quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Ialmar Pio Schneider (1942)

Entrevista realizada virtualmente por José Feldman (PR) com o poeta e trovador Ialmar Pio Schneider (RS), para o blog Pavilhão Literário Singrando Horizontes.
JF: Conte um pouco de sua trajetória de vida, onde nasceu, onde cresceu, o que estudou, sua trajetória literária.

Nasci no município de Sertão/RS em 26-08-1942. Filho de Henrique Schneider Filho e dona Amábile Tressino  Schneider, ambos falecidos.

Cursei o primário em minha terra natal na Escola Pio XII das Irmãs Franciscanas onde diplomei-me inclusive em datilografia com 13 anos de idade. Ingressei no Ginásio Cristo Rei dos Irmãos Maristas em Getúlio Vargas/RS que conclui após 4 anos, em 1959, período em que iniciei a compor poesias. Daí transferi-me para Passo Fundo/RS onde ingressei no Colégio N. Sra. da Conceição dos Irmãos Maristas cursando então simultaneamente o Curso Científico e a Escola Técnica de Contabilidade por um ano e meio, continuando a escrever poesias inclusive gauchescas, algumas das quais foram publicadas no Jornal do Dia, de Porto Alegre, até que um concurso público para o Banco do Brasil S.A. me levou a Cruz Alta/RS, onde assumi em 1961, poucos dias antes de completar 19 anos de idade.

Posteriormente integrei o corpo de funcionários da agência de Soledade/RS, que estava em Instalação, o que ocorreu em 1962. Completei o curso em Técnico de Contabilidade em 1962, permanecendo por 5 anos na cidade, onde exerci o cargo de Fiscal da Carteira Agrícola do Banco até ser transferido para a Metr. Tiradentes do Rio onde não cheguei a tomar posse, tendo feito uma permuta tríplice com outros dois colegas, vindo a assumir em Canoas/RS, em 1967, para logo após um ano se transferir para São Leopoldo/RS em nova permuta com outro colega, onde tencionava tirar o Curso de Direito da Unissinos, o que não se concretizou.

Casei-me em 1968 com Helena Dias Hilário, de Soledade/RS e transferi-me para a Agência Centro do Banco do Brasil S.A de Porto Alegre, em 1969. Residindo em Canoas, nasceu minha filha Ana Cristina Hilário Schneider. Permaneceu por 3 ou 4 anos compondo poesias diversas inclusive a maior parte de seus poemas gauchescos ainda inéditos bem como muitos sonetos então com 30 anos de idade. Resolvi novamente transferir-me de cidade a fim de ficar mais próximo dos meus parentes e os de minha esposa e pleiteei uma permuta, que consegui para a cidade de Passo Fundo, tendo lá permanecido por cerca de 3 anos, ocasião na qual requeri e fui transferido para a agência do Banco em Palmas/ PR, onde residiam minha mãe e irmãos, de cuja remoção desisti pelo motivo de minha esposa ser professora estadual e não ter conseguido aproveitamento naquela cidade. Com dificuldade em adquirir casa de moradia retornei a Canoas voltando a residir e a trabalhar no Banco até que em uma concorrência nacional para fiscal da Carteira Agrícola do Banco fui nomeado para a cidade de Antônio Prado/RS, onde permaneci por 2 anos e meio aproximadamente.

Em 1980, regressei a Canoas onde adquiri um apartamento em que resido até hoje, na rua que leva o nome do grande pintor Pedro Weingartner tendo feito vestibular para a Faculdade de Direito do Instituto Ritter dos Reis, classificado em segundo lugar de que também participou o ilustre jogador de futebol do Internacional Paulo Roberto Falcão, que logo depois transferiu-se para a Itália.

Trabalhando no Banco do Brasil- agência de Canoas e estudando, só consegui formar-me em Direito nas Faculdades Integradas do Instituto Ritter dos Reis em 1990, após 10 anos de curso superior. Enfim, antes tarde do que nunca.

