sexta-feira, 10 de novembro de 2023

José Fabiano (Trovas Brincantes) 2


A babá é geralmente
uma jovem que se acaba,
olhando o filho da gente
e por quem a gente baba…
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Ah, mulher, tu me cativas,
mas os teus modos são tais,
que as glândulas que me ativas
são somente as lacrimais...
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A mulher, que é uma graça,
ao marido, que é um bicho:
"Fica lá fora que passa
hoje o caminhão de lixo..."
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A nossa língua não tem
o feminino de "padre".
O de "marreco", porém,
em hospital, é "comadre".
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Ante alguém maior do que eu,
vem-me o pensamento mau:
pode ser algum pigmeu
usando perna-de-pau...
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Às quartas, sofro um bocado
nas mãos de linda criatura
Jesus foi crucificado,
mas não fez acupuntura.
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Bombeiro botafoguense
se cala, em dia de jogo,
pois, quando seu time vence,
como gritar: "Botafogo?"
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Depois da "idade do lobo",
ao ver tudo por que passo,
ocorre a "idade do bobo",
que finda "na do palhaço"...
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Devem-se, a certo "sargento",
que não gostava de "cabo",
a criação e o lançamento
da palavra "menoscabo"...
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Dizem que mulher não pensa!
Pensa, sim. E por que não?
Se a morte traz dor imensa,
pensa, pensa na pensão!
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Eu tenho me perguntado
qual, enfim, é meu formato;
uns dizem que sou "quadrado",
outros falam que sou "chato"...
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"Hálux", que nome pomposo!
Sabes por acaso o que é?
Além de algo luminoso,
é também dedão do pé...
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"Limpo este mundo", dizia
certo escritor neurastênico.
Do jornal, onde escrevia,
faziam papel higiênico...
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"Minha vida", diz Gracinha,
"lembra tragédia de teatro.
Vejam que família a minha:
sai um, porém voltam quatro..."
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Muito fácil perceber
o caminho do pecado.
Basta só reconhecer
qual o mais congestionado.
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Na Criação, se deduz
qual o plano que Deus leva:
Ele faz, no início, a Luz
e ao fim, a Treva, digo Eva.
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Na mocidade florida:
"Ah, quanta beleza e encanto!"
Mas chega o final da vida:
"Ah, quanta feiúra e... espanto!"
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Não traz a felicidade,
ter dinheiro de montão.
Mas igualmente é verdade
que não ter também traz não...
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Nem "my darling" nem "mon cher"
me deixam assim bocó,
como quando essa mulher
me chama de "meu xodó"...
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No dia das mães, o galo
lamentava-se na rinha:
"Como vou comemorá-lo,
se minha mãe é galinha.?"
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O esquecimento, em mim, lavra,
mas não sei por que razão
me esqueço de uma palavra
e jamais de um palavrão...
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O homem sente falta imensa
do ar e da mulher que ele ama.
Há só uma diferença:
o ar atende e não reclama...
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Por não conseguir limpar
este imenso mundo nosso,
não deixo de me lavar
todas as vezes que posso...
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Qual Jesus, eu vou morrendo,
mas com estas restrições:
não na cruz - suplício horrendo -
nem só entre dois ladrões...
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Queixava-me da velhice,
querendo ouvir um conselho.
O doutor, então, me disse:
"Olha-te menos no espelho..."
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"Sê bem-vindo!" Interessante
é ler em super-mercado
o que pensa um assaltante
de quem vai ser assaltado...
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Se de "Ana" o diminutivo
é "Aninha", estranho, então,
ao pensar que o aumentativo
deva ser menor: "Anão"...

Fonte: José Fabiano & A. A. de Assis. Trovas brincantes. 2007 (livreto). Enviado por Assis

A. A. de Assis (Orgulho do pai)

Naquela noite o guarda-livros Deodoro José, assíduo frequentador da roda de amigos que se reunia todo sábado na Toca d’Anta, chegou todo sorridente, trazendo com ele um moço que chamava a atenção por estar com a cabeça rapada. “Este garoto é o orgulho da minha vida – disse –; passou em primeiro lugar no vestibular de Direito”. Dona Liloca, gerente do botequim, festou lá do balcão: “Oba! A primeira rodada de chope vai ser então por conta da casa”.

O professor Polyclínio, aquele bom velhinho que vocês já conhecem, abraçou com força o venturoso pai. Em seguida convidou o jovem para sentar-se a seu lado: “Venha aqui, menino, você deve ter uma cabeça muito boa. Vamos conversar”.

O papo rolou sobre prazeres da juventude, preferências literárias, talento natural, vocação profissional etc. etc., até que de repente o querido sábio sacou do bolso a sua reluzente caneta Parker 51, pediu ao garçom uma folha de papel e fez nela três anotações. Na primeira, a raiz da palavra “justiça”: isos>ius>jus. Na segunda, o desenho de uma balança de dois pratos e, embaixo, a palavra “equilíbrio”. Na terceira, a frase “Não faça aos outros o que você não quer que lhe façam”.

Dobrou o papel e o entregou ao rapaz, recomendando: “Guarde isto dentro de um dos livros que você costuma abrir com mais frequência, e de vez em quando releia e reflita. São três lembretes fundamentais, especialmente para quem pretende seguir a nobre carreira jurídica”.

O jovem calouro fez um ar de surpresa. Polyclínio explicou:

1. Isos, que no grego significa “igual”, chegou ao latim como ius (ius, iuris), que depois evoluiu para jus, de onde temos a palavra “justiça”. Logo, justiça é o mesmo que “igualdade”.

