segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Chico Anysio (Seis Meses Depois)


Guido pertencera ao corpo (e corpo é o termo certo) de Polícias Especiais, de motocicleta Harley Davidson e chapeuzinho vermelho. Mesmo neste agrupamento de homens-touros, chegava a se destacar.

— O Guido é um trator — diziam seus colegas de corporação, num misto de orgulho e inveja.

Um "D-14" da Caterpillar, movido a gemada matinal, que não dispensava, e engrossado pela ginástica que todos os dias suportava para se pôr em condições de fraturar mandíbulas e clavículas, nas porradinhas que dava a cada batida pelos antros do crime.

Às cinco e meia, quando o sol apenas começava a botar a testa lá longe, quem chegasse à Praia do Inferno, já o encontrava em meio à centésima flexão. O preparo físico era sua obsessão, e tinha que ser assim, porque aí acabavam as virtudes. Do corpo para a mente a diferença era a do preto para o branco. Feito uma coisa que fosse parida por um bicho, em parceria com gente.

Diariamente media o bíceps e o tórax, crendo ainda ser possível aumentar aquela estupidez de musculatura, um centímetro que fosse.

A namorada não era maior do que uma menina. Um metro e cinquenta, medidos até com boa vontade, e o peso de um catálogo. Os amigos brincavam, chamando aquele namoro de "tentativa de homicídio", conceito que não podia ser encarado como mentiroso. Os dois, quando juntos, pareciam um PI traduzido: 3,1416. Ela era a vírgula. Ele a chamava de Tina, que Albertina — o nome da peça — lhe soava como nome de portuguesa.

— "Daquelas de perna cabeluda e mata no sovaco" — explicava aos colegas, entremeando as palavras da frase idiota com sorrisos alvares.

Guido podia fazer a folga de um guindaste do cais, mas não tinha capacidade cultural de substituir um bicheiro.

Do fim da PE em diante Guido passou a ser encontrado todas as noites — menos segunda, que era folga — à porta de uma boate, em Copacabana, onde o serviço era tão maneiro que o que mais lhe exigiam era, vez por outra, dar uns tapinhas nos fregueses. Mas era tapa em bêbado, não em bandido.

Se por um lado isso tranquilizava Tina e amansava a barra da vida de Guido, por outro foi desastroso.

Entrou na roda viva da vida do boêmio: acordava na hora do almoço, almoçava na hora do lanche, jantava na hora de dormir e dormia na hora de acordar. Esse ritmo de vida não favorece os músculos. E, daí, eles foram discretamente sendo expulsos pelas banhas que chegavam pedindo vaga. Principalmente os da barriga. Dois anos depois era outro. Como se lhe tivessem inflado, sabe-se lá por onde. Antes, Guido-touro; hoje, Guido-boi — homenagem póstuma à castração muscular.

No Beco da Fome, além da cervejinha acompanhando o ragu, já exigia "uma" para abrir o apetite. E deu de fumar. Deste modo, em 24 meses, não mais, o "D-14" se fez "D-8" ou menos.

Foi quando apanhou pela primeira vez.

Bigode era o apelido do que bateu. Era, igualmente, leão-de-chácara de uma boate — a única que não fechava às segundas-feiras.

Quando Tina pediu para ir a uma boate, Guido não a podia levar a outra. Folgava no dia em que apenas a boate do Bigode abria as portas. Não sei se os motivos foram bastante fortes para uma briga, mas o pau comeu.

— Você pensa que é o quê?

— Não folga, que eu te cubro.

— Tem que ser muito homem.

— Então vem, que tu encontra.

— Olha que eu te dou uma porrada.

— Dá uma, leva duas.

Ou não aconteceu o bate-boca. Mas — contou quem viu — de um momento para outro Guido fez referência à esposa do pai do Bigode, e o uppercut saiu. Seco, curto e grosso. Ponta de queixo. 135 quilos desabaram sobre o que na boate ainda insistiam em chamar de tapete com uma surpreendente ausência de barulho.

— Levanta o homem.

— Levantar como? Ele pesa uma tonelada.

— Que pancada!

— Pegou no queixo. E tu notou? Quando ele caiu nem fez barulho.

— Foi as banha que amorteceu.

Com esforço — quatro ajudando — foi levado para fora e depositado no banco da rua. Tina sentia-se culpada. Cuidou de arranjar explicação para a derrota inusitada.

— Ele te pegou desprevenido.

— Tu viu, né? — perguntou Guido numa demonstração de ter aceito a desculpa que a noiva inventara. — Eu vou pegar o Bigode, tu vai ver. E vou pegar "às traição", como ele me pegou, aquele safado.

Não fora nada "às traição", já que o bate-boca eliminava esta possibilidade. E, mesmo admitindo-se que não tivessem trocado palavras, é indiscutível que, a partir do momento em que se puseram frente a frente, com sangue nos olhos e beiços roxos, nada que acontecesse a seguir podia ser levado em conta de "às traição".

Foi lindo e triste, feito incêndio. O uppercut, de uma perfeição de Rocky Marciano, e a queda, parecia a de um prédio desabando. Lindo o soco, triste a queda.

— Ele merecia, pra deixar de ser folgado — já começou a comentar a voz do povo, o que nem era verdadeiro. Mas o mundo é uma selva: ao vencedor, os louros; ao vencido, as pedras.

— Não te falei sempre? É frouxão. Só tem tamanho e safadeza.

— Um amigo meu me contou que ele é mesmo meio covarde. Numa batida, na Favela do Esqueleto, um negrão engrossou com ele, e ele botou o galho dentro.

— Agora, o Bigode...

E os elogios ao vencedor deslizavam como se descessem de um tobogã de mil léguas.

Guido chorou. Olhava-se no espelho. "Como pode? Como é que um troço desse acontece? Tá certo isso? Num homem como eu alguém pode bater? Existe? Um cara parra como eu, levar uma bomba e cair? Cair? Mas isto não vai ficar assim".

Ficou de perfil para xingar a barriga, que já quase cobria a fivela do cinto. Estufou o tórax e já não percebeu a diferença — outrora marcante — dos músculos. Fez pose de Mr. América, e o bíceps parecia que se recusava a aparecer. Ali estava a razão.

— Estou fora de forma.

Era isso. E a boate era a responsável. A noite foi feita pra dormir, não para tomar conta de bêbado.

— Babá de cachaceiro, é isso o que eu sou!

E, além de parar com a bebida, uma decisão que só toma quem é homem!

— Vou parar com essa merda de cigarro.

Primeira providência: pedir as contas na boate. Foi ser massagista de um time de subúrbio. Depois a rentrée na Praia do Inferno, onde as flexões chegaram a ser duzentas. Não se soube mais dele no Beco da Fome, nem no Grego, da Barata Ribeiro. A barriga fugia, e o corpo voltava a ficar como o do tempo da PE. A cor que a noite deixa no rosto deu lugar a um saudável bronzeado. Parecia um cacique.

Foram seis meses de treinamento, repouso, vegetais, vitaminas, ginástica e pouco amor. Tina entendia que agora não podia ser mais todos os dias, mas apenas de vez em quando. O touro ia voltar à arena. Que viessem Dominguim e Manolete e Paco Camino e El Cordobés. Touro, na ponta dos cascos, com sangue na boca e fumaça nas narinas.

Não tinha contado nada a ninguém, e esta é a explicação, para que somente Tina soubesse que era chegada a hora da desforra.

Dormiu cedo na véspera. Pela manhã tomou uma gemada reforçada, almoçou rosbife e salada de batatas, pouco líquido, dormiu à tarde. Estava concentrado.

O táxi parou à porta da boate do Bigode, era meia-noite e bocadinho. Chegava à mesma hora em que chegara na noite fatal. Queria repetir tudo, igual. Até Tina estava com ele. Só que desta vez não ia pedir mesa, ia pedir revanche.

Olhou o porteiro, como se o simpático negrinho fosse um inimigo.

— Diga ao Bigode que o Guido está aqui. Diga que eu vim arrebentar-lhe os cornos.

— O Bigode tá de folga.

Pronto. Com essa ele não contava. Mas não foi esta pequena decepção que o arrefeceu.

— De araque. Nessa boate não tem folga.

— A boate não fecha, mas, às quartas, o leão é o Biju. Serve o Biju?

Não servia. O Biju, ele nem conhecia. Ele queria o Bigode, aquele filho das unhas do uppercut "às traição". Mas o Biju sabia quem ele era.

— Você não é o Guido, da PE? Prazer. Biju.

— Não tenho nada contra si. Eu vim aqui pra pegar o Bigode de pau. Cadê o Bigode?

— Ele folga às quartas.

— Onde ele mora?

— Na Rodolfo Dantas, perto de onde era o Jirau — explicou o negrinho porteiro.

— Então liga pra casa dele e diz que o Guido tá aqui. Diz que eu vim pra dar um cacete nele.

Não houve quem conseguisse tirar isso da cabeça do touro ferido. Nem pedido nem conselho. E tantos eram os conselhos e os pedidos, que a própria Tina já admitia a desistência como um bom negócio.

— Deixa isso pra lá, Guido.

— Me larga! — e empurrou a noiva sobre o balcão.

Já havia raiva, além do ranço, e isso era muito bom. Passava a mão no queixo seguidamente, como se esse gesto o ajudasse a lembrar o uppercut seco, curto e grosso. E bem que ajudava.

— Liga pro Bigode — ameaçou, segurando o negrinho da portaria pelo colarinho da farda. — Liga pro Bigode, antes que eu te dê uma bomba.

Foi o gerente quem telefonou.

Bigode dormia desde nove e meia da noite. Acordou quando o telefone chamava pela décima vez.

— Alô — disse a voz rouca e potente que açoitou os ouvidos do gerente.

— Bigode? Aqui é o Pacheco, da boate.

— Que é que manda, Seu Pacheco? O Biju faltou?

— Não. Biju tá aqui.

— Então, pra que tá me acordando?

O gerente explicou com medo, como se fosse ele o homem que procurava o leão.

— Diz pra ele voltar amanhã.

Com a mão trêmula, o gerente tapou o bocal do telefone e, falando baixo, transmitiu ao desafiante a sugestão do desafiado.

— Ele teve uma boa ideia. Disse pra você voltar amanhã.

Guido tomou o telefone da mão fria do gerente.

— Amanhã volta a sua velha. Se você é homem, como pensa que é, vem cá. Vem pra ser arrebentado, seu safado.

— Oh, Guido — falou manso o sonolento Bigode — eu tou dormindo! — e bocejou sincero, mostrando que não inventava.

— Tu tá tremendo.

— Esquece aquele negócio, procurava contemporizar o Bigode, homem que, no fundo, era bom, tanto que criava passarinhos. — Esquece aquilo, Guido. Eu tava de porre. Eu sou teu amigo, rapaz. Até parece!

— Meu amigo é os tomates. Vem, que eu vou te dar o troco.

— Guido, escuta, tu parece menino.

— E tu parece prostituta.

— Não tou a fim de brigar, meu velho.

— Teu velho é o cara que tu pensa que é teu pai. E quem falou que tu vai brigar? Tu vai apanhar nessa cara, pra deixar de ser folgado.

— Guido...

— Vem ou não vem, Maria Mijona?

Bigode não podia recuar.

— Tá OK. Vou tomar um banho e vou. Em meia hora tou aí.

— 15 minutos! — exigiu Guido, achando-se no direito de dar ele as ordens, na qualidade de desafiante.

