quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Euclides da Cunha (Heróis e bandidos)

Num dia de setembro de 1820 chegou à tristonha Assunção, do Dr. Francia, um prisioneiro ilustre e sexagenário, a quem, entretanto,não se concedera o preito da mais diminuta escolta. Vinha só; passou, a cavalo, pelas longas ruas retilíneas e retangularmente cruzadas, entre janelas de grades, à maneira de extensos corredores de uma prisão vastíssima, e descavalgou no largo onde se erige o palácio do governo.

Viu-se então que a idade o não abatia. Num desempeno de rapaz atlético aprumava-se-lhe a estatura elegantíssima entre as voltas do poncho desbotado que lhe desciam ate. às botas de viagem, flexíveis e armadas das rosetas largas das esporas retinindo ao compasso de um andar seguro.

Grande sombrero de abas derribadas cobria-lhe a meio a face magra; e naquela lace rígida, cindida de linhas incisivas e firmes - como se um buril maravilhoso ali rasgasse a imagem da bravura, num bloco palpitante de músculos e nervos - um olhar dominador e duro, velado de tristeza indescritível.

Era José Artigas, o motim feito homem. O primeiro molde dos caudilhos, primeiro resultado dessa combinação híbrida e anacrônica de D. Quixote, do Cid e de Hernani - a idealização doentia, a coragem esplendorosa e o banditismo romântico - indo perpetuar na América a ociosidade turbulenta, a monomania da glória e o anelo de combates que sacrificaram a Espanha do século XVII.

Correra-lhe a vida aventurosa e tumultuaria. Chefe de contrabandistas arremessado à ventura pelas coxilhas da Banda Oriental e do Rio Grande, transformara-se logo depois, com o mais doloroso espanto dos quadrilheiros mercenários, em capitão de carabineiros da metrópole que o captara, impondo-lhe o exercitar sobre os antigos sócios de desmandos uma fiscalização incorruptível e feroz, até que se voltasse contra a mesma metrópole, transmudado em tenente-coronel revolucionário, e avantajando-se aos maiores demolidores do antigo vice-reinado, ou se transfigurasse de chofre em general, “jef de los Orientales y protector de las ciudads libres”, arremetendo com os irmãos de armas da véspera e destruindo a solidariedade platina, com o afastamento do Uruguai.

Salteador, policial, revolucionário, chefe de governo. - Por fim, caiu. A tática estonteadora quebraram-lha os voluntários reais de Lecor, endurecidos na disciplina incoercível de Beresford; e traído pelos seus melhores sequazes, sem exército e sem lar, errante e perseguido, viera bater às portas do seu mais sinistro adversário, a quem tanto afrontara nas antigas tropelias.

O ditador não lhe apareceu, mas não o repeliu: mandou-o para um convento.

Extraordinário e enigmático Dr. Francia! Este ato denuncia-lhe do mesmo passo a índole retrincada, a ironia diabólica e a ríspida educação política que tanto o incompatibilizava com o heroísmo criminoso daqueles esmaniados cavaleiros andantes da liberdade.

Entre o borzeguim esmoedor e a estrapada desarticuladora só lhe dependiam de um gesto todos os requintes das torturas: escolheu uma cela e constringiu ali dentro, entre paredes nuas, sobre alguns metros quadrados de soalho, uma vida que se agitara desafogadamente nos cenários amplíssimos dos pampas.

A vingança era, como se vê, antes de tudo, uma lição duríssima, mas foi improdutiva. Artigas deixara no estado Oriental o seu melhor discípulo, Fructuoso Rivera.

Em todos, uniformes na disparidade dos tempera mentos, do sanguinário Oribe ao destemeroso Lavalleja, que nos arrebatou a Cisplatina, os mesmos traços característicos: a combatividade irrequieta, a bravura astuciosa e a ferocidade não raro sulcada de inexplicáveis lances generosos.

Traçar-lhes a história é fazer em grande parte a nossa mesma história militar. Quase toda a nossa atividade guerreira tem sido uma diretriz predominante naquela fronteira perturbadíssima do Rio Grande.

Ali, na longa faixa que se estira de Jaguarão ao Quaraim, o gaúcho resume, na envergadura possante e no ânimo resoluto e inquieto, os traços proeminentes de dois povos. Não há destacá-los às vezes. O bravo e versátil Rivera copia servilmente o versátil e bravo Bento Manoel; Lavalleja, um Bayard vibrátil e volúvel, afeiçoado a todas as temeridades, se acaso o nobilitasse a disciplina, irromperia na figura escultural do primeiro Mena Barreto.

Ainda agora o Aparício oriental tem uma larva, o João Francisco rio-grandense: acorrentai o primeiro num posto sedentário, e terei o molosso ferocíssimo da fronteira; arremessai o segundo pelo revesso das cochilhas, e vereis o caudilho...

Daí as surpresas que muitas vezes nos saltearam naquelas bandas.

Notemos uma, de relance: a guerra do Paraguai, em que pese aos seus velhos antecedentes, teve, inegavelmente, um prelúdio muito expressivo nas ruidosas “califórnias”, que arrebataram os nossos bravos patrícios aos entreveros entre blancos e cobrados. A primeira bandeira que ali congregou brasileiros e orientais foi o pala do general Flores, desdobrado e ruflando nas correrias vertiginosas. E quaisquer que fossem depois os milagres de uma diplomacia que desde 1853 e 185S vinha lentamente suplantando o malmequer e a vesânia de Lopez, talvez não nô-lo impedisse mais, desde a hora em que os parladores de um e de outro lado, guascas e gringos, mas uniformemente gaúchos, entrelaçassem, sobre o solo vibrante das campinas, os laços e as bolas silvantes, desfechando sobre o contrário os golpes simultâneos de cinco armas formidáveis - a lança e as quatro patas do cavalo...

Ora, esta identidade de estímulos, efeito de antiquíssimo contágio, reveste-nos de importância considerável a situação atual do Uruguai.

Entretanto, atraída por outros sucessos, toda volvida para a Amazônia ameaçada, ou para o enorme duelo do Extremo Oriente, a opinião geral mal se impressiona com aquelas desordens. Um ou outro telegrama, impertinente e mal lido, entre outros casos de maior monta, nos denuncia de longe em longe que o caudilho rebelado ainda respira.

A despeito de não sabermos quantas derrotas para logo corridas com outras tantas fugas triunfais, rompendo entre as tropas do governo vitoriosas e desapontadas - no “Passo dos Carros” em Taquarembó, em Daymam, em Salto, em Santa Luzia e em Santa Rosa, na Concórdia, no Aceguai e em toda a parte - a revolta irradia para todos os lados, intangível e invencível, espalhando alarmas desde Montevidéu, inopinadamente ameaçada de um assalto, às remotas povoações e estâncias do interior, de súbito despertadas pelo tradicional ahyvienem! que há um século por ali espalha e atira fora dos lares as gentes retransidas de espanto ante o estrupido dos cavaleiros errantes e ferozes...

Vencido pelo general Moniz desde os primeiros dias da luta; acutilado, e algumas vezes morto a golpes de telegramas; erradio, ou fugindo com os restos de uma tropa desmoralizada, para o abrigo da nossa fronteira salvadora, Aparício Saraiva recorda uma paródia grosseira do herói macabro do “Romancero”, morto e espavorindo os inimigos.

Pelo menos a sua revolução, tantas vezes destruída e tantas vezes renascente, tem a estrutura privilegiada dos polipos: despedaçá-la é multiplicá-la.

Ainda neste momento, rijamente repelido do Salto, este combate perdido parece ter tido o efeito único de remontar-lhe a cavalhada. Permitindo-lhe a divisão das forças em três corpos que, dirigidos por ele, por Lamas e Muñoz, vão refluir de novo sobre todo o Uruguai e reeditar a mesmice inaturável das refregas inúteis e das correrias e das derrotas e das eternas vitórias telegráficas – enfeixadas todas numa anarquia deplorável cujo termo e cujas consequências dificilmente se preveem.

Lutas à gandaia, adstritas ao sustento aleatório das estâncias saqueadas, em que o soldado surge pronto de todos os lados, laçando os adversários como laça os touros bravios, combatendo ou “parando o rodeio”, sem notar diferenças nas azáfamas perigosas, elas podem prolongar-se indefinidamente.

Bastam-lhes como recursos únicos alguns ginetes ensofregados e a pampa: a disparada violenta e o plaino desimpedido; a velocidade e a amplidão...

Daí os seus principais inconvenientes. O duradouro dessas desordens à ourela de uma fronteira agitada fez sempre a mais prejudicial dissipação dos nossos esforços e do nosso valor.

Quando se traçar o quadro emocionante das nossas campanhas do sul, que vêm, desde as arrancadas na colônia do Sacramento, desdobrando-se numa interminável série de conflitos sulcados de armistícios e de desfalecimentos, ver-se-á que aos nossos melhores generais coube sempre o arriscadíssimo papel de uns tenazes e brilhantes caçadores de caudilhos e de tiranos irrequietos.

Felizmente, mudaram-se os tempos.

E certo não mais nos atrairão a dispendiosas aventuras aqueles estonteados heróis, singulares revenants, que nestes tempos de utilitarismo positivo exigem apenas, prosaicamente, e de acordo com a lição memorável de Francia, um termo de bem viver e uma cadeia.

 Fonte:
“Contrastes e Confrontos”. http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/

Fran Martins (Almir)

Fran Martins
Um dia destes eu ia andando pelas ruas quando, ao dobrar a esquina, senti alguém segurar-me pelo braço:

– Não me conhece mais não? Não se lembra de mim? Eu sou o Almir – se lembra? Almir, aquele da Pedra Lavrada...

Lembrei-me, sim, de Almir – e imediatamente olhei para a sua mão esquerda. Sim, era ele mesmo, lá estava a mão esquerda sem o dedo mínimo, a mão que servia de atestado que ele fora, nos bons tempos, um dos meus maiores amigos – ele e mais o Clóvis, o Carrinho, o Janjoca, o Pedro, o Felinto. Éramos todos moradores da Pedra Lavrada, uma das ruas mais importantes do mundo, situada já quase nos subúrbios da importante cidade do Crato. E juntos dominávamos a rua, fazendo mil diabruras, metendo-nos em aventuras incríveis, com essa sobranceria de verdadeiros senhores que desafiam céus e terra não tanto para glória individual como para maior renome do seu reino.

