta externa pouco
de sua imaginação,
o resto é um soluço louco
no fundo do coração.
DIOMEDES SANTOS
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371
Do que agitou nossas almas
restam sonhos calcinados,
cingindo as crateras calmas
de dois vulcões apagados.
DOROTHY JANSSON MORETTI
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372
Quando me sinto estressado,
fugindo da realidade,
vou do presente ao passado
pelo túnel da saudade.
DULCÍDIO DE BARROS MOREIRA SOBRINHO
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373
Cada vez que tento, em fuga,
mascarar o meu desgosto,
descubro mais uma ruga
a desmascarar meu rosto...
EDGARD BARCELLOS CERQUEIRA
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374
Anoitece e cintilando
qual lantejoulas num véu,
essas estrelas brilhando
são rastros de Deus no céu!
EDNA GALLO
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375
O poeta é só um sonho
da poesia mais seleta,
e a poesia, assim suponho,
é o ensaio do poeta.
EDNA VALENTE FERRACINI
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376
Nessa roupa provocante,
chamando a atenção do povo,
você fica semelhante
àquela tal... que põe ovo!
ELIANA PALMA
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377
A página amarelada
de um álbum, quase esquecido,
tem a lembrança velada...
De tanto tempo perdido.
ELISA ALDERANI
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378
Velha ponte do caminho
nossa história é parecida:
- Suportamos de mansinho
tantas pisadas na vida!!!
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
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379
Ama a vida, simplesmente,
sem disfarce em seu caminho...
Quem ama a vida não sente
a dor de viver sozinho!
EVA GARCIA
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380
Um fantasma se assanhou
em bater papos, tadinho...
nas mil vezes que tentou,
ficou falando sozinho!
FERNANDO VASCONCELOS
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381
A distância é que nos mata
pois logo vem a saudade;
saudade – presença ingrata
da antiga felicidade.
FILEMON F. MARTINS
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382
Se do barro somos feitos,
e ao barro retornaremos,
porque tantos preconceitos,
se iguais todos nós morremos?…
JOSÉ FELDMAN
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383
– Musas divinas!... Ao vê-las,
no sonho que me seduz,
subo ao ninho das estrelas,
seguindo os rastros da luz!
JOSÉ LUCAS DE BARROS
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384
Eu sou pequeno, seu moço,
mas, quando tiro o chapéu,
minha alma estica o pescoço,
enxerga Deus lá no céu!
JOSÉ MESSIAS
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385
Sertão seco... Longo estio...
Em meio a paisagem triste
uma ponte... Mas o rio
infelizmente inexiste!
JOSÉ TAVARES DE LIMA
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386
Cai a tarde e a passarada
em gorjeios musicais
é orquestra desafinada
na algazarra dos pardais.
LICÍNIO ANTÔNIO DE ANDRADE
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387
Tenho por certo, em verdade,
bem vivo, embora pungente
que a mais pungente saudade...
é aquela de alguém presente!
MAURÍCIO FRIEDRICH
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388
Se um pai se entrega à bebida,
ao filho desencaminha.
O mau exemplo é na vida
pior do que erva daninha.
MILTON SOUZA
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389
Sorrateira, foi chegando 
a danada da saudade;
meu coração machucando,
sem dó e sem piedade!
NEMÉSIO PRATA
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390
Indo por outros caminhos,
neste mundo, às vezes, rude,
vou fugindo dos espinhos,
pois das mulheres não pude!
NILTON MANOEL TEIXEIRA
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391
Subo o caule das ideias,
rumo à copa de Deus Pai;
operário, sem colmeias,
sou a abelha que se esvai.
OLIVALDO JUNIOR
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392
Nos extremos desta vida,
um contraste se percebe:
– A terra chora a partida
daquele que o céu recebe!
OSVALDO REIS
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393
Meu coração suburbano
tu conheces muito bem!
Tem muito do amor humano
que preenche o teu também!
PAULO ROBERTO O. CARUSO
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394
Ainda guardo lembranças
de coisas não permitidas:
pedacinhos de esperanças,
restinhos de nossas vidas.
PROFESSOR GARCIA
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395
No caminho sem atalhos
que leva ao teu coração,
feri meus pés nos cascalhos
que espalhaste pelo chão.
RENATO ALVES
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396
Nas serestas da lembrança
onde o orvalho enfeita a tela,
a minha ilusão te alcança,
mas a razão diz: - Cautela!!!
RITA MOURÃO
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397
É a rua da minha infância!
Revejo a casa... ouço o trem...
E cismo, em sonho e à distância,
que ela envelheceu... também!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
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398
Na vida, eu prefiro o jogo,
não de azar, de sedução...
e, em vez de cartas, o fogo
que incendeia uma paixão.
VANDA ALVES DA SILVA
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399
Aquele que sempre joga
o lixo em qualquer lugar
é o desleixado que roga:
“ –Venha, dengue,  me atacar!”.
WAGNER MARQUES LOPES
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400
Que bom seria um enlace
entre a mente e o coração:
o que a gente desejasse
também quisesse a razão!
WANDA DE PAULA  MOURTHÉ
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Viriato Padilha (Manuel do Riachão)

