sábado, 23 de março de 2013

Soares de Passos (O Buçaco)

Oh! salve, irmão do Líbano,
Que altivo ergues a fronte,
Monarca destas serras,
Senhor da solidão!
Salve, gigante cúpula,
Que ostentas no horizonte,
Erguida sobre as terras,
A cruz da Redenção!

Em teus agrestes píncaros
O homem vive e sente
Mais longe deste mundo,
Mais próximo dos céus:
Por isso, nos seus êxtases,
O monge penitente
Aqui meditabundo
Se erguia aos pés de Deus.

Por largo tempo o cântico
Do pobre cenobita
Soou na ermida rude
Da tua solidão:
Hoje o silêncio lúgubre
Somente nela habita,
Silêncio d'ataúde
Em fúnebre mansão.

Porém se os coros místicos
Findaram sua reza,
Se a voz do santo hossana
Em ti já feneceu;
Tu vives, e inda incólume
Ao Deus da natureza,
Calada a voz humana,
Descantas o hino teu.

Oh! como és belo, erguendo-te
À luz do novo dia,
Que os mantos de verdura
Te banha de fulgor!
Quando o gemer dos zéfiros,
Das aves a harmonia,
Acordam na espessura
Louvando o Criador!

Mas quanto mais esplêndido
Serás quando a tormenta,
Sublime, rugidora,
Em teu regaço cai!
Quando de mil relâmpagos
Teu cume se apresenta
C'roado, como outrora
O fulgido Sinai!

Quando os tufões indómitos,
Rugindo nas escarpas,
Se abraçam às torrentes
Com hórrido fragor!
Depois, em negro vórtice,
Desferem nas mil harpas
De teus cedros ingentes
Um cântico ao Senhor!

Tu és grandioso; o ânimo
Que a sós aqui medita
Recolhe altas imagens
De santa inspiração.
Oh! porque veio túrbida
A guerra atroz, maldita,
Soltar nestas paragens
As vozes do canhão?

Dum lado eram as bélicas
Hostes de Bonaparte;
Do outro heróico e ufano
O povo português:
A liberdade e a pátria,
Ergueu seu estandarte,
E a história do tirano
Contou mais um revés.

Tudo passou: sumiram-se
Vencidos, vencedores;
Té mesmo do gigante
Soou a hora fatal;
Só tu, sorrindo impávido
Do tempo e seus furores,
Inda ergues arrogante
Teu vulto colossal.

E cada vez que fulgido
Renasce o novo dia,
De nova luz te banhas,
Despindo os negros véus;
E dizes, em teu júbilo,
Ao sol que te alumia:
– O rei destas montanhas
Saúda o rei dos céus.

Depois, ao vê-lo pálido
Nas vagas do horizonte,
Pareces ao mar vasto
Dizer com altivez:
Em teu regaço, ó pélago,
Tu lhe sumiste a fronte:
Avança, que de rasto
Virás beijar-me os pés.

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Ditados Populares do Brasil (Letras G-H-I-J-L)

G

Gato escaldado de água fria tem medo.
Gostar de mulher é herança do meu pai.
Guiado por Deus e dirigido por mim.
Gosto não se discute.

H

Há males que vêm pro bem.
Há sempre um chinelo velho para um pé doente.
Homem é como fósforo, sem cabeça não vale nada.
Homem de juízo não diz o que faz, mas nada faz que não possa ser dito.
Hoje é melhor do que ontem e amanhã será melhor do que hoje.
Hoje vejo chorando quem riu de mim no passado.
Homem que bebe e joga, cachorro que pega bode e mulher que trai uma vez estão perdidos os três.
Homem velho e mulher nova resultam em corno ou cova.

I

Inflamável que só viúva moça.
Inimigo da vida é a morte.
Ir num pé e voltar no outro.
Isto são outros quinhentos.

J

Jogar conversa fora.
Justo como boca de bode, certo como pau de cambiteiro.

L

Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.
Lágrimas de crocodilo.
Lágrimas de herdeiros, sorrisos secretos.
Língua de sogra.
Língua não tem osso.
Longe dos olhos, perto do coração.

terça-feira, 19 de março de 2013

Aureliano Lessa (Poesias Escolhidas)

ENTUSIASMO

Away, away
Byron.


I

Muito bem, meu ginete brioso,
Morde o freio, sacode essas crinas,
E responda teu rincho fogoso
Ao rugido feroz do canhão!
Corre, voa por essas campinas
Alastradas de tropas imigas,
Que aí ceifarei como espigas
Da seara, coa espada na mão!

II

Voa, rasga esse muro de ferro
Com teu peito de ferro mais forte,
Que ele há de tombar como um perro,
E tu hás de esmagá-lo no chão;
Minha espada é a fouce da morte,
Teu galope é veloz como o raio;
São meus golpes letais: onde caio
Teu nitrido é a voz do canhão!

III

Eia, avante! Derruba por terra
Esse bosque enfeixado de lanças,
E mil crânios e ossos enterra
De teus rápidos pés ao tocar!
Que no mesmo caminho onde avanças
Após ti vem correndo a vitória!
Oh! Tu sabes ao porto da glória
Entre nuvens de balas chegar!

IV

Tua cauda orgulhosa é açoite
Que nas faces dos vis tu resvalas;
Tua cor é mais negra que a noite,
Minha espada é mais clara que o Sol!
São teus olhos flamívomas balas,
Nosso sopro é sulfúrea fumaça!
Quem de ver-nos tiver a desgraça,
Não verá mais clarão do arrebol.

V

Oh! Não dera estes campos medonhos
Pelos reinos que existem na terra;
Não trocara por jogos risonhos
Mil perigos que vêm de tropel!
O meu reino é o campo da guerra,
Minha espada é meu cetro e tesouro,
Minha c’roa é um ramo de louro,
O meu trono este bravo corcel!

A TARDE
II

Mãe da melancolia, ó meiga tarde.
Que mágico pintor bordou teu manto
Co'as duvidosas sombras do mistério!...
— Talvez são elas encantados manes
De nossos pais, que errando pelos ares
Vêm segredar co'a nossa consciência
Dúbios emblemas de celestes frases...
— Talvez são elas pálido reflexo
De um coro d'anjos que a milhões de léguas
Sobre uma nuvem d'ouro descantando
Ante a face do sol longínquos passam...
Não sei! Há dentro d'alma tantas coisas
Que jamais proferiram lábios d'homens...
Entretanto me ecoam pelo espírito
Etéreos sons de peregrina orquestra.
Um doce peso o coração me oprime.
Meu pensamento em sonhos se evapora.
Té de mim próprio sinto um vago olvido.
Um sereno rumor, que a alma dormenta.

III

Salve, filha dos raios e das trevas.
Melancólica irmã das noites pálidas!
Quem te não ama?... A natureza toda
Murmura ao teu passar místicas vozes
Repassadas de unção: — todos os olhos
Passeiam tuas tépidas campinas
Bafejadas de nuvens — té parece
Que a terra, suspendendo o giro, escuta
O adeus que o sol te envia além dos montes.
— Limpa o suór o peregrino errante.
E arrimado ao bordão mudo contempla-te
Esquecido do pouso: — sobre o cabo
Da rude enxada recostado cisma
Nos africanos céus o pobre escravo
Que exausto de fadiga te abençoa
Do fundo d'alma em bárbara linguagem.
Mensageira de amor, tu anuncias
A hora propícia aos sôfregos amantes
Da noturna entrevista; e a donzela
Erma de amor te acolhe pensativa,
Fantasiando quadros de ventura.
Que o vazio do coração lhe supram.
— Talvez agora na floresta anosa.
Proscrito errante, o índio americano
Pára e eleva-te um cântico selvagem
Nunca ouvido dos troncos que o circundam.
— Fadem os deuses pouso ao peregrino.
Liberdade ao escravo, amor à virgem.
E tardes, como esta, ao triste bardo.

ÊXTASIS
Quando, após longa e pensativa pausa
— Eu te amo — dizem teus sonoros lábios,
Baixa do céu e pousa na minha alma
Uma nuvem de ofertas tão suaves;
Como de um sonho os mágicos eflúvios...
— Em êxtases me embebo, e nem meus lábios
Podem ao menos sussurar
— Eu te amo! —

A tua voz percorre as minhas veias,
Banha-me o coração, cerca minha alma.
Enleia-me a existência, e — teu escravo —
Sofro, gemo, desvairo, e quase expiro...

MENSAGEM

(...)
Eu inocente,
Ora voando,
Ora pousando,
Para buscar
Meu alimento,
Não tinha assento.

Eu não podia
Pousar nas flores
De mais licores
Para os chupar;
O vento dava
E me levava...

Um desgraçado,
(De certo o era!)
Disse-me: espera.
Animal lindo,
Vem adoçar
Meu pranto infindo.

Conta a Augusta
Os meus amores,
Que colhe flores
Sem suspirar:
Quanto suspiro,
Quanto deliro.

Conta que viste,
Já sem encanto,
Meu rosto pranto
Triste banhar;
Ah! dize à bela
Que a causa é ela,

Conta que sorves
Da flor a vida
E que, bebida,
Vais divagar;
Que assim sem norte
Dá-me ela a morte.

Conta-lhe quanto
És inconstante
Sem um instante
Jamais parar:
Que tal, ingrata,
Ela me mata...

Co'as asas liba o pólen da cheirosa
Rosa
Que no jasmíneo seio a donzela
Zela,
Mostra-lhe esquivo perto o mais orlado
Lado
Das franjas tuas: se ela te demanda.
Manda
Veloz adejo aonde não percorre...
Corre
Para quem pressuroso aqui te aguarda:
Guarda
Contra ferros de amor laços amenos
Menos
Que os que meu extremo aqui prepara
Para
Uma paixão feliz que não se esvai.
Vai...

 O ECO
Quando eu era pequenino
Subia alegre e traquino
Da montanha o alto pino,
Para os ecos escutar;
Supondo ser uma fada
Que me falava ocultada,
Para ouvir sua toada,
Gritava à toa no ar.

(...)

Ouvir do eco eu queria
Todo o nome que eu dizia;
Mas o eco repetia
Só das palavras o fim;
De certo, o mesmo falando
Estava o mesmo pensando;
E o eco me confirmando,
Eu ia dizendo assim:

"Se o teu amiguinho
Fiel não te enfada,
Fada,
Vem já responder-me
Com tua voz linda,
Inda
Se as coisas bonitas
Que alguns me disseram,
Eram
Verdade ou mentira.

Meu peito esta tarde
Arde
Por saber se as fadas
Um belo condão
Dão,
Que faz criar asas;
Que vai se volvendo,
Vendo
Jardins de outras terras
Cheios de cheirosas
Rosas
Ao pé de uma fonte...
Oh! isto é assim?...
Sim!
Pois, dai-me umas asas,
Quero ir na corrente
Rente,
Ter a mãe das águas
Que está no profundo
Fundo;
E ver perto a nuvem
Que no céu desliza
Liza;

E ver se as estrelas
São frias, ou quentes
Entes:
Se há anjos na lua.
Se o sol tem cabelos
Belos...