                Quantos anos tínhamos então? Procuro em vão lembrar-me mas não sei. Meninos acostumados a gozar a liberdade admirável daquela rua de subúrbio, o que mais nos valia era a altura de cada um – e eu era um dos mais baixos, portanto dos menos temíveis. Almir, pelo contrário, era alto e forte, quase sempre nos comandava, tinha disposição para brigas, nadava bem. Saberia ler? Mas de que servia saber ler naquela época, se a nossa única preocupação era tomar banhos nas enchentes do rio, dar cangapés nos meninos das outras ruas, enfrentar, dominar o rio, mesmo quando as águas estivessem mais fortes, mesmo quando redemoinhos perigosos ameaçassem nos tragar?

                Foi num desses banhos que Almir provou a sua coragem e cresceu mais ainda na nossa admiração. Todas as vezes que o rio enchia, a rua se alvoroçava, a nossa turma perdia o juízo. E projetava-se imediatamente um banho longo, de duas horas, com mergulhos e saltos na água barrenta que passava pelos fundos de nossas casas, derrubando árvores e comendo as ribanceiras.

                Uma noite chovera bastante, com trovões e relâmpagos que nos acordaram. A água forte corria pelas biqueiras das casas e respingos caíam sobre nossas redes. Cada um de nós, enrolado nos lençóis, sonhava com o amanhecer, o raiar do dia que seria cheio de aventuras, como eram todos aqueles em que o rio tomava água.

                Mal amanheceu, nosso grupo se movimentou. Almir chamou-nos um a um – e acorremos ao seu chamado com entusiasmo e alegria. Foi então que Tia Aninha apareceu e, como sempre, gritou da porta da casa:

                – Felinto, Felinto! Não vá tomar banho no rio, Felinto!

                Mas Felinto, como sempre, não a ouvia – Felinto nunca ligava àquela velhinha que tinha tantos cuidados com ele. Escondeu-se atrás de Almir e esperou até que sua mãe entrasse em casa. Eu ainda murmurei, como se adivinhasse que alguma coisa triste ia acontecer:

                – É melhor você não ir, Felinto. Tia Aninha se zanga é comigo.

                Porque Tia Aninha confiava em mim e todas as vezes que não sabia do paradeiro do filho era para mim que apelava:

                – Você viu o Felinto, Fernando? Tome conta de Felinto, meu filho. Não deixe ele brigar, não deixe tomar banho no rio. Tenha cuidado com Felinto, Fernando.

                E eu quase sempre mentia, defendendo meu amigo, encobrindo suas faltas. Seria que Tia Aninha desconfiava? Ela acreditava em mim – mas julgo que, mesmo assim, ainda guardava certos receios de que eu a estivesse enganando. Mas eu era amigo de Felinto e gostava de sua companhia – por isso mentia, escondia suas faltas, muitas vezes dizia à Tia Aninha que me responsabilizava pelo que acontecesse ao Felinto, sem saber, por certo, a gravidade dessa promessa.

                E naquele dia fomos ao rio, que estava com as águas pelas barreiras. Em ocasiões como aquela o rio era perigoso – havia redemoinhos nas curvas, havia poços cavados pelas águas e que poderiam tragar qualquer um de nós. Mas para defender-nos contávamos com a nossa ousadia, com a valentia de Almir, com os nossos anjos da guarda – principalmente os anjos da guarda, que jamais abandonam as crianças.

                Fomos ao rio, mergulhamos, brincamos. E Almir dava cangapés, Felinto se afoitava, sem atender às recomendações que, vez por outra, timidamente, eu me arriscava fazer-lhe.

                Porque uma coisa me dizia que alguma desgraça estava para acontecer a Felinto. A voz de Tia Aninha não me saía dos ouvidos, triste, angustiada, nervosa:

                – Cadê o Felinto, onde anda o Felinto, Fernando? Meu Deus, que fim levou esse menino, que não aparece, não vem para casa?

                Felizmente Almir nos inspirava confiança, era corajoso, disposto, um dos maiores nadadores da Pedra Lavrada. Quantas vezes, no Poço das Mulheres ou na Batateira, Almir conseguira desbancar os mais velozes nadadores do Crato! Mergulhava e tinha fôlego, nadava de costas, de peito, de braço. E sempre estava decidido a se arriscar por um amigo, mais de uma vez deu provas disso, em acontecimentos que ficaram memoráveis na rua. Por isso eu ainda procurava abafar aquela voz que não me saía da cabeça, a voz da Tia Aninha, angustiada, nervosa, triste.

                Foi passado muito tempo, já quase quando nos dispúnhamos a abandonar o rio, que ouvimos aquele grito surdo. Imediatamente todos ficamos tomados de pavor e olhamos alarmados para o lugar de onde partira o brado. Então vimos Felinto aparecer à flor das águas, submergir, depois reaparecer, balançando doidamente a cabeça, agitando as mãos nervosamente e de novo, aos poucos, o seu corpo baixando, as águas tragando a cabeça, os braços, as mãos que nos acenavam, os dedos...

                Almir atirou-se na água imediatamente, nadando com rapidez para o lugar onde estivera Felinto. Lá chegando, mergulhou, mergulhou, mergulhou. Cada vez que retornava, uma centelha de esperança faiscava nos nossos olhos, para logo se desfazer e nos deixar numa angústia martirizante. Porque o corpo de Felinto não aparecia.

                Quanto tempo durou aquela luta? É impossível avaliar hoje. Almir nos parecia um gigante e o seu rosto tinha feições diferentes. Não, ele não podia deixar que Felinto morresse, ele era forte, disposto, havia de salvar nosso amigo. Foi justamente quando mergulhou pela última vez, passando um tempo enorme debaixo d’água.

                Nossos corações batiam fortemente, nossas pernas tremiam, tínhamos, com certeza, os olhos esbugalhados de medo, de terror. Aquele mergulho nos parecia a última esperança, o último esforço para salvar nosso amigo. Os olhos aterrados de todos estavam volvidos para o lugar onde Almir havia mergulhado – e sei que todos nós estávamos também apelando para os santos, para Deus, para os nossos anjos da guarda no sentido de salvarem o nosso amigo. Que diria Tia Aninha quando voltássemos e tivéssemos de contar-lhe que Felinto ficara, morrera?

                A cabeça de Almir finalmente surgiu – e vimo-lo, num esforço desesperado, nadando para a terra, o braço passado no pescoço de Felinto. Uma assombrosa angústia saiu de cima de nós – e já estávamos todos chorando, nós que nunca chorávamos em uma briga com as outras ruas. Temíamos que os dois tivessem se finado, que os espíritos maus que residem nos rios houvessem tragado os nossos amigos. Não, os anjos da guarda não os desprezaram – lá vinham Almir e Felinto, já estavam perto da areia.

                Foi então que notamos o estado do dedo de Almir. Ele nos disse, de maneira confusa, como encontrara Felinto debaixo d’água – enganchado em um toco, certamente sem sentidos. Por isso teve aquele trabalho enorme para tirá-lo. Porque, quando foi puxá-lo com mais força...

                Olhamos o dedo do menino: todo rasgado, os ossos aparecendo. O dedo enganchara no toco, parece que uma pedra caiu também por cima. Os pedaços da pele estavam dependurados e, vendo aquilo, quase esquecíamos Felinto, que ainda permanecia sem sentidos. Pedro deu uma vertigem justamente quando Janjoca virava Felinto para vomitar a água bebida.

                Almir foi levado para casa, apareceu um homem dizendo que era preciso cortar o dedo. Eu fiquei ao lado de Felinto, pensando no sacrifício que o outro fizera para salvá-lo. Iria ficar sem um dedo, como prova de sua amizade ao companheiro. Sem um dedo pelo resto dos tempos – mas salvara a vida de Felinto, salvara, quem sabe, até a vida de Tia Aninha.

                Depois de muito tempo Felinto voltou a si. Já era sol alto quando afinal nos dirigimos para casa. Então, ao passar pela rua, a voz de Tia Aninha soou aos meus ouvidos:

                – Onde anda Felinto, Fernando? Cadê esse menino, cadê meu filho, Fernando?

                E eu menti mais uma vez – a última vez posso assegurar. Disse à Tia Aninha que não vira seu filho – sem dúvida andava pelas outras ruas, pois não fora tomar banho conosco. E depois saí chorando para casa – como estaria o Almir, que iria acontecer ao dedo de Almir? E a voz de Tia Aninha não me saía da cabeça:

                – Cadê meu filho, cadê Felinto, Fernando?

                Agora Almir está a meu lado, sorri alegre, contente porque me lembrei dele. Olho de vez em quando para a sua mão esquerda – como eu poderia jamais esquecê-lo, se já naquele tempo Almir era um grande homem? Abraço-o com satisfação, bato-lhe no ombro, tento recordar algumas passagens de nossa vida de meninos na mais importante rua do mundo, naquela importantíssima cidade do Crato. Mas enquanto Almir responde às minhas perguntas e me conta como tem levado a vida no decorrer desses anos – é a voz de Tia Aninha que eu ouço, angustiada, nervosa, triste:

                – Cadê meu filho, cadê Felinto, Fernando? Onde anda esse menino, que fim levou meu filho, Fernando?

(Fran Martins, Noite Feliz, 2ª ed. Fortaleza, CE, edição UFC/Casa de José de Alencar, 1999)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Imagem = http://paginasefolhas.blogspot.com

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Fran Martins

Francisco Martins (Iguatu, 1913 – Fortaleza, 1996) desde muito cedo revelou vocação para o jornalismo e a literatura: colaborou em inúmeros jornais do Ceará e de outros Estados, tornando-se mais tarde uma das figuras principais do grupo e da revista Clã, cujo nº. 1 surgiu sob sua direção. Professor da Faculdade de Direito do Ceará, consagrou-se como autor de obras jurídicas, conhecidas nacionalmente. Sua obra literária se realiza no campo da ficção; contos: Manipueira (1937), Noite Feliz (1946), Mar Oceano (1948); romances: Ponta de Rua (1937), Poço dos Paus (1938), Mundo Perdido (1940), Estrela do Pastor (1942), O Cruzeiro Tem Cinco Estrelas (1950) e A Rua e o Mundo (1962); novela: Dois de Ouros (1966).