É bastante conhecida em diversos estados brasileiros, principalmente no norte, a lenda da misteriosa personagem a quem o povo deu o nome de Manuel do Riachão e cujas aventuras satânicas são contadas em verso rústico do Piauí a Sergipe.

Em alguns lugares se acredita que Manuel do Riachão era o Diabo em pessoa. Em outros o apresentam simplesmente como um indivíduo malfazejo e nefasto, que vendera a alma ao príncipe das trevas, afim de se tornar o primeiro tocador de viola e improvisador dos batuques sertanejos.

Em toda parte, porém, Manuel do Riachão figura na tradição como bardo sem rival, se afirmando que sua parada em qualquer lugar era prenúncio de calamidade súbita e inexplicável. O povo guarda lembrança de que secavam os regatos, não obstante a regularidade das chuvas, se dispersavam os rebanhos, surgiam enfermidades no gado, perdiam-se as lavouras, e até as pessoas se sentiam atacadas de sofrimentos estranhos, quando Manuel do Riachão, de viola a tiracolo, atravessava qualquer paragem.

Assim, apesar da admiração que causava por seus altos dotes de improvisador inspirado e violeiro habilíssimo, Manuel do Riachão não podia demorar muito tempo em algum ponto. Desde logo a indignação popular se levantava contra seus costumes singulares, e nela procurava um derivativo por causa dos males que começavam a afligir a terra, sendo o pobre violeiro obrigado a encapar a viola e buscar outro lugar, até que, sendo ali também perseguido, recomeçasse a eterna peregrinação. Assim vivia Manuel do Riachão. Os lugares que de preferência frequentava eram as tabernas, as mesas de jogo e, principalmente, os batuques, pelo prazer de derrotar no verso os mais afamados cantores.

Descrevamos a forma pela qual o povo do norte conta como o sombrio Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.

Numa noite de São João se folgava ruidosamente em modesta casa do sertão cearense. No terreiro crepitava grande fogueira que iluminava toda a frente da habitação. A criançada pagodeava em redor do fogo, assando batata e macaxeira no borralho. Na sala roncava o sapateado, puxado vigorosamente por uns cabras desempenados, vaqueiros, comboieiros e roceiros, e por moças sadias, robustas e esbeltas. Todas aquelas pessoas, ali reunidas em alegre folguedo, se conheciam muito e eram parentes próximos, afastados ou vizinhos bastante íntimos.

Assim se notava em todas as fisionomias bem-estar completo, satisfação imensa, principalmente nos rapazes e moças, quase todos de namoro entabulado ou de casamento ajustado.

Foi no meio dessa festa simples e boa que se lembrou um dia aparecer o misterioso indivíduo cujo nome encabeça estas linhas: Manuel do Riachão, o mais afamado e fantástico violeiro dos sertões do norte.

Esse bardo errante, sempre precedido de antipatia popular, se vira obrigado a abandonar Icó, onde assombrara pela perícia em improvisar mas onde também incorrera gravemente no desagrado público por haver desrespeitado, com uma cantada obscena, uma procissão que se fazia no lugar, sacrilégio que coincidiu com o aparecimento de uma praga de lagarta que devastou completamente os roçados de milho.