2. A balança de dois pratos é um dos símbolos da justiça por indicar a ideia de “equilíbrio” (equi = igual + líbrio = peso). Logo, equilíbrio é o mesmo que “pesos iguais”).

3. “Não faça aos outros o que você não quer que lhe façam”. A célebre Regra de Ouro.

Com aquele seu jeitão de vovô dengoso, o professor pôs a mão no ombro do moço e continuou: “Justiça é o ponto de partida para a felicidade coletiva. Algo aparentemente tão simples, no entanto sine-qua-non para o exercício da arte de viver bem em sociedade”.

  E o senhor, com a sua experiência, acha que isso seja possível?

– Acho sim. Mais ainda quando tenho a alegria de conhecer meninos como você. Costumam fazer juízo negativo das novas gerações, mas vejo com otimismo o futuro. Alguns de vocês parecem estar de fato perdidos; a maioria, no entanto, leva bem a sério a vida.    

–  Bonito, porém difícil.

–  Difícil, porém possível.
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  (Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 09-11-2023)

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

Lucy V. Hay (Como Escrever um Mistério de Assassinato) – 2

CRIANDO OS PERSONAGENS

1 – Crie uma ficha individual para cada personagem. 

Você pode criar uma ficha para cada personagem importante da narrativa — para nunca se esquecer da função deles. Inclua descrições físicas, um pouco da história de vida (até o que aconteceu antes do início do enredo), com o que eles trabalham, o que estudaram e como é a sua personalidade. 

Você pode incluir também as idiossincrasias e peculiaridades dos personagens.

Consulte essas fichas para nunca se confundir ou esquecer de detalhes dos personagens.

Crie personagens que não só sejam agradáveis, mas mereçam empatia. Personagens bonzinhos demais nunca ficam tão interessantes assim. Pense em sujeitos complexos, com qualidades e defeitos, mas que chamem a atenção do leitor.

Por exemplo: pode ser que o personagem viva chegando atrasado, não tenha uma boa relação com a mãe e odeie os colegas de trabalho. Inspire-se até em conhecidos seus!

Um personagem pode despertar empatia de diversas formas. Por exemplo: talvez ele esteja tendo problemas financeiros ou seja a vítima do crime; talvez seja uma pessoa altruísta, mesmo que tenha os seus momentos de egoísmo.

O personagem Sherlock Holmes, um dos mais famosos protagonistas de suspenses da literatura, não é necessariamente agradável. No entanto, ele é interessante e capta a atenção dos leitores por ser inteligente e bom no que faz.

2 – Inclua vários suspeitos. 

Geralmente, não adianta colocar só um suspeito na história. Qual é a graça disso? Pense em cinco ou seis personagens que possam ter cometido o crime.

A história fica muito mais interessante quando há diversos suspeitos, já que o leitor tem que tentar descobrir quem é o criminoso real.

3 – Pense nas motivações dos suspeitos. 

Cada pessoa enquadrada como suspeito deve ter uma motivação forte e plausível o bastante para ter matado a vítima. Caso contrário, o texto vai ficar chato de ler. Fuja do óbvio, como usar a herança que o morto deixaria como motivação para todos os suspeitos.

Veja alguns exemplos legais de motivações: se um suspeito queria guardar um segredo, outro queria ficar com milhões da vítima e um terceiro estava com inveja dela etc.

4 – Crie um assassino verossímil. 

A pessoa que de fato for culpada pelo homicídio deve ter plena capacidade de cometer o crime, seja física ou emocionalmente. Caso contrário, o leitor vai se sentir enganado. Por exemplo: um homem velho e mirrado provavelmente não conseguiria pegar um cadáver e jogá-lo ponte abaixo, mesmo que estivesse cheio de adrenalina.

5 – Entre na mente do detetive. 

Muitas vezes, um romance de suspense tem como protagonista o detetive que investiga o crime. Você pode contar a história do ponto de vista dele (algo bem intenso, mas profissional) ou optar pela terceira pessoa (onisciente), desde que conheça o personagem central de cor e salteado.

Pense nos seguintes termos: o detetive é uma pessoa completamente lógica? Ou ele se deixa levar pela intuição de vez em quando? Ele é analítico e observador ou dá mais atenção ao panorama geral do crime? Quais são as suas idiossincrasias? O que o ajuda a pensar? Ele tem algum vício? Problemas familiares?

São esses pequenos detalhes que tornam o personagem mais real. Por exemplo: Sherlock Holmes é um personagem lógico e nunca confia em palpites. Contudo, ele é tão lógico que tem dificuldade para manter boas relações sociais — afinal, não é muito emotivo. Dentre as suas peculiaridades estão: precisar sempre se sentir superior a alguém, tocar violino e fazer experimentos para descobrir mais sobre como resolver crimes.

6 – Pense na vítima (ou vítimas). 

Você pode começar o enredo com a vítima já morta e, depois, desvendar os detalhes da vida dela aos poucos. Se preferir, apresente-a viva no começo e só mostre o assassinato em seguida.

Pense em como a vítima pode contribuir com a história em vida. Por exemplo: se o personagem é simpático e agradável, o leitor vai ficar mais empenhado em ver o assassino atrás das grades. Por outro lado, se ele é a antipático e desprezível, o leitor pode até nem julgar as ações do criminoso.

Pense em uma história de fundo para a vítima. Fale dela aos poucos para o leitor se identificar (ou não) com esse personagem. 

Você pode até transformar um dos possíveis suspeitos como segunda vítima mais adiante.
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continua…

Fonte: Wikihow. https://pt.wikihow.com/Escrever-um-Mist%C3%A9rio-de-Assassinato

Aparecido Raimundo de Souza (E a casa ficou vazia...)