Analisando-se os contos de Fran Martins, percebe-se o quanto a utilização de determinada técnica de narração pode fazer com que uma obra literária seja desviada do caminho da vulgaridade ou da mediocridade e chegar ao leitor envolta numa aura muitas das vezes de sublimidade. Assim, veja-se o conto “O Amigo de Infância”, primeiro do livro de título homônimo. Dois homens (Chico e Gustavo) se encontram numa rua, relembram a infância, dirigem-se a um café, continuam falando do passado e, finalmente, se despedem. Apenas isto. Seria uma história insossa, menor, não tivesse Fran dado à forma de narrar um tratamento refinado. Até o desenlace do conto seria trivial, com a última fala, a do garçom, de feitio anedótico. Mesmo sendo o desfecho da história, o arremate moral, a dar à narrativa um tom realista, próximo do naturalismo – o retrato do caráter de um dos personagens. O contista apresenta, pode-se dizer, três planos de narrativa: 1º) o do encontro dos dois homens na rua; 2º) o dos destinos dos amigos de infância, com a narração concisa de alguns fatos; 3º) o do episódio da queda de uma professora, causada pela ação de um menino, de consequência muito relevante. Diante disso, o contista poderia ter optado por narrar apenas o último plano, recheando-o com o segundo. Poderia ser na primeira ou na terceira pessoa. O narrador poderia ser Chico ou Gustavo, ou, ainda, um narrador onisciente. Teríamos, provavelmente, um conto como milhares de outros, sem a menor possibilidade de fazer o leitor se emocionar, meditar, desejar reler a história. Poderia o contista também ter criado um quarto plano: o narrador (em monólogo interior, talvez), em outro espaço (sala, quarto), sozinho, narraria o encontro com o amigo de infância e todo o passado. E seria guindado à condição de protagonista. No entanto, Fran Martins realizou um conto de alta qualidade, ao dar ao personagem-narrador (Chico ou Fran) um papel secundário na trama. Isto fica evidente desde os primeiros momentos do conto, quando uma voz, numa Rua do Crato, grita por seu nome. Esta voz (de Gustavo) será a do protagonista (o que especula, pergunta, revolve o passado, convida para um café e, finalmente, conta a verdade sobre a queda da professora). Para realizar o conto, Fran Martins se valeu de três expedientes ou tipos de linguagem: a narração, em primeira pessoa, de um passado recente; os diálogos diretos e indiretos (de dois tempos, o da narração principal e o do tempo do episódio central da história); e o flash-back (narração e diálogo). A narrativa parece ter apenas dois personagens: Chico, o narrador, e Gustavo. E ao leitor parecerá desde o início ter no primeiro o protagonista. Aos poucos irão surgindo, na fala dos dois, outros personagens, os amigos de infância. Não terão, porém, nenhuma importância na trama, não passando de meros figurantes. Exceto um deles – o garoto acusado de ter deixado em falso a cadeira da professora, de que resultou uma queda, uma cambalhota e, em consequência, um defeito físico na mestra. Já o tempo do encontro dos dois amigos de infância se dá num lapso de minutos, numa rua, num café. Tempo suficiente para que recordem parte do passado, a infância, trinta anos atrás. Este segundo bloco será narrado no diálogo direto, no diálogo interior de Chico e em flash-back (narração) e será o mais relevante na trama. Tanto isso é verdade que, como dito, o conto poderia ter sido escrito sem o encontro dos dois amigos. O diálogo direto já apresentava um toque de modernidade, sem aqueles impertinentes “disse fulano”, “respondeu sicrano”. E o tempo histórico? Há pelo menos dois momentos no conto dos quais é possível extrair uma resposta para esta pergunta. No primeiro, quando os dois relembram os amigos de infância e Gustavo fala: “Sérgio foi cangaceiro, fez parte do grupo de Asa Branca”. No segundo, ao lembrarem uma das meninas, Helenita, a quem os meninos ofereciam berloques. Em suma, o drama do conto se situa na cidade do Crato, no Cariri cearense, nos primeiros anos do século XX.

Na opinião de Braga Montenegro, “o atributo dominante da obra de Fran Martins é a lógica.” E acrescenta: “A sua atitude literária é sempre infensa à tendência moderna de erguer e sublimar os fenômenos artísticos a um plano essencialmente teórico ou intelectual, o que muita vez implica na efetiva negação da veracidade de certas leis da vida, mas, ao mesmo tempo, eleva o pensamento criador a evidente plenitude de domínio e eficácia. O mundo em que o escritor coloca a ação de seus romances e de seus contos é um mundo de observação, mais que de concepção; de imagem, mais que de símbolo; de percepção, mais que de intuição”. Em outro parágrafo o crítico faz a seguinte análise: “Se nos contos de Manipueira (1934), seu livro de estreia, encontramo-lo preocupado com assuntos regionais, com os aspectos anedóticos do fanatismo e do cangaço, vemo-lo agora atento aos temas poéticos, palpitantes de vida e humanidade (...)”

O conto “Amar... Brando... Claro”, muito sugestivo, é narrado pelo protagonista, num tempo e num lugar indefinidos. No primeiro conto o leitor sabe, pelo menos, que o conflito central se deu há, pelo menos, trinta anos. Neste, não sabe o leitor em que tempo Ricardo narra uns episódios de sua infância. No primeiro, as duas personagens se encontram e dialogam, neste há somente a narração do protagonista, com poucas falas de uma personagem secundária, a professora, e, no desfecho, de uma tia de Ricardo, a anunciar a morte de Julinha e João Guilherme, afogados no rio.  Enquanto o desenlace de uma narrativa não apresenta nenhum traço de tragédia, eis que ocorrida no passado, o desta é exatamente uma tragédia.

O título é um achado surpreendente. O narrador se apaixona por uma colega de escola, Julinha, menina de 12 anos. Após viver no sítio do pai, a lidar com o trabalho no campo, Ricardo chega à cidade, decidido a estudar. Para que o conflito se formulasse, o contista pôs no palco o raquítico, porém inteligente, João Guilherme. Nessa época as crianças aprendiam o alfabeto num livrinho intitulado “Carta de ABC”. As primeiras palavras eram “Amar”, “Brando” e “Claro”. A narração de Ricardo é toda ela um encadeamento de palavras e símbolos: amor, brandura e clareza, ao contrário das águas do rio e do poço e do destino de Julinha: apenas uma notícia trágica.

No ensaio “Diálogo Intratextual: A Ruptura da Normativa” (Apologia de Augusto dos Anjos e Outros Ensaios), F. S. Nascimento assim se refere a Fran: “Possuindo boa leitura da moderna prosa de ficção em língua inglesa, conhecendo no original Sherwood Anderson, John dos Passos, Ernest Hemingway e outros, presume-se que Fran Martins tenha se inspirado nas lições dos mestres estrangeiros para realizar a experiência que seu novo livro de contos encerra.” Mais adiante comenta: “Ao escrever “Cão Vadio” (Noite Feliz, 1946), Fran Martins  já demonstrava seguro domínio dos elementos fundamentais da moderna ficção, tais como o fluxo da consciência, a voz ou reflexão solitária, o flashback etc.” Em outro parágrafo o crítico apresenta mais argumentos a favor do conceito de modernidade na obra de Fran Martins: “O que se admite por mais ousado no diálogo de alguns dos novos contos de Fran Martins está, de fato, na ruptura extrema da normativa,  sendo rejeitada até a aspa simples”.

Em “Ventania” muda novamente o contista o rumo de sua arte de narrar. Aqui o protagonista é o narrador, sem nenhuma dúvida. E por que o nome do cavalo como título? O cavalo seria o elo de ligação de dois mundos: o do narrador e o das outras duas personagens (o pai e a mãe). Ventania seria também a causa do alvoroço do narrador, um vento forte a lhe varrer a inocência.

O conflito vai sendo apresentado de forma sutil, na visão do narrador, um menino. E tudo é presente, isto é, não há passado anterior. O drama é narrado linearmente, embora na voz pretérita, porém sem flash-back. Tudo se passa em poucos dias, de forma acelerada, como numa corrida. Apesar disso, a narração é lenta, comedida, sem atropelos, correrias. Nos contos anteriormente citados, as personagens se deslocavam pela rua, pela escola, pelas margens de um rio, pela cidade. Neste, o narrador vai ao quintal, volta ao quarto, gira ao redor de si mesmo, até quando vai à escola. Faz voltas ao redor de sua dor, embora seu pai saia a cavalo, em busca de outra mulher, e sua mãe chore pela casa.

Cada frase converge para o desfecho: o pai a selar o cavalo, o pai calado, indiferente ao filho e à mulher, a mãe a discutir com o pai, os murmúrios nas ruas, a conversa com a menina Mirian, o bilhete, a morte do cavalo. Ou desde o título, o nome do cavalo, até a vingança da mulher traída, ao envenenar o cavalo, o transporte do marido à casa da amante. Não há diálogos, a não ser no final, após o envenenamento do animal: do narrador com o pai e do pai com a mãe. Breves diálogos diretos, ainda sem os tradicionais “fulano perguntou”, “sicrano respondeu”.

Caio Porfírio Carneiro escreveu: “Fica a impressão – mais que isto: a certeza – de que a força narrativa do romancista sempre lhe deu sinais, como uma pilha que se não apaga, de que o conto sempre o chamou de volta, e para ele sempre voltou. Não com o ímpeto do romancista, mas com o carinho do cinzelador. Eis porque deixou páginas preciosas de ficção curta”.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Aparecido Raimundo de Souza (A Ceia dos Miseráveis)

Wagner chegou sorrateiramente na zona mais rica da cidade.

Entrou por uma estreita cheia de casas e ruelas. Antes de seguir em faminto, a fome descomedida de dormir cansado, e, de frente querendo comer, comprido espiou. Qualquer goela abaixo que colocasse porcaria à dentro, estancaria, o apetite aguçado e acalmaria, sobremaneira, o extenuado do corpo espírito. Mas não tinha uma calça nos fundos do PF, para entrar num bolso. Sequer um tostão com restaurante a bife a cavalo, para pedir um simples de arroz por mais acebolado que fosse. Ou na padaria, e pisar na seção do tamanho daquele lanche que,  constrangedor ao corredor, mandava pra dentro a fúria e contemplava a felicidade cheia do sujeito pleno. As noites (embora passasse da meia cara) estavam apinhadas de feias, com ruas de criaturas formando uma espécie de sorumbática, de rústico no quadro do pintor de favela, onde o azul, no invólucro oco do estranho, naufragava distante, num aquém de fronteiras sem moldura.