— Vou ver o que posso fazer — prometeu Bigode.

Levantou-se, esticou os braços curtos e fortes, a patativa cantava, pensando que o dia nascera. Tinha água. Vestiu uma camisa de colarinho puído — camisa de briga como nós, que não brigamos, definimos — e foi.

Na calçada, uma plateia de Fla-Flu.

Tina comia um misto quente no bar ao lado da boate. A torcida dividida.

— Eu sabia que o Guido, um dia, ia "às forra".

— Quem não sabia?

— Fica falando aí. Tu até chegou a dizer que ele era bicha.

— Fala baixo, rapaz. Parece que tá fazendo comício.

— Eu sou mais o Bigode, quer valer uma Brahma?

— Tá falado.

— Meu amiguinho, o que vai voar de pena! Vê lá se não vai sobrar nada pra gente.

— Tu pensa que eu sou doido? Na hora do pau eu vou subir na marquise, pra ver de cima.

Guido estalava os dedos, comprimindo-os contra a palma da mão. Seis meses, meu nego! Sem farra, sem álcool, sem sexo. Ou quase sem. E, nesses seis meses, que ninguém esqueça de uns 15 dias de dieta macrobiótica. E o melhor é que pelo menos uns vinte caras que tinham presenciado a covarde agressão do Bigode estavam presentes. Viram o verso? Pois iriam ver o reverso.

Bigode veio de ônibus. O pagamento ainda não tinha saído.

Olhou para os dois lados da rua antes de atravessá-la. Isto provava que não estava fora da sua razão. Podia até mostrar tranquilidade.

Os olhos do Guido faiscavam, como se fabricassem zarabatanas de fogo. O sanduíche de Tina descansou no balcão, e suas mãos se juntaram, num entrelaçamento de dedos que tanto podia ser prece como dúvida. Bigode parou a dois metros.

— Guido...

— Não tem papo.

Foi a última vez que Bigode tentou contemporizar, contornar aquela situação até certo ponto ridícula. Daí, fez o seguinte: caminhou, chegou pertinho e deu um uppercut. Um só, no queixo, Guido caiu como um Gabinete Francês: sem ruído.

A torcida não entendeu. Foi um impacto semelhante ao de um gol aos 10 segundos. O gerente abriu e fechou os olhos, querendo checar se estava mesmo acordado; o negrinho porteiro acendeu um Continental; Tina mordeu o sanduíche; e Bigode pegou o ônibus para voltar pra casa. Quando entrou no apartamento, a patativa dormia no poleiro. Sono mais tranquilo do que o de Guido, que se esparramava na calçada. Um sono de seis meses jogados fora.

Tina não o ajudou a acordar. Foi embora de táxi, dormir na casa da mãe. Para sempre, aliás.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

J. G. de Araújo Jorge (Líricas) 4


Lírica Nº 46

Tocada de ventos
carregado de estranhas eletricidades,
me aproximo de ti, como uma nuvem...

De repente
desço como uma chuva
para intumescer os córregos e as fontes
e despertar a terra...
__________________________

Lírica Nº 47
   
Desfolhada rosa
é o coração do poeta
tocado por tua ausência.

Estás no ar, como uma essência...
__________________________

Lírica Nº 48
   
Dou a impressão, como toda gente,
de que estou me dirigindo para algum lugar.

Entretanto,
onde quer que me encontre,
meu destino é você.
__________________________

Lírica Nº 49
   
Ainda bem que as árvores permanecem...
Que o céu continua, entre os vultos
pesados dos arranha-céus
- muralhas cinzentas
de nosso presídio cotidiano...

Que a gente ainda pode certas horas,
velejando na madrugada
abordar a noite,
como uma ilha de ninguém...
__________________________

Lírica Nº 50
   
Estás muito próxima dos meus sentidos
para que possas te transformar
em poema.
__________________________

Lírica Nº 51
   
Ah! O sofrimento de que coisas é capaz...

Tu me feriste tanto, e tanto, e tanto,
que agora se voltasses, te admirarias de ver
como o meu coração não te conhece mais.
__________________________

Lírica Nº 52
   
Às vezes, quando penso no que fomos certo dia,
tenho a impressão de que andamos vivendo
duas vidas emprestadas.
__________________________

Lírica Nº 54
   
E porque eu te via até de olhos cerrados,
meus olhos abertos não percebiam
o que fazias de mim...
__________________________

Lírica Nº 55
   
Onde estarás? Que braços te colherão
sem que um estremecimento me perturbe?

E dizer que morria
se teus olhos não estavam nos meus…
__________________________

Lírica Nº 57
   
Meu Deus! - como estão longe aqueles instantes
que foram o mais belo amor do mundo...
..

"Viveste realmente? Ou te deixas como um louco
a imaginar coisas,
oh, pobre coração insano?"
__________________________

Lírica Nº 59
   
Afinal, agradeço-te por todas as mentiras
com que me fizeste acreditar no amor...

Por que haveria de desejar a verdade,
se com ela, nada teríamos colhido,
nada restaria de nós?
__________________________

Lírica Nº 60
   
Afinal, nem Deus, poderá mesmo nos tirar
aqueles instantes que vivemos...

Para que mais?
__________________________

Lírica Nº 62
   
E quando tivemos que dizer adeus,
já tínhamos partido.

Não encontramos mãos, nem lenços,
nem mesmo lágrimas,
não me chamaste: amor,
nem te chamei: querida...

- Já estávamos realmente muito longe
um do outro,
quando chegou a hora da despedida.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Affonso Celso (Caráter Mineiro)


CAPÍTULO 1

Grandes dificuldades deparava outrora ao governo de Minas Gerais a arrecadação das rendas públicas nas coletorias do sertão.

Não havia ainda estradas de ferro que se incumbissem de cobrar impostos de trânsito e consumo.

As enormes distâncias, os meios primitivos de transporte, a falta de recursos pelo caminho, tornavam sumamente árdua a remessa de somas avultadas por parte daquelas agências remotas para a tesouraria da capital.

Municípios há (Minas, não se ignora, excede a França em extensão) apartados de Ouro Preto centenas de léguas, e léguas de beiço, como lá chamam, isto é, sobrelevando de um apêndice as comuns.

Imaginai veredas aspérrimas, talhadas às vezes em matas espessas; constantemente morros a galgar e a descer; por única dormida, ranchos mal cobertos de sapê; rios sem pontes invadeáveis à menor chuva; atoleiros extensos, onde corre  gente o risco de se afogar em lama; carência absoluta de conforto; necessidade, não raro, de realizar a pé excursões que te prolongam por meses a fio; — e tereis aproximada ideia dos embaraços práticos para se fazer chegar, há anos, com segurança à repartição central as taxas fiscais apuradas nas aludidas localidades sertanejas.

Na impossibilidade de remeter as quantias pelo correio, pois os estafetas lutavam com os óbices indicados, nem lhe sendo dado igualmente servir-se de processos bancários, até então ali não usados, utilizava-se para aquele encargo o governo mineiro das praças do corpo de polícia provincial.

Dois ou três soldados de confiança recebiam a incumbência de percorrer as estações de certa zona longínqua, cobravam o dinheiro e voltavam com ele, depois de ausências de ordinário bastante longas.

Nunca se observou um desvio.

Mostra a estatística ser Minas Gerais uma das regiões do mundo, onde em mais diminuta escala se registram atentados contra a propriedade.

Delitos e delinquentes apontam-se lá, como em toda a parte.

Mata-se por ciúme, em razão de rixas ao jogo, honra de família, questões de terras, excessos alcoólicos nas festas populares.

Mas raríssimos os furtos e os roubos. Atestam o curioso fato os dados oficiais.

Possui uma companhia inglesa no arraial do Morro Velho, perto de Sabará, rica mina de ouro, de cuja exploração colhia ainda há pouco tempo resultados extraordinários.

Manipulado no lugar da extração, o precioso metal era, em seguida, remetido, em barras, no dorso de mulas até ao ponto terminal da estrada de ferro ou das diligências, e daí expedido ao Rio de Janeiro para a exportação.

A tropa que o conduzia, composta de meia dúzia de bestas, guiava-a um único tropeiro, auxiliado por um menino, avô e neto, dizia-se. A viagem durava dias.

Consoante a pontualidade britânica, efetuava a tropa o percurso em datas fixas, geralmente conhecidas.

E atravessava sítios totalmente despovoados, pousava em pontos isolados e certos, chegando sempre a seu destino na época previamente marcada, carregada de arrobas e arrobas de ouro.

Conheciam-na todos os viandantes com quem cruzava. Pelo número dos animais, calculavam precisamente a quantidade transportada, pois sabiam o que cada um podia levar. E, vendo desfilar tantas riquezas, murmuravam, como se consultassem uma folhinha:

— São tantos do mês. Aí vai a tropa do Morro Velho levando tanto de ouro...

O fato repetiu-se por lustros ininterruptamente.

Nunca sucedeu uma demora, um contratempo, um extravio.

Tomariam por doido quem externasse o receio de um assalto a mão armada.

Outro caso significativo:

Os viajantes do Serro e Diamantina para o Rio tornavam-se muito notados em Minas pelo modo como arreavam os seus animais, a boa qualidade destes e a rapidez com que caminhavam, acompanhados de pajens com libré, chapéu de oleado o copo do prata preso à corrente do mesmo metal que traziam a tiracolo.

Sabia-se também que aqueles viajantes eram sempre portadores de avultadas somas em brilhantes, ouro em pó ou trabalhado, numerário para encomendas etc.

No ano de 1860 ou 1861, subia um deles a serra de Ituverava por entre horrível tempestade, quando um raio, caindo sobre a comitiva, fulminou-o, a ele, um dos pajens e todos os animais.

O camarada, único sobrevivente, ficou desacordado.

Voltando a si, horas depois, largou a pé para Ouro Preto, não muito perto do local da catástrofe, chegando alta noite.

Ia dar parto às autoridades do ocorrido.

Só na tarde do dia seguinte compareceram no sítio do sinistro o juiz de ausentes, escrivão e policiais.

Junto aos dois cadáveres velavam pessoas miseráveis que residiam ou ranchos do sapo convizinhos.

Nas canastrinhas intactas encontrou-se para mais de mil contos de reis.

Nos bolsos do negociante as chaves das canastrinhas e grande quantia em papel; nas algibeiras do pajem dinheiro miúdo.

O morto, além disso, conservava no dedo magnífico anel de brilhantes, bem como os botões de camisa feitos da mesma pedra preciosa.

Como procurador fiscal, o pai de quem escreve estas linhas tomou conhecimento da arrecadação que a família declarou exatíssima.

Estes traços criaram merecida legenda em torno da probidade mineira.

Ilimitada a confiança que inspiravam ao antigo comércio da Corte os tropeiros de Minas, famosos pelos seus trajes e pela fidelidade com que solviam seus compromissos e levavam ao destinatário, sem a menor garantia material ou legal para o remetente, centenas de contos de réis.

Mas nenhum episódio dá do caráter mineiro ideia tão completa, como o que passo a narrar, episódio perfeitamente autêntico em todas as suas circunstâncias, salvo um ou outro pormenor alterado pela tradição.

CAPÍTULO 2

Sem embargo do referido quanto à segurança pública, assinalaram-se esse ano alguns fatos de depredação numa das mais afastadas comarcas de Minas Gerais.