TRISTEZA

Dizes que meu amor te encanta a vida
Teus alvos dias, teus noturnos sonhos:
Mas tens a face de prazer tingida,
Teus lábios são risonhos!

Não podem florescer o amor e o riso
Nos mesmos lábios da paixão o fogo
Mata as rosas do rosto, de improviso
Gera a tristeza logo.

Olha: minh'alma é pálida e tristonha.
Minha fronte é nublada e sempre aflita.
Entretanto, uma imagem, bem risonha
Dentro em minh'alma habita.

Mas esse ermo sorrir que tenho n'alma.
Não é como da aurora o riso ardente:
É o sorrir da estrela em noite calma.
Brilhando docemente.

Ah! se me queres a teus pés prostrado.
Troca o riso por pálida beleza:
Mulher! torna-te o anjo que hei sonhado.
Um anjo de tristeza!

 Fonte:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/Aureliano_Lessa.htm

Aureliano Lessa (1828 – 1861)

(Diamantina MG, 1828 - Conceição do Serro MG, 1861)

Iniciou, em 1847, o curso de Direito em São Paulo; no entanto, formou-se bacharel em Direito pela Faculdade de Olinda PE, em 1851.

Em São Paulo, conviveu com Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães.

Trabalhou com procurador fiscal da Tesouraria Geral de Minas, em Ouro Preto MG,  e advogado em Diamantina e Conceição do Serro MG.

Não publicou livros em vida; seus poemas foram reunidos no volume Poesias Póstumas, publicado em 1873, com nova edição em 1909.

Poeta da segunda geração do Romantismo brasileiro, Aureliano Lessa, segundo o crítico Augusto de Lima,  “escrevia principalmente para o povo, se é que ele não se preocupava simplesmente com as suas próprias impressões, dando-lhes a forma que mais convinha ao meio simples em que veio viver”.

Sabe-se que foi autor de modinhas, somente editadas por familiares após seu falecimento. Uma delas, "Lembranças do nosso amor", editada em 1865, foi muito cantada em Minas, rendendo duas versões: a de Laurindo Rabelo, "À minha mulher", é tida como previsão da própria morte desse compositor. Outra versão é a engraçada paródia de Bernardo Guimarães, publicada em 20 de junho de 1867, no jornal "Constitucional" de Ouro Preto.

Vês lá na encosta do monte,
Mil casas em grupozinhos,
Alvas, como cordeirinhos
Que se lavaram na fonte ?!...
Não vês deitado defronte
Qual dragão petrificado
Aquele serro curvado
Que mura a Cidadezinha,
Pois essa cidade é minha
É meu berço idolatrado!...

Ali meus olhos se abriram
À Luz matinal da vida,
Lá primeiro à Mãe querida
Meus lábios de Amor sorriram ...
Lá seu nome proferiram
Antes do nome de Deus !...
Lá tentei os passos meus
Da vida na estrada rude
Lá aprendi a Virtude
Minha Mãe, dos lábios teus.


Olha como ela se inclina
Pela esmeralda do monte
Molhando os pés numa fonte
De água fresca e cristalina.
Olha como ela domina
Esses serros alcantis
Com seus ares senhoris
Com seu cofre de Diamantes
No meio de seus Amantes
Distribuindo rubis.


Salve Atenas tão risonha
Da verde e saudosa Minas
Rainha dessas colinas
Que banha o Jequitinhonha
Teu vassalo; ele nem sonha
Quebrar-te o jugo real...
E vem, a um leve sinal,
Com seus Rubis, com seu Oiro
Derramar no teu tesoiro
O seu tributo anual.


Feliz quem no seio teu
O sopro da Providência
Faz brotar a Inteligência,
Pérola fina do Céu,
Como da Noite no véu
Faz mil pérolas fulgir
Tu tens ó rival de Ofir,
Outras jóias, outros brilhos
Teu tesoiro são teus filhos,
Tua glória é seu porvir.

Seu Porvir, sim, que amanhece
Lá nos longes do Futuro,
Não o meu, que um Fado escuro
De negros fios só tece...
Pátria! tudo me falece
Para erguer teu esplendor
Mas do pobre trovador
Terás o óbolo pobre
No peito um Coração nobre
Na lira um canto de Amor!...


Fontes:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/Aureliano_Lessa.htm
http://passadicovirtual.blogspot.com.br/2009/12/aureliano-lessa.html

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 23. O Soneto

Se eu tivesse de fazer perante o vigário uma confissão minuciosa, raspando as voltas mais fundas do meu ser, não encontraria de certo explicação para o fato de o soneto de Gabriela me haver tornado, hoje, ao espírito-não à lembrança apenas, ao espírito, à alma. Só posso dizer que, ao vir-me o condutor cobrar a passagem, nem o senti chegar, estava absorvido na segunda quadra.

A vida é um céu que uma só vez se estrela;
toda estrelada e rutilante a viste...

Não me satisfizeram estes versos, nem como idéia nem como forma. Chamar céu à vida é sempre extravagância; demais, um céu que só se estrela uma vez, não pode ser senão um céu de papel pintado. A construção "a viste" era ambígua para o ouvido. Por fim, o período não dava liga. Modifiquei-o:

Contudo, a vida forte boa e bela:
sorriu-te, tanto quanto lhe sorriste.

Podia servir. O diabo era a continuação. Eu não tinha, na verdade, a mínima idéia assentada acerca do caso psicológico de Gabriela, nem sequer sabia que forma e que alma teria essa emanação possível do meu cérebro. Ao contrário de Minerva ao sair da cabeça de Júpiter, estava completamente desarmada. E nem mesmo queria acabar de sair. As casualidades da versificação é que me diriam afinal o que eu houvesse de pensar a respeito. Grande coisa, a versificação.

Contudo, a vida foi-te boa e bela:
a vida te sorriu, tu lhe sorriste...

Dados estes dois versos, o campo de exploração restringia-se. O problema fixava-se em três incógnitas: x) dois decassílabos, em ela e iste; y) que desenvolvessem o pensamento começado; z) tornando possíveis os tercetos com um fecho reluzente e forte.

Hoje, ela te maltrata, e tu caíste.

Aqui, o verbo caíste (le mont est créateur) sugeriu-me espontaneamente este quarto verso:

caíste, pobre moça, na esperança!

Não estaria mal, se eu quisesse fazer humorismo. Bastava modificar de leve os versos
antecedentes:

Outrora, a vida aparece-te bela;
acenou-te, sorriu. Tu lhe sorriste.
E a seus braços voaste. E enfim caíste,
caíste, pobre moça! na esparrela.

O mais engraçado desse humorismo é que a idéia em si é perfeitamente justa e muito séria. A vida, de fato, estende às almas jovens e sequiosas umas fatais urupucas, tentadoras e terríveis, onde elas se debatem e se magoam. Mas o "cair na esparrela" tornou-se cômico pela vulgaridade, e a vulgaridade é o sentido moral figurado. Sentidos profundamente imorais, estes sentidos morais, que apagam tudo quanto há de emoção poética e de pungente verdade humana em tantas metáforas enérgicas e felizes. -Como quer que seja, eu agora já queria bem à moça, como as mães já amam os filhos ainda no ventre, e detestei a idéia de impor à minha criatura um indumento grotesco. Nem que ela fosse real! Não, o soneto havia de ser afetuoso e nobre.

Outrora, a vida apareceu-te bela;
acenou-te, sorriu. Tu lhe sorriste.
E a seus braços voaste; e assim te viste
presa das graças lacerantes dela.

Ora, bem. Faltavam os tercetos. Estava a ensaiar-me para pescar os tercetos no vasto mundo das possibilidades ideais, quando o condutor me chamou ao mundo estreito das
impossibilidades ordinárias:

"O senhor volta para trás?"

O bonde tinha chegado ao ponto final e ia recomeçar o giro. Saltei dele e do sonho (assim chamam os poetas a estes exercícios, que são os mais conscientes e espertos de quantos se possam imaginar) e corri à repartição. -Talvez que disto fique dependendo a inexistência de mais uma obra-prima na literatura nacional. Mas, quem sabe? Ego dormio et cor meum vigilat.

Fonte:
Domínio Público

Antônio Carlos Ferreira de Brito [“Cacaso”] (Madrigal Para Um Amor)

"A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber  quem me mata."
(Cecília Meireles)


        Luz da Noite Lis da Noite
        meu destino é te adorar.

        Serei cavalo marinho
        quando a lua semi fátua
        emergir de meu canteiro
        e tu tiveres saído
        em meus trajes de luar.

        Serei concha privativa,
        turmalina, carruagem,
        Mas só se tu, Luz da Noite,
        teu delírio nesta margem
        já quiseres desaguar.

        (Não te faças tão ingrata
        meu bem! Quedo ferido
        e meus olhos são cantatas
        que suplicam não me mates
        em adunco anzol de prata!)

        E quanto nós nos amamos
        em nossa vítrea viagem
        de geada e de serragem
        pelo meio continente!

        Luz da Noite Lis da Noite
        meu destino é te seguir.

        Meu inábil clavicórdio
        soluça pela raiz,
        e já pareces tão farta
        que nem sequer onde filtra
        meu lado bom te conduz:
        Minha amiga vou fremindo
        embebido em tua luz.

Eduardo Prado Coelho (Teolinda Gersão: O Silêncio)

No fim da primeira parte de Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector escreve pela voz da protagonista Joana: «Resvale, de uma verdade a outra, sempre esquecida da primeira, sempre insatisfeita. Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de círculos inteiros, fechados, que se isolavam uns dos outros. (...) Continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida, jogando-os de lado, murchos, cheios de passado. Por que tão independentes, por que não se fundem num só bloco, servindo-me de lastro? É que eram demasiado integrais. Momentos tão intensos, vermelhos, condensados neles mesmos que não precisavam de passado nem de futuro para existir. Traziam um conhecimento que não servia como experiência – um conhecimento directo – mais como sensação do que percepção. A verdade então descoberta era tão verdade que não podia subsistir senão no seu recipiente, no próprio facto que a provocara, Tão verdadeira, tão fatal, que vive apenas em função de sua matriz. Uma vez terminado o momento de vida, a verdade correspondente também se esgota.»

Mobilizo o nome de Clarice, neste primeiro lance de aproximação de um livro, por vários motivos. Em primeiro lugar, porque Clarice Lispector é um nome que ocorre ao longo da leitura do livro de que falo. Mas também porque, na citação feita, se esboça uma teoria de narração de que a narrativa de Teolinda Gersão se torna exemplo: cada experiência, cada acontecimento, forma o seu círculo, o espaço da sua verdade evidente. Nenhum destes blocos se soma a outro, nenhum lastro se define: bloco a bloco, cada bloco justapõe-se, condensa-se na sua matriz, abre e fecha um círculo de vida, traz um conhecimento nómada que nunca se acumula num saber da experiência.