A hora atropelava, ou melhor, o relógio não existia, se fazia presente numa louca realidade como um compressor de rolo a trator esticando o asfalto novo. E as guloseimas, o estabelecimento, na parte da calçada, plantado de oposto a envidraçados pomposos e cheios de rebusques, bem ali, a sua, suspendia, à frente e agora, a barriga roncava os dentes e rangia nervosamente o estômago. Os olhos verdes da fome, esmaecidos pelo vazio negro de Wagner e, desmesuradamente silenciados pelos abertos, gritavam terror numa indecifrável de atitude imposta da mais pura das misérias. Na verdade, choravam pelos fustigados a cotovelos soltos, em vista das dores fortes e imensas e também por verem o malfadado vegetar, um rapaz de verme e asqueroso, de viver, enfim, num degradante Deus, como se não fosse reino filho da estonteante desolação.

Coitado do seco! Pobre Wagner! Magro, esfarrapado, esquelético, estruturalmente esfaimado e deprimido. Alma interrompida, submissa, mansa, vexada, desprezada e entupidas de diversas as mais maltrapilhas. Em quadro a parte, cicatrizes pela profusão salpicadas em epiderme. Pedaço infeliz sustentando em adversas, um punhado de hostis. Mesquinhas também de chagas incomuns, repletas de mazelas e incisões incuráveis. À sua dúzia, meia volta de rodas com cabeças pingadas, estendiam pouco caso disfarçados de meros transeuntes. Não contentes, faziam aparências de suas chacotas. Jogavam risos ao ar. Franqueavam os molares a abertas piadas, onde igualmente, bocas de menosprezos e lábios fartos de escárnios, vomitavam enxurradas de resquícios absurdos. Para a frieza da proporção aumentar o medonho, alguns viravam as máscaras pela vergonha, ocultando os avessos do acanhamento. E João simplório, ali no ir, sem ter para onde no meio, de modos bebia com ímpetos ninguém. Em paralelo, sonhava o resto dos lábios abatidos no refrigerante bem vestido e gelado, que escorria do preto de terno indivíduo. Em passo igual, devorava a fatia da moça que ensaiava levar um aspirador na ponta da pizza como um garfo maluco e descontrolado de modos igual mussarela. A boca sugava como Wagner, um self-service, ao passo que, no imenso esfaimado, com mil e  uma espalhadas, as mesas ensaiavam, ordenadamente postas, umas ao lado das outras, a transgressão impura do irreal jamais imaginado.

Todavia, passava ao Wagner, a valentia dos longes ousados.   A  coragem  destemida  dos  agás  maiúsculos, igualmente, fazia voar para longe o distante do homem. Faltava, na força da fera, o tigre dos decididos, para saltar como um sangue em busca da presa enjaulada. O destemor dos pés, para meter as portas num dos loucos de acesso ao enorme salão — ou das janelas que o arejavam e se servir a estômago vazio, abundantemente, até entulhar o entediar dos cantos do organismo. Sempre nesses trágicos de abatimentos, pingares de desânimo molhavam as roupas maltrapilhas, encabulava, vexava, constrangia Wagner, com inclinações para a extenuação e o esmorecimento degradante. Vinha a venturosos, a magnificência dos dias a mente em polvorosa. Recordava suntuosa a trechos de aventurança. Cidadão de pele ostentava nas posses de orgulhoso o respeitável empresário e senhor centena de um absoluto de bens materiais. Carros com mansões, piscinas do ano, apartamentos de mar a poucas quadras de cobertura. Mulheres movidas a pau e dinheiro a dar com frases bonitas. O tudo, no entanto, pertencia ao passado. Chorar sobre os sapatos seria regressar pisando no leite escorregadio e pegajoso por estarem nus e calejados de azedo. Um misto se toldou com fisionomia de frustração deteriorada o seu presente tão ontem, mas ele, vencido, soube conter a garganta que apertava de ímpetos intransigentes. Determinara a si não mais sofrer motivos fosse, ou se curvar, atabalhoado, a enterradas em severas e sofríveis pendências.

Todavia, o que tomar? Que atitude fazer? Meter os costados certeiros na frente de uma bala em movimento? Jogar a solidão de um trem diante de um prédio sem cabeça de vida? Pular de uma bacia no cume de frutos comestíveis, ou, por sobre uma árvore de água fervente? Bosta! Merda! Não deixava de ser a vontade, a falta de altivez, para escolher, animadora com um final louvável e decente. Naquela improvável, qualquer iminência pareceria tão real como subir de matéria plástica pingenteado num aviãozinho aos céus sem infinito. Enquanto melhor matutava o que seria saudável para sua mesquinha, Wagner se propôs a dar próprio de si cabo. Não propriamente ensaiar, mas a morrer aos poucos, a doses pequenas. Fugir de vez, deste cão mundo, dando uma ligeira espiada no outro lado, experimentando incertos postes, escorregando aqui e acolá, segurando nas voltas e dando carros em tropeções. Uma verdadeira selva de motores e sons de bestas pré-históricas resfolegavam festas como buzinas ensurdecedoras. Logo, entretanto, avistou uma encruzilhada adiante. Nesse encontro de surpresas, deparou artérias como a de uma betesga ao Deus dará. Sorriu com os dentes cheios de cara e os olhos de fome vazios pela boca podre. Caminhou para lá (esse assunto de depois ficaria para morrer) levando um transito medonho para driblar a eternidade nas costas. Ao galgar os músculos fronteiriços, o que enxergou fizeram as calçadas irrequietas por onde passou darem assombros de urros.

Detritos de mesas postas pelo chão espalhados, se perdiam em farturas, com alimentos ao léu, jogados ao mais diverso. A toalha de conforto, forrando o cimento, transmitia o regalo da doce sensação. Esparramados, a bel-prazer, guimbas de batons se confundiam com finais de cigarros sujos, deixados por carreiras partidas com alguém a passos ligeiros. Igualmente, garrafas de latas amassadas, cervejas de refrigerantes quentes com sobras consideráveis. Tudo ali. Ao alcance. Ao seu poder de sedução. Pães, pedaços de bolo, tortas e sanduíches variados. Muita pipoca. Também, taças de velas, champanhes acesas e charutos de cores diversificadas. O Altíssimo olhou para Wagner, compridamente, e deu graças ao escuro do firmamento numa prece fadaria pelo anã de topar com uma sorte de delícias tremendas largadas ao esburacados dos suas cáries, explodindo dentes aterradores. Um leque de alegrias lancinantes e de contentamentos desembrulhou-se num grito de aprazimento e agrados, enquanto o degustar lamuriante e febril suplicava o que mandar contrariado para a pança correndo. Finalmente, daria semana daquele cabo maldito (talvez mais) de abstinências as privações na mais completa horrenda. Necessitava, pois se aproximar ligeiro, se abeirar, tomar definitiva de tudo a posse, o que lhe caíra às mãos como uma debilitada e fartar o organismo em dádivas.

Por certo, em cada latinha, em cada prato, nascia sorrateira, a  esperança venturosa, ajudando, como a Fênix, o equilíbrio a manter das cinzas e fazer com que o saco mitológico continuasse fora do humano. Em face desse iluminado, Wagner, festim (sentia-se como um escolhido de Deus), penteou a camisa e empertigou os cabelos.

Alisou ligeiramente a calça rei igual um mocambeiro na sua rota trapagem de indigente.

Quem na azáfama ali o visse, diria que estariam reunidos num regozijo, os banquetes de todos os amigos. Os inseparáveis das farras peladas nos clubes da alta sociedade e das moçoilas e mocetonas de sábado, que juravam por um dólar furado fidelidades de mentira e amor com gosto de eterno. O fidalgo, só, estava, entretanto. Completamente ao arrepio do acaso. Seus nadas tomariam parte em parceiros. Somente a solidão pungente, a noite enfadonha, a lua circunspecta e o vento encerrado nas limitações de uma amenidade sufocante. De repente reunidos e perfilados, chegados, quem sabe de guetos e subterrâneos longínquos, centenas de personagens os mais aterradores brotavam de buracos horríveis disputando um lugarzinho. Gatos, cachorros, ratos, baratas, parasitas e lombrigas imundas formavam uma espantosa e evidente desigual família, mas uma prole digna de ser contemplada. Wagner sorriu para esses novos camaradas ao tempo que abria os braços como anfitrião de primeira linha.

— Sejam bem vindos. Fiquem à vontade!...

Sentou a tranquilidade perto de um velho tambor de delongas, e sem mais lixos serviu-se calado, meticuloso. Os camundongos o imitavam nos movimentos mais requintados. Os felídios, indiferentes, assustavam-se com os voos curtos dos ortópteros. Uma leve, inervante e ávida chuva de paciência, esperava, com pernilongos de mosquitos, a oportunidade de sugar os alheios daqueles braços de mendigo emplumado às coisas que aconteciam a sua volta. Vencido pelo destino, Wagner naquele transitório queria só o páreo de estancar, estancar, estancar. Comer, na verdade, a gula apertada e irritante que o definhava gradativamente, pouco a pouco, como doença incurável e maligna.

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

domingo, 24 de novembro de 2013

Olivaldo Junior (Carta Aberta ao Caro Amigo)

Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida.
Herman Hesse (1877-1962), em O lobo da estepe, romance de 1927


            Cá estou, caro amigo, de volta a escrever. Escrevo como se meus dedos precisassem disso. Eles precisam? Não sei, mas escrevo. E escrevo hoje para você. Você, que conheci há uns anos, faltando dias para o Natal. Escrevo para quem fez por mim o que poucos fariam. Escrevo porque preciso me levar aos trancos e barrancos para fora desse enredo em que somente eu me desenredo.