“Todos os dias quando acordo
não tenho mais o tempo que passou.”
(‘Tempo Perdido’, Renato Russo)

DE REPENTE, a turma inteira partiu. Foi embora. Cada qual para um canto diferente, longínquo. Como sempre, fiquei aqui na casa enorme e vazia. Solitário, a alma combalida, sem rumo, sem esperança, entregue à sorte do destino ingrato e espavorido. 

Sei perfeitamente que nunca mais conseguirei reunir, embaixo do mesmo teto, meu padrasto Jorge, minha mãe Ana, meus irmãos Cláudio, Rogério e André. Tampouco a gritaria algazariante dos que aqui viveram em doce harmonia. Jamais terei o doce e inebriante prazer de ouvir as suas vozes.
 
Eles por algum motivo inexplicável se afastaram. Foram sem dizer adeus. Viajaram sem regresso, sem deixar recordações. Suas figuras se diluíram no ar, como nuvens no firmamento, como o dia tragado pela noite escura. 

O espaço aqui deixado engrandeceu demais diante deles, centuplicou como o infinito aos olhos do astronauta, se agigantou como o mar à frente daquele que pela primeira vez o contempla, medroso, e encolhido, temeroso de ser tragado por suas ondas gigantes em procelosos movimentos. A solidão assoberbante e densa os envolveu a todos. Cingiu, para sempre, na voragem do nunca mais.

Eu fiquei!

Como sempre, sobrou para mim, permanecer aqui assim, desta forma, solitário, a casa vazia. Contemplo os aposentos sem os móveis de ontem. Meus passos ecoam na confusão de um cérebro com devaneios desordenados. Sem o vínculo da ternura, do aconchego dos meus pares, algo estranho bate na minha cabeça como uma espécie de látego martirizante. 

Sei que jamais terei a oportunidade de me sentar ao redor da mesa enorme da cozinha e ouvir, cada um dos familiares, comentar como foi o dia, as andanças, alegrias e desventuras. 

Da mesma forma, nunca mais ouvirei os gritos de mamãe, os berros do velho Jorge, as gracinhas do mano Cláudio, as impertinências do irmão Rogério e a fumaça enervante e insuportável dos cigarros do André. Nunca mais estas pequenas banalidades voltarão a se juntar num só espaço, como antes, como até bem poucos anos atrás.

Casa vazia – vazia casa, sem a esperança dos que aqui residiram. Alma vazia – vazia alma, prisioneira, agora e para sempre, desta morada grandiosa, oca, destituída do amor maior, da esperança plena, e das afeições que enlevavam e ajudavam a tornar tudo mais belo e colorido. 

Vou viver... viver?! Talvez não seja este o termo, a palavra certa. Estou mais para morrer. Morrer de modo lento, penoso, em câmera lenta, morrer de tédio, como a tristeza enfadonha e desgastante desta dinastia desfeita. 

Aliás, tenho a impressão de que vamos morrer. Morrer os dois, a casa e eu, eu e a casa, da mesma enfermidade que corrói nossos espíritos, nossas estruturas, desde a base até a mais alta das paredes. 

Na verdade, não há o que discutir. Vamos, realmente, morrer. A casa e eu, eu e a casa, juntos, unidos num abraço estranho, num desprazer exagerado e ingente, numa, enfim, insatisfação indescritível e, pior, na mais completa e enervante solidão. 

Senhoras e senhores há muito tempo, NÃO TENHO MAIS A MINHA FAMÍLIA. Se vocês ainda têm a de vocês, CONSERVEM. Lembrem destas palavras. Letra comum, todavia, de profundo sentimento em prol daqueles que muitas vezes esquecemos que vivem ao nosso lado e nada esperam, a não ser um pouquinho de atenção, carinho e afeto. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Adega de Versos 115: Agnelo Campos

 

Mensagem na Garrafa – 29 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Antero Jerónimo
Lisboa/Portugal

O dia acordou envergonhado.

Como se estivesse a despertar de um sonho que o tempo transformou em pesadelo.

Um tempo medido por uma bitola imensuravelmente desgovernada.

Os olhos cansados pestanejam vermelhos de incompreensão.

Nesse sonho a noite velava pelo descanso de dois corpos subnutridos pela correria incessante dos dias.

Velava também pelo sorriso angelical da criança no meio de ambos, habituada a ter o seu mundo num espaço muito exíguo, despido de qualquer ostentação.

São sonos acostumados a escutar sirenes rasgando o ar da noite com o seu lamento estridente. Corpos correndo para abrigos enquanto projetam sombras fantasmagóricas nas paredes, por entre gritos e imprecações.

Nesta noite, um silvo aterrador precedeu uma explosão de luz que projetou destroços em todas as direções.

Desta vez a sirene não quis acordar a noite.

E o sonho, esse transformou-se em sono eterno.

Contos do Paraná (“A teoria do iceberg”, por Roberto Muggiati)

Meu protetor de tela é um iceberg, passo o dia diante dele. Nenhuma paixão especial por icebergs. Os tons azul-cobalto da foto lembram o céu de Curitiba ao entardecer. Essa imagem do iceberg veio pela internet: uma namorada queria que eu não esquecesse a cor do céu que nos protegia. A namorada passou, a imagem continuou na tela em homenagem à Teoria do Iceberg, do velho Hemingway: “Se escrever apenas a verdade, um escritor pode omitir muitas coisas. O leitor sentirá essas coisas que foram ocultadas com tanta força como se o escritor as houvesse explicitado. A dignidade de um iceberg existe porque apenas um oitavo dele está acima da água.” O autor da imagem do iceberg também tinha sua teoria. Fez uma montagem de várias fotos para ilustrar o conceito de que “nem tudo o que se vê é necessariamente real.