Choças e fazendas haviam sido vítimas de saqueio.

Mais de um viajante fora trucidado em emboscada, para se lhe rapinar a bagagem.

Alarmou-se a população. As autoridades investigaram, e verificou-se tratar-se de cinco ou seis estrangeiros, que tinham formado uma quadrilha de salteadores.

Tomaram-se providências e os atentados cessaram. Mas nenhum dos bandidos caíra nas mãos da justiça.

Escondidos nos matos, onde difícil seria persegui-los, aguardavam naturalmente que arrefecesse o zelo policial para de novo entrarem em ação.

Em torno deles, arquitetou a imaginação popular uma lenda.

Cochichava-se que mantinham relações com cúmplices e protetores, habitantes de influentes povoações.

Haviam já decorrido meses depois do último delito, sem que a respectiva impressão se tivesse ainda esvaído, quando dois soldados e um cabo do corpo de polícia começaram a perlustrar a região infestada a coligir o produto de impostos antigos.

Três homens decididos e esforçados, escolhidos a dedo para a perigosa comissão.

Levavam consigo não pequena quantia. Viajavam a pé, bem armados, com as possíveis cautelas.

O dinheiro, conduzia-o o cabo num saco de couro, amarrado por meio de correias às costas.

No último ponto em que se detiveram, muita gente aconselhou-os a não prosseguirem sem reforço de companheiros e de armas.

Iam cortar comprido ermo mal afamado, — desfiladeiros sinistros.

Com a despreocupação e imprevidência habituais ao nosso povo a nada atenderam.

E partiram.

Partiram; e ninguém soube mais notícia deles.

Como não chegassem ao lugar a que se destinavam no prazo devido, começaram a circular boatos de que haviam sido atacados e mortos durante o trajeto.

Oito dias, quinze dias, um mês, dois, o nada de informações.

Avultou e tomou visos de veracidade a suspeita do crime.

A administração deliberou medidas extraordinárias para descobrir a verdade. Numerosas escoltas, coadjuvadas espontaneamente por bandos de particulares, percorreram em todos os sentidos a estrada pela qual os desaparecidos deveriam ter passado.

Organizou-se minucioso sistema de rigorosa pesquisa.

Afinal, após aturado esforço, orientados por uns corvos, encontraram num recôncavo da espessura, entre densa vegetação, dois cadáveres completamente putrefatos.

Difícil averiguar-lhes os traços. Entretanto, pelas roupas e vários sinais, convenceram-se de que um dos corpos era o do cabo e o segundo o de um dos soldados.

Sumira-se o terceiro.

Em roda, vestígios inequívocos denunciavam renhida luta. Pouco distante dos cadáveres achou-se dilacerado e vazio o saco de couro que continha o dinheiro.

Dias depois, toparam mais longe, no fundo de um precipício, com o outro corpo.

Irreconhecível este, de tão decomposto.

De tal feitio enlameada e consumida a roupa, que nenhum esclarecimento deparou.

Não havia dúvida: acometidos por uma horda de ladrões — os estrangeiros certamente, — superiores em número, as três praças tinham sucumbido no cumprimento do dever.

Uma delas, gravemente ferida, tentara fugir e expirara longe dos camaradas.

O dinheiro, cerca de cem contos, fora roubado.

A despeito das mais severas diligências empregadas para capturar os assassinos, nada se conseguiu.

O acontecimento produziu intensíssima sensação.

Mas, com o correr dispersador do tempo, apagou-se a pouco e pouco da memória pública.

Sucessos de maior monta preocupavam as atenções. Iniciara-se a guerra do Paraguai, exigindo do Brasil enormes sacrifícios de homens e de fortunas. O estrépito dos preparos bélicos abafava qualquer outro rumor.

Um ano depois, subsistia apenas dos três soldados massacrados duvidosa lembrança, como de um obscuro drama do passado, mais imaginário do que real.

CAPÍTULO 3

Já quase ninguém se recordava lucidamente do ocorrido, quando, certa manhã, apresentou-se no palácio do governo em Ouro Preto um homem sujo, aspecto selvagem, crestado do sol, o cabelo e a barba em triste estado.

Esse homem declarou à sentinela que queria falar sem demora ao presidente da província.

Recusou-se a princípio o alto funcionário; mas o desconhecido tanto insistiu, afirmando ter comunicações importantes a lhe fazer, que por fim foi admitido no gabinete oficial.

— Sou Manuel Cruz, praça de polícia, — murmurou achegando-se do administrador. — Cumprindo as ordens do meu falecido cabo, venho entregar em mão própria a vossa excelência os cem contos que arrecadamos no sertão.

Atônito, o presidente não compreendia.

— Explique-se, — exclamou com surpresa e mau humor.

Então o recém-chegado narrou com simplicidade a sua trágica e gloriosa história.

Era o terceiro dos soldados incumbidos da cobrança.

Ao entrarem na região deserta, onde o assalto dos bandidos podia ter lugar, dissera-lhe o cabo:

— “Todos sabem que o dinheiro vai comigo dentro do saco de couro. Pois tome lá você o cobre e esconda-o debaixo da roupa, eu fico com o saco vazio. Se formos atacados, eu e o camarada defenderemos com unhas e dentes o saco, para fingir que a soma aí está. Enquanto eles estiverem ocupados conosco, você trate de escapulir. Arranje as coisas de maneira a só entregar a chelpa ao presidente da província. A mais ninguém, olhe lá. E Deus o ajude.”

Realizou-se o que o cabo previra. Uma tarde, achavam-se arranchados por precaução em plena mata e preparavam a comida, quando foram agredidos pelos malfeitores.

Fizeram-lhes face o cabo e o companheiro com inaudito denodo. O estratagema do saco surtiu efeito. Sequiosos de se apoderarem desse saco, que os soldados defendiam ardentemente, não deram fé os agressores no portador da quantia, o qual, graças às trevas incipientes, conseguiu fugir.

Correra perigos indescritíveis, pois os assassinos, trucidados os outros e conhecido o embuste, saíram-lhe furiosos ao encalço.

Sem comer nem beber, passara dias e dias escondido em furnas, rastejando alta noite como um réptil, evitando as sendas batidas, com infinitos cuidados, curtindo incríveis privações.

Efetuara assim milagrosamente estupendo percurso. Mas cumprira à risca a ordem do seu cabo. Ali punha o maço de notas intacto. Quisesse o Sr. presidente ter a bondade de contar para verificar si estava certo.

O presidente quedara estupefato. Afinal inquiriu:

— Mas o terceiro cadáver que se achou? Bem se vê que não era o seu, como se assegurou.

— Era naturalmente o de um dos ladrões que nós baleamos logo no princípio da festa, — respondeu Manuel Cruz.

— E você sabia que o mundo inteiro supunha o dinheiro roubado e você morto?

— Desconfiava. Contava mesmo com essa crença para chegar até aqui, sem maior incômodo.

— Bem, concluiu o presidente, — você praticou uma bonita ação. Há de ser recompensado. E, voltando-se para o ordenança que da porta assistia à cena:

— Acompanhe este homem ao Tesouro Provincial para que ele deixe lá a quantia e se lhe passe recibo.

Aí o soldado agastou-se:

— Ora, excelentíssimo! — bradou. Pois eu andei duzentas léguas sozinho com o dinheiro e preciso agora de guia para ir ali a dois passos... Mande por outro que eu estou cansado e lá não vou. A ordem do meu cabo era entregá-lo a vossa excelência pessoalmente. Já o fiz. Se acha que o meu serviço vale alguma coisa, mande dar a minha baixa. Tenho mulher e filhos. Não os vejo há mais de 14 meses e eles pensam que eu morri. São muito pobres. Preciso trabalhar um pouco para a família. Passe vossa excelência muito bem.

E saiu desabridamente, batendo com a porta, depois de haver atirado os cem contos para cima de uma mesa.

Fonte:
Poeteiro (revisão ortográfica Iba Mendes)

domingo, 29 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 148


Luciano Dídimo (Alma Gorda)

Luciano é de Fortaleza/CE
Fonte: Facebook da AVIPAF

Carlos Drummond de Andrade (Essência, Existência)


Assistindo a um desfile de escolas de samba, espetáculo maravilhoso de ritmo, som e colorido, X teve a sensação de dissolver-se na multidão, e por duas horas não existiu em si, mas no grupo. Guardava todas as percepções do indivíduo, e era como se esse indivíduo tivesse milhares de olhos, ouvidos, bocas. Seu próprio corpo se alastrara, pois, na impossibilidade de mover-se do ponto em que estava, sentia que suas pernas iam acabar a três quadras de distância, onde a rua aparecia livre.

Terminada a exibição, X verificou que lhe faltava a carteira, subtraída do bolso da calça por alguém que, menos comunicativo, resistira à absorção pela massa. Levara pouco dinheiro e, além de alguns papéis, apenas lamentou a perda de um retrato muito amado. Consolou-se pensando que essa lembrança seria restituída por não interessar a outrem.

No dia seguinte, o correio trouxe-lhe um cheque, e X foi ao banco descontá–lo. O empregado pediu-lhe, por obséquio, a carteira de identidade, e como ele não a tivesse, e ninguém ali o conhecesse para atestar que X era mesmo X, saiu sem receber o dinheiro.

Dirigiu-se a uma repartição pública, onde ia ter vista de um processo. E já estendia a mão para pegá-lo quando o funcionário, mantendo suspenso o maço de papéis, e delicadamente:

— Sua carteira, faz favor.

X explicou que estava sem carteira, furtada no meio do aperto etc. Mas não tinha importância: também era funcionário público, e o colega…

— Então me dê sua carteira funcional.

A funcional, com seu número de matrícula no Instituto das Sementes Oleaginosas, também fora batida, e X não podia consultar o dossiê sem comprovar sua condição de X.

Como todo pequeno-burguês neste momento difícil para a humanidade, X tem dupla ou tripla profissão, e deu um pulo ao sindicato de classe, à cata de um atestado de que era mesmo X, e não Y. Pediram-lhe, de entrada, que mostrasse a carteira sindical. Claro que a sindical sumira com as outras. Mas não se podia espiar no arquivo os dados transcritos no documento?

— Poder, pode, mas não há como a carteirinha mesmo. E o arquivo está sendo reorganizado. O senhor volte daqui a duas semanas, tá?

— Meu caro…

— Se o senhor não tem carteira, que hei de fazer? Como posso saber que o senhor é o senhor mesmo? Faça como eu: o papai aqui só toma banho com a carteira sindical amarrada à cintura, num impermeável.

X arrastou-se ainda ao Ministério do Trabalho, mas, como também houvesse ficado sem carteira profissional (não confundir com sindical), não podia provar que tinha carteira profissional, nem mesmo profissão, nem sequer que existia. Num esforço derradeiro, lembrou-se de que, como toda gente, era sócio da ABJ, e esta poderia salvá-lo, dando-lhe uma carteira nova de jornalista. Mas era preciso um retrato, sem o que a carteira não provava nada, e o fotógrafo da rua da Carioca, ao fim de uma longa escada comida pelo tempo, avisou:

— Distinto, procure daqui a três dias. Até lá, é bom não sair de casa…

Só então X compreendeu. Compreendeu que, desde a perda de suas carteiras, não existia mais. Um homem só existe pelos documentos de identidade. Seu retrato vale mais do que o corpo, um carimbo mais do que sua palavra, e um número mais do que tudo. Iluminava-se o velho problema filosófico da essência e da existência. Kierkegaard vislumbrara a solução, ao afirmar que existente é aquele que experimenta certa intensidade de sentimentos em contato com alguma coisa fora dele. Existente é aquilo que a coisa externa faz de nós, comunicando-nos seu sopro, e sem essa coisa não podemos sequer viver, pois nossos semelhantes não nos percebem em nós, mas em nossos símbolos civis. E o símbolo é a essência do ser.