A calamidade foi tomada como consequência do desacato religioso, e Manuel do Riachão, temendo violência contra a sua pessoa, bebeu o último gole de aguardente nas tabernas do Icó, pôs a preciosa viola em bandoleira e até lá foi, estrada fora, procurando novos auditórios pra exibição de seus dotes de improvisador.

Gastou dias em atravessar a serra do Pereiro, porém na noite de São João já estava na chapada do Apodi, sôfrego pra cantar, visto como no caminho não encontrara parceiro com o qual se divertir.

Manuel do Riachão passava na estrada, quando viu a fogueira e a festa à qual já nos referimos. Sem hesitação se encaminhou ao lugar da patuscada e, se aproveitando de um momento de suspensão do batuque, chamou a viola ao peito, e cantou, com voz forte, estas duas quadras:

Senhora dona da festa
me ouça, faça favô
Não trago fome nem sede
nem me atormenta o calô
Só quero, senhora minha
dizer aos convidados
que, quando meu peito se abre
se esconde o mais pintado.

Todas as pessoas que estavam na sala, e bem assim a criançada que se divertia em torno da fogueira, correram para perto de Manuel do Riachão que, em pé, no meio do terreiro, continuava tangendo o rasgado na viola, sem dizer palavra, como esperando que alguém aceitasse o atrevido desafio. Muito alto, magro e de longo cavanhaque cor de barba de milho, tinha a perna arqueada em postura mefistofélica, e um riso sardônico arregaçava o canto dos lábios magros e arroxeados.

Naquela festa não haveria alguém que aceitasse o desafio daquele sujeito? Era o que todos, com os olhos, se perguntavam mutuamente, ansiosos pra uma lição ao insolente, e ao mesmo tempo desejosos de novo divertimento.

Não esperaram muito tempo os foliões. Dentre a chusma saiu logo um crioulo de gaforinha (cabelo arrepiado) crescida, Xico Bordão, que, apanhando uma viola, respondeu no mesmo tom e música ao violeiro errante:

No tempo em que eu cantava
Meu peito retinia
Dava um grito no Icó
E no Cariri se ouvia
Senhora dona da casa
faça favô, mande entrá
Quem a tua porta bate
pedindo só pra cantá.

Uma salva estrondosa de palmas, acompanhada de gritaria dos meninos, acolheu a cantiga de Xico Bordão, que, indo ao encontro do Riachão, que continuava sempre de perna arqueada e viola ao peito, o cumprimentou e o tomando no braço, o introduziu na sala. Rapazes e moças se sentaram nos bancos dispostos ao correr das paredes, e tendo a dona da casa chegado dois tamboretes aos contendores, estes se abancaram cerimoniosamente, e depois de chupitar cada um seu copinho de aguardente, começou o torneio poético e musical, que não durou muito, pois Bordão se declarou logo vencido e se retirou da sala, envergonhado.

Estimulados os brios dos assistentes pela derrota do companheiro, empurraram ao meio do aposento outro cantador, Xico Casa-Velha, que também tinha sua fumaça de improvisador.

Este, porém, no fim de duas quadras esmoreceu.

Dizendo seu nome numa quadrinha, Riachão se aproveitou dele, e respondeu que toda a casa velha era tapera. Isso foi suficiente pra confundir o adversário.

Ainda um terceiro cantador se sentou no fatídico tamborete: Era Totonho, filho da dona da casa, e esse também foi levado à parede com a mesma facilidade.

Então ninguém mais quis cantar com o homem magro do cavanhaque vermelho. E Manuel do Riachão, vendo que nenhum cantador vinha ocupar o tamborete vazio, se levantou, fez uma grande mesura e, recuando até a porta, se preparava pra se despedir em verso, como é costume, quando surgiu na sala, com um machete a tiracolo, e sem que alguém soubesse de onde entrara, um rapaz muito pálido, de longo cabelo dourado e anelado, olhos profundamente azuis, envolvido num amplo ponche-pala de cor cinzenta clara.

Esse moço se adiantou na sala, e se sentando no tamborete onde foram vencidos Bordão, Casa-Velha e Totonho, cantou com voz dulcíssima a seguinte quadrinha, em desafio, se fazendo acompanhar no machete:

Seu Manué do Riachão
Não dê já a despedida
Torne a afinar a viola
Que o dia vem longe ainda.