Utilizando a forma do círculo, Teolinda Gersão faz de cada um dos três blocos do seu livro um círculo de vida. Contar não é aqui sobrepor factos, mas alargar progressivamente o impacte da pedra ao cair na água. A forma circular fechada é aqui um modelo feminino de abertura: «continuo sempre me inaugurando». E é a nitidez de uma linha recta que nos surge como a forma masculina da clausura.

2

De um lado, Lívia. Do outro, Afonso.

Quando Lívia se imagina, o seu nome alarga-se também: Lavínia. O paradigma é o mesmo: «palavra esdrúxula, sobe até um ponto alto e parte-se de repente» (p. 18). Cada nome é um círculo que se abre e fecha. E por vezes se desdobra: «Lídia, íris, ígnia, um nome esdrúxulo» (p. 47). Ou, se preferirem, um olhar, um fogo, um círculo de fogo, um sol.

Do lado oposto, temos os nomes masculinos, ou o das mulheres que se incrustaram na ordem masculina: a primeira letra, o A, o paradigma dos nomes ordenados: Afonso, Alfredo, Alcina, Ana.

E ainda, intermediários, os nomes que começam por letras do meio: H. J. Mais concretamente, Herberto, Jorge.

E é tudo.

3

Se Lívia e Afonso se amam, se Lívia arranca Afonso a Alcina e vive com Afonso, mas foge, ao aperceber-se que Afonso segrega sempre a mesma relação («se não te deres conta e não lutares depressa, esta casa será, de repente, a outra, de onde procuraste, através de mim, uma saída» – pp. 83-84), o essencial da narrativa O silêncio está em que neste amor se cruzam dois mundos que se não tocam. Se quiserem, todo o livro de Teolinda Gersão modula o famoso aforismo lacaniano: «Il n'y a pas de rapport sexuel».

Mais do que contar experiências de acerto ou desacerto, exaltações ou simulacros, Teolinda Gersão mostra-nos a guerra dos mundos, «a tensão entro ambos, desde o início» pág. 33).

Assim, Lívia e Afonso são personagens reais e há deles uma história que se poderia desfiar. Mas aqui situamo-nos noutro nível, noutra instância de abordagem: entre os dois campos há relações de perigo e resistência, há agressão e invasão, há medo ou tréguas («limites tácitos a todas as palavras» – pp. 11-12). Há também momentos de vitória (p. 23), de defesa ou de aprisionamento («Porque era preciso defender-se contra ele, soube, sentindo que estava presa» – p. 61).

Todas as relações se estabelecem nestas fronteiras intensivas: «Pessoas-campos magnéticos, zonas de tensão, que se chocavam com outras, eram interrompidas por outras, lutavam com outras, originando novos campos de tensão» (p. 51). No limiar do amor, a tensão converte-se em violência: «violência apenas, dissera-lhe, ele exercia sempre violência contra ela (...) a tensão entre eles era assim entre as coisas imóveis e as coisas movediças, entre a ordem e uma desordem contra a qual, obscuramente, ele se defendia? (...) também ela exercia violência contra ele, estava de repente tão perto que ele caía no seu campo magnético, na sua zona de tensão, e se ela desse mais um passo, um único, ele ficaria subitamente vulnerável» (p. 86).

O amor («não há nada no amor, não há talvez o amor, há o desejo e a satisfação do desejo» – p. 60) desenha-se sobre este fundo de impossibilidade: a não-inscrição, no espaço simbólico da fala, do real da relação sexual. Ou, por outras palavras: «reconheceu que eles eram um homem e uma mulher que não se amavam, porque não conseguiriam falar nunca» (p. 109). De certo modo, o silêncio começa ai, onde a relação se faz não-relação, trabalho da morte sobre o corpo.

4

Mas Lídia imagina – as imagens multiplicam-se, proliferam os círculos do imaginário. Arrisquemos uma fórmula: o amor é o círculo imaginário da relação prevalecendo sobre a

não-relação, o precário triunfo do círculo sobre a recta, a (in)decidida linha que hesita e se

encurva. Como dirá Barthes noutro contexto: «Um homem não é feminizado porque é invertido, está apaixonado. (Mito e utopia: a origem pertenceu, o futuro pertencerá aos sujeitos em que há feminino)» (Fragments d’un discours amourex, p. 20).

Lídia imagina, Afonso rectifica. Mas a rectificação é recondução à recta. Por isso Lídia dirá: «e agora eu contarei de novo e se quiser mudarei tudo e mentirei se quiser, porque tu não estarás aqui para dizer que minto, e nada do que eu disser poderás rectificar – colocar em linha recta – agora as coisas podem girar livremente em círculo, em espiral, em leque, desprendem-se das mãos e transformam-se e ninguém irá prendê-las nunca, estou sentada no chão e vou traçando em verde-escuro uma figura que é apenas e sempre provisória, e devagar irei pensando coisas que o mais leve movimento modifica, uma escrita sobre a água, movimentos da água» (pp. 75-76).

E há mais círculos: uma vez é o «conjunto de pequenos jardins girando no espaço, uma espécie de sistema solar» (p. 13); outra vez, «ela era de repente redonda e luminosa, um corpo» (p. 45); mais tarde, é um guarda-chuva ou um guarda-sol: «ela abria um guarda-sol na varanda e sonhava debaixo do guarda-sol, ou abria um guarda-chuva na rua, e sonhava debaixo do guarda-chuva, onde ele não pudesse ver a sua cabeça e os sonhos que corriam dentro dela» (p. 57).

Lídia, disse Afonso voltando, chamando já de longe, e agora ele vinha subindo pela duna e quando chegasse seria de repente o fim do Verão, o vento começaria a varrer as folhas e uma aragem fria subiria do mar, na tarde rápida, seria preciso correr as cortinas, fechar as portadas das janelas, acender a lâmpada do tecto e colocar junto da porta as malas já fechadas (as cadeiras vazias, as jarras sem flores, um chapéu de palha dentro de um armário entreaberto), venha muito devagar, pediu, dentro de si mesma, debruçada à janela, venha o mais devagar que puder, o cheiro quente do mar, do tojo, de vento, do alecrim bravo, de coisas misturadas que existem brevemente, neste momento existem e amanhã estarão mortas, o vento levantando-se, uma nuvem, uma sombra, uma onda fétida, a morte do mar, as praias negras, pássaros caindo em pleno voo, assomou ao portão e em dois passos estava junto dela, e tarde, disse, e pegou numa das malas, venha o mais devagar que puder, o cheiro do mar, do vento, do alecrim bravo, de coisas misturadas que existem brevemente, neste momento existem, e já ficaram de repente para trás, uma casa de areia, uma casa de vento e de espuma.

Em torno de Afonso, Lídia traça o laço da captura, «e descrevendo em volta dele um círculo estreito, cada vez mais estreito, chegaria a um ponto em que ele não se defenderia mais» (p. 38).

5

Círculo aberto, Lídia existe incompleta e em movimento.

Por isso ela se define pela proliferação. Das suas mãos solta-se o inumerável. Passa um cardume negro. Afonso vê cem peixe – não os conta, claro, mas vê apenas o que imagina ser provável. Mas Lídia já não vê, imagina o que deseja – e por isso proclama: eram mil. Eram mil peixes, disse. Contei-os um por um e eram mil.» (p. 48). Milagre dos peixes: Lídia conta um por um o incontável do desejo.

6

Diremos que o espaço de Lídia é o infinito do deserto: «era como caminhar por um areal infindável, uma praia deserta e lisa, contando unicamente com o impulso do seu corpo andando» (p. 24). Por isso a areia a acompanha: «aproxima-se descalça, pisando a areia que se solta do seu corpo» (p. 22). Areia ou arroz: «abriu finalmente um frasco e retirou uma mão-cheia de arroz, deixou-o cair aos poucos, entre os dedos, como areia, escutou o ruído que fazia ao cair na porcelana fria» (p. 60).

Na relação Lídia/Afonso, o infinito de areia em que Lídia se move encontra em Afonso o seu limite: ilusão do suporte, do apoio, da barreira contra a loucura do ilimitado. Lídia dirá: «porque eu era vaga e difusa e sem fronteiras, igual a tudo e a nada» (p. 35). E por isso há uma razão de ser para Afonso: «Talvez porque eu procurava um enquadramento, um limite, uma forma, porque estava perdida na multiplicidade das coisas» (p. 34).

7

Todo o livro se constrói numa duplicidade: não propriamente entre o que se «pensa» e o

que se «fala», mas entre aquilo a que Deleuze chamaria as linhas molares da conversa e as linhas moleculares da conversa. Num primeiro plano, sempre esbatido, temos os grandes, blocos de um diálogo. E depois, num segundo plano, insistente, obstinado, o plano molecular das deslocações imperceptíveis, das grandes acelerações ansiosas, dos desprendimentos clandestinos, da poeira obscura das palavras. Todo o entendimento amoroso se equivoca nas calhas deste desentendimento fundamental – espaço de tensão que neste desequilíbrio se vai acumulando até à explosão final da narrativa no fio da terceira linha submersa: o curso desse, «pequeno animal cego», Lídia, que corre silenciosamente ao longo do livro, até partir de Afonso, até partir do livro, até de si mesmo se partir: nome que sobe até ao i, e nele se quebra.

8

Não é que não haja em Afonso um discurso também ele molecular. Simplesmente, as suas obsessões mestras são outras: o medo da morte ou o terror de ficar sozinho.

Algures diz Henry Miller no seu livro Sexus: «para alguém se tornar o grande amante, o magnetizador e catalisador, é preciso viver primeiro a sabedoria de ser apenas o último dos idiotas».

Clausura de Afonso: ser inteligente no amor. Por outras palavras, recusar toda a desordem, todo o risco, todo o ponto de ruptura, toda a queda no interior de si mesmo, no vazio desse interior. Ou ainda: querer chegar ao desejo sem aceitar a castração.

Lídia imagina: «entrar de repente em sua vida, levando atrás de si o rio, a noite, o vento, a água, a bruma, o obscuro milagre que no universo dele não existia – mas Afonso não punha nunca o seu próprio universo em causa, e não viria nunca ao seu encontro. Ele não aceitava risco algum» (p. 34). Para Afonso, «a vida é uma coisa sem brecha, não há nunca rotura nem milagre». E é aí, nessa exactidão, nessa segurança, que Afonso é mais desamparado do que nunca. Como diria Lacan, tanta inteligência falha, tanta arrogância claudica – «les non-dupes errent». Quando Afonso coloca a agulha do gira-discos sobre o disco, ele visa o ponto exacto da primeira nota de música, e sofreria imenso se não acertasse: e Lídia sorri, complacente – «até esse ponto ele era frágil, verificou, com um sorriso invisível», «porque ela era tão forte que aguentaria qualquer nota errada ou falsa, tão forte que aguentava repensar o mundo» (p. 37).

O feminino é o continente negro de que Afonso se esquiva: recusa a solidão última, o «despojar-se de tudo e também de si mesmo», recusa o ponto de ruptura para onde ela o arrastava, recusa o «partir do espelho e ficar defronte de um espaço negro, uma janela escura» (p. 87).