Sem existir, X chegou ao largo da Carioca. Aí se viu no meio de uma briga, empurraram-no, maltrataram-no, e, como não tivesse documento algum, foi conduzido ao distrito e recolhido — por engano — ao xadrez. Lá dentro, um homem humilde fitou-o por muito tempo, hesitante, e afinal lhe tocou no ombro:

— O senhor se parece muito com um retrato que eu achei jogado na rua e guardei à toa. Quer ver?

Tirou do bolso sujo o velho retrato do pai de X, que ficara na carteira furtada. E X sentiu-se existir novamente, pois fora reconhecido, através das linhas do rosto, e sem o menor documento estampilhado.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

José Augusto de Castro e Costa (Poemas Avulsos)


ALMA ACREANA
Alma minha gentil que aqui ainda estás,
Contemplando, perplexa, a ora sadia ora insana
Vida de um reino em busca de paz,
És, sim, única e própria alma acreana!

A propriedade de tua formação
Objeto da paz emanada de guerra,
Nasceu da exata miscigenação
De almas patrícias que a esperança encerra.

És brasileira por opção
Para seres de fato alma acreana.
Caráter firme, orgulho e decisão
De bravos, de onde o amor à pátria emana

Distingue-se algo da alma sulista,
Mas tens muito da alma cearense, pernambucana...
Destaca-se, sim, a influência nortista,
Pois desta mistura de almas és tu – alma acreana.

FLORESTA

Floresta, és tu sublime inspiração
De Deus – esplendorosa criação!
Favoreces o equilíbrio das matas,
Assim como proteges as límpidas cascatas!

Floresta, é a sombria casa da flor esta.
Nas flores, nas folhas, nos caules, enfim em festa
És esperança real deste céu, deste rio-mar, desta terra...
Depósito energético que a natureza encerra!

A brisa que sopra na folhagem
Conta mil segredos para a flor...
A natureza a escutar esta homenagem
Diz serem tais, cantos de amor!

Tuas matas, a natureza sente,
Vibra, encanta e emana chama ardente
De belezas plásticas e eterno fulgor,
No triunfo imortal do soberano amor!

Bendito o verde que de ti fulgura
Ao banhar-te o sol – o real rei de luz pura...
Transportando raios coloridos em águas cristalinas
A esperá-los nos rios, igarapés, nas relvas das campinas!

Bendita sejas Floresta nossa de cada dia!
Que Deus te perpetue saudável!
Devolva-te todo o porte e magia...
Te recupere a selva que te foi extraída
E voltes tu a oxigenar nossa própria vida!

HORROR – GRANDE E MUDO
Rio Acre, interminável e fundo,
Entre barrancas de impotência e dor,
Em que mar remoto, profundo,
Estás tu a lançar tantas lágrimas de horror?

Aqui, ali, além, de dobra em dobra,
De curva em curva invades tua terra,
E tal qual uma imensa e assustadora cobra
Vais tragando a vida que a mata bonita encerra...

Da minha terra, toda a risonha história,
Alagaste-a... engoliste-a... São páginas lidas!
Mostras-me tu que o amor é crença ilusória,
E as almas são todas elas esquecidas?

Tuas margens, não as vejo mais. A linha
Das tuas barrancas, onde à tardinha
As garças e alguns de nós íamos cismar a esmo

Me desconcentra,  e ao ver esta água turva,
Descubro o Rio Acre em cada curva
E o destino colérico a bagunçar comigo mesmo!

RÉQUIEM MATERNO

Quando acordei para o mundo,
Vi um rosto alabastrino
A beijar-me, ainda no berço
Premeditando o destino.

Me afagou e me ensinou
A falar e dar meus passos.
Cheguei até ter ciúmes
Do calor dos seus abraços !

Passou a ser a Mãezinha
Razão da minha alegria,
Pois foi quem me amparou
Quando ninguém me queria !

Mas enfim foi embora
Essa minha estrela guia...
Fico rogando a Deus
Por essa outra Maria !

Ao mandar que me deixasse
Deus lhe disse, em tom profundo
Que iria pagar em dobro
O bem que ela fez ao mundo.

Vou chorar sempre sua falta
Mas fazendo os rogos meus,
Que maior felicidade
Tenha depois desse adeus.

Pode partir minha mãe,
Que não será esquecida,
Porque o tempo jamais apaga
O bem que se quer na vida.

Fontes:
Antonio Miranda
Felicidacre (Blog do Poeta)

Contos e Lendas do Mundo (China: O Palácio do Príncipe Dragão)

(antiga fábula chinesa)

Neste mundo sempre houve muita coisa bonita para se ver. Dentre elas, destacava-se a corrida de barcos-dragão que se realizava em Su-Chian, no quinto dia da quinta lua. Cada embarcação levava esculpido no lenho um dragão de escamas verdes e douradas; as balaustradas tinham enfeites de flores laqueadas e estandartes de seda bordados. Da popa saía uma espécie de trampolim de madeira, onde ia sentado um rapazote perito em acrobacias. Exibia-se em belos movimentos rítmicos, chegando, por vezes, a dobrar a tábua até fazê-la tocar a água, dando a impressão, a cada instante, de que ia mergulhar. Esses rapazes eram treinados desde crianças e alguns deles, por sua perícia, eram disputados a peso de ouro pelos diversos proprietários dos barcos-dragão.

Dentre os melhores, o mais hábil era, sem dúvida, A-Tuan, belíssimo rapagão órfão de pai.
Aconteceu que, durante uma daquelas festas, A-Tuan perdeu de fato o equilíbrio e foi cair no rio que o tragou, fechando sobre ele suas águas. Imediatamente, os nadadores mais destros mergulharam em sua busca. Mas, por mais fundo que mergulhassem, nem sequer o avistaram. Voltaram à tona resfolegantes e desiludidos: não fora possível salvá-lo.

Era preciso avisar a velha Chiang, mãe de A-Tuan, do ocorrido. Acabrunhados, os proprietários dos barcos-dragão foram em comitiva procurá–la. A pobre mulher chorou muito. Só o que trazia consolo ao seu coração aflito era a dor sincera que demonstravam todos e o pensamento de que seu filho fora amado por muitos.

A-Tuan, porém, não morrera: no instante em que cairá n’água (e não saberia explicar como lhe tivesse acontecido, perdera o equilíbrio, excelente acrobata que era) sentira-se agarrado por duas mãos que o puxavam para o fundo. A água se erguera ao redor dele, alta como uma muralha, e ele percebeu que podia respirar perfeitamente. Recobrando uma certa serenidade, A-Tuan pôde ver um castelo. No centro de um salão imenso, um homem com um elmo na cabeça estava sentado num trono.

— Este é o Príncipe Dragão, anunciou uma voz às costas de A-Tuan; ajoelhe-se diante dele.

O olhar do príncipe, pousado em A-Tuan, irradiava benevolência.

— Você é um rapaz de rara habilidade: pode entrar a fazer parte do grupo "Ramos de Salgueiro".

Foi tudo o que lhe disse. Depois, A-Tuan sentiu-se transportado por seu acompanhante invisível para longe do palácio, até um recinto cercado de amplos pavilhões. Ali chegados, seu acompanhante fê-lo subir à varanda do pavilhão leste, de onde saiu, toda sorridente, uma velha senhora.

— Esta é a Senhora Sie, disse a voz de sempre, e vai ser sua mestra.

A senhora sentou-se na varanda e chamou por alguém. A-Tuan viu aparecerem lá de dentro diversos rapazolas que não teriam mais de treze ou quatorze anos. Cumprimentaram A-Tuan e foram muito amáveis com ele.

— Agora vamos mostrar a A-Tuan a "dança do relâmpago" e a "dança do vento", disse a senhora Sie.

Logo se ouviu o rufar de tambores e o bimbalhar de pratos de cobre e a dança começou. Era algo indescritível, digna dos gênios. Quando se restabeleceu o silêncio, a senhora Sie chamou para perto de si A-Tuan, com a intenção de lhe ensinar os passos da dança. Ele, porém, não a deixou falar.

— Mande recomeçar a música e eu lhe darei uma amostra do que sei.

Assim que a primeira nota ecoou na esplanada, A-Tuan começou a dançar. Todos o fitavam atônitos, prendendo a respiração, e a velha senhora Sie explodiu em frenético bater de palmas.

— Magistral! exclamou, possuída de entusiasmo. A sua perícia iguala à de Flor de Verão!

Não sabendo quem era Flor de Verão, A-Tuan não estava em condições de apreciar plenamente o elogio. Compreendeu, porém, que a velha senhora lhe admirava a arte e deu-se por satisfeito.

No dia seguinte, o Príncipe Dragão recrutou, para serem examinados, os vários grupos de bailarinos, que foram reunidos ao pé de uma escadaria, num pátio muito grande. Os primeiros a serem examinados foram os duendes. Tinham rosto de menino e corpo de peixe; e dançavam batendo com força num prato de cobre, que produzia ruído de trovão. A cada bater de prato, pulavam tão alto que saíam da água e chegavam a tocar a abóbada celeste, de onde faziam cair um chuvisco de estrelas.

A seguir, foi a vez das "Passarinhas". Eram todas donzelas formosas e elegantes que dançavam acompanhando-se numa espécie de flauta. Pouco a pouco, ao redor delas, foi-se
aplacando o fragor das ondas, foram-se enregelando as águas até que tudo se transformou num mundo de cristal translúcido. Finda a dança as águas voltaram a mover-se com o ruído de sempre, enquanto as donzelas iam colocar-se eretas e imóveis ao pé da escadaria.

Veio depois o grupo das "Andorinhas", raparigas muito jovens, que dançavam agitando as mangas compridas de suas vestes. Na cabeça, traziam uma guirlanda de flores perfumadas. Vestiam uma roupagem azul e preta, de duas caudas, lembrando andorinhas. Uma, entre as demais, esvoaçava como se tivesse asas. De suas vestes desprendiam-se, ondulando ao vento e sobre as ondas, botões de flores multicores que, vagando daqui para acolá, acabaram por cobrir todo o pátio. Terminada a dança, foi-se juntar às companheiras ao pé da escada.

A-Tuan, que estava ali perto, tomou-se de encantos por ela. Quis saber quem era e os de seu grupo, admirando-se de que ainda não a conhecesse, exclamaram:

— Quem havia de ser senão Flor de Verão!

A-Tuan não teve tempo de retrucar, pois, nesse ínterim, o Príncipe Dragão chamara o grupo dos "Ramos de Salgueiro” e era chegada a sua vez de dançar.

A dança foi tão perfeitamente executada quanto as outras. O príncipe elogiou A-Tuan por sua diligência em aprender e por sua destreza em executar o que aprendera. Deu-lhe de presente uma faixa toda de escamas de ouro para prender o cabelo. Nela estava incrustada, bem no centro, uma esplêndida pérola que, à luz do luar, tinha o fulgor de uma estrela.