Transferi-me para o CESEC do Banco do Brasil Sete de Setembro em Porto Alegre, onde trabalhei até 1991, tendo completado 30 anos e alguns dias de serviço no Banco quando me aposentei por tempo de serviço.

Por enquanto, resido na cidade de Porto Alegre/RS, no Bairro Tristeza, com uma vista maravilhosa para o Rio Guaíba, em uma janela do qual até um joão-de-barro já fez um ninho há uns dois anos. Como diz o inigualável poeta gauchesco saudoso Jayme Caetano Braun: “Eu até fiquei contente/ Dizem que dás muita sorte !”em seu poema “João Barreiro”.

Atualmente minha filha é casada, ambos advogados, com escritório.

Durante os meses de verão, dezembro até fevereiro, permaneço em Capão da Canoa/ RS, cidade praiana, onde produzo diversas poesias: poemas, sonetos e trovas. Nos últimos dois anos desloquei-me com a família por uns dez dias em final de temporada para a praia de Canavieiras, precisamente Cachoeira do Bom Jesus, em Florianópolis/SC.

Eis em rápidas pinceladas a sucinta biografia rotineira de um poeta menor.

JF: Ialmar, se é poeta menor, então eu nem existo, precisaria um ultra microscópio para me encontrar (risos). Recebeu estímulo na casa da sua infância?

Total estímulo e incentivo inclusive éramos 6 filhos, 4 irmãos e 2 irmãs e nossos pais só tinham como meta o nosso estudo.

JF: Quais livros foram marcantes antes de começar a escrever.

Muitos livros de poesias: Fagundes Varela, Casemiro de Abreu, romances de Paulo Setúbal, os grandes romances do Cristianismo, trovas de Adelmar Tavares e diversos outros. Mas o romancista que mais me agradou foi Lima Barreto, antes Dostoiewsky, Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, Cronin, uma infinidade de autores, enfim. Desculpe se não cito todos, nem um por cento talvez.

JF: Teve a influência de alguém para começar a escrever?

Foi naturalmente através das leituras escolares.

JF: Tem Home Page própria (não são consideradas outras que simplesmente tenham trabalhos seus)?

Tenho diversos blogs que podem ser encontrados procurando por IALMAR PIO SCHNEIDER no Google, como http://ialmar.pio.schneider.zip.net/; http://ialmarpioschneider.blogspot.com http://ial123.blog.terra.com.br

JF: Você encontra muitas dificuldades em viver de literatura em um país que está bem longe de ser um apreciador de livros?

Nunca pensei nisto. No Brasil acho que só meia dúzia o consegue.

JF: Como começou a tomar gosto pela escrita?

Para conhecer e aprender, pois acho que todo o livro é de auto-ajuda.

JF: Você possui livros?

Fiz a estréia editorial na obra TROVADORES DO RIO GRANDE DO SUL, org. por Nelson Fachinelli, em 1982. Publiquei a obra poética SONETOS E CÂNTICOS DISPERSOS, em 1987. Figuro em outras coletâneas. A última obra, POESIAS ESPARSAS DIVERSAS, de 2000.

JF: Como definiria seu estilo literário?

Eclético para poesia e crônicas também.

JF: Que acha de seus textos: O que representam para si? E para os leitores?

Acho que são a expressão do meu pensamento. A maioria dos leitores dizem gostar.

JF: Qual a sua opinião a respeito da Internet? Tem contribuído para a difusão do seu trabalho?

Tem contribuído muito e eu considero o mais valioso meio de publicação atual, ainda mais para quem não tem a grande mídia ao seu dispor.

JF: Tem prêmios literários?
Alguns.

JF: Participa de Concursos Literários? Qual sua visão sobre eles? Acha que eles tem “marmelada”?
Participo às vezes. Tenho visto trovas sem nenhum fundamento serem premiadas.

JF: Você precisa ter uma situação psicologicamente muito definida ou já chegou num ponto em que é só fazer um “clic” e a musa pinta de lá de dentro? Para se inspirar literariamente precisa de algum ambiente especial ?
Surge de repente, não sei de onde nem quando.