No universo angular, fechado e quadriculado, em que Afonso se move, no universo das palavras cruzadas em silêncio onde Afonso se fala, todo o desejo é sempre desejo de objecto, amparado na relação de objecto, no pequeno outro onde se agarra.

Lídia abre o espaço feminino do desejo. No homem predomina a função fálica – porque o falo é nele a garantia do um onde o sujeito se não perde ao comprometer-se na relação erótica. Por isso Afonso soma, isto é, estabelece igualdades, afirma a supremacia do Um: «a força dele sobre ela era assim uma força de identificação que a levava a perder os seus próprios contornos, somando-a, apenas, à vida que era a dele». Em Lídia, não: todo o amor é derrame do Um no Outro – queda interminável pelo sangue obscuro. «O seu desejo, que encontra na relação sexual um cume de prazer e um máximo de fruição, é, na realidade, um desejo sem objecto um desejo do desejo, mesmo se há um elemento que o desencadeia. E, por isso, por definição, não cessa. É aqui que se vê melhor o fracasso do objecto (o) na mulher. Ela oscila entre o retraimento total da libido (o não-investimento), por um lado, e um investimento total, por outro lado, mas de quê? De nada.» (Eugénie Lemoine-Luccioni, Le rève du cosmonaute, Seuil, p. 60).

Como se lê no livro de Teolinda Gersão:

«O absurdo de tudo isso, disse Afonso, a paixão da paixão, a procura da procura, o desejo em último caso sem objecto, porque o seu objecto é o desejo e nada do que você conta, ou diz, ou sonha, existe, o medo do amor, disse ela, o medo que você tem de ir até ao limite de si próprio, de destruir tudo o que fica para trás e criar em seu lugar outra coisa» (p. 97).

9

E tudo isto, é claro, incide sobre a própria escrita.

Teolinda Gersão escreve O silêncio usando justaposição de blocos frásicos que nunca perfazem uma soma, que nunca atingem uma saturação. São movimentos de captura que se definem pela insistência. E daí a construção em «e... e ...». Um exemplo, entre muitos: «e inventarão o espaço e a luz e o céu e o mar e o amor e o corpo, porque uma força interior amadurece lentamente e de súbito irrompe e é uma força de mudança» (p. 107). Escrita sem essências, sem polarizações estáveis, itinerante, móvel, nómada, infindável como a areia, onde o «é» dá lugar à força deslumbrante da enumeração, à energia do «e» – escrita rente ao corpo da terra, moldada à flutuação do real, «movimento na água», alegria terrena, empirismo eufórico. E ainda escrita que traz consigo a sintaxe elementar da infância, a música gramatical do circo, o anel aberto das palavras-cerejas: «os amantes repetiam talvez a eternidade e a infância» (p. 3 1).

Porque também de eternidade se trata pelo modo como o não-tempo do inconsciente atrai para o seu campo as formas do tempo: este livro usa, não apenas a repetição intemporalizante das cenas, de modo a adquirirem uma consistência fantasmática, como ainda aquilo a que Harald Weinrich chama «as formas verbais seminfinitas» – isto é, por exemplo, o gerúndio ou o infinito colocados em primeiro plano de tal modo que a informação se torna rarefeita «desprovidas de informação sintáctica que possa ancorá-las na situação de locução, estas formas nada têm de comum com os tempos» dirá Weinrich, Le Temps, Seuil, p. 284).

Assim se ergue a dimensão de investimento fantasmático – como se pode confirmar pela força do infinito: «Um bagageiro leva-lhe agora a mala, sobe no elevador a seu lado, e aminham ao longo do corredor, param diante da porta, ela despede-o rapidamente com uma moeda que tirou da carteira, bate na porta logo aberta, Herberto abraça-a, beija-a longamente na boca, despe-a devagar. Deitar-se contra o seu corpo.» (pp. 74-75).

10

Três verbos sustentam o dispositivo fantasmático de Lídia: correr, cair, partir.

Tempo de partir, descalça, nas manhãs, o corpo inundado pelo sol, tempo de giestas, de gaivotas, de trevo, tojo, plantas bravas. Escalar as dunas, transpirar subindo, agarrada a vegetação rasteira, parar arquejante a meio, o mar de repente encoberto pelo chapéu largo de palha, zumbido de abelhas bravas em volta do seu rosto, chegar finalmente ao cimo arrastando o corpo pela areia, sentar-se na primeira pedra e ver o mar, atirar o chapéu para o lado e levantar a cabeça contra o vento, gritar ou cantar ou ficar calada, olhando o mar, deixar passar as horas sem dar conta, voltar finalmente para casa sobraçando um cesto de flores e camarinhas bravas, empurrar a porta e reencontrar Afonso – o candeeiro aceso sobre a secretaria inglesa, um halo de luz sobre o seu rosto inclinado que ela não vê logo porque ele escreve de costas voltadas para a porta por onde ela acaba de entrar, só depois se volta e ela poisa ao acaso o cesto que acabara sempre por tombar e aproxima-se descalça, pisando a areia que se solta do seu corpo e as flores que se espalharam pelo chão. E a desordem é subitamente uma forma de amor, a sua forma de amor. Interromper Afonso como o mar entrando.

O Silêncio, p. 22

Correr, sim, como um animal. Este livro é atravessado por um incessante devir-animal: chamas-me bicho, chamo-te bicho. O gato, por exemplo, sempre pronto a transformar-se em lince – no salto, no gesto definitivo da captura. Ou ainda os ursos brancos, os dispersos animais do antigo circo: «caminha ao acaso, sem sentir coisa alguma, no meio de tranquilos animais soltos, ursos brancos» (p. 115). Correr, sim, como um pequeno animal cego – construir um animal novo na corrida.

Cair, também cair – descer ao sem fundo, interminável queda dentro de si mesma. E partir partindo-se. Quando Afonso não é mais do que «um animal enjaulado batendo contra as grades sem encontrar saída» (p. 119), Lídia proclama: «deixei tudo no lugar e vou-me embora». Tanto que o livro se fecha, abandonado, sobre o ponto de vista dele, Afonso. «E então ela partia, dentro de si mesma, numa direcção alta e aguda» (p. 51). Afonso confrontando-se finalmente com «o terror de ficar sozinho» (p. 104).

11

Diremos que a mesma força que impelia Lídia para Afonso é aquela que lhe permite escapar-se à tendência para a identificação que leva Afonso a reproduzir na casa outra a casa mesma. Lídia faz do mesmo o lugar provisório do Outro – a evidência esplendorosa do círculo. Afonso reconverte o Outro na estabilidade do mesmo – a monotonia da recta. Cada círculo abre-se no interior de si próprio – por ser demasiado Integral, como explica Clarice: «continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida.» Feminina aprendizagem da seda.

Porque – como diria Herberto Hélder – «cada lenço que se ata, / a própria seda do lenço / o desata. E o rosto que jorra do espelho / volta aos centros / arteriais» (Poesia Toda, p. 550).

Fonte:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaPortuguesa/Contemporanea/Teolinda_Gersao_O_SILENCIO.htm

Aluísio Azevedo (O Esqueleto) Parte XII – Ferido!

... Branca apareceu à porta, com os olhos desmedidamente abertos, os cabelos soltos sobre o vestido malcuidado e roto. Muito pálida, de olheiras roxas, aparecendo de súbito na moldura da porta, a filha de Pallingrini parecia um fantasma.

Por detrás dela, percebia-se a fisionomia de d. Bias, com a pêra trêmula, oscilando no queixo, e os bigodes arrepiados por um calafrio de medo.

Assim que terminara, dissolvida pelo príncipe, a sessão do Apostolado, d. Bias fora um dos primeiros a sair. Pusera-se a caminho para o Carmo, onde Branca continuava prisioneira. E, ruas afora, d. Bias pensava nela, monologando:

- Amo-a! (levantava um braço), idolatro-a (e levantava o braço), idolatro-a! (e levantava uma perna), venero-a (e agachava-se todo).

De espaço a espaço, um lampião de azeite projetava na rua uma larga toalha de luz. E a sombra de d. Bias estendia-se fantástica, desconjuntada, sacudida de gestos frenéticos, numa pantomima macabra.

- O flor mimosa! pérola divina! (punha os dedos na boca, enviando através da noite um longe beijo apaixonado) o meu peito é uma frágua! (dava um murro no peito). Ah! como é que eu, que tenho vencido tantos homens (segurava a durindana), não te consigo vencer! (abria os braços desoladamente).

Um homem que passava gargalhou, vendo a gesticulação de d. Bias:

- O borracho! vai cozinhar a bebedeira!

O fidalgo espanhol tornou a si: estava diante da tasca do Trancoso. Por hábito, as suas pernas tinham-no trazido até ali, ao Piolho, quando o seu destino era o Carmo. D. Bias, porém, não quis perder a viagem. Parou de pernas abertas, passou três vezes a mão pela testa, suspirou:

No bay como una libación,
A un aflito corazon.

E entrou na bodega, onde ficou duas horas afogando os suspiros no pichel.

Quando saiu, fraqueavam-se-lhe as pernas. Andava tudo à roda.

- Caramba! que há um terremoto! Mas não tremas, terra, que não te faço nada!

E, ao luar, cai aqui, levanta acolá, caminhou para as bandas do Carmo, mandando ás estrelas a sua voz avinhada:

Si de tu hermosura quieres
Una copia con mil gracias,
Escucha, porque pretendo
Yo pintarla!
Amor labró de tus cejas
Dos arcos para su alaja,
Y debajo ba descubierto
Quien lo mata!
Eres dueña...

- Em guarda! berrou ele, interrompendo a cantiga, e recuando, ao ver um vulto negro postado na rua, à sua espera.

Sacou da bainha a durindana. Mas o vulto continuava imóvel. D. Bias tremeu:

- Nobre fidalgo! eu não faço mal a ninguém... deixe-me passar em paz!

Como o vulto não se mexesse, d. Bias animou-se a caminhar um pouco. O vulto era um poste de lampião. D. Bias gingou, destemido e bravo:

- Caramba! que se fuera un hombre...

E seguiu.

Eres duena del lugar,
Vandolera de las almas,
Iman de los alvedrios,
Linda albaja...
Abo! abo! abo!
Un rasgo de tu hemosura,
Quisiera yo retratarla,
Que es estrella, es cielo, es sol;
No, es sino el alva...
Abo! Abo! abo!

Ao chegar ao Carmo, d. Bias enveredou às cambalhotas pelos corredores. De repente, estacou. Uma voz triste cantava, no vasto silêncio do convento adormecido. Era a voz de Branca:

E nas asas de um suspiro,

Que te vai meu coração...

D. Bias ficou quieto, na treva, muito furioso consigo mesmo por estar se comovendo.

Mandei cercar de saudades...
Uma lágrima caiu no bigode de d. Bias.
Mandei cercar de saudades
As bordas do teu caixão...