Manuel do Riachão, se sentindo nomear em lugar em que julgava ser completamente desconhecido, teve um estremecimento e fixou os olhos fundos e vivos como brasas no desconhecido que continuava dedilhando no machete, até então conservando a vista abaixada, como que por timidez e recato. A ligeira emoção do violeiro não foi no entanto percebida pelos foliões. E ele, procurando disfarçar, respondeu ao moço com esta quadra arrogante:

Bem sei que o dia vem longe
Temos tempo pra trová
Mas vosmecê se arrepende
Antes do galo cantá.

O moço de olhos cor do céu continuava de fronte baixa, e em sua fisionomia, que parecia anuviada por funda tristeza, nem sinal de emoção denunciou ao ouvir a resposta atrevida de Riachão.

Ao mesmo tempo que em todos os circunstantes crescia o interesse pelo desafio um pressentimento vago lhes dizia que Manuel do Riachão, segundo a frase popular, se estreparia naquela topada. Assim, foi com satisfação que viram o moço do machete ferir de novo o instrumento com as mãos, que eram de uma brancura de cera de carnaúba, e soltar estes versos:

Um ano tão bom de inverno
Que pecados são os teu!
Seu Manué do Riachão
Teu riacho não correu.

Manuel do Riachão tornou a fitar os olhos de brasa no moço do ponche-pala cinzento. O famoso violeiro como procurava saber quem parecia querer revelar ao auditório matuto sua misteriosa e sombria natureza. No entanto não deixou de fazer entrada em tempo e responder com visível mau-humor nos seguintes versos:

Se o riacho não correu
não foi por falta de inverno
É que as águas afundaram
Foram ferver no inferno.

Os caipiras começaram a se admirar da feição estranha que tomava o desafio poético. Quem seriam os dois singulares violeiros, tão estranhos e diferentes nos modos e nas figuras?, perguntavam, chegando as bocas aos ouvidos uns dos outros. Quando as últimas notas que acompanhavam os versos do Riachão se extinguiram, o moço triste do machete descerrou outra vez os lábios, ainda sem levantar a fronte, e cantou:

Seu Manué do Riachão
que triste sina é a tua
Na noite que vosmecê canta
no céu não se vê a Lua.

Riachão se torceu no tamborete, incomodado por essa segunda investida a sua reputação, e apenas o moço cor de cera acabava de desferir a última sílaba do verso, bramiu com voz forte, na qual se percebia claramente a raiva e o despeito:

Se a Lua não aparece
Na noite de meu descante
É, moço do machetinho
Que eu canto só no minguante.

Na verdade Manuel do Riachão era um repentista admirável, e essa resposta tão adequada causou a admiração dos sertanejos. O moço louro, porém, continuava impassível e de olhos fixos no chão. De seu amplo ponche-pala cinzento se flutuava como uma neblina levemente dourada que o envolvia todo, e assim que lhe coube a vez de cantar, gemeu no machetinho, com voz que mais parecia um rosário de suspiros docemente abemolados:

Padre, Filho, Espírito Santo
É o santo sinal da cruz
Bendito seja teu nome
Senhora mãe de Jesus.

E ao mesmo tempo que cantava esta copla o moço do machetinho levantava lentamente os olhos do chão, até os fitar em cheio em Manuel do Riachão, que, sem se saber por quê, se perturbou com a luz serena, profundamente azul que deles jorrava e, em sua confusão, deu uma nota falsa no acompanhamento e não pôde encontrar logo a réplica.

O moço do machetinho tornou a baixar os grandes olhos e, antes que o outro se restabelecesse completamente, lhe despediu mais esta quadra:

Seu Manué do Riachão
um caburé suspirô
Tempere, amigo, a viola
que o bordão desafinô.

Então Manuel do Riachão já se acalmara, e assim respondeu de pronto:

Minha viola, seu moço, tropica, 
mas não focinha. 
Tem ganho em tecla função 
coroa e grau de rainha.

No entanto, apesar dessa bravata de cantador laureado, Manuel do Riachão denunciava no semblante esquálido crescente perturbação. E embora só o encarara de frente uma vez, o moço pálido bem percebia, e assim saiu com esta:

Seu Manué do Riachão,
Uma coisa está se vendo
Tua viola enrouquece
tua voz esmorecendo.