O céu de Curitiba me leva a outro episódio — a outro céu noturno, e outra namorada, de um tempo bem mais distante. Éramos crianças, parentes remotos, estranhos um ao outro, e de repente nos descobrimos. Numa festa de família, na janela do vigésimo andar de um dos primeiros arranha-céus da cidade, espetado solitário na paisagem. Loucos para viver e falar, nos enlaçamos, ávidos por conhecer um ao outro. (O que conversam os amantes? Eles nunca sabem, eles nunca lembram.) E então, no descampado do aeroporto, vimos  as luzes de um avião que piscavam, cortando o horizonte como notas numa pauta musical. O avião, de destino insondável, tateava com suas lanternas vermelhas o grande mistério do futuro. Comungamos em silêncio a mesma emoção. A esperança de partir para o mundo, quem sabe juntos? Foi nossa epifania — perdoem o clichê. Um biólogo definiria todo aquele cataclismo entre nós como uma mera erupção de feromônios e testosterona. Não importa, a atração era real, como nunca havíamos sentido antes.

Meia-noite com ela e as estrelas — e então a noite acabou. A nossa história seria uma crônica de amantes malsinados, atravessando décadas. Uma estória entrecortada, desencontrada, que me arrastaria por tristes oceanos de lágrimas... Desculpem esse crime de lesa-TI. Sim, a Teoria do Iceberg merece uma sigla, pertence à ciência, é um teorema, a equação que fornece le mot juste (a palavra certa). A emoção tem de estar sempre ali, mas é a maior inimiga do bom texto.

Passamos um ano e meio longe um do outro. Fui morar em Paris, quando voltei ela estava casada. Mal casada, já quase descasada. Numa escapada furtiva à Livraria Ghignone, marcamos um encontro em Guaratuba. Cheguei lá, ela não. Sumiu, desapareceu do meu mapa. Para sempre? Aprendi que nada é para sempre. Em 1968 — o mundo em chamas — eu casado, em São Paulo, dou de cara com ela na Rua Augusta, numa manhã de inverno solar e vento cortante.

— Que coisa incrível! Você por aqui?

— Trabalho na Veja. E você, como vai sua vida?

— Não vai acreditar! Sou aviadora, com brevê e tudo! Vou buscar jatinhos nos Estados Unidos. Outra noite, em Nova York, ouvindo o Gato Barbieri, pensei muito em você...

(Ela conhecia minha paixão pelo jazz. Uma vez, nos tempos inocentes de Curitiba — ela de camisola eu de porre — eu fiz serenata para ela com o saxofone tenor.)

No vento frio da Augusta, minha mulher, ciumenta, cortou o clima. Nem pudemos trocar telefones. E fiquei outros vinte anos sem saber de — não, não vou dizer seu nome... Afinal, isso não se faz num conte à clef (conto de fadas). 

Aos poucos senti toda a extensão de sua doce vingança. Eu não soube defender aquela absurda epifania adolescente, que era tudo para nós. Ela, sim, foi à luta, aprendeu a pilotar, sequestrou o nosso avião e levantou voo com suas luzes vermelhas sumindo na cerração da velha noite curitibana. Eu a via cortando a imensidão dos espaços infinitos. Pensando em mim, quem sabe?

Um amigo me ensinou um dia: não se esforce muito para lembrar as coisas boas, elas podem se desgastar e se perder. Mas, naquele meu triste fim de casamento, eu não pensava em outra coisa — na minha doce e cômica Valentina. Como doía a sua ausência nas noites suicidas do inverno paulistano.

O coração é um músculo flexível. O casamento acabou, outro casamento começou, dois filhos, até cachorros. O matrimônio que nunca sonhei ter. Eterno enquanto durou. Uma noite, livre de novo, num shopping de Curitiba, lançando um livro, ela entra de novo na minha vida, na fila de autógrafos.

— Ainda se lembra de mim?

Desta vez trocamos telefones. Não pilotava mais, estava também livre, totalmente. Marcamos um encontro no Rio. Fui esperá-la no aeroporto do Galeão. Subimos a Serra para o meu chalé em Itaipava. Jantamos no velho Farfarello, era dia 29, pedimos Gnocchi della Fortuna, al cricco e al pesto, com direito a uma nota de un dollaro debaixo de cada prato. Loucos para viver e falar, bebemos duas garrafas de vinho. Em uma hora traçamos os planos de uma vida inteira. Não lembro como dirigi o carro até o chalé. Antes de desmaiarmos na cama, ela ainda perguntou:

— Agora vamos ser felizes?

Acordou-me no meio da madrugada. Queria porque queria descer a Serra ali na hora, fazer logo nossa mudança definitiva para Itaipava. Bêbado e cansado, não resisti. Foi nossa perdição. No meio da descida, despenquei pelo despenhadeiro. Dormi na direção e acordei no fundo do socavão, preso às ferragens. Sobrevivi, com pequenos arranhões. Ela pagou a fatura. Foi jogada para fora do carro e quebrou a coluna em vários pontos. Na queda, tive a impressão de ouvi-la gritar: “Estou voando!”

O acidente aconteceu logo depois do viaduto sobre o rio Rolador. Lembrei da Serra do Rola-Moça do Mário de Andrade, que descreve um casal em fuga. “Como eles riam! E os risos também casavam com as risadas dos cascalhos.” Subitamente, “dão noiva e cavalo um salto, precipitados no abismo.” Poesia numa hora dessas?