A-Tuan agradeceu o presente e apressou-se em juntar-se aos companheiros, junto à escadaria. Erguendo os olhos, viu posto nele o olhar meigo de Flor de Verão; mas, intimidado, não fez um gesto nem disse uma palavra.

A um sinal do Príncipe Dragão, todos os grupos puseram-se a desfilar em boa ordem, voltando, cada qual, ao seu próprio pavilhão. A-Tuan e Flor de Verão mal tiveram tempo de trocar um olhar de despedida e depois perderam-se de vista.

A-Tuan não esquecia a linda dançarina. De tanto pensar nela, de tanto sentir a sua falta, acabou adoecendo. Perdeu o apetite e o sono. Em vão a velha senhora Sie fazia-o beber poções milagrosas. A-Tuan estava cada dia mais magro e definhava. Os olhos encovados e tristes, perderam o brilho. Só a pérola que resplandecia em sua fronte lhe iluminava o semblante opaco.

Ninguém atinava com a causa do mal que o oprimia. A velha senhora afligia-se por estarem às vésperas de uma festa da mais alta importância em que todos os grupos iriam exibir-se.

— Está-se aproximando a festa do Príncipe dos Rios e A-Tuan continua dessa maneira. O que havemos de fazer com ele?

Nesse pé estavam as coisas, quando, certa noite, um rapaz pertencente ao grupo dos duendes foi visitar A-Tuan. Sentou-se na beira da cama e puseram-se os dois a conversar disto e daquilo.

— Será possível que ninguém descobre o motivo da tua doença? perguntou, a certa altura, o visitante, com um sorriso matreiro.

— Ninguém entende nada, respondeu A-Tuan, com um fio de voz.

— Flor de Verão não teria, por acaso, algo a ver com tudo isto?

— O que te faz pensar assim?

— O fato de Flor de Verão padecer do mesmo mal, retrucou o duende a rir. Quem me contou foi uma rapariga do grupo das andorinhas.

A essas palavras, A-Tuan ergueu-se na cama.

— Meu amigo, não haveria um jeito de eu me encontrar com Flor de Verão?

— Talvez haja.

— Ó, por favor, você que sabe tudo a meu respeito, diga-me o que devo fazer.

O duende fitou-o, pensativo; depois acrescentou:

— Não vai ser fácil: teremos de percorrer um longo caminho e, no fim, nem é certo que cheguemos a encontrá-la.

— Mas por que é que é tão difícil assim ver Flor de Verão? perguntou A-Tuan.

— O Príncipe Dragão a mantém sob estrita vigilância. Como viu, é uma dançarina incomparável e ele tem medo de perdê-la.

— E como havia de perdê-la?

— Alguém poderia raptá-la e levá-la de volta à terra. De fato, ela tem muitas saudades da terra, apesar de ser tão querida aqui.

— Pois eu sinto o mesmo e gostaria de poder dizer o que sinto à Flor de Verão.

A-Tuan insistiu tanto, rogou tanto que o duende, por fim, se rendeu. Decidiu-se a agir e perguntou logo:

— Pode andar?

— Com algum esforço, posso.

Auxiliado pelo rapazinho, A-Tuan saiu do quarto. Percorreram diversas galerias que pareciam entalhadas em cristal até chegarem a uma porta. O duende abriu-a e passaram os dois por ela. Depois de mil e uma viravoltas, encontraram outra porta, que o duende abriu, também. A-Tuan viu, com estupor, que se encontravam num bosque todo de árvores de magnólia, tão altas que era impossível ver até onde chegavam. As folhas eram grandes como esteiras e as flores eram como gigantescos chapéus de sol. As pétalas caídas jamais haviam sido removidas e formavam, no chão, uma camada fofa e macia, da espessura de dez colchões sobrepostos.

O duende mandou que A-Tuan se sentasse.

— Descanse enquanto espera, que eu já volto.

— A-Tuan obedeceu e ficou à espera. Estava ansioso, tinha a sensação de que o duende se demorava eternamente.

Entretanto, não eram decorridos mais que alguns instantes, quando, mudo de surpresa, viu, surgir, ali onde o duende desaparecera, uma donzela de rara beleza, que o fitava, sorrindo com timidez. Era Flor de Verão! Foi dos mais felizes o encontro dos dois: confiaram um ao outro toda a história de suas vidas. Flor de Verão contou que, certo dia, quando navegava pelo rio, na embarcação de seu pai, curvando-se sobre as águas frescas e cantando, sentira que a puxavam para o fundo. Fora coisa de segundos: logo após, estava na presença do Príncipe Dragão.

— Todo o mundo me trata muito bem; são todos bondosos comigo, disse ela a suspirar, mas eu tenho saudades de minha família e só penso em voltar para a terra.

— Eu também, disse A-Tuan com lágrimas nos olhos; eu também penso em minha mãe e na dor que há de ter sofrido por me crer morto. Mas não tenho esperança de fugir daqui.

— Nem eu tampouco, disse Flor de Verão chorosa. Muito menos agora, às vésperas de uma festa tão importante: redobraram a vigilância. Receio não poder mais vê-lo antes do dia das danças.

Com efeito, assim foi. Os ensaios mantinham atarefadíssimos todos os grupos de dançarinos. Na verdade, porém, desde o dia em que se haviam encontrado, tanto Flor de Verão como A-Tuan recobravam as forças. E puderam dançar de novo. Era preciso, porém, recuperar o tempo perdido e disso se encarregou a senhora Sie. Infatigável, fazia-os exercitarem-se dia e noite e os mantinha sob tão rigorosa vigilância que não lhes deixou um minuto sequer para novo encontro.

Chegou o dia da festa. Conduzidos pelo Príncipe Dragão, todos os grupos se encaminharam para a grande esplanada onde teriam lugar as danças em honra do Príncipe dos Rios, O espetáculo foi deslumbrante. O Príncipe dos Rios ficara impressionado com a prestigiosa habilidade de A-Tuan: porém, a graça indizível de Flor de Verão fora o que o subjugara.

Findas as festividades, os dois príncipes trocaram gentilezas e dádivas, Depois, todos voltaram a seus pavilhões. Todos, exceto Flor de Verão e mais outra bailarina do grupo das "Passarinhas", que foram destacadas para morar no palácio do Príncipe dos Rios, onde iriam ensinar dança às damas da corte.

Imensa foi a dor de A-Tuan. Suspirara tanto por aquele dia, na esperança de ter uns momentos de folga! Esteve a ponto de adoecer de novo. Fez de tudo para convencer a velha senhora Sie a mandá-lo também para o palácio do Príncipe dos Rios, mas ela sacudia a cabeça, sem nem ao menos uma resposta.

Passaram-se, assim, alguns meses. Certo dia, uma infausta notícia espalhou-se pelos pavilhões.

— Sabem da novidade? Flor de Verão subiu para o grande terraço do castelo do Príncipe dos Rios e se afogou!

A coisa parecia inacreditável. Como poderia alguém, vivendo no fundo do rio, afogar-se?

A-Tuan atormentava-se com a ideia do desaparecimento da moça.

— Estamos tão habituados a viver no fundo d’água que a água é o nosso elemento. No entanto, Flor de Verão subiu ao terraço superior do palácio e se afogou! Não posso acreditar!

— A verdade, repetiam-lhe os amigos, é que ninguém mais a viu.

A-Tuan, no auge do desespero, arrancou da cabeça a faixa de escamas de ouro e a fez em pedaços: foi buscar suas vestes mais ricas e as reduziu a frangalhos. Depois, para acalmar a dor de seu coração, quis voltar para o meio das flores de magnólia, onde ele e Flor de Verão se haviam encontrado.

Seguiu pelas galerias, atravessou a primeira porta, foi adiante, até encontrar a segunda. Abriu-a e ei-lo no bosque. Pareceu-lhe que seu coração parasse de bater, tão viva era a lembrança de seu primeiro e último encontro com Flor de Verão.

Depois de muito caminhar, de repente, se viu às fraldas de uma muralha altíssima, à qual estava apoiada uma escada que parecia não ter fim. A-Tuan comprovou, com estupor, que a muralha era formada pelas águas do rio, de tal maneira solidificada que jamais alguém poderia atravessá-la. Trepou rápido escada acima. Chegou a alcançar a altura das magnólias e foi subindo, subindo, até ultrapassá-las...

"Sabe-se lá onde vai ter esta escada!" dizia consigo. "Estou exausto, não aguento mais! Se esta subida não tem fim, vou rolar lá para baixo de cansaço."

Subitamente, a escada terminou. E, um pouco mais acima, terminava a muralha também. A-Tuan trepou alguns metros mais, até galgar o muro e, de lá, atirou-se do outro lado. Ao voltar a si da vertigem provocada pela queda, tentou nadar. Viu, com surpresa indizível, que o sol resplandecia sobre sua cabeça e que as águas do rio se estendiam em volta dele. Estava livre! Estava de novo na terra! Louco de alegria, deixou-se levar pela correnteza e, ora nadando, ora boiando, chegou à margem.

— Ei, você aí, gritou-lhe um pescador que lançava a sua rede; de onde vem?

— A minha jangada naufragou e não sei exatamente onde estou.

— De que aldeia és?

— De Su-Chian.

— Pode julgar-se um rapaz de sorte: não está longe. Só tem que chegar à curva do rio, que atravessa o vale.

A-Tuan agradeceu e- saiu correndo na direção indicada. Não tinha a mínima ideia do tempo que estivera ausente. Parecia-lhe que a estação do ano era a mesma de quando caíra no lago.

De repente, descortinou sua aldeia natal. Com passo mais compassado, refreando a emoção, chegou à casinhola onde nascera e se criara. Estava já quase a entrar, quando ouviu, lá de dentro, uma voz jubilosa que dizia:

— Senhora Chiang, seu filho está aqui!

A-Tuan estacou. Aquela voz, embora só uma vez a tivesse ouvido, ficara-lhe para sempre no coração. Não, não era possível que se enganasse!

De fato, lá estava, para recebê-lo à soleira da porta, junto a sua velha mãe, Flor de Verão, que lhe sorria com olhos brilhantes de alegria.

Contou-lhe que, lá no palácio do Príncipe dos Rios, sentia-se morrer de melancolia. Pensara, então, que, talvez, subindo ao telhado mais alto, pudesse avistar o pavilhão onde vivia A-Tuan e saudá-lo de longe. Às escondidas, fora ao terraço, mas, ao espichar o pescoço para enxergar mais longe, perdera o equilíbrio e caíra. Mas, tal como acontecera com A-Tuan, a queda, em lugar de arrastá-la para o fundo, fizera-a boiar nas águas do rio. Fora recolhida por uma jangada que passava e, tendo sabido que sua família perecera num naufrágio, dera o nome da mãe de A-Tuan, para cuja casa a haviam acompanhado.

A velha senhora Chiang chorara de comoção, ao saber que o filho vivia. Depois, derramara novas lágrimas ao pensar que jamais o tornaria a ver. Flor de Verão, porém, tinha muita esperança. E os fatos vieram-lhe dar razão.

Casaram-se em meio à alegria geral. Dançaram para o encantamento de todos os presentes que se desfizeram em elogios.