Um soluço irrompeu do peito de d. Bias.
Fica em tua sepultura
Velando minha paixão...

E d. Bias, chorando como um cabrito desmamado, abriu a porta e entrou na prisão de Branca, murmurando:

- Pela senhora de Valladolid! nunca mais bebo, caramba! Que eu, quando bebo, é isto: fico um bolas!

Branca, assim que viu d. Bias entrar, correu para ele, de braços abertos:

- Paulo! Paulo! Paulo!

D. Bias abriu também os braços, com um grande derretimento amoroso na face. Ela abraçou-o: ele deixou-se abraçar. Ela beijou-o: ele deixou-se beijar.

- Amo-te! amo-te!... murmurou a louca.

D. Bias não pôde mais. Atirou-se de joelhos, mas embaraçou a espada nas pernas, e estirou-se no chão a fio comprido.

- Eu também te amo, donzela!

Levantou-se, agarrando-se às saias da moça, pôs-se de joelhos, e com a voz embargada pelos soluços:

- Donzela! vamos procurar teu pai! Que ou meu tetravô não foi lugar-tenente do Cid ou tu te hás de chamar d. Branca de Bias! Vamos, donzela, vamos procurar teu pai!

E, sem refletir, bêbado de amor e de Cartaxo, arrastou a moça para fora do quarto.

Sim! ele não era homem para essas bandalheiras. Ora, já se tinha visto? um fidalgo das Espanhas fazer sofrer uma donzela que amava! nada! ia ao pai! ia ao pai! O Satanás devia estar no Paço, com o príncipe. Chegava lá, entregava-lhe a filha, desmanchava toda aquela pouca vergonha, atirava-se aos pés do príncipe e bradava-lhe. - Perdão! O príncipe perdoava-lhe, ele pedia ao Satanás a mão da filha, o Satanás concedia-lha, casavam, seriam felizes, amar-se-iam, teriam muitos filhos... Oh! muitos filhos! muitos filhos! e a sua família não morreria com ele, e aquele nome de Bias, tão célebre na história da Espanha e nas bodegas dos Mansanares, continuaria a sua marcha triunfal, através dos séculos, boquiabrindo as gerações faturas!

Era este o sonho que bailava, entre os vapores do vinho, na cabeça de d. Bias, enquanto arrastava Branca pelos corredores do Carmo.

Na rua, quis dar-lhe o braço: ela desatou a correr pela rua do Carmo.

D. Bias voava:

- Oh! não me fujas, sonho de poeta!

Era uma cousa fantástica, pela rua deserta aquela corrida vertiginosa de uma mulher de cabelos soltos e de um fantasma negro, que berrava como um possesso:

- Donzela! virgem! menina!

Branca tropeçou e caiu. D. Bias tomou-a nos braços, e seguiu para o Paço. Agora, Branca continuava a abraçá-lo, a chamá-lo de Paulo.

D. Bias encontrou aberta a pequena porta lateral, muito sua conhecida, por onde o príncipe costumava entrar a desoras. Dessa porta partia um corredor que ia ter a uma sala do rés-do-chão. Havia luz nessa sala. E, mesmo de longe, d. Bias ouviu um retinir de armas.

À porta, pararam. Muito pálida, de olheiras roxas, com os olhos desmedidamente abertos e os cabelos soltos sobre o vestido malcuidado e roto, a filha de Pallingrini parecia um fantasma: e, por detrás dela, percebia-se e fisionomia apavorada de d. Bias, com a pêra trêmula, oscilando no queixo, e os bigodes arrepiados por calafrio.

D. Pedro e Satanás não tiveram tempo de suspender o combate. Branca atirara-se para eles. Mas, d. Bias muito cansado e muito excitado, atirara-se também, agarrando-a. E a espada de d. Pedro cravou-se no ombro direito do fidalgo espanhol, que se deixou cair, urrando:

- Estou morto!

O Satanás, reconhecendo a filha, tomou-a nos braços, de um salto, e fugiu com ela. E só ficaram na sala o príncipe de pé, imóvel, sem saber o que devia fazer, e d. Bias estendido no chão, sem dar acordo de si.

Não foi longa a hesitação do príncipe. Fez vibrar uma campainha. Um criado fiel apareceu.

- Vai já buscar curativos.

E, ficando só, d. Pedro abaixou-se, levantou d. Bias, estendeu-o no sofá.

O descendente do lugar-tenente de Cid voltou a si, jurando que tinha morrido. O criado curou-o. A ferida não era muito grave: a lâmina tinha encontrado a omoplata e não pudera penetrar muito. Mas d. Bias afirmava que tinha morrido, e enchia a sala de lamentações.

- Ouve, servidor fiel: ficas agora autorizado a dizer a todo o mundo que viste d. Bias às portas da morte e que não o viste tremer. Somos todos assim na família: morremos todos por amor e sem chorar. Meu tetravô, lugar-tenente de Cid, morreu na batalha de Bácaras. Viu-se cercado por quatro bárbaros, que lhe vibraram quatro estocadas, que se lhe meteram todas quatro no coração; pois o herói não caiu. Mandou chamar o tabelião, fez testamento, confessou-se, e só morreu quando achou que já podia morrer.

- Bem! mas durma, sossegue!

- Ouve! digo-te eu que me ouças!

- Foi esse o único meu avô que não morreu por causa do amor: minto - morreu por causa do amor da pátria. Meu pai, por exemplo, morreu mártir do amor: amava minha mãe, queria casar com ela, não pôde casar, e morreram os dois virgens um do outro!... Oh! o amor! o amor! o amor!

E, já quase adormecido, prostrado de fadiga, d. Bias tartamudeou ainda com uma voz chorosa:

- Homem não há nada por aí que se coma?
––––––––-
continua

domingo, 17 de março de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 22. Delicadeza

Testemunhei uma cena desagradável, que infelizmente não teve piores conseqüências.

Ia perto de mim um cidadão muito gordo. Luxuosamente gordo. Parecia carregar as banhas com a recolhida empáfia de um grão-sacerdote afogado em deslumbrantes vestes talares. Refestelava-se no banco, firmado nas enxúndrias das nádegas, como uma pesada bóia flutuante indiferente ao balanço das ondas. Exibia o ventre, que lembrava o hemisfério de um grande globo, como se de propósito desejasse que toda a gente lhe pudesse admirar aquela prenda. Aquilo era o seu precioso berloque de novo rico.

A certo ponto da viagem, surgiu do outro lado do hemisfério um moço magro e sutil, que procurava passar pela frente do obeso, mas hesitava ante a impassibilidade ou distração deste. Afinal, tocando no chapéu, perguntou-lhe, alto, com verrumante delicadeza: -"Cavalheiro, não lhe seria muito incômodo ceder-me um corredorzinho para eu passar?" O gordo zangou-se. Encolheu como pôde o fardo abdominal e, sacudindo a papada, os olhos arregalados: "Passe!"

O moço magro, atônito por um momento, depois inclinado a reagir, sorriu-se afinal, e disse entre dentes, relanceando um olho escarninho pela venerável barriga: -"Bolas! não estou disposto a brigar com meio mundo." E o gordo a resmungar: "O calcinhas! Esta sucia..."

A princípio não compreendi por que seria que o pançudo tanto se irritara. É que sou por
natureza tardo de compreensão. Nada mais fácil de ver que o homem sentira espicaçado justamente por aquele excesso de delicadeza. Se o moço, passando, lhe tivesse empurrado de leve os joelhos, dizendo um seco e rápido "com licença!", e fosse tocando para diante, nada teria acontecido. O gordo levaria isso à conta de uma pequenina e desculpável grosseria sem endereço especial. Não já, assim a frase e o gesto do mancebo, que lhe bateram no toutiço como farpazinha particularmente preparada para sua pessoa. Ninguém gosta de se ver assim pessoalmente visado e distinguido nos seus pequenos tortos, que são mais ou menos os de toda a gente e devem passar sem exame e sem reparo.

Há uma causa mais geral, e é que o excesso de delicadeza leva uma dose de ironia, e a ironia ofende e revolta mais do que a rudeza. Não, como geralmente se julga, por penetrar mais fundo na derme do alvejado, mas pela desigualdade de armas. O homem desprevenido e "natural" não tem, nos seus encontros e lidas cotidianas, mais do que as armas de ataque e defesa que a natureza lhe deu, e delas se socorre como pode. O irônico é um mal intencionado, que carrega armas artificiais no meio de uma população policiada e pacífica. Viola a convenção em que a generalidade repousa. Quebra a regra consuetudinária do jogo da convivência. Onde outros se limitariam a usar das mãos e dos cotovelos, ele saca de um pequenino punhal e põe-se a esgrimi-lo com a destreza de um especialista de má-fé e de maus bofes. O adversário sente-se apanhado à traição, exaspera-se e, às vezes explode.

O sujeito extremamente delicado é, no fundo, um indivíduo que faz o pior juízo acerca dos seus dissemelhantes, e os trata com infinitos cuidados, como se lidasse com cavalos passarinheiros ou cachorros agressivos. Ou isso, ou então é que gosta de lançar engodos às almas incautas, para que se lhes abram e se lhes ofereçam em espetáculo. Todos os seus gestos estão impregnados de ironia, de uma ironia que nada tem com a dos homens compreensivos e sensíveis que já viveram muito, mas uma ironia feita de vaidade, de caborteirice e de secura de coração. Ele é o "homem de escol", "a criatura de exceção", fina, distinta, lixada, repolida, cheia de bicos e rendas, desgraçadamente obrigada a viver no meio de uma canalha tosca e molesta!

A antipatia instintiva que provoca é uma reação da vis medicatie social.

O que mostra mais uma vez como os movimentos instintivos podem eqüivaler a longas reflexões, e como a mentalidade coletiva pode chegar, sem raciocínio, aos mesmos resultados das lentas análises do psicólogo e do moralista., -De onde, também, o erro dos paradoxófilos, quando partem do pressuposto de que, para bem pensar, é preciso pensar contra os sentimentos do maior número.

Fonte:
Domínio Público

Rocha Pita (Poesias Escolhidas)

SONETO

O desvelo maior tem aplicado
Fílis para esquecer um bem perdido,
Mas como pode o bem ser esquecido,
Quando o próprio desvelo o faz lembrado?

Como pode o discurso desvelado
Ver-se do que imagina dissuadido?
Lembrar-se de esquecer traz no sentido,
E vem o esquecimento a ser cuidado.

Se da perda o descuido não tomasse
Por empresa, essa mágoa que padece
Fora possível, que lhe não lembrasse.

Mas a memória em Fílis permanece,
Pois se o descuido de cuidado nasce,
Do que quer esquecer se não esquece.

SONETO JOCOSO

Pondero a emudecida formosura
De Fília, sem temer que impertinente
Possa, no meu soneto, meter dente,
Pois carece de toda a dentadura.

Se, por cobrir a falta, esta escultura
Tão muda está que não parece gente,
Estátua de jardim será somente,
Se de pano de raz não for figura.