Era verdade o que dizia o moço triste, porém Manuel do Riachão tentava ainda resistir, e assim respondeu, incontinenti:

Não te glorie com isso
Cantante do ponche-pala
Bebi demais no caminho
Sinto um pigarro na fala.

Esses versos eram prenúncio da derrota do terrível trovador. O auditório compreendeu e ficou suspenso dos lábios do cantador cor de cera que, sempre de olhos baixos, tangia no machetinho com tanta doçura que parecia que os dedos vaporosos nem feriam as cordas.

Logo que Riachão se calou, o moço levantou na segunda vez os olhos serenos, tornou a fitar em cheio no violeiro, e cantou com voz mais alta e vibrante:

Seu Manué do Riachão
Meu amigo e camarada
Vosmecê se avexa tanto
Eu me avexo de nada.

Manuel do Riachão, ao sentir de novo a luz clara e profundamente azul dos olhos do fantástico moço pálido, tornou a se confundir: Os dedos rasparam na viola, nervosamente, sem tirar harmonia, o corpo todo tremeu e, na segunda vez nesse desafio, não entrou logo com a réplica, ao que o moço do machete, aproveitando a descaída, tornou de novo a abrir os lábios, e cantou, a voz ficando aguda e firme:

Seu Manué do Riachão
Depois da flô vem a espiga
Quero que vosmecê reze
o padre-nosso em cantiga.

Sentindo essa provocação direta a seu sentimento religioso, Manuel do Riachão se ergueu com um salto. Todo o corpo foi tomado por um tremor convulsivo. E torcendo os braços e as pernas, como se fossem serpentes raivosas, vibrou as cordas da viola com tanta raiva, que as, fazia arrebentar, ao mesmo tempo que berrava com voz sombria:

Seu moço do ponche-pala
Não sou padre pra rezá
Renego os santos da igreja
Renego a pedra do artá.

Ao dizer isto, todas as luzes da sala se apagaram e também a fogueira que crepitava no terreiro. Todos foram tomados de assombro.

No luar que entrava na janela viram que o moço pálido se levantava e se erguia do chão, alguns palmos, ao mesmo tempo que cantava, com voz tão aguda que chegava a doer nos ouvidos, estes versos que foram os últimos do famoso desafio:

Senhora dona da festa
Abra a porta, acenda a luz
Estamos com o Diabo em casa
Rezemos o credo em cruz.

Assim que acabou de cantar se ouviu na sala um estrondo medonho. Se abrindo logo o assoalho, de meio a meio, nele se enterrou e sumiu o nefasto Manuel do Riachão, ao passo que o moço triste e de mãos cor de cera mais se elevava do chão. Seu amplo ponche-pala cinzento se transformara em par de asas brancas como a neblina da manhã. E seu machete tomara a forma duma palma, que comprimiu ao seio e, sempre subindo, voou na janela aberta e desapareceu no espaço, sem que olhos humanos o pudessem seguir.

É assim que o povo do norte conta como Manuel do Riachão desapareceu dos sambas sertanejos.
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ANNÍBAL DE ANDRADA MASCARENHAS (Minas Gerais, 11 de Junho de 1866 – Fortaleza, Ceará, 17 de Setembro de 1924) foi contista, jornalista, dono de jornal, poeta, autor de literatura infantil, historiador, professor, republicano e tradutor brasileiro. Apresentava-se com seu nome próprio e com alguns pseudônimos, entre eles o mais famoso é Viriato Padilha. Também utilizou outros pseudônimos em seus artigos, contos e crônicas, tais como: Aníbal Demóstenes, Tycho Brahe de Araújo Machado, Sancho Pança. Porém é notavelmente conhecido como o primeiro. Foi dono do Jornal Jacobinista chamado A Bomba, mais tarde conhecido como O Nacional.
Algumas Obras: Curso de História do Brasil, 1898; O Fabricante Moderno de Perfumes, Essencias, Sabões e Sabonetes, 1919; O orador do povo, 1935; Histórias do arco da velha, 1897; Os roceiros, 1899; Livro dos phantasmas, 1925; Histórias brasileiras - contos para crianças; Sábios ilustres, etc.

Fontes:
Viriato Padilha. Livro dos phantasmas. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.  
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