JF: Você acredita que para ser poeta ou trovador basta somente exercitar a escrita ou vocação é essencial?

Tudo é essencial, principalmente muita leitura.

JF: No processo de formação do escritor é preciso que ele leia livros de baixa qualidade?

É preciso distinguir.

JF: Mas existe uma constelação de escritores que nos é desconhecida. Para nós chega apenas o que a mídia divulga. Na sua opinião que livro ou livros da literatura da língua portuguesa deveriam ser leitura obrigatória?

Os clássicos: Machado de Assis, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Rui Barbosa. Paulo Setúbal, Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, Lya Luft e outros. Os bons escritores. A lista é infindável. Poesias de Vinicius de Moraes, Guilherme de Almeida e os clássicos também Castro Alves, Fagundes Varela, Alvares de Azevedo, Olavo Bilac, tantos e tantos.

JF: Qual o papel do escritor na sociedade?

Ensinar e divertir também.

JF: Há lugar para a poesia em nossos tempos?

Há sim. Aqui no sul principalmente a poesia gauchesca, os sonetos românticos. Basta declamar uma poesia atraente todos gostam.

JF: A pessoa por trás do escritor

Um bancário aposentado, um advogado não militante e um diletante em literatura.

JF: O que o choca hoje em dia?

A violência e a falta de saúde pública.

JF: O que lê hoje?

Romances e poesias. Estou curtindo um ócio criativo. Nada de muito profundo.

JF: Você possui algum projeto que pretende ainda desenvolver?

Continuar escrevendo nos blogs e talvez preparar um livro de poemas e poesias gauchescas.

JF: De que forma você vê a cultura popular nos tempos atuais de globalização?

Vai andando aos trancos e barrancos, mas com o andar da carroça as abóboras se ajeitam na caixa.

JF: Que conselho daria a uma pessoa que começasse agora a escrever ?

Ler bastante e escrever mesmo errando.

JF: O que é preciso para ser um bom poeta ou/e trovador?

Muita leitura e perspicácia.

JF: Trovas de sua autoria.

Cada paixão que me invade
surge do amor que não tive;
e representa a saudade
de quem neste mundo vive.

Eu não sou navegador,
mas enfrento o mar da vida,
por causa do nosso amor
que não teve despedida.

Foste a morena brejeira
que surgiu em meu amor
como o botão da roseira
que agora não dá mais flor.

Não foram horas perdidas
as que passei junto a ti;
são lembranças bem vividas
que nunca mais esqueci...

Perambulando sozinho
pelas ruas da cidade,
procuro achar o caminho
que leva à felicidade.

JF: Finalmente, se Deus parasse na tua frente e lhe concedesse três desejos quais seriam?

Boa saúde, meios para continuar vivendo e a felicidade da Humanidade inteira.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 4)