Por minha culpa, ela iria passar o resto da vida presa a uma cadeira de rodas. Não fomos finalmente felizes. Eu conseguia suportar a dor até o escurecer, depois a coisa ficava terrível por volta da meia-noite, e às três da manhã era o grande mergulho na noite escura da alma. Pensei em suicídio: lasanha com chumbinho, como aquela atriz da TV. Ou caipivodca de lichia com carrapaticida (uma variante mais sofisticada do antigo Guaraná com formicida.) Ou um salto espetacular de um vigésimo andar: no bilhete de suicida, inverteria a frase de Eliot: “This is the way the world ends — not with a whimper, but a bang...(É assim que o mundo acaba – não com um gemido, mas com um estrondo...) Mas todas as coisas devem passar e o mundo continua.

Você recupera a maior parte de sua vida, como bens salvados de um incêndio. Eu iria continuar por mais tempo, muito tempo talvez — até a hora de cinzelarem na minha lápide o epitáfio, a definição de vida que tomei emprestada de Cole Porter: “It was great fun, but it was just one of those things.”

Ainda fui vê-la uma última vez. Era como falar com uma estátua. Seu olhar parado não dizia nada. Saí para o dia ofuscante, os olhos cegados por uma cortina de lágrimas e sal. O sol, sem alternativa, brilhava sobre o nada novo. E a história acaba aqui. O mundo mata indistintamente os belos, os bons e os bravos. Ela morreu, você vai morrer e eu vou morrer. É tudo o que posso prometer.
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Roberto Muggiati (Curitiba, 1938) começou a carreira na redação da Gazeta do Povo — completou 60 anos de carreira em março de 2014. Estudou no Centre de Formation des Journalistes, em Paris, trabalhou na BBC de Londres, colaborou no SDJB e na revista Senhor, além de editor de Manchete, Veja e Fatos e Fotos. Há 45 anos escreve sobre música e política — e a relação entre as duas: de Mao e a China (1968) a Improvisando soluções (2008), passando por Rock/O grito e o mito (1973) e pelo romance A contorcionista mongol (2000) — e mais a caminho.

Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Humberto de Campos (Número, faz favor?)

O Altino Praxedes andava já pelos trinta anos quando, casado, e com um filho, abandonou a sua fazenda das "Três Pedras", no Estado do Rio, para vir à capital da República submeter a esposa a uma operação. E como não tivesse parentes, nem amigos, nem conhecidos, foi hospedar-se, com a família, em uma pensão do Flamengo, onde lhe prometeram toda a comodidade.

Ocupado, ele mesmo, em arranjar médico e casa de Saúde, era-lhe um tormento aquela vida, acima e abaixo, numa terra desconhecida. De manhã, saía a tratar de negócio. Duas horas depois, porém, se achava outra vez em casa, a saber como estava passando a esposa. E tão inquieto andava longe da companheira, que a dona da pensão, penalizada, aconselhou:

- Sr. Praxedes, por quê o senhor, em vez de vir, não telefona para sua mulher? É mais rápido, e muito mais cômodo.

- É verdade, - concordou o hóspede, que nunca tinha falado, em sua vida, num telefone.

No dia seguinte, estava o provinciano no centro da cidade, quando se lembrou de telefonar para casa. O aparelho, e a utilidade de cada uma das peças, ele o conhecia, por ter visto outras pessoas falando. Nunca, porém, havia falado, ele próprio, de modo que foi trêmulo, quase vermelho, que pôs o fone no ouvido, pedindo:

- Ligue para minha mulher; sim?

- Número, faz favor?

Praxedes empalideceu:

- Qual número, qual nada, dona! Eu sou um homem sério. Eu só tenho uma mulher, e essa não tem numeração nenhuma!

E enganchando o fone, com estrondo:

- Trate sério; ouviu?

Fonte: Humberto de Campos. Grãos de mostarda. Publicado originalmente em 1926. Disponível em Domínio Público. 

Atílio Andrade (Poemas Avulsos) 2


ABELHAS

Voam num frenético  zumbido 
das flores colhem sem "estresse "
e parecem terem sumido
mas, voltam na mesma flor sem GPS.

Colhem o néctar, o pólen
e para colmeia  vão  levar
e mais tarde vão além
em mel, cera, própolis, transformar.

Abelhas existem são doces
outras também  assassinas,
vieram de longe, alguém  trouxe.

Enfeitam os jardins e ensinam
com seu trabalho, polenizador e escravo,
como se beija a rosa perto do cravo.
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A BRUXA DO AMOR

Vassoura na mão
Gritando , empurrando
Fervendo na ação
Jurando , jorrando
Eterno amor...

Na encruzilhada da dor
Onde inferniza o trotar
Sem jeito, no olhar
Sincero de quem
Não  sabe de onde vem
A felicidade a jorrar
Nas bruxarias, a mostrar.
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MOMENTO

Plem... plem... plem
Rasga um sino. Morre o sol no horizonte.
Uma coruja avança. O Silêncio
No agouro da noite.
O dia pouco a pouco se consome,
Vem a noite!
Com passos firmes em meio ao luto das trevas…
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PRIMAVERA

Até que em fim
Sorri o jardim
Onde dançam os sabiás
Entre as folhas e flores
Fazem ninhos cá e lá
Dando adeus ao que já era
Vivendo a alegria da primavera
E no bailado açucarado
Vão empilhando seu canto
Voando pra todo lado.
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RIO TEJO

De onde estou o mundo vejo  
Brilhando  lá fora pelo clarão
Luzes a iluminar o ímpar Tejo
Fechado estou, sufoca o coração