O Senhor Secretário quer que a creia
Bela sem dentes; eu lho não concedo:
Desdentada é pior do que ser feia,

E em silêncio só pode causar medo,
Ser relógio do sol para uma aldeia,
Para um povo estafermo do segredo.

SONETO

A ver do Sol o novo nascimento,
a nova Lua veio prontamente
um e outro Planeta no Ocidente
trazendo o seu efeito, e movimento,

o Sol em raios grande luzimento,
a Lua em águas copiosa enchente
assistindo a Academia mais ciente,
e concorrendo a dar-lhe o fundamento.

Para encher ao Congresso de favores
mais se expende um Planeta, outro mais arde,
o dia repartindo em seus primores.

Ambos fazem do seu obséquio Alarde
um em cristais, e outro em resplendores,
a Lua de manhã, e o Sol de tarde.

SONETO

Quando Fílis as lágrimas bebia,
em um fio de pérolas brilhante
da matutina luz, bela, e flamante
precursora do sol, e mãe do dia,

uns dentes se lhe partem à porfia
para a união das pérolas amante,
que sendo a qualidade semelhante
os quis conglutinar a simpatia.

Bem que ao beber as pérolas luzentes
se lhe quebrem os dentes, julga e toca
não serem as matérias diferentes,

pois sem se conhecer mudança, ou troca
enfiados por pérolas os dentes
têm por dentes as pérolas na boca. 

SONETO

 Mudou o Sol o Berço refulgente,
ou fez Berço do Túmulo arrogante
galhardo onde se punha agonizante
com luz no Ocaso, e sombras no Oriente.

Não morre agora o Sol, quer diferente
no Aspecto, se na vida semelhante
no Oriente nascer menos flamante,
e renascer mais belo no Ocidente.

Fênix de raios a uma, e outra parte
O  comunica os incêndios, e fulgores,
porém com diferença hoje os reparte.

Nasce lá no Oriente só em ardores,
no Ocidente a ilustrar Ciência, e Arte
renasce em luzes, vive em resplendores.

Rocha Pita (1660 – 1738)

Nascido no ano de 1660 na Bahia, hoje cidade de Salvador, Sebastião da Rocha Pita foi um importante historiador e poeta do século XVII.

É autor de, dentre outras, uma importante obra intitulada História da América Portuguesa (1730), produzida em um período em que a capacidade de contar a História de Portugal e do império luso-brasileiro compunham um quadro de preocupações centrais de um reino atribulado em legitimar-se frente a outras nações - onde o domínio da história e sua forma de escrita como iniciativa institucional congregaria em si essa função.

Como um historiador de prestígio, compunha a ordem de letrados na Academia Real de História Portuguesa (1720-1736), ocupando o cargo de acadêmico supranumerário.

No cenário brasileiro, foi membro e um dos fundadores da Academia Brasílica dos Esquecidos (1724) participando ativamente como poeta e historiador nas atividades realizadas nessa congregação, que pode ser concebida como um local privilegiado para se pensar e formular a história da América Portuguesa, em um período no qual “ o movimento academicista ajudou a desencadear uma nova percepção sobre o estatuto político do território colonial, estimulando assim, a reflexão sobre a natureza dos laços que prendiam a América ao Reino: amarras simultaneamente jurídicas, familiares, lingüísticas, econômicas e culturais. Formado na Escola de Jesuítas da Bahia e mestre em Artes, o nome de Rocha Pita figura na lista de nomes de brasileiros formados na Universidade de Coimbra elaborada por Francisco Morais, tendo ido aos 16 anos.

A formação em Portugal era um costume daqueles que tinham um prestígio social na colônia e que compunham assim, o quadro de letrados brasileiros.

Ostentou ainda o título de coronel do regimento privilegiado de ordenanças, foi fidalgo da casa real, cavaleiro da ordem de Cristo e vereador em Salvador.

Pai de três filhos, com Ana Cavalcanti, morre em 1738, na cidade de Cachoeira, onde desde o casamento fixou residência.

Francisco Miguel de Moura (A Nova Literatura Brasileira)

Libreria Fogola Pisa
É preciso considerar que muitos autores estão surgindo dentro dos Estados do Nordeste e até nos do Centro-Sul e que não são divulgados. E merecem as honras de nomes nacionais, suas obras são realmente excelentes. Ninguém sabe por que motivo a imprensa e a mídia os trocam por “valores” duvidosos, sem leitores e sem crítica que os suportem, que ficam encalhando as livrarias, os supermercados e até as bancas de jornal. Ou será que os leitores e os críticos que não moram nos grandes centros não têm competência? Isto é o que eu chamo julgar uma obra pelo simples fato de o endereço do Autor não estar numa grande capital como Rio e principalmente São Paulo. Verdadeiro absurdo, verdadeiro contra-senso! É inversão de valores.

Aliás, sabemos de muitas coisas que não são ditas. Uns ficam calados com medo da concorrência, outros, muitas vezes, nem conhecem nem estudam os pormenores. Mas, como diz o público sábio: “Quanto mais cabras, mais cabritos”. Ninguém deve ter medo de concorrência nem calar as boas causas como a proclamação dos grandes nomes da literatura brasileira atual. Desse mal da inveja não padece o poeta e jornalista Luiz Fernandes da Silva. Ao contrário, no seu jornal mimeografado, “Correio da Poesia”, feito com imenso sacrifício pessoal, vem divulgando a grande poesia e prosa da atualidade. E sua divulgação não se resume nisto: ele o distribui incansavelmente e está em todos os eventos que pode, no “trabalho de formiguinha” de divulgação, não apenas de si mesmo, que, aliás, tem até deixado de lado. No mundo literário de hoje há poucas pessoas com a sua generosidade. Outro nome que não posso deixar de citar, do mesmo nível de Luiz Fernandes, é do poeta Edson Guedes de Morais, em Recife. Já publicou uma antologia de poemas de poetas brasileiros do passado e do presente, em sua gráfica manual, em Guararapes – Recife (PE) e vários livros de autores como Anderson Braga Horta, Hardi Filho, Francisco Miguel de Moura, entre muitos outros. Esses valores ficarão, quer a grande mídia do Sul queira ou não. Disse-me, certa vez, o amigo e fino contista Caio Porfírio Carneiro, cearense: “Eles vão ter que me engolir como contista”. Eu quero repetir sua frase, adaptando-a à poesia: “Eles vão ter que me engolir como poeta”.

Aproveitando um escrito do Luiz Fernandes da Silva, cito os nomes que ele lembrou, sejam do Norte, Nordeste, Sul, Sudeste, Centro-Oeste. Ele começa com meu nome, a quem acaba de me conceder o título de “Embaixador da Poesia no Brasil” (2012) e passa a outros de talento como Ary Lins Pedrosa, paraibano radicado em Maceió-AL (breve lançando mais um livro), a grande crítica literária e professora universitária Elizabeth Marinheiro, poetas e contistas Silvério Ramos da Costa, Chapecó (SC), Anderson Braga Horta, mineiro já citado acima, Humberto Del’ Maestro, de Vitória (ES), e Djanira Pio, de São Paulo, além de outros que seria cansativo citar.

Mas não vou deixar de citar o poeta e editor Waldir Ribeiro do Val – que publicou recentemente “50 poemas escolhidos pelo autor” –, pelos seus méritos poéticos, que são grandes, com uma poesia fina, onde partilha os sentimentos humanos e interpreta os da natureza, sem precisar bem o social que carrega na própria alma. Ninguém esquece versos como: “Escrita nos muros, a palavra é súplica” e outras que evocam “as esperanças dos homens”, especialmente dos poetas (vide poema “Paz”, pg. 43). Nessa coleção de editados por ele com o título de “50 poemas escolhidos pelo autor”, que já vai a mais de 60 títulos, constam nomes famosos como Gilberto Mendonça Teles, Ledo Ivo, Carlos Nejar, Antônio Olinto e Pedro Lyra, mas também muitos outros menos conhecidos e já famosos, e outros nem tanto, porém que já apresentam uma poesia de fazer inveja pelo domínio da palavra. Há entre eles, dois piauienses -: Álvaro Pacheco e Diego Mendes Sousa, um já praticamente com sua obra pronta e encerrada, o outro começando agora, com dois ou três livros já publicados, além do da coleção “50 poemas...” Esses nomes não podem ser ignorados. Além do mais temos sites de poesia como o do Antônio Miranda e o do Soares Feitosa, que são verdadeiras antologias contemporâneas de prosa e verso.

A nova literatura brasileira está aí, mostrando sua importância e superioridade em estilo, profundidade e valor. Não comparável, jamais, com a literatura de “massa” de “falsos escritores” que nunca conseguiram fazer um soneto, quando fazem uma trova é de “pés e mãos quebradas”, não sabem o que é medida, ritmo, imagens, metáforas, metonímias, símbolos, intertextos e intratextos, além de outras “cositas mas” que são as descobertas e os segredos do verdadeiro poeta. Não sabem o que é um conto, uma crônica bem feita. Sabem mal da “literatura de auto-ajuda” e dessa massa de “bestas-de-sela” que são vendidos como romances – os mais vendidos. A quem?

Parte II

No artigo anterior, aproveitei sugestões do poeta Luiz Fernandes da Silva, que me apontou nomes de peso surgidos recentemente para a Literatura Brasileira, especialmente aqueles que moram na província. Hoje, eu mesmo aponto outros valores reconhecidos pelos atuais leitores e algumas pequenas editoras. Têm, esses novos, características distintas e impressionantes: estilos e formas de escrever e criar surpreendentes.

Aqui, um adendo: devo declarar que as “Histórias da Literatura Brasileira”, escritas no passado, não servem mais pra nada, a não ser para alguma pesquisa sobre figuras que ficaram na sombra. Sílvio Romero e José Veríssimo, os dois mais conhecidos, estão fora de qualquer cogitação séria sobre autores “nacionais” ou “provincianos” em que, por eles foram divididos os autores. Já não existem províncias, ainda existem Estados Federados (mas, apenas na letra da Constituição). Na verdade, somos um Brasil único com muitas “ilhas literárias” como especificou Viana Moog. A proposição de Moog valeu por algum tempo, mas, graças a Deus e a nós escritores novos, está sendo revista para hospitalização e sepultamento. O que acontece é que o formalista José Veríssimo e o sociólogo Sílvio Romero abriram feridas no corpo da Literatura Brasileira, pespegando-nos a antítese: – A obra ou é sociológica (daí o romance e os demais gêneros regionalistas); ou clássico-formalista (daí a literatura urbana, para José Veríssimo, a “legítima literatura brasileira”) feita por escritores que moram no Rio ou São Paulo, e os demais eram a escória. Na malfadada classificação, hoje derrubada, até o clássico Machado de Assis seria (e, no fundo, é também) um regionalista; e Graciliano Ramos, o regionalista, seria (e é de fato) um escritor nacional. Não sei que coisa mais sem lógica, mais ridícula do que essa invenção “boba”.