Xô inverno... vá-se o frio...
      volte depressa o calor...
que as rosas já estão no cio,
à espera do beija-flor!
A. A. DE ASSIS – Maringá/PR
-
Repare que nossa alma
rende-se sempre bem mais
por um olhar que se espalma
que por ouvir tristes ais.
AMILTON MONTEIRO – São José dos Campos/SP
-
Quero de novo aprender
para depois ensinar
como se deve viver
conjugando o verbo amar.
ANTÔNIO MANOEL ABREU SARDENBERG – São Fidélis/RJ
-
Nem futuro nem presente,
só mesmo o passado impera,
pois não mais que de repente
o que seria já era.
ANTÔNIO ROBERTO – Campos/RJ
-
A minha roça eu troquei
pelas luzes da cidade.
Nesse dia eu comecei
meu plantio de saudade!
ARLINDO TADEU HAGEN – Juiz de Fora/MG
-
O amor ficou no passado...
– Hoje eu sei por que ficou:
o nosso encontro marcado,
o destino desmarcou!
CLENIR NEVES RIBEIRO – Nova Friburgo/RJ
-
Desprezei tua amizade,
queria mais, muito mais!...
Hoje sou nau da saudade,
apodrecendo no cais.
CONCEIÇÃO DE ASSIS – Pouso Alegre/MG
-
Olhei a foto atrevida
de uma cena de nós dois:
Era o retrato da vida,
tão diferente depois!
DELCY CANALLES – Porto Alegre/RS
-
Se “Mãe” não tem com que rime,
não desistas, trovador...
Troca a palavra sublime
pelo sinônimo “Amor”!
DOROTHY JANSSON MORETTI – Sorocaba/SP
-
Amanhece... e eu me agasalho
na mais fria solidão,
porque o sol enxuga o orvalho,
mas minhas lágrimas... não!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA – Rio de Janeiro/RJ
-
Orgulho bobo... vaidade...
caprichos do amor sobejo...
Eu, morrendo de saudade,
fingir que nem te desejo!
ELISABETH SOUZA CRUZ – Nova Friburgo/RJ
-
Lembrando o que tu dizias
do amor que tinhas por mim,
eu vi, enquanto partias,
quanto o infinito... tem fim!
ERCY MARQUES DE FARIA - Bauru/SP
-
Meia luz...noite...a vidraça...
a cama... o beijo... e depois...
um brinde... o champanhe... a taça...
o amor... o sonho... nós dois.
FLÁVIO ROBERTO STEFANI – Porto Alegre/RS
-
O progresso traz mudanças,
cria fábricas e usinas,
mas se esquece das crianças
que dormem pelas esquinas!
GERSON CÉSAR SOUZA - São Mateus do Sul/PR
-
Meus lábios apaixonados
bebem o orvalho dos teus,
desses teus lábios molhados,
que sonham com os lábios meus!
GISLAINE CANALES – Porto Alegre/RS
-
Qual um pastor diligente
cuidando do seu rebanho,
pastoreio no presente
minhas saudades de antanho.
GUTEMBERG ANDRADE – Fortaleza/CE
-
Se no passado ou futuro,
de um homem, tristeza houver,
pode crer que essa tristeza
tem por essência a mulher.
HÉRON PATRÍCIO – São Paulo/SP
-
Saio da luta ferida;
logo depois me refaço...
Volto na dança da vida
com mais certeza em meu passo!
IVONE T. PRADO - Belo Horizonte/MG
-
Há dois mil anos o brilho
de um grande amor sobressai:
– o sacrifício de Um Filho
pelos filhos de Seu Pai!!!
IZO GOLDMAN – São Paulo/SP
-
Floresta amiga, perdoa
o fogo, a serra, a agressão:
a humanidade ainda é boa,
certos homens é que não!
JOÃO FREIRE FILHO - Rio de Janeiro/RJ
-
As tuas rosas vermelhas
levei-as ao meu jardim.
Nunca vi tantas abelhas
voando em torno de mim!
JUDAS ISGOROGOTA – Lagoa da Canoa/AL
-
O sonho que idealizo
tem, na sua intensidade,
o tamanho do sorriso
de quem mata uma saudade.
JOSÉ MESSIAS BRAZ – Juiz de Fora/MG
-
Se a vida pede uma pausa,
       faça isso, por favor,
ou por amor a uma causa,
ou por causa de um amor!
  JOSÉ OUVERNEY – Pindamonhangaba/SP
-
Quem a família coordena
e a sua casa não trai,
quem não tem alma pequena
é um bom modelo de pai.
   LÓLA PRATA – Bragança Paulista/SP
-
O meu amor desmedido,
 sem ter cais para ancorar,
parece um barco perdido...
longe da praia... a vagar...
  MARIA LUA – Nova Friburgo/RJ
-
Com dois cálices de vinho,
na ilusão de “alguém” comigo,
bebo os dois, mas um restinho
finjo que é seu... e prossigo!
MARIA LÚCIA DALOCE CASTANHO - Bandeirantes/PR
-
A distância, achando meios
para unir nossas metades,
somou nossos devaneios
e dividiu as saudades!...
MARIA NASCIMENTO – Rio  de Janeiro/RJ
-
No grande páreo da vida,
o amor luta contra o ódio.
Não permita que a corrida
finde sem o amor no pódio.
MIGUEL RUSSOWSKY – Joaçaba/SC
-
Naquele seco torrão
de terra o pobre coitado
só colheu desilusão;
mesmo não tendo plantado!
NEMÉSIO PRATA CRISÓSTOMO – Fortaleza/CE
-
Guarda no olhar a doçura
com que me embalou um dia.
Mãe lembra sempre a figura
e a ternura de Maria.
NILCI GUIMARÃES – Rio de Janeiro/RJ
-
 Planta um beijo em meu jardim,
meu amor, quando te fores,
que ao ver teu beijo florir
murcharão as outras flores!
PEDRO EMÍLIO – São Fidélis/RJ
-
Amor de perdas e danos,
triste contabilidade:
resgate dos desenganos,
sobras de caixa-saudade!
SELMA PATTI SPINELLI – São Paulo/SP
-
No mar da vida, meu barco,
mesmo ao sabor da maré,
tem a esperança por marco
e por farol tem a fé!
THEREZA COSTA VAL – Belo Horizonte/MG
-
Vou dormir porque preciso
com você, mamãe, sonhar,
e sonolenta analiso:
não vou querer acordar!
VÂNIA ENNES – Curitiba/PR
-
Amizade é sã vivência
do bom relacionamento,
e se estrutura na essência
do mais belo sentimento.
VIDAL IDONY STOCKLER – Curitiba/PR
-
Almejo trilhas sem fim,
ornamentadas de rosas!...
Mãe, vais à frente de mim,
cultivando as mais formosas!
WAGNER LOPES – Pedro Leopoldo/MG