            Faz tempo que conheço o romance O lobo da estepe, do alemão Herman Hesse. Será que você já o leu? Se o fez, saberá o quanto de mim existe naquele homem, em Harry Haller, que se diz artista e com um lobo a pernoitar no escuro abismo da alma. Minha alma, ou uma de minhas almas, foi a de um jovem homem que se identificou com uma casa de escritores e dela fez o seu refúgio, sua franca morada, aberta a quem viesse, ou a quem pudesse encontrar. Essa casa, para mim, apartou-se da alma e me pus despejado de meu próprio canto. Hoje, o lobo em mim está no frio, e o homem que sou está sem jeito de abrigá-lo ao peito, sendo que, como Harry Haller, eu me digladio com meus próprios eus. Você, caro amigo, será que vê como eu mesmo me vejo? Será que me sente como eu mesmo me sinto? Houvesse vocação para o álcool, um absinto cairia bem. Bem me faz falta, amigo, você neste meu bar.

            Carrego meus versos, bons ou ruins, na mala do espírito, esperto e rápido colibri, que, embora a primavera enterneça os galhos e os ramos hostis, priva-se de flores e se exaure em espinhos. Sobre as pétalas de tanta espera, ainda o espero, meu caro, sob os olhos do relógio, com palavras entreabertas numa boca sem palavras. Lavro minha terra etérea com as cordas gastas de um violão, colocando a voz para letras outras que não as minhas, mas as que julgo belas, ou em vias de o ser. Olho, às vezes, uma foto sua e me pergunto o porquê de nunca termos convivido o quanto eu gostaria. Ria, você ria de algumas tiradas que eu tinha quando estávamos juntos. Não sei, amigo, na mais dura verdade, porque nunca estivemos mesmo juntos. Havia a promissora vontade de estarmos lá e firmarmos, sim, parceria. Um violão ficou de resto do que sequer me restou. Ainda o espero, por certo, e sempre o farei.

            Este texto também vem a ser uma nota de fuga: este ano me pesou nas costas como se eu levasse uma grande trouxa de roupas lindas que já não me servem. O Natal e o Ano Novo estão à porta. Você, caro amigo, sempre me vinha ver a essa época. A época melhor é a que estivemos lá. Por vezes, ainda me vem visitar, mas em sonho, com sua cara alegre e seu sorriso a me fazerem crer que sou mais que um lobo da estepe, mas um amigo, a classe de gente a que me afeiçoei e, desconfio, não pertenço. Este texto é que é seu. Obrigado a você e a quem me lê. Adeus.

Trovas sobre lobo, homem, Natal, Ano Novo e adeus

            Após tanto tempo prometendo e sem jamais cumprir, me despeço agora. Porém, como um sinal de apreço a quem me deu atenção e se importou comigo, escrevo e mando estas trovas, um gênero sobre o qual revivi.

Todo lobo é bom e mau,
porque mal e bem são folhas
com que Deus, original,
veste o homem nas escolhas.

Vários homens que sondei
carregavam esperanças;
nenhum pobre, nenhum rei,
todos eram só crianças.

O Natal, quando é dezembro,
reaviva a minha fé;
de mim mesmo, me relembro,
menininho de Javé.

Numa ‘nova’ sepultura,
Ano Novo se desfaz:
um guerreia na loucura,
outro pede pela paz.

Meu adeus é minha forma
de dizer que te respeito:
todo mundo segue a norma,
mas eu sigo deste jeito.


Fontes:
Olivaldo Junior, o poeta do Adeus
Imagem = http://www.br.bestgraph.com

Fabiane Ribeiro (Jogando Xadrez com os Anjos)

Jogando Xadrez com os Anjos é um livro que ao mesmo tempo em que machuca o leitor faz com que ele se encante com a maneira que a jovem protagonista supera todos os seus obstáculos e cria toda uma atmosfera reflexiva.

Narrado em terceira pessoa, conhecemos Anny, tem apenas 8 anos em 1947. Ela vive na Inglaterra justamente quando o país tenta se reerguer no período pós-guerra. A protagonista passa muito tempo sozinha, com o coração apertado pelas saudades dos pais, os quais recebem uma “proposta de emprego” irrecusável e decidem aceitar, deixando a filha  aos cuidados de um casal totalmente desequilibrado , em uma casa onde há apenas rancor..

Nestes momentos de ausência a garota fica sob os cuidados de uma serviçal. Meiga, ela se esforça para compreender e aceitar a conjuntura em que vive. Por determinação dos pais, ela é obrigada a permanecer o tempo todo em sua casa; por esta razão não pode ir à escola e recebe aulas particulares de Jane, uma mestra que Anny considera desprezível.

A criança mal pode imaginar que sua vida está prestes a passar por uma triste reviravolta. Os pais são obrigados a ficar fora por mais tempo e, assim, só poderão ver a filha uma vez por ano. Eles então recorrem à Jane e seu marido; pagam a ambos para que acolham Anny.

Como já desconfiava, a menina encontra um lar desprovido de amor e atenção. Sua tutora a trata mal, não permite que ela se divirta com seus inúmeros brinquedos e também a impede de assistir televisão. Além disso, a austera professora determina que a menina cumpra tarefas domésticas e só lhe concede duas refeições diárias.

Mas Anny não perde a fé e preserva a inocência em seu coração. Ela se entretém com o cultivo do jardim e suplica a Deus que lhe envie alguém para preencher sua profunda carência afetiva. Tudo que traz do passado é o tabuleiro de xadrez que ganhou do pai e a oportunidade de olhar à distância para sua antiga residência.

É quando a protagonista encontra em sua jornada pela vida anjos que a guiarão neste momento difícil. Entre eles está Pepeu, um estranho rapaz que modificará definitivamente a sua existência. Com ele a menina realiza um aprendizado essencial, sem jamais sair dos limites de seu jardim.

Ao seu lado a garota mergulha no reino encantado presente em seu tabuleiro de Xadrez; aí as possibilidades são infinitas e tudo se torna acessível. As pessoas que surgem em seu caminho contribuirão para seu crescimento espiritual e ela vai receber ensinamentos fundamentais, conquistando valores como o altruísmo, a fé e o amor em sua face mais autêntica.

Estes amigos que Anny faz a defendem e ajudam a menina a ter um pouco de infância, além de alguns fazerem parte do seu Reino Xadrez, que é um lugar para o qual a menina é transportada quando sonha, já que o Reino reflete ao inconsciente da menina e também adiciona um “ambiente” a mais na história.

O livro é carregado por um clima fortemente soturno, as páginas são semelhantes ao barulho de um vento triste e as maldades, saudades e frustrações da personagem principal contribuem para que o enredo se torne ainda mais triste. Mas não se engane, achando que irá chorar o livro todo, pois Anny encontra como saída desse mundo perverso: a fuga da realidade e penetra em um mundo feito de Xadrez, onde faz suas próprias leis, além de ter um dom especial e uma maturidade excepcional.

ALGUNS PERSONAGENS DO LIVRO

PEPEU (Pedro Leopoldo), 21 anos, norte-americano. Artista de rua e membro do grupo artístico itinerante denominado "Anjos da Arte" (e, posteriormente, "Anjos da Guerra"). Um eterno menino sonhador e apaixonado, extremamente sensível, nostálgico, mas também divertido.

Pepeu na história: Em um belo dia, Pepeu surge misteriosamente nos canteiros do jardim cuidado por Anny. Com o passar do tempo, eles tornam-se amigos, cúmplices, companheiros para as partidas de xadrez, danças ao som de gaita e conversas sobre o mundo além daqueles canteiros. O amor que sentem um pelo outro é um amor fraterno; são como irmãos, como uma família. No decorrer da história, Pepeu desabafa com Anny sobre seu passado e as razões para o sofrimento que ele carrega. Porém, ao mesmo tempo em que as respostas são dadas, muitos mistérios continuam a envolvê-lo.

"Lentamente, Pepeu subiu os degraus da igreja, a contemplar os próprios pés e as pedras do chão. Tudo cheirava a mar.

Na escadaria, uma sombra surgiu, e veio de encontro à sua. Seu coração soube antes de seus olhos quem estava ali naquele deserto junto a ele. Era o Infinito ganhando forma novamente.

Ele levantou lentamente a face e viu a moça descendo os degraus da igreja, caminhando ao seu encontro.

Tirou a boina da cabeça, segurou-a junto ao coração, e ficou parado com um pé em cada degrau, a contemplar aqueles cabelos.

As ondas dos fios castanhos se misturavam ao longe com as ondas do oceano e ele pôde sentir a alegria invadir cada célula de seu corpo.

Ela estava parada bem à sua frente. Usava um vestido azul, como o mar e o céu, que eram seus únicos companheiros naquele local esquecido pelo mundo.

Ela falou, e sua voz pareceu uma manhã de primavera:

— Ângela.

— Ângela... – ele repetiu – que nome lindo. Parece nome de anjo".


HERMES, homem inglês de meia-idade. É o responsável pela "adoção" de Anny após a partida misteriosa dos pais, juntamente com sua esposa, Jane. Um homem frio e de olhar triste, cujo coração parece não ter alegria de viver. Será que Anny conseguirá conviver com um homem tão amargurado? Talvez a razão para tamanha amargura esteja nos erros do passado...

Hermes na história: Sempre com a cara fechada e sem expressões, Hermes arrasta a vida sem alegrias e esperanças. Até que Anny, a protagonista de oito anos, surge em sua casa pequena e cinzenta. A princípio a presença da garota, cheia de vida e alegria, é como veneno para sua existência dolorosa. Mas ela não medirá esforços para compreendê-lo e ajudá-lo. Hermes tem um capítulo especial, durante um Natal inesquecível, em que muito de seu passado é revelado. Assim, a tristeza em seu olhar, finalmente, começa a ter uma explicação.

"Hermes era casado com Jane há duas décadas. Eles não conseguiram ter filhos e, com o passar dos anos, se acostumaram tanto com a ideia de que nunca seriam pais que nunca mais tocaram no assunto. Ele era um homem sério, que tinha menos idade do que aparentava. Sua barba era tão malcuidada que chegou a dar nojo em Anny quando ela o olhou de perto. A garota pensou que ele não tinha alegria de viver quando olhou dentro de seus olhos pela primeira vez, deparando-se com uma expressão vazia e cansada, de quem espera pouco e entrega pouco à vida".

"Enquanto falava, Hermes parecia reviver sua própria história, mergulhando cada vez mais profundamente nas lembranças – lembranças de quando ele ainda vivia e não simplesmente existia.

Há tanto tempo ele não se permitia relembrar...

Havia guardado aquelas recordações no fundo de sua alma por tanto tempo, que elas, agora, pareciam empoeiradas. Era difícil revivê-las, pois eram doces, e o coração do homem, com o tempo, havia se tornado amargo.