Só o Príncipe Dragão, tendo perdido seus melhores dançarinos, por muito tempo viveu acabrunhado e inconsolável.

sábado, 28 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 147


Luiz Poeta (Canção de Ninar Estátuas)


Ao se virar, o sangue correu-lhe gélido e impetuoso pelos capilares. Sentiu, estarrecido, o olhar da estátua abismando-se no fundo de suas nebulosas e trêmulas retinas. Conteve o temor inicial e pouco a pouco foi retomando o fôlego. Cerrou e baixou a vista instintivamente, mas levantou-a de maneira tímida e naturalmente cautelosa, tentando resistir àquela metafísica provocação óptica tão... absurdamente humana.

Então, aconteceu a metamorfose... os olhos de bronze foram mudando gradativamente de cor. A princípio eram marrons, depois vermelhos, turquesa, violeta... azuis... expressiva e profundamente azuis... Ele fitava-os boquiaberto. O coração batia-lhe descompassado. O conflito intensificou-se: o corpo da estátua adquiriu movimentos. Suas mãos apoiadas num cajado mexiam-se suavemente. O tórax inflou na primeira respirada e os lábios simularam um tênue sorriso.

Boquiaberto, o transeunte deixou-se cair pesadamente no banco da praça. E a móvel escultura encaminhou-se para ele - o metal das roupas esvoaçando-se no vento, os cabelos de estanho caindo-lhe sobre os olhos... azulíssimos.

O homem afunilou-se no próprio estupor.

A estátua bem próxima - para sua conclusão de autoconsciência esquizofrênica, indagou solenemente:

- Como vai, companheiro?

Ele não ousou responder. Vítreas pelo terror, suas trôpegas pupilas pousaram abruptamente naquela imagem metálica que se movimentava e completava sua fala:

- Há algum tempo eu o tenho observado. Sei de todos os seus movimentos. Cataloguei-os todos no meu arquivo de silenciosas reflexões sobre a vida humana - no meu ângulo de visão, é claro. Colocaram-me neste pedestal olhando eternamente o jardim, privando-me do contato ocular com o portão principal que dá para esta praça. E exatamente por vê-lo sentar-se neste banco à minha frente todos os dias, vê-lo colher flores ou mexer com as cutias… ou ainda arremessar pedrinhas ou grãos de cereais nas águas do lago, bulindo com os peixes, é que eu conheço cada atitude sua, cada movimento ínfimo que seja; até essa sua mania de coçar os cotovelos. Eles são diários, sabia? ... há algum tempo, inclusive, senti que estava ficando estrábico, porque quando o senhor se afastava para o lado oposto à minha visão, o interesse em acompanhá-lo era tanto, que meus olhos quase viravam para a direita ou para a esquerda, onde quer que passasse ou estivesse. Há algumas pessoas que vêm para este lado do parque, mas poucas têm a sua sensibilidade. A maioria delas passa indiferente aos aspectos bucólicos deste jardim. Ficam aqui alguns instantes olhando para o relógio ou consultando o celular, depois retiram-se absurdas e inexpressivas como vieram. Por isso é que eu saí da minha inércia para conversar com você - permita-me, com todo respeito, chamá-lo assim. O que acha disto? Se o incomodo, desculpe-me o atrevimento - eu me estatualizo ou me estatifico (não sei que neologismo usar)... senão... conversaremos.

O homem continuava perplexo, enlevado. Não conseguia compreender aquilo. A estátua, apesar dos olhos fundos e azuis, tinha o corpo todo de bronze, embora se movimentasse e falasse surpreendentemente. Os cabelos finíssimos como capilares metálicos, caía-lhe sobre a testa brilhante sob os raros raios de sol que atravessavam a frondosidade das árvores.

A insistência o convenceu.

- ...mas... como?

- Como... - a estátua intrigava-o mais ainda, parecendo provocá-lo.

- Como você consegue falar?

- Ora como... tenho boca, língua, aparelho fonador e respiração, só isso.

- Mas...você é uma estátua!

- E daí ? Nunca ouviu uma estátua falar?

- Mas é claro que não... é antifísico, fictício, louco, sei lá...

- Como louco? Você não está me vendo, ouvindo, falando comigo?

- É evidente que estou.

- Então? Por que louco ?

- Ora, porque isto é irreal, é fantástico, extrafísico, sei lá!

- Eu não acho tão extraordinário assim. Sou uma estátua, e o que isto tem de tão inusitado? Privar-me-ão do direito de ser entendido só porque não tenho massa celular, encefálica, neuronial?

- Não é bem assim... afinal, de onde veio você?

- Vim da fundição, naturalmente. Fizeram-me de bronze, ferro, estanho. Quiseram-me com esta cara, este busto, estas roupas espalhafatosas, até atemporais. Quando fui feito, meu jeito já era anti-época. Este vestuário já não condizia com a realidade deste século.

- Pela inscrição no seu pedestal, parece que você foi um... poeta!

- Não sei, não me consultaram.

- Como? Você não sabe quem foi?

- Não. Não sei.

- Mas isto é ridículo: transformar o minério bruto em quem se queira,

- É, se assim não fosse, eu não seria nada.

- Mas as pessoas o conhecem como poeta...

- Como estátua.

- E a sua inscrição no pedestal?

- Ninguém a lê. Não se importam nem com letreiros luminosos, quanto mais com uma tola inscrição. Esse povo parece que nunca teve uma história.

- Não é possível., mas você há de ter sido alguém.

- Meu espírito sim.

- Quê? Não vai me dizer que você é um espírito?!

- Não, eu apenas tenho alma. Respiro, inspiro, aspiro... você não está vendo? Além do mais, só creio no que toco, nunca no que vejo.

- Ah... espera aí... ou eu pirei ou estou vendo você. Posso tocar sua mão?

- Claro. É honroso cumprimentá-lo,

- Engraçado, sua mão é de bronze entretanto parece humana... como é que isto pode acontecer?

- Agora você me pegou.

- Sabe dona... estátua... você representa o passado, você é um milagre que contraria a ciência e a metafísica ao mesmo tempo... não me lembro de nenhum livro mítico, científico ou bíblico que fale de um fato estranho como o seu... posso até ter lido algo a respeito, mas estou vendo e tocando você! Você tem corpo, movimento e uma inscrição que diz que você foi um poeta que, aliás, só falta declamar!

- Evidentemente que sou o que minha forma representa. Minha imagem é tão filosófica como sua concepção de si mesma...

- Filosófica coisa nenhuma! Eu estava passando como sempre faço: observando os pássaros, mexendo com as cutias, colhendo flores para enfeitar minha sala...

– Assobiando...

- Assobiando?

- É, cavalheiro... assobiando, Ou você não sabe que assobia enquanto anda?

- Eu assobio?

- Assobia sim senhor. Um assobio até meio chatinho, monocórdico... porque é sempre a mesma melodia.

- Melodia? Mas...de que música ?

- Ora, sei lá... uma estátua velha fincada no meio de uma praça não tem tempo de sair andando por aí para pesquisar acordes de uma música repetitiva como a sua.

- Ah, já sei, é uma música de ninar.

- Parece mesmo. E por que você a assobia sempre?

- Bem, na verdade eu nem sabia que a assobiava todos os dias, mas acho que é uma maneira de lembrar minha avó.

- Ela cantava essa música pra você dormir?

- Todas as noites.

- E onde foi isso? Quando?

- Bem, já faz uns oitenta anos. Eu era bem pequeno ainda. Lembro que minha avó ia comigo à praça... comprava-me algodão-doce, pipoca e amendoim torradinho e sentava-se sempre em um banco de concreto como este aqui, em frente a uma estátua… ué?!… mas a estátua era você! a praça… a praça era esta! … meu Deus… o que está acontecendo comigo?

– Estranho, muito estranho… embora esteja há bastante tempo nesta praça, não me lembro de você com sua avó…

– Mas claro, como ia de lembrar? Eu era um menino.

– É, isto não me havia passado pela cabeça. Mas… sua avó… como era ela?

– Bonita. Muito bonita. Os homens a cortejavam, faziam reverências com acenos de cartolas… lembro-me de um que sentou-se junto conosco exatamente neste banco, falou coisas de estátuas que eu não compreendia bem, enquanto eu me deitava no colo de minha avó e acabava adormecendo sob as notas musicais da canção de ninar. Uma tarde, entretanto, quando despertei, minha avó estava recostada com a cabeça tombada, os olhos abertos extremamente azuis fitando eternamente o céu… o moço que falava sobre estátuas tinha sumido… deixou-me só com ela, com a vovó…

A estátua olhava-o afetuosa e profundissimamente humana e seus olhos eram dois abismos azulíssimos  dentro daquela face metálica, e ele sentiu-se envolver por uma calma tão grande, tão abstramente absurda e boa como a canção de ninar de sua avó…

Tropeçando na sonolência dos fonemas, balbuciou que as estátuas não falam nem têm olhos azuis… nem tampouco se movem… enquanto uma lânguida nuvem descia sobre seus oitenta e cinco anos… o azul dos olhos da estátua transformaram-se gradativamente num abismo celestial e seu espírito bom resvalou suavemente, doce como uma pétala branca que se solta impelida pelo delicado peso de uma minúscula e gelada gota de orvalho… e ele voou, elevando-se serenamente no vento manso daquela tarde,

Na manhã seguinte, num alegre burburinho de pardais e pombos na praça, um menininho gritou alegre e curioso:

– Vovó… aquela estátua se mexeu! Eu vi, vovó! Eu vi ela se mexer! Vem ver, vovó!

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

Maurício Norberto Friedrich (Trovas Avulsas)