Um besouro escorrega pela
Janela entreaberta e foge
Voando, rasante atropela
A brisa que perfuma o hoje

E cruzando, caracóis de ruas
Pelo Tejo, buscando o mar
Um veleiro navega às escuras

Abrindo horizontes a sonhar
Lembranças portuguesas carrega
E ao mundo o exemplo delega
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TEATRO

Nossa vida é um teatro
Onde interpretamos nossos dias
Lindos, perfumados, criativos de fato
Felizes, sorridentes, amargos ou frias
De acordo com os acontecimentos
Onde as interpretações nos levam
A saciar ilusões contidas nos passos
Ou na construção de ideias
No desespero entre os laços
Do fazer e fugir
Do querer e fingir
Do ver e não crer
Ou não querer saber...
Do acontecer ou do fracasso , enfim:
Somos surpreendidos neste teatro
Onde nosso coração ateia fogo
E , sopramos a fumaça
Que bem perto passa...
E nos dá vida nesse jogo.
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VAZOU

A lua está cheia
E por trás das nuvens clareia
Fazendo brilhar no chão a areia
Que pouco a pouco alumeia
Meus passos, num vai e vem, sem eira
No mundo bem na beira...
E no amor que vazou da gibeira
Não entendi teu olhar, besteira,
Definitivamente dei bobeira.
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Fonte: Revista Carlos Zemek – Arte e Cultura  https://revistacazemek.blogspot.com/

Newton Sampaio (O puritano)

Naquela hora calmosa do dia, necessitava-se de muita energia para não permitir no organismo o domínio da lassidão. O aspecto marasmático da vila, de ruas sujas e desabaladas; a tepidez do vento que, depois de marombar malucamente pelos ares, vinha provocar mais exsudação pelos poros umedecidos; a monotonia estrídula das cigarras, fazendo com seu canto a apologia da sesta; o rio das Cinzas, espraiando com preguiçosa lentidão as pequenas ondas que os peixes provocam, pulando; o rechinar constante de algum carro de bois, arrastado pachorrentamente pelas estradas cheias de pedregulhos fuzilantes ao sol ardente; tudo, enfim, servia para derramar indolência ao redor da gente.

Rara a pessoa que saía de casa, ou rejeitava qualquer sombra amena. Ninguém, por vontade própria, se dispunha a afrontar o mormaço horroroso. Só faziam o sacrifício os que, por dever de ofício, tinham de andar mesmo pelas ruas. Exemplo vivo desses indivíduos-mártires era o Gumercindo Carroceiro que, naquele momento, chicoteava furiosamente o ar e descia a rua grande, frouxando as rédeas em um alarido de mil demônios.

Ao chegar em frente a uma casa que trazia nas paredes caiadas os seguintes dizeres:

CASA ADRIANO
Armazém de secos e molhados

Sofreou os animais. Desceu estrepitosamente. Ao transpor a porta, porém, fechou a carranca. É que, atrás do balcão, Adriano ressonava, deliciosamente despreocupado, com a cabeça metida entre os braços.

Gumercindo tossiu grosso. Mas o negociante continuou dormindo.

Gumercindo cruzou os braços, sacudindo a cabeça. Estalou o chicote no ar e nada de o outro se mexer. Gumercindo cruzou os braços novamente. Franziu a testa salpicada de bolhazinha de suor. Nem isso adiantou. Continuava na mesma aquela soneca beatífica.

Gumercindo, impaciente, gritou:

— Seu Adriano! Ô, seu Adriano!

O negociante, pouco a pouco, foi abrindo os olhos, levantando a cabeça, esticando os braços, até culminar em um espreguiçamento total e escandaloso.

Braços cruzados, o carroceiro contemplava inflexível o despertar daquele primata que sabia as quatro operações e era vendedor de secos e molhados nas plagas tomazinenses. E quando Adriano, depois de esfregadela nas pálpebras e escancaramento da boca em medonho bocejo, sacudiu o corpo todo para espantar a moleza, Gumercindo repreendeu:

— Onde já se viu essa pasmaceira, seu Adriano? Você não tem filhos pra dar de comer?

Vendo que o vendeiro não se importava com a descompostura gratuita, soliloquou com ares de profeta e filósofo:

— Deus pôs o homem no mundo pra trabalhar. E o mesmo Deus pedirá contas um dia aos preguiçosos. Ah! Isso pedirá. E eu quero ter o gosto de ver todos os tomazinenses bem no fundo do inferno, para castigo de tanta vagabundagem.

Adriano interrompeu o monólogo do carroceiro.

— Gumercindo. Trouxe minhas coisas?

— Como não? Eu lá perco tempo como vocês?

E começou a transportar, da carroça para o fundo do armazém, algumas sacas de açúcar. Pronto o serviço, desabafou:

— Eta, calorão! Se eu não fosse um trabalhador, até que ia tirar agora uma soneca...

Adriano nem sorriu. Encheu, apenas, dois copos de cachaça.

— Um traguinho, Gumercindo, em sua honra.

O carroceiro arqueou o busto para trás, espalmando as mãos em frente ao peito, em um gesto de recusa altiva.

— Quem? Eu? Tomar pinga? Era só o que faltava.

Adriano não se incomodou. Ingeriu, gostosamente, o líquido.

— Se você soubesse o quanto isto é bom...

Gumercindo fez como quem cede:

— Vá lá. Pra não fazer desfeita...

E esvaziou o copo num trago.

Gumercindo resolveu sentar-se. Conversou duas ou três coisas. E, em menos de dez minutos, escarrapachava-se na cadeira, na dormida mais bizarra deste mundo: — os braços largados, a cabeça encostada no balcão, a boca aberta, o busto subindo e descendo a cada movimento respiratório.