Nilto Maciel (A Reunião)

Os homens se acomodaram ao redor da grande mesa. Falavam baixo, cochichavam, mãos postas sobre a tábua ou os papéis. Que notícia traria o Presidente? Teria alguma relação com a morte do vereador de Sapoapé? Não, Sapoapé não – Cipoaté. Ou com o nascimento do cabrito com duas cabeças? Possivelmente não. Aquilo interessava muito mais aos biólogos do que aos políticos. Um ou outro alisava garrafinhas com água e copos. A luz das lâmpadas no teto não provocava sombras. Súbito a grande porta se abriu e por ela entrou o Presidente, boca cheia de sorrisos e bons-dias. Os ministros se levantaram de uma vez, como se tomados de repentino susto. Estrépito de cadeiras arrastadas no chão. O coro de vozes roucas retribuiu a saudação. A autoridade maior se sentou e, com um aceno, autorizou o sentar-se de seus auxiliares. Olhos fitos no rosto do comandante, os homens nem sequer piscavam, paralisados, imóveis, inertes. O que diria o chefão? Sapoapé, Cipoaté, cabrito, vereador? Olhar vidrado, ele engolia palavras, sem mastigar. Um ou outro ministro cruzava as mãos suadas. Nenhuma sombra se mexia sobre a mesa, nas paredes, no chão. E nada de o mandachuva abrir a boca. Ao longe, garçons cochilavam, surdos e mudos. A ponta do sapato de um cupincha encontrou a ponta do sapato de outro cupincha à sua frente. Arregalaram os olhos. Qual o significado daquilo? Estaria ficando louco? Retirasse o pé dali, imediatamente. Deixasse de gracinhas. Alguém ousou levar as mãos a um copo. Reprimenda geral, com os olhos. Não fizesse aquilo. Deixasse a autoridade se servir primeiro. O silêncio fazia ouvirem-se os mais remotos e insignificantes ruídos: na boca de um, nos lábios de outro, a respiração de fulano. Olhares se cruzavam de ponta a ponta. O do vizinho à esquerda do chefe fulminava o sétimo à direita dele. O terceiro à direita piscou discretamente para o quinto da coluna frontal ao frontispício central. Por que o homem não falava nada? Teria perdido a fala? Estaria dormindo? Seria sonâmbulo? Teria enlouquecido? E se o interpelassem? Quem o faria? Não, ninguém ousaria interromper o sono do Presidente.