Anny deixou-se embalar pelas memórias de Hermes e foi acompanhando cada detalhe, também criando as cenas em sua mente"
.

BORBOLETA AZUL aparece tanto na realidade, quanto no Reino Xadrez, onde é o único pontinho colorido em um reino branco e preto. Ela sempre traz esperança e aparece em momentos importantes da vida (e dos sonhos) da pequena Anny, a protagonista da história e rainha do Reino Xadrez! A borboleta azul é uma representação muito especial na trama e trará bons sentimentos e aprendizados à pequena rainha sempre que aparecer.

"A borboleta azul demorou-se muito no jardim, e Anny pensou que ela devia estar reconhecendo seu segredo nas plantas, o amor; assim como Pepeu o reconhecera.

Ela voou por entre as flores que nasciam, e Anny foi andando atrás dela, imitando sua leveza. Então, a menina esticou os dedos e a borboleta azul pousou sobre um deles.

Anny a observou por vários instantes, maravilhada com sua perfeição. Ela era linda de se ver".

"A rainha Anny declarou que aquele era o dia mais feliz de seu reinado, e todos os súditos de cristal dançaram alegremente nos gramados quadriculados. No castelo, que uma vez estivera em ruínas, músicas alegres tocavam – todas elas eram originadas por belos pianos. E, ao redor do palácio, voava uma borboleta azul-celeste. Linda, cheia de vida e cor".


DESIRÉ, 12 anos, Inglesa. Enxerga o mundo através das palmas das mãos.

Desiré na história:

Ela surge, junto de seu irmão George, no muro da casa vizinha à de Anny, trazendo alegria e suavidade a sua história sofrida. Deficiente visual, Desiré conta com a ajuda de sua fiel cachorrinha, Nina, e com o amor imenso pela vida que existe dentro do seu peito. Ela ajuda Anny a também conhecer o mundo com as palmas das mãos – e, assim, senti-lo da forma verdadeira –, é sua confidente e companheira nas tardes em que cuida dos jardins e durante momentos preciosos em que ambas descobrem a arte da dança. Anny e Desiré são um grande exemplo de amizade, pureza e superação e, também junto de Pepeu, vivem momentos encantadores por entre as flores que Anny cultivara nos jardins antes sem vida.

“Outro dia, as meninas estavam conversando distraidamente, quando Desiré parou e disse:

— Quem está aí?

Sem que Anny notasse, elas realmente tinham companhia:

— Pepeu! – gritou Anny, indo abraçar o rapaz – Que bom que está aqui. Eu gostaria que você conhecesse minha nova amiga. É a Desiré. Ela é muito especial. Venha, aproxime-se do muro, para que ela possa conhecê-lo.

O rapaz aproximou-se de Desiré e ela esticou as mãos para tocar-lhe a face. A menina ficou alguns minutos analisando cada traço de Pepeu, então, sorriu:

— Você é lindo!”

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Fabiane Ribeiro já escrevia quando tinha 6 ou 7 anos de idade. Seu entretenimento predileto era criar narrativas. A leitura também era sua maior paixão. Ela lia compulsivamente, sem escolher estilos ou gêneros. Graduada em Veterinária, ama os animais assim como as palavras.

TRECHOS DO LIVRO
"O castelo continuava lindo, enorme e xadrez, exceto por um pontinho azul que o circundava.
Era ela, a borboleta azul...

Então, uma chuva começou no Reino Xadrez. Não era uma forte tempestade. Afinal, não representava fúria ou descontrole. Era uma chuva fina, reconfortante; uma chuva para limpar a alma.

Representava alento, recomeço.

Era como se o céu chorasse junto com Anny, mas de uma forma suave...
Sobre o castelo se abriu uma fresta de luz entre as nuvens. Era o sol, abrindo caminho para seus raios em meio à chuva. Tudo era exatamente como no interior de Anny...”

“De um lado, estava o exército preto, e de outro, os súditos de cristal do exército branco.

As peças marchavam em direção ao enorme tabuleiro central, tudo era gigante aos olhos de Anny. Os passos coordenados das peças ecoavam por todo o reino, anunciando o duelo de xadrez que se formaria em instantes.

Quando tudo estava organizado, Anny perguntou:

— Com quem irei jogar?

E foi nessa hora que se ouviu o galopar de um cavalo ao longe, e ele surgiu entre as colinas quadriculadas: o cavaleiro bondoso que Anny conhecera na primeira vez em que estivera no reino.

À medida que ele se aproximava, seu rosto se tornava mais familiar. Com suas bochechas rosadas e seu lindo sorriso. Anny sabia que era ele: seu fiel cavaleiro, aquele a quem ela tanto amava. Aquele que a salvou da tristeza e da solidão diversas vezes e a ensinou a ouvir o coração.

Ele fez uma demorada reverência à rainha, dizendo:

— A partida pode começar.”


Fontes:
Fabiane Ribeiro. http://www.fabianeribeiro.com.br/
Ana Lucia Santana. http://www.infoescola.com/livros/jogando-xadrez-com-os-anjos/
http://gossinp.blogspot.com.br/2012/09/resenha-jogando-xadrez-com-os-anjos.html
Cris Toledo. http://livronasmaos.blogspot.com.br/2013/02/resenha-jogando-xadrez-com-os-anjos-de.html

Nilto Maciel (O Livro Infinito)

MENSAGEM

            Como costumava fazer durante as manhãs de sábado, Antônio Sollos, em pé, folheava livros desde cedo, numa livraria. Nada de praias, bares, visitas a parentes. Buscava novidades e antiguidades. O novo contista, o romancista esquecido, o escritor de sua predileção. Agarrou com unhas e dentes um volume de contos de Kafka. Queria conhecer “Durante a Construção da Grande Muralha da China”. Cheirou o livro, como se fosse um charuto, admirou a capa e se pôs a ler um trecho: “O imperador – assim consta – enviou-te, a ti, a ti que estás só, tu, o súdito lastimável, a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial, exatamente a ti o imperador enviou do leito de morte uma mensagem.” Desde a chegada, não via freguês. Apenas vendedores. Alguma novidade? Muitas, muitas, Seu Sollos. Ouviu vozes de quem entrava na loja. Voltou ao livro: “Aqui ninguém penetra; muito menos com a mensagem de um morto”. As vozes e o arrastar de pés calçados o fizeram levantar a vista. Não conseguiu distinguir de quem eram. Vozes de mulher e homem. Um casal, certamente. Gostou da voz dela. Até lhe lembrava uma voz doce de uns tempos passados. O som dos passos se aproximaram dele. Sondou os arredores. O casal só podia estar do outro lado da estante. Ergueu-se nas pontas dos pés. Viu uma testa robusta, corada, de homem, e uns fios de cabelos quase louros, lindos. Abaixou-se e, pela brecha da prateleira, viu uns lábios rubros que parecia sorrirem para ele. Descontrolado, largou o livro e se pôs a caminhar lentamente pelo estreito corredor. Ao fim dele, virou para a esquerda e parou. A dois ou três metros, avistou o homem de lado, mãos erguidas na direção da prateleira. Só podia ser o marido de Ana. A mulher ao lado dele seria, então, Ana. Não queria revê-la. E se voltou, para atravessar a sala pelo corredor perpendicular àquele em que o casal se achava. Saiu apressado, disposto a fugir. No entanto, antes de alcançar a porta, se viu frente a frente com Ana. Quis sorrir, olhou para os lados, cumprimentou-a com duas palavras, contemplou os olhos dela e saiu da loja.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
Imagem : Londres/1940 = http://menosumnaestante.com

Folclore da Guatemala (A Lenda de Vanushka, a cigana de Xela)

Se você não foi capaz de dizer, eu realmente gosto de andar em cemitérios de todo o mundo . Eu acho que eles dão-lhe um "in" à cultura que é muito frequentemente negligenciado.

El Calvario Cemitério em Xela, na Guatemala é definitivamente um passeio, se você tiver o tempo. A coisa toda é incrivelmente exuberante e verde com coloridos empilhados, túmulos espalhados pela encosta. Isso tudo é esquecido pelo grande vulcão de Santa Maria e nuvens preguiçosas que pairam em torno dos lados. Um pouco surreal, mas se eu já estivesse colocado no chão, este seria o lugar para estar.

Num sinuoso caminho se depara em uma enseada escondida com um túmulo muito bizarro, velho com centenas de flores espalhadas e mensagens de todos os tipos rabiscadas no concreto. Ou era um novo tipo de vandalismo ou estávamos perdendo algo muito importante aqui. Andando em torno dos lados da tumba esculpida só para encontrar muito pouco. Nenhuma data. Nenhum sobrenome. Não havia nada além de mensagens pedindo amantes devastados e um nome muito diferente: Vanushka.

Na década de 1920 uma família cigana do Leste Europeu imigrou para a Guatemala e percorreu o campo no circo da família. Uma verdadeira moda de Romeu e Julieta, Vanushka ficou encantada com um senhor na platéia durante uma de suas performances. O jovem cavalheiro, Javier, era de uma família proeminente na área e seguiram com Vanushka e sua bela atuação.

Após o show Javier se encontrou com Vanushka e passaram a noite conversando e andando em volta do terreno do circo. Isto continuou durante o resto da semana e no final, eles confessaram seu amor eterno um ao outro. Não era nenhum segredo em volta do circo que isto estava acontecendo.A família de Javier rapidamente percebeu o que estava acontecendo. Javier recusou-se a sair do lado do Vanushka. Eles estavam apaixonados e ele estava determinado. Num acesso de raiva, seu pai o enviou para a Espanha para terminar de 4 anos de universidade. Com pouca autoridade, Javier teve que sair.

Quando Vanushka na manhã de sua partida se despediu, ela teve de ser arrancada dos braços dele pois seu chaparone se recusou a deixá-lo ficar mais tempo. Ele olhou pela janela e pensou como os próximos 4 anos de sua vida iam ser mais difíceis. Ele não podia esperar para voltar para os braços de Vanushka.

Ao longo das próximas semanas Vanushka definhou. Ela se recusou a dormir ou comer. Uma noite, com uma última lágrima, ela silenciosamente faleceu de um coração despedaçado.