Quando Adriano o acordou, Gumercindo se pôs de pé, estremunhado. E gaguejou desenxabido:

— Uai! Não vê que quase dormi, mesmo?

Saiu do negócio. Gripou lépido na carroça. E chicoteou os cavalos. No virar a segunda esquina, fez alto.

— Boas tardes, seu Moisés. Hoje não veio nada pro senhor.

O fleumático sírio, tamborilando os dedos no balcão, nem tirou o cachimbo da boca:

— Eu não estava esperando, mesmo...

Passou nesse instante, pela calçada, uma senhora muito bem-vestida, deixando após si um rasto de perfumes caros.

Gumercindo franziu o sobrecenho:

— Tá aí uma coisa que não me entra. De jeito nenhum. Então, porque o seu Tancredo perdeu a vergonha, as mulheres honestas de Tomazina têm de aguentar uma criatura dessa laia? Que desaforo, minha Nossa Senhora!

(Seu Tancredo era o maior magnata do lugar. Capelão, major da Guarda Nacional, presidente do diretório, vice-diretor do arrebentado Tiro de Guerra, acionista forte do “Banco Popular e Agrícola Norte do Paraná” etc., etc., tudo, afinal de contas. O seu Tancredo enviuvara, já. E logo após a morte da boa da Dona Cotinha, deu pra ficar sirigaita, apesar de todos os conselhos da parentela. Uma das suas loucuras: certo dia fez uma viagem. Mas não voltou sozinho. Veio acompanhado de uma tal de Jovita, a quem presenteou com uma casa muito bem mobilhada. E daí por diante... nem é bom falar sobre a série de escândalos).

— Ah! Seu Moisés. O senhor vai ser testemunha de um juramento meu.

E Gumercindo deu sua “palavra de honra” que não sufragaria o major nas eleições próximas.

— Que esperança! Então um homem sem compostura merece alguma coisa em política?

A conversa recaiu depois sobre Jovita.

— Ela até que é bem parecida. Mas é muito semostradeira. Vive lambeteando até no jeito de andar. Perto de mim é que essa coisinha à toa não chega. Sou capaz de lhe dar na cara. Porque eu tenho uma birra de gente espoleta...

Moisés, pito dependurado, silencioso, ouviu toda aquela lenga-lenga.

O carroceiro resolveu mudar de assunto.

— Sabe de uma coisa, seu Moisés? Trabalhei hoje como nunca. Também daqui a pouco vou tocando a carroça pra fazenda do Quim, e me divertir um pouco.

E como o sírio, pela primeira vez, tirasse o cachimbo dos lábios, o carroceiro viu nisso uma pergunta. E ajuntou:

— Então não sabe? A menina do Quim casa-se hoje. O pessoal já foi pra lá cedo. Todo o mundo vai jantar com a noiva.

Chegou-se à porta. Arrebitou o nariz:

— Já refrescou bastante. Tá na hora de ir andando.

Mas não saiu do negócio do Moisés. O Tancredo entrara nesse momento, esbaforido.

— Olá, Gumercindo, é verdade que você vai até a casa do Quim?

— É, sim. – respondeu o outro, repuxando os lábios.

— Pois deu na telha da Jovita — (Gumercindo, ao ouvir este nome, fechou a carranca) — ir à festa e...

Não terminou. Jovita transpôs a porta, toda meneios no corpo e chiados na fala.

— Tancredo. Já fiquei resolvida. Vou de carroça, mesmo.

— Não, protestou o major. E os solavancos? E a poeira? Não pode ser. O Gumercindo vai dizer ao Neco que venha já com o automóvel.

— Não. Eu quero (e Jovita frisou bem o verbo), eu quero ir de carroça com ele.

Desmanchou-se, como por encanto, a carranca de Gumercindo. E foi todo meloso, curvado em escandaloso salamaleque, que proferiu:

— Oh! Pois não. Eu posso até forrar a tábua com um pelego macio.

Minutos depois, a carroça deslizava na estrada, sob os cuidados extraordinários do Gumercindo. E a seu lado, muito sim senhora, Jovita o envolvia em um círculo de perfumes caros. Na rua, sozinho, Tancredo sacudia a cabeça:

— Estas mulheres têm cada uma. Trocar uma carroça por um automóvel. Por um automóvel!

E atrás do balcão, filosofava o Moisés, amassando com a polpa do polegar o fumo do cachimbo:

— Este Gumercindo Carroceiro…
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Publicado originalmente no Correio dos Ferroviários. Curitiba, maio de 1934.

Fonte:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público. 

Lucy V. Hay (Como Escrever um Mistério de Assassinato) – Parte 1

Escrever um romance de suspense (ou melhor, de qualquer gênero) é uma tarefa complicada. Pensando assim, você pode organizar as suas ideias no papel antes de começar de fato para não se perder. Depois, crie personagens, vítimas, suspeitos e protagonistas para dar o pontapé inicial na narrativa!

PENSANDO NA ESTRUTURA DO ROMANCE

1 – Decida onde o enredo vai acontecer. 

A ambientação da história nem sempre é tão importante no início, a menos que você tenha uma ideia geral de onde quer que ela aconteça de fato. Essa ambientação inclui o local, a data, a época do ano, a região geográfica e até o clima. 

Pense no clima (não de tempo) que você quer dar à história, que é bastante influenciado pelo local onde ela acontece.

Por exemplo: um suspense ambientado em São Paulo no início do século XIX seria muito diferente de outro, ambientado no interior de Minas Gerais no início do século XX.