A mim cabia somente filmar a reunião. E também nada dizer ou perguntar.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.
Imagem = http://www.lisriopreto.com.br

Goulart Gomes (Poemas Avulsos)

O ANALFABETO IDEOLÓGICO
ou Carta Aberta a Herr Brecht

O pior analfabeto é o analfabeto ideológico.
Ele desconhece a importância
do respeito ao ser humano
e é capaz até de destruir tudo à sua volta
pelas suas crenças.
Ele é o pai de todas as guerras.
O analfabeto ideológico é tão burro
que ignora que milhões de pessoas foram mortas
em Auschwitz, em Kronstadt, no Arquipélago Gulag,
em Hanói, em Saigon, em Leningrado, Havana,
Hiroshima e Nagasáki
pela ignorância dos politicamente alfabetizados.

O analfabeto ideológico já não se lembra
do napalm atirado em crianças, no Vietnã
dos tanques esmagando jovens em Beijing
nem da Primavera de Praga.
Ele esqueceu dos desaparecidos
no Araguaia, em Buenos Aires,
em Santiago do Chile.
O analfabeto ideológico
explode bombas contra católicos e protestantes
em Dublin
e contra judeus e muçulmanos
em Jerusalém.

Não sabe o imbecil que da sua ignorância
nasce o mutilado, o órfão,
o neurótico de guerra, a viúva,
las madres de Plaza de Mayo,
as ditaduras.
Tudo isso porque
o analfabeto ideológico tem uma visão estreita,
uma amnésia do passado
e nenhum compromisso com o futuro.

Já leu todas as biografias dos grandes estadistas,
mas nunca a do Mahatma Gandhi,
que foi líder sem ser governante
e por isso desconhece ahimsa:
a lei da não-violência.
Em seu radicalismo
ele não ouve, não respeita, não conhece
(ainda que seja para criticar)
outras ideologias, que não a sua.

Ele está preocupado em promover
a discórdia, o confronto,
e não tem o menor respeito à Vida:
nem à sua, nem à dos outros.

L’ANA

A tarde amorenava o dia
permutando cores onde pousava
o seu toque
Lançava sobretudo sua tez
abria um leque à cara do sol
e tingia de penumbra os espaços
dos olhos dela fugia a claridão
e à volta se tingia
aquela cor de pele
espargindo a noite

A quem contar segredos?
Inútil degredo dentro
de nós mesmos
ânsia de ouvir espelhos
clamor de anos que não vieram

L’Ana e su’alma de caranguejo
subterrânea/submarina
tenazes fortes e cor baiana:
a mais doce mistura destas tendas;
seu corpo espraia-se
num descobrir de terras macias
além do Oceano (rio mais grande,
lágrimas de Orixá)
dança, noturna, feito estrela
lua-mãe cheia nos leitos
de um homem e dos rios
fazendo canastras de tarot
Só L’Ana amortece a dor
no parapeito do riso
e seus lábios rubros e ciganos
traçam caminhos, deixam vestígios
úmidos no meu corpo
e palavras em gemidos

TEMPO FARPADO

Matamos o tempo; o tempo nos enterra
(Machado de Assis)

arame farpado
o Tempo recurva
até os pregos;
nos ferros
depõe suas marcas
amarga as madeiras
descendo as ladeiras
dos dias

A flor impera
promessa da semente
e do húmus da terra
espinhos e farpas
não cortam o vento

(o Tempo se cala)
a pétala fala
também somos eternos

DÁDIVA DA VIDA

a ninguém devia nada
no colo, apaixonada
deu por si

ALUNISSAR
um dia chegarei com passos firmes
sem cavalo
e não direi palavra;
o simples gesto da presença
apaga mágoas
e pressupõe surpresas

será um dia comum
- nenhuma ânsia -
com sol, nuvens e pássaros
no rádio, alguma música romântica
estará tocando
a torneira da pia, como sempre
pingando

um dia chegarei em silêncio
e tudo flutuará
por absoluta falta de gravidade

ISTMO

ela, tão triste
ele, tão ausente
nem a lua se fez presente

Fonte:
Goulart Gomes (organizador). Antologia do Pórtico. 2003.