Quem nasceu e viveu no Brasil, sabe escrever bem, cria e produz obras de ficção de valor (poesia também é ficção), faz-se editado por si ou por alguém que se considere editor – desde que o livro seja divulgado, não importa se em Portugal, na França, na China, no Piauí ou no Rio – todos esses são escritores brasileiros. E pronto.

Poderíamos quase dizer que morreram os críticos e historiadores literários, com o falecimento de Afrânio Coutinho e Wilson Martins. Mas, Afrânio Coutinho reuniu, antes, uma equipe invejável de intelectuais, entre eles, nosso piauiense Assis Brasil, e preencheu bem a falta da História Literária, do fim do século passado até hoje.  Foi feita sob a orientação de Afrânio Coutinho, com a colaboração de Wilson Martins, Antônio Cândido, Luís Costa Lima, Eugênio Gomes, Aderaldo Castelo, entre dezenas de outros grandes nomes da crítica e do magistério. Mas essa “A Literatura no Brasil” (assim o nome) já está precisando de atualização. Diga-se, a bem da verdade, que foi Afrânio Coutinho quem veio acabar com a discriminação de “regionalismo”, trazendo, de seus estudos no exterior, “a nova crítica”. Se os professores de universidades a desconhecem, pior pra eles. Porque uma nova geração está surgindo em todos os cantos do Brasil, de fazer inveja aos do passado. Quantos poderíamos citar? Muitos. Começo pelo Ceará, com Nilto Maciel e seu grupo da “Literatura – Revista do Escritor Brasileiro”, fundada em Brasília e depois transportada, com a mesma gana, para Fortaleza. Somente no nº 26, o que tenho em mão, quantos nomes, quantos bons autores? Começa com o próprio Nilto Maciel, romancista premiadíssimo, que faz uma entrevista a Francisco Miguel de Moura, onde eu falo dos novos daqui: O. G. Rego, Fontes Ibiapina, H. Dobal, Rubervan du Nascimento, entre outros. Demais colaboradores selecionados na revista “Literatura...”, nº 26, mencionada: Nicodemos Sena, Moema de Castro Silva Olival, Batista de Lima, Adelaide Petters Lessa, Caio Porfírio Carneiro, Wilson Pereira, Manoel Lobato, Maria Socorro Cardoso Xavier, Manoel Hygino dos Santos, José Luiz Dutra de Toledo, Berredo de Menezes, Nelson Hoffmann, Eduardo Campos, Enéas Athanázio, Aricy Curvelo, Jorge Tufic, Aníbal Beça, José Helder de Sousa, Ângelo d’Ávila, Glauco Matoso, Artêmio Zanon, Sânzio de Azevedo, Anderson Braga Horta, Luciano Bonfim, Almir Gomes de Castro e mais alguns, porque o espaço que uso é pequeno.

Este rol de escritores cobre o Brasil de norte a sul, de leste a oeste, sem distinção. Entre eles há mais de uma dezena dos maiores escritores modernos da nossa época, aos quais faltam somente editores de vergonha, professores e universidades que direcionem bem seus alunos, críticos e jornalista. É assim que os leitores vão aparecendo. E nada disto existe no Brasil atual, o que é uma lástima. Cada vez mais nos tornamos o quintal (pra não dizer chiqueiro) dos americanos.
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Francisco Miguel de Moura – Escritor, membro da Academia Piauiense de Letras

Fontes:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com.br/2013/02/a-nova-literatura-brasileira-1.html
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com.br/2013/03/a-nova-literatura-brasileira-2.html

Carlos Leite Ribeiro (Dois Amigos)

Depois de aposentado, o Ricardo vagueava pelas ruas da Baixa de Lisboa, para passar o tempo e recordar antigos episódios da sua vida. Nesse dia, por casualidade, passou pelo café onde seu amigo Alberto passava as tardes a ler o jornal. Entrou no café e dirigiu-se logo para a mesa onde seu amigo estava.

- Olá, Alberto, como vai essa saúde? Passas o tempo aqui sentado e daqui a pouco nem andar consegues!

- Tinha o pressentimento que algo desagradável me ia acontecer hoje. Não sabia o que era, mas com certeza que eras tu que me ias aparecer! Já me vai correr a tarde mal. Tu que andas sempre a vaguear pela Baixa, hoje deu-te para entrares aqui neste café posso perguntar porquê?

- Porque? Porque tinha saudades tuas e queria cumprimentar o meu querido amigo, Alberto.

- Querido amigo? Por favor não me ofendas com esse termo tão nobre, quando é verdadeiro!

- É o que eu sou: nobre e verdadeiro. E vim cá dizer-te que ontem vi a tua querida Lena ainda te recordas dela?

- És um verdadeiro finório (cara de pau). E o que eu tenho com isso?

- Como foi a tua amada pensei que ficasses feliz por eu a ter encontrado.

- És mesmo impossível. És sempre o mesmo amigo da onça!

- Não sei porquê, pois até na altura tive a gentileza de te apresentar a ela, o que ficaste (na altura) muito contente. Pois uma avião (moça linda e apetecível não aparecia todos os dias)!

- Já conheço essa conversa tua há muito, grande (nem te quero classificar). Mas em que falaram. De mim?

- De ti não! Falámos das nossas anteriores passagens pela vida. Mas vou contar-te tudo tim-tim por tim-tim?

Ontem fui dar um passeio até ao Terreiro do Paço e junto à muralha que separa o rio Tejo, vi ao longe um vulto de mulher que não me era desconhecida. Aproximei-me dela e qual o meu espanto que reconheci a Madalena. A nossa conhecida Lena!

- Olha quem encontro aqui, a minha querida e inesquecível amiga Lena!

- O que é que fazes aqui? Já pensava que tivesses morrido (o que não seria nenhuma pena?).

- Passei casualmente por aqui e mesmo de costas reconheci-te. Ainda hoje és uma avião, embora diferente do que conheci há anos, é certo respondeu-lhe ele.

- Para ti é tudo casualmente, grande finório (cara de pau). Deves estar a recordar as malandrices que fizeste na outra Banda (margem esquerda do Tejo), principalmente em Cacilhas e em Almada?

- Recordo-me daquela vez em que me convidaste a jantar no Ginjal (Cacilhas); não me recordo bem em que restaurante. Seria no Floresta?

- Nesse não foi de certeza, pois era muito caro para a minha bolsa. Foi no restaurante Elias.

- Recordo-me. Até notei que tu eras freguês habitual daquele restaurante, pois o garçon piscou-te o olhos e levou-nos para a tua mesa preferida, junto de uma janela que se via o Tejo e grande parte de Lisboa.

- Lena, tu tens boa memória! Claro que tinha ido algumas vezes a esse restaurante ? com os meus pais.

- Deixa-me rir ahahah. Que ingénua eu era nessa altura. Depois do jantar, quiseste que eu fosse a uma pequena praia que ficava mais adiante do Gihjal, onde tu dizias que tinhas pescado muito, com uma armação de dois varões de ferro; fazias um triângulo com a linha e colocavas um sinizinho; depois lançavas a linha ao mar e quando o peixe picava, o sininho tocava? Cara de Pau.

- Lena, a minha intenção era ensinar-te a arte de pescar, nada mais?

- Ricardo, quase que estou a acreditar (só quase) é que depois desse ensinamento, passaste à pesca em alto mar, e longe do razoável:

- Parece que me estou a recordar, sim. Sabes que esta memória já não é a que foi!

- Cara de Pau! Perdemos com a conversa o último barco para Lisboa, pois quando chegámos ao cais de embarque, já o ferryboat tinha partida há mais de uma hora. E ficámos no teu decrépito e furado Volkswagem, a quem tu chamavas carochinha (no Brasil fusca).

- Querida amiga, e ficámos muito bem, até às 6.30 horas quando do primeiro ferry para Lisboa.

- Tinha ido ao cabeleireiro fazer uns caracolinhos e quando abri a janela do meu quarto para minha mãe não saber a que horas tinha regressado, assustei-me a ver-me ao espelho, com o cabelo todo desgrenhado (em desalinho), além das nódoas de óleo que manchavam o meu vestido novo, apanhadas na tua praia, onde prometeste dar-me uma lição de pesca.

- Felizmente, tinhas deixado a janela de teu quarto só encostada. Eras previdente?

- Só deixava a janela encostada quando saía contigo.

- E com os outros?

- Não comento. Mais tarde, houve outro dia que me convidaste a ir a um baile, não em Cacilhas mas em Almada. Não me recordo o nome da localidade que dizias haver um grande baile.

- Parece-me que estou a recordar-me. Jantámos no restaurante Gonçalves.

- Onde também eras conhecido?

- Nesse dia não fomos para a praia que tinha óleo na areia. Subimos até ao castelo de Almada e depois descemos uma descida muito íngreme até quase ao Olho de Boi, onde descarregavam os barcos de pesca e onde me tinha dito haver um grande baile (mentiram-me).

- Ricardo, não sei porquê não acredito, nem na altura acreditei. Mas continua?

- Deve estar recordada que a estrada estava em reparação do lado do mar (direito) e tivemos que fazer inversão de marcha, e subir o que tínhamos descido. Quando chegámos junto das muralhas do castelo?

- Num recanto que devias conhecer muito bem? Continua.

- O carochinha avariou e tivemos que passar lá a noite. Dessa vez não te ensinei a pescar lembraste?

- Se me lembro, dessa tão estranha avaria, pois às 6 horas da manhã, o carro estava bom para apanharmos o ferry às 6.30 horas. Há avarias assim e tu eras mestre em inventá-las!

- Pelo menos, nessa manhã não chegaste a casa com o vestido com nódoas de óleo.

- De óleo vegetal, não, mas com nódoas negras (hematoma) nas pernas, principalmente nos joelhos.

- Nesse dia também tive problemas com minha mãe por causa das calças?

- Ricardo, por falar em tua mãe, ela era uma formidável cúmplice tua. Atendia muito bem os meus telefonemas, mas tu nunca estavas em casa; ou tinhas saído em serviço da empresa, ou tinhas saída não sabia para onde e por fim disse-me que tinhas ido fim-de-semana com a tua noiva. Perguntei-lhe quem era tua noiva o que ela me respondeu com grande descontração: não sei, são tantas!. Cara de Pau, da pior espécie!

- Mas tu gostavas do cá cara de pau!!! rssss

- Na nossa última saída te fintei e muito bem recordaste?

- Não. São fatos passados há tanto tempo?

- Vou-te recordar: Combinámos ir a um baile no Estoril. Desta vez não fomos para a outra margem, que ainda não havia a ponte 25 de abril (estava em começo de construção). Jantámos em Oeiras e depois seguimos para o Estoril. No regresso e como habitualmente, o teu carochinha avariou perto da Parede. Enquanto tu fingias que estavas a consertar o carro, eu sorrateiramente, procurei a casa de uma amiga, enfermeira no Sanatório da Parede. Faço ideia da rua cara depois de teres esperado horas e eu não ter aparecido! kakakaka

- Estou a recordar, estou. Esperei uma hora ou hora e meia antes de regressar a casa de meus pais. Imagina quão furioso eu estava, sua cara de pau, cafajeste, pilantra, etc... Confesso que não achei graça nenhuma com a tua atitude.