1
A vida, às vezes, malvada,
traiçoeira, inconsequente;
nos tira a pessoa amada
e não tem pena da gente.
2
Almejem sempre a vitória,
em todos empreendimentos,
que ficarão na memória,
pelos seus merecimentos.
3
Amar-te, pra mim, foi vício,
doença que não tem cura;
e este foi grande suplício
que me levou à loucura.
4
Amor é doce tormento!
Amor é vício sem cura!
É o amor um linimento
entre a razão e a loucura!
5
Ao Novo Tempo a vitória,
neste concurso de paz:
pois, já bem merece a glória
quem pela trova assim faz.
6
Ao ter fé em Nosso Senhor,
levo a vida em linha reta,
pois, com fé, esperança e amor,
minha vida se completa.
7
Ao ver a Lua Bailando,
com tanto brilho e esplendor,
eu já me ponho rezando:
- Obrigado, meu Senhor!
8
Aposentou-se o freguês…
e a pobre esposa reclama
que, banho, é só um por mês,
mas, sem tirar o pijama!
9
As marcas que a tua ausência,
deixou em meu coração,
são as marcas da pungência
da nossa separação.
10
As trovas de um trovador
são belas, ricas em rimas
pois são feitas com amor,
verdadeiras obras primas!
11
Bailando sempre a procura
do néctar de belas flores,
o beija-flor, com ternura
não se importa com as cores.
12
Beber da fonte hipocrátlca
para o médico é um dever,
é a fórmula democrática
da medicina exercer!
13
Casamento - ação esperta!
Isto já está definido,
onde uma parte está certa
e a outra é sempre o marido!
14
Com grande amor e trabalho,
carinho e dedicação,
do meu amor eu me valho,
pra fisgar teu coração!
15
Combater, do fumo o vício
para o médico é um mister:
exaltar seu malefício
como a ética requer!
16
Combater com veemência
o triste vício do fumo,
sem dó e sem clemência,
pra saúde andar no rumo!
17
Compondo versos eu sonho,
que trovador, inda, serei
e, nos versos, que componho
no teu nome já pensei!
18
Contigo sinto que a vida
tem sentido e fulgor,
pois teus carinhos, querida,
dão esteio ao meu amor!
19
Cuida, ao contar um segredo,
em quem tu vais confiar:
é a liberdade, bem cedo,
que, ao certo, vais entregar...
20
Da singeleza nos vem
mensagem de amor e de paz;
é a mensagem de Belém
que um anjo de Deus nos traz!
21
Dando fim às duras penas,
nossa princesa c'oa mão,
com dois artigos, apenas,
aboliu a escravidão...
22
Daquele beijo roubado,
em pausa de tua festa,
sinto o gosto adocicado,
o bom sabor que me resta.
23
Desta vida, na escalada,
cada degrau tem a altura,
muito bem delimitada
no tamanho da cultura.
24
Descrente, sou eu, de tudo...
muito mais sou de sereia
mas, é no verão, contudo,
que vejo tanta na areia!
25
Distante de ti, amor,
noites insones, eu passo
fazendo a Deus um clamor:
pra ver-te, um dia, em meu braço!
26
Do amor, divino expressar,
a encantadora seresta
faz da janela um altar,
de apaixonados, em festa.
27
É indizível a tristeza,
dum sabiá na gaiola;
cabisbaixo e sem beleza
nem à amada, cantarola!
28
É Natal! Que cante o sino
para ao mundo anunciar
a vinda do Deus Menino
que hoje veio nos salvar!
29
É nobre de coração,
o médico pediatra:
dá amor, carinho e afeição,
à toda criança que trata!
30
Já no ocaso desta vida,
com tanta conta a ajustar,
peço a Deus, seja abatida
a despesa... por te amar!
31
Lembranças da mocidade
são um espelho em que a gente
só vê, com tanta saudade,
o passado... no presente!
32
Lembro de ti, com saudade,
nos tempos que longe vão;
tu eras felicidade,
dentro do meu coração!
33
Lindos traços, no teu rosto,
que harmonizam a beleza,
me fazem exclamar com gosto:
-Tu és, sim, minha princesa!
34
Pobre é a nação sem cultura,
sem heróis e sem memória,
cujo povo não procura
resgatar a sua história!
35
Poesia, versos de amor
nascidos no coração;
versos em que o rimador
exprime a sua paixão.
36
Poeta! Sou trovador!
Que todos possam saber:
faço trovas por amor,
faço trovas por prazer.
37
São Francisco, nas veredas,
feito um pobre vagabundo,
despido de suas sedas,
encheu, de amor, este mundo!
38
Saudade é uma dor silente
que nos ataca e vem mansinha;
entra no coração da gente,
toma posse e ali se aninha!
39
Saudade, saudade e meia,
é o que sinto de você;
meu coração serpenteia,
- só você é que não vê!
40
Saudade! Triste amargor!
Dolorosa e tão pungente,
a nos causar tanta dor;
só a entende quem a sente!

Fonte:
Luiz Hélio Friedrich. Maurício Norberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.

Alcântara Machado (A Sociedade)


- Filha minha não casa com filho de carcamano!

A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.

O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço.

O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia - uiiiia! Adriano MeIli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia!

- O que você está fazendo aí no terraço, menina.

- Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.

- Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!

- Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!

Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.

Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar:

Dizem que Cristo nasceu em Belém...

Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.

Os pares dançarmos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.

- Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.

- Não!

- Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.

... mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!

- Meu pai quer fazer um negocio com o seu.

- Ah sim?

Cristo nasceu na Bahia, meu bem...

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.

... e o baiano criou!

- Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?

- Já sei, mulher, já sei.

Mas era coisa muito diversa.

O Cav. Uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmcnte as vantagens econômicas de sua proposta.

- O doutor...

- Eu não sou doutor, Senhor Melli.

- Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser. lo resto à sua disposição. Ma pense bem!

Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Coisas de herança. Não lhe davam renda alguma. O Cav. Uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O Cav. Uff. com o capital. Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo.

- É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende é impossível...

- Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio.

O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café.

- Dopo o doutor me dá a resposta. lo só digo isto: pense bem.

O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro.

- Bonita pintura.

Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.

- Francese? Não é feio non. Serve.

Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.

- Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce.

- Sei, sei... O seu filho?

- Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?

O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cav. Uff. na direção da porta.

- Repito un'altra vez: O doutor pense bem.

O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.

- E então? O que devo responder ao homem?

- Faça como entender, Bonifácio...

- Eu acho que devo aceitar.

- Pois aceite.

E puxou o lençol.

A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.

O Conselheiro José Bonifácio
de Matos e Arruda
e senhora
têm a honra de participar
a V. Ex.a e Ex.ma família o
contrato de casamento de sua
filha Teresa Rita com o Sr.
Adriano Melli.
Rua da Liberdade, no. 259-C.

_________________________________________
O Cav. Uff. Salvatore Melli
e senhora
têm a honra de participar       
a V. Ex.a e Ex.ma família o
contrato de casamento de seu
filho Adriano com a Senhorinha
Teresa Rita de Matos Arruda.
Rua da Barra Funda, no. 427.


                       S. Paulo 19 de fevereiro de 1927.

No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase sempre fiado e até sem caderneta.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 146


Monteiro Lobato (A Gralha Enfeitada com Penas de Pavão)


Como os pavões andassem em época de muda, uma gralha teve a ideia de aproveitar as penas caídas.

– Enfeito-me com estas penas e viro pavão!

Disse e fez. Ornamentou-se com as lindas penas de olhos azuis e saiu pavoneando por ali afora, rumo ao terreiro das gralhas, na certeza de produzir um maravilhoso efeito.

Mas o trunfo lhe saiu às avessas. As gralhas perceberam o embuste, riram-se dela e enxotaram-na à força de bicadas.

Corrida assim dali, dirigiu-se ao terreiro dos pavões pensando lá consigo:

– Fui tola. Desde que tenho penas de pavão, pavão sou, e só entre pavões poderei viver.

Mau cálculo. No terreiro dos pavões coisa igual lhe aconteceu. Os pavões de verdade reconheceram o pavão de mentira e também a correram de lá sem dó.

E a pobre tola, bicada e esfolada, ficou sozinha no mundo. Deixou de ser gralha e não chegou a ser pavão, conseguindo apenas o ódio de umas e o desprezo de outros.

Amigos: lé com lé, cré com cré.
_______________________________________________________

– Esta fábula é bem boazinha – disse Dona Benta. – Quem pretende ser o que não é acaba mal. O Coronel Teodorico vendeu a fazenda, ficou milionário e pensou que era um homem da alta sociedade, dos finos, dos bem-educados. E agora? Anda de novo por aqui, sem vintém, mais depenado que a tal gralha. Por quê? Porque quis ser o que não era.

– Isso não, vovó! – objetou Pedrinho. – Ele ficou rico e quis levar a vida de rico. Só
que não teve sorte.

– Não, meu filho. O meu compadre apenas se encheu de dinheiro – não ficou rico. Só enriquece quem adquire conhecimentos. A verdadeira riqueza não está no acúmulo de moedas – está no aperfeiçoamento do espírito e da alma. Qual o mais rico – aquele Sócrates que encontramos na casa de Péricles ou um milionário comum?

– Ah, Sócrates, vovó! Perto dele o milionário comum não passa de um mendigo.

– Isso mesmo. A verdadeira riqueza não é a do bolso, é a da cabeça. E só quem é rico de cabeça (ou de coração) sabe usar a riqueza material formada por bens ou dinheiro. O compadre pretendeu ser rico. Enfeitou-se com as penas de pavão do dinheiro e acabou mais depenado que a gralha. Aprenda isso...

– E que quer dizer esse “lé com lé, cré com cré”? – perguntou Narizinho.

– Isso é o que resta de uma antiga expressão portuguesa que foi perdendo sílabas como a gralha perdeu penas: “Leigo com leigo, clérigo com clérigo”. Em vez de clérigo, o povo dizia “crérigo”. Ficaram só as primeiras sílabas das duas palavras.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) 1


Ah,
Como fica bom o meu dia
Quando tu abres a cortina da alma num sorriso
Se constituindo na paisagem mais linda do mundo.
__________________________

Ah,
Esse mar beijoqueiro!
Faz tanta onda por um beijo
Mas depois de que dá primeiro
Vai e volta querendo mais.
__________________________

Ao passar das sete luas
Abri minha janela pra rua,
Não mais sabático,
De alma curada
Voltei a florir.
__________________________

As tuas palavras
Me abraçam
Mas os teus beijos,
Ah!
Estes
Lavam a minha alma.
__________________________

Depois de tantas desilusões
Em terra desértica ela se fez
Mas pra conquistar seu coração
Em mandacaru me tornei.
__________________________

Desfiando nuvens,
Por você,
Casaco de sol eu me fiz.
__________________________

Fechei os olhos pra poesia
E ela saiu
Em forma de oração.
__________________________

Hoje
A saudade fez um barulhão no meu peito
Queria de todo jeito
Te trazer pra perto de mim.
Abraço o teu perfume
Beijo o teu sorriso
Como se estivesse contigo
Em silêncio
Vendo passar o rio.
__________________________

Mesmo com a tua grandeza
O amor em ti transborda
E eu tão pequeno
Vou sorvendo pelas bordas.
__________________________

Na despedida
Lágrimas caídas
Estrelas no chão.
__________________________

Na flor da idade
Guardei em mim o teu perfume
Com o passar do tempo
Um belo jardim de nós se fez (filhos).
__________________________

Na imensidão da noite
Enquanto o vento grita
A lua se faz de pipa
E brinca enroscada na árvore.
__________________________

Nas entrelinhas
Os meus versos brincam de esconde-esconde.
Mas quando aparecem
As rimas-meninas
Elas se divertem no carrossel encantado.
__________________________

Nos braços da noite
Amparo meus sonhos
Aguardando tranquilo
Pelo amanhecer.
__________________________

Olhos azuis
Ou seriam verdes que me confundem!
Ah, menina!
Quando te vejo
As meninas dos meus olhos
Brincam maravilhadas
Com o oceano que há nos teus.
__________________________

Ruidoso mar
Com as tuas batidas
Ensurdeces o fado
Que grita no meu peito.
__________________________

Você partiu
Fiquei menor
Pois escapou dos meus olhos
Um pedacinho da alma.
__________________________

Fonte:
Facebook da AVIPAF

Rachel de Queiroz (O Homem e o Tempo)

    
Quem lê algum livro das eras de dantes, um romance de Jane Austen, por exemplo, escrito há quase duzentos anos atrás, tem a impressão de que o tempo daquela gente rendia muito mais que o nosso, ou que eles tinham tempo para tudo, enquanto nós não temos tempo para nada. Eles realizavam coisas, erguiam grandes casas, criavam grande família, plantavam jardim e pomar e ainda tinham tempo para meditação e debate, para as artes amenas da convivência civilizada — as visitas, as palestras, a correspondência. E só conheciam como meio de tração terrestre o cavalo, navegavam a vela, não sonhavam com telégrafo nem telefone, quanto mais com rádio e TV!