Artur Eduardo Benevides (Depoimento Sigiloso)

Não. Eu não estava sentado à janela de meu apartamento, olhando para o mar, nem tudo ficou bem claro de repente e uma súbita luz desceu do céu. Não eram vinte e três horas. Não estava tudo calmo. Não havia um brando e inesperado vento leste-oeste, suavizando o tremendo calor de 33 graus.

Eu não bebera minha costumeira dose de rum com coca, limão e gelo. Não falara com minha tia Onalda, que não me perguntara se não havia algo estranho lá fora.

Não fico sozinho aqui, todas as noites, a comer pizza com orégano, desde que meu filho se foi para sempre. Não senti o drama da morte de minha mulher, apunhalada na rua por um assaltante. Nem a partida de minha filha, pouco depois, para terras distantes, acompanhando o marido aviador.

Minha vida não é terrivelmente monótona e vazia. Não sou infeliz. Não vivo a olhar o infinito através de uma pequena luneta astronômica, de fabricação japonesa. Nem vi, outro dia, uma imagem bastante estranha surgir, às três da manhã, no meu aparelho de televisão a cores, de vinte e cinco polegadas, e desaparecer lentamente, emitindo sinais numa frequência desconhecida.

Não acredito em vida fora da terra. Não gosto de falar em tais assuntos. Não me fascinam. Não me empolgam. Não me levam a adquirir mais de trezentos volumes sobre literatura de antecipação.

Não converso tais cousas com ninguém. Meu genro nunca me disse que a Força Aérea desconfia seriamente da existência de objetos voadores não identificados. Nem me falou de certo Projeto Pente – Fino, em que há provas irrefutáveis de passagem ou permanência entre nós de viajantes de outras galáxias, o que, aliás, se encontra registrado nos mais velhos livros do mundo. Ou melhor, retificando: não se encontra registrado em livro nenhum.

Quem disser que recebo comunicação telepática de alguém chamado U-Thor está mentindo. Não recebo comunicação nenhuma. Não fui até o paredão de pedras negras, para ver, de repente, aqueça maravilhosa luz vinda do céu. Nem fiquei, na noite seguinte, sentado em meu carro, tentando fazer a gravação da mensagem prometida.

É pura mentira a existência daquelas palavras: “Saudações cósmicas, ó povo do planeta azul! Necessitamos urgentemente de vós. Nossa civilização está perecendo e tendes espaço e oxigênio suficientes para o que resta de nossa população. Não vos faremos mal. Já não somos muitos. Temos informações extraordinárias para os vossos cientistas. Moramos alguns anos-luz, mas podemos chegar em sete-de-força para proteger as nossas cubas, pois estais muito próximos do sol e somos todos albinos. Aguardamos para breve a vossa generosa decisão. Paz! Paz! Paz! Alegrias para todos, ó irmãos do planeta azul!”

Tudo isso é inverdade. Utopia. Ilusão. Ou fantasia. Na realidade, U-Thor não me disse que já se impacienta e os seus acabarão por chegar de qualquer maneira. Não sei se as vanguardas já desembarcaram ou estão a desembarcar no Canadá, escolhido como Ponto Alfa. Nunca vi nada. Não sei de nada. Estive aqui, meio paralítico, por cinco anos.

Ignoro por que motivos satânicos minha nora foi declarar tais cousas nos jornais. Não acredito em disco-voador. Não existem Óvnis. Ou Ufos. Nos altos céus, só as estrelas, os planetas, os asteroides e os cometas. Nada mais. O resto é pura imaginação. E U-Thor? Ora, quem é U-Thor? U-Thor não existe. Sua luminosa nave não pousa, de sete em sete dias, de madrugada, naquela praia deserta. Nem ele me curou de paralisia no braço esquerdo usando um pequeno facho de luz violácea. Nem livrou tia Onalda de um tumor maligno no seio.