Sua família a enterrou no Cemitério El Calvario, onde seu túmulo pode ser encontrado até hoje.

Diz a lenda que muitos anos depois, uma mulher em uma situação semelhante veio à tumba Vanushka para chorar e desabafar sua tristeza. Pouco depois de sua "conversa" com Vanushka ela estava unida com seu verdadeiro amor. Diz-se que se você deixar flores e uma mensagem de sua tristeza para Vanushka que ela vai reconciliar você com o amor de sua vida.

Há centenas de mensagens escritas em todo o seu túmulo (em vários idiomas) e em cada um você pode sentir uma pontaa de tristeza.

A história de Vanushka tornou-se entrelaçada com a cultura local.

Se você quiser ver o túmulo é um pouquinho escondido. Ao entrar no cemitério, se deve ser a sua primeira à esquerda para um pequeno beco. É um pouco difícil de encontrar, mas eu tenho certeza que se você perguntar a alguém que será capaz de apontar na direção certa.

Fontes:
http://overyonderlust.com/the-legend-of-vanushka/
http://www.caravanacigana.com/2013/03/a-lenda-de-vanushka-cigana-de-xela-na.html

Braga Montenegro (Suspeita)

vedi, caro, che si guadagna a chieder certi prechè? Ti bagni i piedi.
Pirandello (Mattia Pascal)

                 O olhar da doente percorreu em volta o quarto e fixou-se, por fim, cansado e cheio de angústia, sobre um rosto amarrotado de vigílias e de cuidados, que ao lado do leito velava infatigavelmente.

                – Estou suando... Que horas são?

                – É tarde. Madrugada... bem três horas. Acalme-se.

                – Preciso mudar de roupa. Estou suada, com frio... (Não seria o delírio?!)

                João Vieira palpou o braço que a mulher lhe estendia. A pele mirrada por tantos dias de doença estava umedecida de suor. Depois lhe passou a mão pela fronte, levantando o cabelo aparado sob o capacete de borracha. Há dezoito dias consecutivos que a febre queimava aquele corpo dolorido, a despeito dos sacos de gelo, das injeções e dos médicos. Os médicos! Cada um que chegava receitava novos remédios: “Vamos ver.” Ao cabo de alguns dias, a uma sua interrogação mais aflita, respondiam com evasivas: “Pode ser... o caso é grave...” E maior lhe ficava no peito o desespero, a sensação tremenda do irremediável.

                – É. Está molhada de suor. Quer trocar a camisa?... Vou chamar alguém. – Marchou para a porta e logo voltou-se, mudando de resolução. Abriu o camiseiro e tirou, dentre o desalinho de uma gaveta atulhada, algumas peças de roupa.

                Suspendeu com cuidado o corpo desfalecido, amparou a cabeça e as costas doentes com o braço esquerdo e foi de leve despindo-a. “Coitadinha; pele e ossos!” Sentiu lágrimas nos olhos. “Coitadinha!” Mudou todos os panos da cama, devagarinho, com muito jeito para não magoá-la, entre os gemidos dela e as suas lágrimas de piedade. “Coitadinha... os médicos já não têm mais esperança!...”

                – Está melhor? – Não esperou resposta. – Vamos tomar a temperatura... – Houve um silêncio repleto de ansiedade. – Que?! 36 graus e dois décimos! A febre cedera; ficaria boa... Retirou o gelo. Ah! Se não fosse mais preciso! Inquietava-o, todavia, aquela prostração, aquele acabamento. Estava muito fraca. Até que ficasse restabelecida demandava tempo... Felizmente a febre passara. Chegou-se muito a ela e falou carinhosamente, os lábios bem próximos às suas faces muito brancas e enceradas – a caveira desenhando-se-lhe sob a pele encolhida:

                – Meu bem, agora você vai ficar boa... Como você se sente? Está melhorzinha? Procure dormir; a febre já passou.

                Ela nada respondeu, de pálpebras cerradas, como numa vertigem. O suor escorria-lhe nas frontes, no pescoço, no corpo todo, molhando mais roupas que ele não se cansava de mudar. De repente, ela estremeceu como num arrepio de frio, abriu muito os olhos e, brando, tocou com os dedos vacilantes no rosto dele, que se lhe inclinava por cima do busto.

                – Querido... eu vou morrer. Estou gelada... os pés... É melhor, João. Tanto tempo... e depois!... Mas eu te amo, querido... Muito! Perdoa a tua mulherzinha, meu bem. (Estaria delirando?!) – Chegou mais o ouvido à boca que pronunciava aquelas palavras confusas e dolorosas. – Eu te enganei, João. Adoeci, vou morrer... É para nosso bem. De que servia eu viver dessa maneira?... Perdoa... Amo-te muito! Muito!

                Num gesto rápido, deixou as mãos se abaterem sobre os lençóis, repuxando-os com os dedos crispados. Abriu a boca duas vezes, e na sua fisionomia passou como que um retalho levíssimo de gaze...

                – Fale, fale... Diga mais alguma cousa!... Ande, diga mais alguma cousa!... Diga que está mentindo, meu bem!...

                A manhã se insinuava, fria e triste, através das vidraças e por entre as frestas dos postigos, enchendo o quarto, vinha do jardim o cheiro ativo dos bogaris e resedás.
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                 Do enterro se encarregara um cunhado de João Vieira. – Cousa que não ficasse muito cara, que não podia; segunda ou mesmo terceira classe.

                Logo às primeiras horas da tarde, a casa começou a se encher de gente; vizinhos, parentes da morta, amigos, curiosos. Vagava por todos os aposentos um cheiro horroroso de flores, de mistura com desinfetantes e fumaça de velas. João observava todo aquele movimento, aquela verdadeira balbúrdia, com ar distante. Cousa esquisita: a presença da esposa, ali, emudecida para sempre, pouca sensação de desgosto lhe trazia. Estava atordoado, quase insensível. As palavras dela pouco antes de morrer (seria o delírio?!) e a morte afinal, que nos primeiros momentos tanta amargura e tantas lágrimas lhe custaram, eram para ele, agora, como um entorpecimento: uma sensação muito desagradável porém não dolorosa. E o seu espírito divagava, fixava-se em cousas indistintas, abstraindo-se, quase completamente, da tragédia que o vitimava.

                A imaginação o levava ao sertão distante onde nascera, à fazenda dos pais já velhos e cada vez mais apegados à terra onde sempre viveram. Lembrava-se dos irmãos, homens broncos e generosos como crianças, que por lá se casaram e se encheram de filhos. Ele, nem filhos tivera! Sentia-se como uma ovelha desgarrada. Logo em pequeno, botaram-no num colégio de religiosos de sua cidade sertaneja; depois viera para a capital estudar e arranjar emprego... Por que não ficara com os seus, a viver suavemente como eles, sem grandes alegrias nem grandes tristezas? Mas era assim... diferente, como se nunca tivesse família.

                Um automóvel, parando à porta, tirou-o de seus devaneios. Logo mais chegaram outros carros e deles saltaram indivíduos circunspectos metidos em roupas escuras; gente, talvez, da amizade do sogro, gente que ele nem conhecia. Via sujeitos de caras compungidas – caras de profissionais de solenidades – chegarem-se a ele, tocarem-lhe o ombro e murmurarem palavras titubeantes de sentimento e tristeza. Via-os, depois, formarem grupos pelos cantos e na calçada, em conversações amistosas, alegres...

                Afinal, o enterro saiu. Em breve a casa estava vazia.

                Quando ficou só, tomou-o uma piedade imensa por si mesmo e chorou perdidamente.
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                 Ao voltar para o trabalho já se havia celebrado a missa de sétimo dia. Tinha ido à igreja; não porque fosse religioso... Fora. O que diria a família da finada se ele não comparecesse àquele “ato de caridade cristã”, como diziam os avisos fúnebres dos jornais? Seria uma indelicadeza... Embora tivesse de suportar as mesmas caras compungidas e falsas do dia do enterro. Era preferível à censura (“eu não esperava isto de sua parte!”) dos parentes afins, às perguntas capciosas dos colegas: – “Vieira, você nem foi à missa... Estava doente? Eu estive lá. Por que você não foi?...” Sabiam que ele não frequentava a igreja, que não estivera doente, mas gozavam a sádica maldadezinha dissimulada nas dobras de falso interesse.

                Fora. Isto o fizera sofrer. Desejara cuspir na face de toda aquela gente ridícula que pretendia fazer dele um instrumento para a sua piedade de circunstância e de mentira. Estúpidos que não percebiam sequer a dor que o magoava!...

                Entrou no escritório mais cedo do que a hora regulamentar. Lá estavam apenas o Gerente, os contínuos e um ou outro funcionário mais zeloso. Sentia-se verdadeiramente desambientado. Tinha de esperar o colega que o substituíra na ausência. Aquilo não devia estar muito em ordem. Derreou o paletó pelos ombros fatigados e pendurou-o no cabide ao lado da carteira. Pensou na maçada que iria sofrer do Subgerente quando tivesse de acertar com ele as suas faltas: parte deveria ser convertida em férias e do restante que iriam fazer? Ele bem precisava que elas fossem abonadas. Seria um ótimo auxílio. Qual! Não pensasse ele nisso. Bando de somíticos!... – “Não podemos, seu Vieira; os lucros têm sido poucos; o senhor é um bom auxiliar; creia que temos boa vontade...” Ele que se lixasse! Que iria fazer sem dinheiro para tanta despesa? As contas das farmácias e dos médicos eram grandes, sem dúvida. Não cogitara ainda de nada. Sabia que não tomaria pé. Era um desgosto ver as dívidas enormes e ele sem ter donde tirar. – Doutor, faça um abatimento. E o médico, afetando generosidade: – “Está bem, vinte pro cento, é preço que não faço para ninguém. Sai a visita a menos de quinze mil réis. Acho que não é muito sacrifício; o senhor é bem colocado...”

                Bem colocado! Um conto de réis mensal de nada vale. As contas eram grandes... Possuía os móveis, mas desses pouco conseguiria apurar porque ainda não fizera um ano de comprados e havia a liquidar algumas prestações. Sobrariam, talvez, uns dois contos. Isto num cálculo otimista. Que valia em comparação ao que tinha de pagar? O aluguel da casa estava atrasado de dois meses. Só aí quinhentos mil réis! E a mercearia? E a luz? Até à lavadeira devia. Estava inteiramente descontrolado.