- Estás muito abrasilado, deves ter visto já muitas telenovelas!

- Pois é, minha amiga, hoje a juventude tem mais liberdade, mas no nosso tempo fazíamos tudo que eles fazem, mas tínhamos que ser mais engenhocas.

- E nesse aspeto, Ricardo, tu eras um grande engenheiro: Até talvez merecesses o Prémio Nobel.

- Estamos aqui parados e podíamos ir a qualquer lado?

- Eu vou ao Barreiro.

- Então podemos ir ao Barreiro?

- Tu é que sabes, mas na gare meu filho e meu neto estão à minha espera?

- Certo. Podíamos marcar um encontro para outro dia?

- Talvez para o próximo século! Passa bem e se possível, com mais juízo nessa cabeça oca!

- Então, inté?

- E foi assim amigo Alberto a minha conversa com a nossa Lena! Na próxima vez que nos encontrarmos, pago eu os cafés.

- Não disse que te pagava o café!

- Até à próxima, amigo!

FIM
(este texto é pura ficção, qualquer situação, lugar ou pessoas é pura coincidência)

Fonte:

Carlos Leite Ribeiro - Marinha Grande - Portugal

Fernando Namora (O Homem Disfarçado)

O personagem principal é João Eduardo, médico de prestígio profissional. João Eduardo é casado com Luísa, tem dois filhos Carlitos e Teresinha em idade escolar.

A narrativa começa demonstrando uma das características da personalidade de João Eduardo, sua impassibilidade e seu receio diante das coisas. As primeiras palavras do livro são “Acudam! Acudam!”. O médico está esperando seu carro ser lavado, quando um rapaz lhe informa que uma mulher pede por socorro uma vez que seu filho ficou entalado no elevador. Indeciso entre prestar ajuda e esconder-se, opta pela segunda alternativa uma vez que acredita que pouco poderá fazer ou o que poderá fazer talvez não valha a pena. Logo chega uma ambulância e leva a mãe e o garoto ao hospital.

Em casa, sua relação com a mulher tem esfriado. Luísa vai se tornando mais distante e mais impessoal. Compara-a com Silvina, sua amante, uma dançarina de casas noturnas que está a caminho da prostituição. Com Silvina sente-se seguro para contar suas impaciências, dúvidas e frustrações, o que não ocorre com a companhia de Luísa.

Sua vida profissional, embora de sucesso, estava lhe causando enfado. D. Emília uma vizinha e uma das primeiras clientes que tivera na cidade, era uma velha que vivia a bisbilhotar a vida alheia. Ela era casada com um velho doente que João Eduardo tratava também. Durante a narrativa, por vezes, João Eduardo busca saber o destino do garoto que ficara ferido no elevador, pergunta no hospital se algum garoto naquelas condições dera entrada, chega a ir à porta do apartamento da mãe perguntar pela sua saúde, mas a mãe não responde por estranhar-lhe os modos tensos e fecha a porta.

Há um amigo de infância, doente, tuberculoso, chama-se Jaime. Atualmente João Eduardo não só acompanha o tratamento de Jaime como o ajuda emprestando dinheiro que sabe dificilmente será pago. Rita, a mulher de Jaime, compreende a gravidade da situação e vê em João o único apoio para suportar o fim trágico que se anuncia para seu marido.

Na sua vida profissional, embora seja admirado pelo seu sucesso, João relembra que começou como médico de vilarejo no interior de Portugal, que lá podia atender os pobres e ajudá-los, mas a necessidade progredir na profissão e de ter uma clientela mais apta a gastos maiores o fez seguir na direção de trabalhar na capital, Lisboa. Jaime, o amigo, por outro lado, sempre fora dado a aventuras, chegara a ser guia de viagens num barco apenas pelo prazer e se sentir livre, além do que adorava beberagens, daí contraíra a tuberculose. O casamento com Rita se dera quase na mesma época em que se diagnosticara sua doença.

Um outro amigo do interior de Portugal e do início dos estudos era o Magalhães. Este continuava um modesto médico do interior e ansiava trabalhar na capital para melhorar de vida. Por pressão de Luísa que tinha simpatia por Magalhães e por sua esposa, João Eduardo chega a pensar em tentar arrumar alguma colocação para o amigo, embora lá no fundo, não nutrisse muita admiração por Magalhães, ao contrário da admiração que tinha pela ousadia de Jaime.

Fica sabendo que um médico morrera no Banco das Índias e que um cargo se abria. Foi até diretor financeiro averiguar a possibilidade de se dar esse cargo ao amigo provinciano, mas para sua surpresa o cargo estava sendo oferecido a ele, João Eduardo. Logo quis recusar mas acabou sendo convencido, até com relativa facilidade a aceitar o cargo. Isso criaria uma animosidade com a mulher e com o amigo provinciano, mesmo porque ele, João Eduardo, não precisava de mais um cargo.

O diretor do hospital, professor Cunha Ferreira é uma pessoa importante de suas relações profissionais. No entanto, o professor Cunha Ferreira sustentara o seu poder numa série de negociatas e conchavos. Dava parte dos honorários recebidos nas operações para os médicos que lhes encaminhassem doentes, fazia coincidir o dia das operações com o dia em que estava no hospital, entre outras coisas, e por vezes, João Eduardo participara desses arranjos.

Por outro lado, existia a figura de Medeiros. Medeiros era um médico respeitado por sua carreira pautada a honestidade e nos valores éticos. João Eduardo oscilava entre esses dois modelos de comportamento, mas via de regra tendia a seguir o professor Cunha Ferreira.

No hospital, o professor Cunha Ferreira convida João Eduardo e sua esposa para um jantar em que estará presente também o Medeiros. João Eduardo começa a desconfiar das intenções do professor nesse jantar. Se ele pretendesse arregimentar o Medeiros para o seu lado dificilmente conseguiria. Soube João Eduardo que Medeiros já reprovara algumas chapas médicas que fundamentavam algumas das operações feitas por Cunha Ferreira.

No jantar que contou com a presença de um certo rico vinhateiro, senhor Trigueiros, João Eduardo teme por um conflito entre as duas personalidades médicas. Mas com o apoio da habilidade de Luísa, o Medeiros vai se esquivando das inferências do professor Cunha Ferreira e consegue terminar o jantar sem abrir diretamente uma discussão.

Já altas horas da noite, sob a desculpa de atender um paciente, João Eduardo vai visitar Silvina num teatro de cabaré de terceira categoria. Para sua surpresa, Silvina está tensa e confidencia-lhe que tem uma filha, coisa que sempre escondera de João Eduardo e de todos os seus amantes. João descobre que Silvina tentava dar à filha uma educação decente e que escondera da filha sua profissão. Porém a filha descobrira por meio de outras pessoas e agora recusava em vê-la. João e Silvina bebem até ficarem bêbados.

João Eduardo tivera outras amantes, uma de que se lembra o nome era Clara, saíra com ela uma única vez, mas sua personalidade lhe impressionara, nunca mais a vira. Tinha um apartamento em que marcava os seus encontros e Silvina tinha acesso irrestrito àquele lugar.

Depois da deixar Silvina, após beberem juntos chega em casa já quase amanhecendo e a mulher, Luísa ainda acordada lhe informa que o amigo Jaime morrera, essa, aliás, é a última frase do romance.

 Fonte:
http://literatura-edir.blogspot.com.br/

Projeto de Leitura (Escolas públicas Podem se Inscrever até 31 de março de 2013)

O projeto de incentivo à leitura “Ler é Bom, Experimente!", está com inscrições abertas para escolas da rede pública de ensino de todo o Brasil até o final de março de 2013.

O programa
Dirigido ao público infantil, juvenil e adulto, que beneficiará cerca de 50 mil alunos de 500 escolas, o trabalho consiste na doação de livros e desenvolvimento de atividades, a partir da leitura, por estudantes do 2º ano do ensino fundamental até o ensino médio. A escola se responsabilizará pelo pagamento do transporte dos materiais, cujo valor será calculado no momento da inscrição, que deverá ser efetuada pelo professor, no site www.projetosdeleitura.com.br.

As escolas inscritas receberão de 38 a 114 livros de autoria de Laé de Souza, além de material de apoio como folhas pautadas para redação, questionários e, ainda, uma cartilha pedagógica para auxiliar o professor a executar as atividades dentro da sala de aula. As atividades nas escolas são monitoradas pelos professores com auxílio de um manual e apoio da equipe do Grupo Projetos de Leitura

Após a execução das atividades sugeridas pelo projeto como adaptação dos textos para teatro, encenação e discussão dos temas, os alunos respondem a um questionário sobre os livros e desenvolvem textos baseados nas crônicas ou nas personagens. Os autores dos três melhores trabalhos recebem como prêmio outro livro de Laé de Souza.

Outra grande oportunidade do projeto, é que os alunos participantes, a partir do 6º ano, concorrem a ter o seu texto incluído no livro "As melhores crônicas dos projetos de leitura – Volume 5", que será lançado até novembro de 2013.

Histórico
O projeto, aplicado anualmente em escolas públicas de todo o país, foi criado em 2000 pelo escritor Laé de Souza e já contou com a participação de mais de três mil escolas. Aprovado pelo Ministério da Cultura, tem o patrocínio pelo sexto ano consecutivo do GRUPO SEGURADOR BANCO DO BRASIL E MAPFRE
Livros do Projeto e atividades
Em 2013, o Projeto será desenvolvido com a utilização dos livros "Radar, o cãozinho", "Quinho e o seu cãozinho - Um cãozinho especial" e "Acontece..." A escola poderá participar com até três classes, recebendo, como doação, exemplares desses títulos para todos os alunos.

Sobre o Grupo Projetos de Leitura

O Grupo Projetos de Leitura iniciou seu trabalho em 1998 e tem seus projetos aprovados pelo Ministério da Cultura, além de contar com o apoio de patrocinadores, parceiros e com o envolvimento dos professores. Com sede em São Paulo, o grupo atua em todo o território nacional desenvolvendo projetos sem fins lucrativos, com o objetivo de vencer um dos maiores desafios encontrados pelos professores e amantes da literatura: desenvolver o hábito da leitura.

Sobre o autor
Laé de Souza é cronista, dramaturgo, produtor cultural, bacharel em Direito e Administração de Empresas, autor de vários projetos de incentivo à leitura e de livros infantis, juvenis e adultos, entre eles: “Acontece”, “Acredite se Quiser!”, a série “Quinho e o seu Cãozinho”, “Nos Bastidores do Cotidiano” , “Espiando o Mundo pela Fechadura”, “Coisas de Homem & Coisas de Mulher”.

Inscrições:

Educadores poderão se inscrever pelo site www.projetosdeleitura.com.br até 31 de março 2013

Mais informações: (11) 2743-9491 e 2743-8400.

Fonte:
Laé de Souza