O que aconteceu com o homem atual, vítima da permanente impressão de que o seu tempo encolheu? A gente se agita, quebra a cabeça, vai lá e vem cá, mas não realiza propriamente nada — ou, pelo menos, o que se realiza nem de longe corresponde ao esforço que se faz. Não se tem tempo. Não se escreve um livro com calma, aqueles substanciosos livros meditados, cheios de digressões, alargados em conceitos tranquilos, que representavam o labor de toda uma vida. E se alguém escrevesse tais livros, como alguma alma anacrônica ainda o tenta, não encontraria ninguém para o ler. A gente vive correndo de Herodes para Pilatos, do nascer ao pôr-do-sol, da segunda ao sábado e se esgota toda nessa correria. Eu, por exemplo, que não sou das mais ativas: atualmente o meu trabalho fica a três mil quilômetros, ou seja, a quinhentas léguas do lugar onde moro. Não é coisa de louco? Mas não sou exceção, a exceção são os que moram perto. D. Pedro II reinou no Brasil durante 58 anos e conheceu apenas uma parte do território nacional, o que foi uma omissão. Mas também é exagero o que faz qualquer presidente atual; numa única semana percorre mais território do que o Imperador em mais de meio século; para governar, governa simultaneamente em duas cidades, separadas uma da outra mais de mil e quinhentos quilômetros — Brasília e Rio.
     Tudo seria muito belo, a velocidade e o mais, se a nossa pessoa física estivesse à altura das exigências que nós lhe impomos. Pois o trágico da vida do homem moderno é que ele não é feito para o ritmo que a sua existência atual lhe exige, mas para o tranquilo, sereno ritmo dos tempos de dantes. A carne, os músculos, o sangue, o coração, as vísceras todas do homem foram criadas para as pequenas distâncias, para o andar a pé. O cavalo já nos exigiu uma adaptação especial — que dirá então do avião, da astronave? Nenhum homem das civilizações antigas poderia conhecer o desgaste prematuro e terrível representado por essa moléstia hoje vulgar em aviadores, rapazes de menos de trinta anos: a fadiga do voo. Para as conquistas deste século deveria haver outro homem, não aquele que nós somos, filhos de Adão feito de barro.

A gente se obriga, mas a carne reclama. Desde o enjoo do mar ao enjoo do ar, ah, o horrendo enjoo do ar que me martirizou por mais de vinte anos de viagens aéreas, até que se usasse a pressurização nos aviões comerciais! Nós vivemos dentro das nossas cidades no seio do progresso que nós inventamos e fabricamos, como hóspedes do interior vivem na casa de primos ricos — onde tudo é uma admiração e um constrangimento. Basta encarar o problema da escala. Pois tudo que a civilização fabrica, ultrapassa a nossa escala, como se fosse destinado ao uso de gigantes. Para termos uma visão do mundo que nos cerca, temos que o reduzir a miniaturas, fotos, mapas, maquetes. Experimente olhar da calçada a torre de um grande edifício — dá vertigens e o nosso olhar não apanha nada do conjunto.

Eu tenho a impressão de que um progresso realmente assimilável pelo homem seria um progresso que funcionasse de dentro para fora quer dizer, se o homem mesmo, o seu corpo, a sua carne participassem do progresso. Mas nós sabemos inventar elementos exteriores que nos transportam, nos elevam no ar, nos afundam, nos cegam, nos deslumbram, sem nada penetrar a nossa essência física, sem sequer melhorar a nossa constituição corporal. Somos pacientes, não agentes. A ave que voa, voa por si, voa mesmo. Nós “somos voados”. Alguma coisa voa nos levando dentro. Nadar e mergulhar com o nosso corpo é uma atividade maravilhosa, que nos dá a sensação de dominar um elemento novo e adverso: mas navegar dá náuseas e mergulhar num submarino a mim, pelo menos, dá horror.

Não sei se me faço entender, mas considero essa questão a própria chave da incompatibilidade do homem com sua obra: nenhum progresso alcança a nossa estrutura,
fica tudo na superestrutura, no exterior.

Tudo é feito de matéria inerte, nada é vivo, nada é de carne, nada cresce, nada dói. Sim, aí é que bate o ponto: nada do que nós fazemos é capaz de sentir nada, mormente sentir dor.

Progresso seria se a gente conseguisse tornar o nosso coração de músculo num coração de duralumínio. Um pulmão de espuma de aço, um sangue incorruptível como petróleo, um cérebro que não tonteie nem esqueça, meu Deus, um cérebro eletrônico. E, dizendo isso, verifico que o homem capaz de fruir com plenitude a civilização de engenhos mecânicos por ele criada tinha que ser também um homem mecânico — tinha que ser um robô.

[17 jun. 1967]

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 145


Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: Gobán, o Carpinteiro)

Vivia na Irlanda, há muito tempo, um homem a quem chamavam Gobán Saoir, que era um exímio carpinteiro. Naqueles tempos, era costume construir as casas de madeira, e ninguém o fazia melhor que ele. O seu nome tornara-se famoso em todo o país, pelo que todas as pessoas de certa classe e renome lhe pediam que construísse as suas habitações.

Tinha apenas um filho, que trabalhava com ele, e muita gente recorria a eles, quando precisava de bons profissionais. Um dia, Gobán Saoir decidiu procurar uma mulher para o filho. Como a sua própria esposa estava a envelhecer, concebeu um plano para o ajudar a conseguir uma companheira satisfatória.

Ordenou ao rapaz que fosse buscar uma ovelha e sacrificou-a. Em seguida, retirou-lhe a pele meticulosamente, enrolou-a e guardou-a até ao dia de mercado seguinte.

— Leva a pele da ovelha à cidade, hoje — indicou ao filho. -Depois, volta a trazê-la e o dinheiro que te derem por ela.

O jovem pôs-se a caminho e, ao chegar ao mercado, estendeu a pele no chão. As pessoas que passavam perguntavam-lhe quanto pedia por ela e ele respondia que queria conservá-la em seu poder, juntamente com o preço que tinham de lhe pagar. Todos reconheciam que não devia regular bem da cabeça e, ao anoitecer, regressaram a casa e ele à sua com a pele.

— Vendeste-a? — perguntou o pai.

— Não consegui. Julgavam-me louco.

— Bem, tentarás outro dia.

— Para quê? — replicou o filho. — Com essa condição, ninguém ma comprará!

— Garanto-te que a hás de vender, ainda que demores um ano.

No dia de mercado seguinte, o pai mandou o jovem novamente ao local, assegurando-lhe que venderia a pele. O filho colocou-se no mesmo lugar, e a história repetiu-se. Quando aparecia um interessado e ele o advertia de que teria de manter a pele em seu poder, juntamente com o dinheiro do preço pedido, desinteressava-se. No fim do dia, o mercado encerrou as portas e ele enrolou a pele e regressou a casa.

— Então, vendeste-a? — perguntou o pai.

— Não — respondeu o rapaz. — Fartaram-se de rir de mim.

— Tens de voltar a tentar.

— Aposto o que quiseres que farei essa viagem em vão.

— De qualquer modo, tens de efetuar mais uma tentativa.

Quando se dirigia mais uma vez para o mercado, cruzou-se com uma jovem das imediações, que vinha da fonte com um cântaro de água e lhe perguntou:

— Vais ao mercado?

— Vou, mas acredita que não me apetece nada.

— Que te leva lá?

— Tenho de vender esta pele de ovelha e hoje é a terceira tentativa, mas duvido que o consiga.

— Nesse caso, porque vais lá?

— Estou numa situação muito difícil. Tenho de a entregar ao meu pai, juntamente com o dinheiro que custa.

— E ninguém a quer comprar?

— Ninguém. No mercado, todos se riem de mim.

— Acompanha-me a casa — propôs ela. — Talvez eu te a compre.

O jovem assentiu, sabendo que se tratava da serviçal de um agricultor que vivia perto dali. Uma vez chegados, ela pousou o cântaro e pediu:

— Tira a pele do saco, para que a veja.

Ele obedeceu e desenrolou-a diante da lareira. Em seguida, ela pegou numa tesoura, cortou a lã e pesou-a.

— Pronto — anunciou. — A pele tinha dois quilos de lã e cada quilo custa oito pence*. Aqui tens o dinheiro da lã. Podes ficar com o couro e levá-lo ao teu pai, exatamente como ele te recomendou.

E o jovem regressou a casa satisfeito. Quando Gobán Saoir lhe perguntou se vendera a pele, respondeu:

— Vendi, e não tive de ir muito longe. Comprou-a uma jovem. Deu-me o dinheiro da lã, que ela própria cortou da pele com uma tesoura, e deixou-me ficar com o couro, mas não sei se isso é do teu agrado.

— E, sem dúvida, porque tudo resultou como eu desejava. Agora, procura essa moça e pede-lhe que venha esta noite. Mas atenta no seguinte: não deve vir nem por estrada, nem por caminho, nem através do campo. Além disso, não pode trazer companhia, mas não deve vir só. E não entrará, nem ficará lá fora.

— Com a breca! — exclamou o jovem. — Que exigências tão estranhas!

— Vai e faz o que te mando.

O filho de Gobán Saoir dirigiu-se à fazenda e, quando chegou, perguntou pela jovem à dona da casa.

— Foi buscar batatas ao campo — informou ela. — Podes ir lá procurá-la.

Quando o viu, a jovem mostrou-se surpreendida.

— Não me digas que o teu pai não ficou satisfeito com a venda da pele!

— Não venho por causa disso. Ele quer que o visites esta noite, mas não deves ir nem por estrada, nem por caminho, nem através do campo. Além disso, tens de ir só, mas acompanhada. Como se isso não bastasse, não podes entrar em casa, nem ficar fora.

— Muito bem — concordou. — Comunica-lhe que não faltarei.

Depois de colher as batatas e terminar as outras tarefas que lhe competiam, ela pôs-se a caminho, mas antes chamou o cão. Depois, subiu ao alto vale que se estendia da fazenda até à porta da casa de Gobán Saoir e só desceu de lá quando se encontrou no final. Por fim, colocou um pé dentro da porta e o outro fora.

— Que Deus e a Virgem Maria estejam contigo — proferiu.

— Não queres entrar? — convidou Gobán.

— Segundo a tua ordem, não devo entrar nem ficar fora. Como vês, encontro-me entre os dois pilares da porta.

— Tens toda a razão. Que caminho utilizaste?

— Vim pelo alto vale, do qual só desci aqui, no umbral da porta.

— E a tua companhia? — insistiu ele. — Quem está contigo?

— Este — disse ela, chamando o cão, cujo nome era Sólan.

— Tens razão, mais uma vez. Não estarás só, enquanto se conservar a teu lado. Muito bem. Podes entrar.

Assim fez e sentaram-se à mesa, para saborear um jantar excelente.

— O que eu pretendia, minha querida jovem, era o seguinte - explicou Gobán. — Uma boa dona de casa para o meu filho, e ficaria muito satisfeito se fosses tu. Resta-me fazer a pergunta sacramental. Queres casar com ele?

— Fá-lo-ei de bom grado, desde que queira casar comigo.

O filho do carpinteiro declarou-se encantado com a ideia, pelo que assinaram o contrato matrimonial.
_________________________
Glossário:
Pence – A libra esterlina ou simplesmente libra (em inglês, pound, plural pounds, informal. Pound Sterling, ou pounds sterling, formal) é a moeda oficial do Reino Unido. Desde 15 de Fevereiro de 1971 e da adoção do sistema decimal, ela é dividida em 100 pence (singular: penny). Antes dessa data, uma libra esterlina valia 20 shillings (que valiam por sua vez 12 pence cada um), ou 240 pence. Atualmente (dezembro de 2019), 1 Real é equivalente a 18.90 pence esterlino.

Fonte:
Contos Tradicionais da Irlanda