Outro exemplo: os romances estrelados por Sherlock Holmes criam toda uma ambientação soturna a partir da Era Vitoriana e de Londres.

2– Organize a narrativa. 

A narrativa inclui todos os passos do romance, indo do início ao fim. Geralmente, ela tem oito etapas: inércia, gatilho, busca, surpresa, escolha crítica, clímax, inversão e resolução (embora esses nomes variem de autor a autor).

– Na inércia, tudo ainda está na normalidade. Você pode começar contando o dia a dia do detetive, de uma testemunha ou de qualquer ponto de vista que queira abordar. 

– O gatilho, por sua vez, é o evento que dá o pontapé inicial à busca (geralmente, um assassinato em suspenses).

– A surpresa está nas complicações que surgem a cada momento da narrativa. Em um romance de suspense, as surpresas podem acontecer quando urgem novas provas do crime, novas motivações para o que aconteceu, novos suspeitos e assim por diante.

– A escolha crítica é o ponto crucial da história do protagonista. É nesse momento que ele tem que decidir como vai agir para terminar o enredo — e, muitas vezes, a decisão não é fácil e define o caráter do personagem. De forma geral, essa decisão leva ao clímax, momento em que a ação e a tensão chegam ao ponto máximo. 

Por exemplo: o detetive pode começar a perseguir o suspeito para capturá-lo.

– A inversão e a resolução mostram como os personagens mudaram e o que caracteriza a nova realidade deles.

3 – Coloque intrigas no cerne da história. 

Você tem que deixar o leitor com a pulga atrás da orelha o tempo todo. Dá até para começar o enredo com um cadáver e detetives investigando a cena, mas é muito mais interessante fazer o leitor se questionar o que está acontecendo desde o início. 

Crie uma situação hipotética improvável. Por exemplo: um enredo em que uma mulher tire os seus filhos do seu testamento e deixe tudo para um homem que está no leito de morte; logo depois, alguém é assassinado. Isso é interessante, dá um gosto de quero mais e não é exatamente corriqueiro.

4 – Monte um esqueleto da progressão do enredo. 

Depois de decidir os passos básicos da narrativa, passe a montar um esqueleto mais detalhado dela. Avance de capítulo a capítulo, sempre escrevendo uma descrição breve do que vai acontecer para não se perder na hora de colocar tudo no papel pela última vez.

Por exemplo: escreva "Capítulo 1: apresentar a protagonista, a detetive Rebeca Novaes. Começar em casa, mostrando ela se arrumando para o trabalho. O telefone toca e ela descobre que houve um homicídio".

DICA DE ESPECIALISTA

Comece com a pergunta à qual o personagem principal tem que responder. A escritora e roteirista Lucy Hay afirma: "O roteiro de um suspense é complexo. No geral, ele começa com um crime ou uma pergunta a que alguém tem que responder. Além disso, há um personagem que assume o 'papel' de detetive no centro narrativo. Essa pessoa não precisa literalmente trabalhar com investigação, mas deve ter motivação para sanar a dúvida que tem em mente".

5 – Dê pistas físicas, verbais e temáticas ao leitor. 

Essas pistas se encaixam em três categorias: físicas, verbais e temáticas. As pistas físicas são: gotículas de sangue, rastros de DNA que podem ser analisados, marcas de pegadas etc.; as verbais são as coisas que os personagens dizem uns aos outros; as temáticas são aquelas que têm a ver com trejeitos e características desses personagens, como um vilão que só usa preto ou tem um tique nervoso.

Você pode criar essas pistas de duas formas diferentes: imediata, como quando o assassino deixa cair um objeto pessoal na cena do crime (que o leitor nota ou não), e futura, como quando os investigadores fazem um teste com uma amostra de DNA e o leitor demora um pouco para ser informado do resultado.

Também existe uma diferença no nível de sutileza. Algumas pistas são bastante óbvias, como quando o assassino deixa a arma na cena do crime. Outras são mais sutis, como quando a roupa que a vítima está usando ajuda na resolução do homicídio.

Você não precisa incluir todas as pistas nos estágios iniciais do planejamento, mas pelo menos pense em alguns pontos indispensáveis ao longo do romance. Também não adianta tentar enfiar tudo em uma só cena.

6 – Estude a fundo o tema do enredo. 

Você tem que saber do que está falando para convencer o leitor. Por exemplo: se pretende escrever um suspense que traga rituais bíblicos ou pagãos, estude esse assunto de maneira aprofundada.

Você pode pesquisar na internet, mas não se esqueça de usar também recursos como a biblioteca pública local.

Dá para descobrir bastante com uma pesquisa básica, mas contar com a experiência é ainda melhor. Por exemplo: participe de algum ritual que tenha a ver com a história que você quer escrever.
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continua…


quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 25

 

Mensagem na Garrafa – 28 –

Catulo da Paixão Cearense

São Luís/MA, 1863 – 1946, Rio de Janeiro/RJ

João Pernambuco
Jatobá/PE, 1883 – 1947, Rio de Janeiro/RJ

LUAR DO SERTÃO

Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão

Oh! que saudade do luar da minha terra
Lá na serra branquejando folhas secas pelo chão
Este luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade do luar lá do sertão

Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão

Se a lua nasce por detrás da verde mata
Mais parece um sol de prata prateando a solidão
E a gente pega na viola que ponteia
E a canção e a lua cheia a nos nascer do coração

Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão

Mas como é lindo ver depois por entre o mato
Deslizar calmo, regato, transparente como um véu
No leito azul das suas águas murmurando
E por sua vez roubando as estrelas lá do céu

Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há, ó gente, ó não
Luar como esse do sertão