                Soaram oito horas no velho relógio que se prendia à parede, lisa e manchada de bolor, entre dois retratos de sujeitos graves abotoados até o queixo. Já por todo o escritório se fazia ouvir o matraquear enervante das máquinas de escrever, e o Subgerente, passeando de um lado para o outro, exercia rigorosa fiscalização pelas carteiras e sobre os empregados. Recebia o serviço que o colega lhe passava com muitas explicações e algumas desculpas. Em breve, a atenção presa à tarefa, esquecia as suas infelicidades.
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                À noite, só no quarto (alugara um quarto num sexto andar, onde morava desde que enviuvara), assaltavam-no pensamentos cruéis, dúvidas terríveis. Voltavam-lhe à ideia as palavras da morta. Há quantos dias aquilo o atormentava! Por que não deixar ficar no rol das cousas extintas, desaparecidas para sempre, já que o motivo de tudo cessara? Embalde procurava dar freio à imaginação exacerbada. A quem ela teria se referido? Desesperava ao imaginar-se ridículo, alguém a considerá-lo um pobre diabo enganado. Evitava os amigos; todo homem que pudesse ter tido qualquer conhecimento com ela... Pensou no Gerente. Abalaram-se-lhe os nervos numa comoção mais forte. Lembrava-se de um dia em que a mulher o fora procurar no trabalho, e o Gerente, muito risonho, pondo à mostra a dentadura magnífica, a atendera solícito, recostando-se ao balcão e palestrando enquanto o contínuo ia chamar o “seu Vieira”. De logo, achava absurdo o que imaginara: não, não podia ser... Um rapaz distinto, muito delicado com os auxiliares, de hábitos morigerados... O Subgerente, sim, era um peste; mesquinho até com o que não lhe pertencia. Mas não se tratava deste, certamente, que já era velhusco e de aspecto bastante ridículo e singular, sempre metido numa vestimenta de pano e feitio de segunda ordem. Não se trataria certamente de nenhum dos seus colegas... De quem?

                Esforçava-se para afastar de si essa obsessão que lhe ia consumindo aos poucos as energias, envolvendo-o irremissivelmente. “Talvez não tenha havido cousa alguma, racionava, tenha sido apenas uma tentação, um desejo como tantos que se nos apresentam na vida mas que repelimos imediatamente. É assim... A consciência reprova a intenção desonesta, sobrevindo o remorso de uma falta que não cometemos, pelo simples fato de nos julgarmos capazes de cometê-la. Subconscientemente, o delírio traiu-a. foi, foi só isto mesmo... muito complicado, mas assim...”

                Estes solilóquios tomavam-lhe horas inteiras. Pesava os prós e os contras, procurava reconstituir fatos, circunstâncias, contradições. O passado lhe aparecia como numa névoa, através da exaltação que o possuía. Só lhe vinham à memória os momentos felizes de enleio amoroso. Encontrara na companheira o amigo único que constantemente desejara. Era um tímido e um orgulhoso, por isso nunca fizera, jamais faria amigos. Criara em torno de sua pessoa um círculo refratário onde se apagavam todas as expansões, todas as simpatias. A mulher compreendera isto muito bem. Suprira toda a sua necessidade de afeto. Como poderia supor-se enganado por ela?... Amara-a com uma paixão tão sadia que se, como acontecera algumas vezes, a procurava à noite, sob a excitação de um sonho erótico, sofria depois remorsos como se tivesse cometido uma prevaricação.

                A essa evocação sensual e íntima, sofria até ao desespero. Doía-lhe pensar que alguém, quando ele se ausentava para o trabalho, entrasse ocultamente em sua casa ou que a mulher frequentasse lugares suspeitos, para consentir a outrem a posse, mesmo que fosse o espetáculo, do seu corpo branco e perfeito. Rememorava com tal veemência os encantos da companheira, que era como se a tivesse ali, bem junto, numa presença querida e desejada. “Via”-lhe os seios redondos e acentuadamente convexos, a pele morna e perfumada, o rosto bonito onde os olhos se enlanguesciam grandes e negros; “ouvia” a sua fala, o rumor dos seus beijos; “sentia” a carícia violenta dos seus abraços... e chorava de despeito, infeliz como uma criança batida.

                João Vieira atravessou a rua e, ao subir o passeio, de distraído que ia, abalroou com um sujeito de óculos que, à beira da calçada, lia um jornal. O choque, nas circunstâncias por que se deu, foi mais desastroso que violento. Os óculos do homenzinho se lhe despregaram do rosto e, antes que os tivesse salvos entre os dedos, houve uma série de gestos rápidos e atabalhoados, de que lhe resultou a queda do chapéu, do jornal e de alguns níqueis que se espalharam pelo calçamento.

                – O senhor vem cego?... – berrou furioso.

                – Desculpe, cavalheiro – fez João Vieira, um tanto vexado ao perceber a irritação, os cabelos revoltos, a gravata amarrotada de seu interlocutor.

                – Desculpe, cousa nenhuma... seu estúpido!

                – Já lhe pedi desculpas, meu amigo e já lhe disse que não foi por gosto... Então, entenda como quiser!... – respondeu energicamente.

                – Parece que vem doido! – ainda disse o outro, batendo na palma da mão o feltro empoeirado do chapéu.

                João Vieira, percebendo que o incidente degenerava numa discussão inútil e ridícula, afastou-se com o coração batendo de excitação. “Só a mim isto acontece; que cousa irritante!...” disse consigo.

                Procurou um banco no jardim para descansar e ler um pouco. Mas não pôde fixar a atenção na leitura. Contemplou, através da reduzida iluminação, o céu enluarado e macio. Lá estavam as constelações de que ele nada sabia quando era pequeno e dava-lhes nomes poéticos: Sete-estrelo, as Três-Marias, os Três-Reis, o Cruzeiro, o Rosário, como toda a gente da sua terra sertaneja. Assim ficou muito tempo, gozando a frescura do vento noturno que lhe afagava as faces e apaziguava o espírito. Uma doçura imensa lhe penetrou os nervos, encheu-lhe a alma.

                No relógio da praça bateram nove badaladas. Tinha de ir ao quarto. Decidira fazer uma arrumação em regra nas suas cousas, que ainda não haviam tomado lugares definitivos. Levantou-se e saiu assobiando, baixinho, uma melodia predileta.

                Entre os móveis que trouxera de casa para o quarto havia uma pequena escrivaninha encimada de uma estante, e que era de uso da esposa. Esse móvel tinha duas gavetas e uma delas estava trancada, cousa que somente agora notava. Procurou nos escaninhos, dentro da outra gaveta, por toda a parte, nas outras peças, a chave que desse ali.

                Nada.

                Ocorreu-lhe, então, uma suspeita cruel: quem diria se aí não estava a prova de tudo? Febrilmente, com o auxílio de uma espátula de metal, machucando os dedos, forçou a tábua. Abriu. Percebeu, de logo, um maço de cartas amarrado com um torçal de seda. Rompeu o amarrilho e uma onda de perfume o envolveu. Quanta recordação! O perfume que sempre usara quando noivo e de que as suas cartas estavam impregnadas. Curioso até à agonia e um tanto ressabiado de nada ter encontrado que lhe confirmasse as suspeitas, prosseguiu na busca, mais nervoso, com o coração a esmurrar-lhe o peito, dolorosamente. Procurava uma prova, queria a certeza, mas quanto horror sentia de encontrar essa prova, de ter essa certeza! Tinha, agora, um livro entre as mãos. Lia-se-lhe na capa, em letras douradas: “Diário de A...”

                Folheou algumas páginas escritas com letra miúda e vulgar, numa linguagem ingênua, às vezes preciosa. “O bom gosto não era o seu forte...” – pensou. Premiu o livro entre o polegar e o índex e as folhas escorregaram céleres, até que viu o seu nome e parou recomeçando a leitura:

                “3 de março – Papai nem mamãe querem que eu me case com João, mas que hei de fazer, se o amo?” A nota era longa. Enterneceu-se. Umedeceram-se-lhe os olhos e reprimiu um soluço que se lhe quebrou na garganta. Passou adiante:

                “24 de dezembro – Afinal, casei-me. Hoje, véspera de Natal – parece um sonho! – estou a sós com o homem que amo...” Este registro seguia; sóbrio às vezes, piegas quase sempre, todavia de uma grande sinceridade e pleno de recordações agradáveis.

                Leu outras páginas. Todas revelavam a história de sua ternura, de seu pobre amor interrompido... continuou lendo:

                “6 de julho – ... quem me dera um filho!”

                “12 de julho – O dia está muito quente. Sinto-me fatigada e só. Aborreço-me. A leitura me enfada e o tédio me possui... Não tenho um filho. Por que João não está a meu lado? O movimento da rua me enerva, provoca-me gritos que reprimo com receio de enlouquecer. Para qualquer lado que me volte encontro o vazio. Vou chorar. Estou me tornando tola...”

                “25 de julho – ... e ele me persegue por toda a parte onde vou... Sinto os seus olhares lúbricos sobre mim, às vezes com tal persistência que me imagino nua. Já não sei com que força estou resistindo. Que será de mim?!”

                “26 de julho – Só a meu marido amo. Disto estou certa... Contudo sei que não posso fugir à opressiva sensualidade que dele me vem... Tenho medo, mas me aproximo desejosa... As minhas resistências diminuem... diminuem...”

                “30 de julho – Estou como se fora a mariposa em torno da luz. Por que João não me salva?... Mas como poderia ele fazer alguma cousa em meu benefício, se não percebe a miséria em que estou envolvida, se eu sou pusilânime e nada lhe confesso para que ele me salve, para que ele me guarde?”
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                “29 de agosto – Estou doente; tenho febre. Ah! Se eu morresse!”

                Rasgou, uma por uma, as folhas do Diário e, riscando um fósforo, queimou-as todas. Tirou o paletó do cabide, vestiu-o, aprumou o chapéu na cabeça. Ao sair, encontrou o zelador do prédio, metido numa camisa de listras horizontais, a se balançar no seu andar compassado de símio.

                – Boa noite, meu patrão; para onde ainda vai assim a estas horas? – fez o moleque piscando um olho, malicioso.

 (Braga Montenegro, Uma Chama ao Vento, 2ª ed. Fortaleza, Edições UFC, 1980)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.