Nada disso aconteceu. Quem disser o contrário é louco. Os senhores, do Serviço de Inteligência, podem anotar que assino. Com firma reconhecida e tudo. E, por favor, me esqueçam. Não mais há nada a declarar. Juro que minha mente continua sendo minha. Inteiramente minha. Não a cedi, em momento algum, aos mensageiros do segundo planeta da Terceira Constelação. Continuo a ser terráqueo. Não estou começando a enxergar no tempo ou a exercitar-me em telecinesia. Não principio a perceber o inesquecível mundo da quarta dimensão. Não sendo iniciado no Grau Psi Beta. Nego tudo. Não sei de nada. Não vi nada. Só quero que me deixem em paz. Preciso viajar com urgência para o Canadá. Desculpem: foi um engano. Não preciso viajar com urgência para o Canadá. Nada tenho a fazer lá. Ou em parte alguma. Ninguém me espera. Rigorosamente, ninguém. Nem aqui, nem na curva do horizonte, nem nos frios espaços das estrelas.

 (Artur Eduardo Benevides, A Revolta do Computador e outros contos de mistério)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Artur Eduardo Benevides

Artur Eduardo Benevides (Pacatuba, 1923) cedo se mudou para Fortaleza, onde militou no jornalismo e se diplomou em Direito. Ocupou diversos cargos administrativos. Licenciou-se em Letras. Professor da Faculdade Católica de Filosofia do Ceará, da qual foi também Diretor. Professor Titular do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará, tendo sido ainda Diretor do Centro de Humanidades da mesma universidade. Exerceu o cargo de Diretor do Centro de Estudos Brasileiros em Rosário, Argentina. Portador de várias medalhas, vencedor de inúmeros prêmios literários, como o prestigiado Prêmio Nestlé de Literatura. Eleito por diversas entidades culturais do Ceará o Príncipe dos Poetas Cearenses. Membro fundador do Grupo Clã. Sua bibliografia é vasta, principalmente no campo da poesia, sendo autor de 46 títulos, entre os quais dois de contos: Caminho sem horizonte (1958) e A revolta do computador e outros contos de mistério (2001). Da Academia Cearense de Letras e Academia Cearense da Língua Portuguesa, dentre outras. Está também presente na Antologia do Conto Cearense (1990), organizada por Mary Ann Leitão Karam, com “Depoimento Sigiloso”, premiado em 1984 no Concurso Nacional de Contos promovido pela Editora Abril Cultural.

Nas dobras da capa do segundo volume, Révia Herculano assim se manifesta: “Esta é uma coleção de contos de suspense, ou mistério, descendentes, em linha reta, dos contos góticos dos ingleses do século XVIII”.

Tido como um dos maiores poetas cearenses de seu tempo, Artur Eduardo Benevides pratica o conto também desde longas datas. Braga Montenegro, o mais completo estudioso da história curta no Ceará, no ensaio “Evolução e natureza do conto cearense”, lembra do poeta “um conto muito bom, premiado num concurso, demonstrando ali acentuadas inclinações para o gênero, sobretudo a facilidade de realçar a justa gradação trágica, contudo numa forma nem de todo isenta do transbordamento vocabular”. Lembra também o livro Caminho Sem Horizonte, “em que reúne nove estórias, todas acomodadas numa estreita faixa de temas, sem maior esforço experimentalista e sem penetração no espaço da literatura, isto é, no espaço dos mitos e dos símbolos poéticos”. Com a publicação do volume A Revolta do Computador e Outros Contos de Mistério, Artur demonstrou ser contista não somente inclinado para o gênero, mas capaz de compor um conjunto de peças insólitas em dialeto irrepreensível e, ao mesmo tempo, de agradável leitura. A coleção abarca 17 narrativas curtas, em linguagem concisa, enxuta, límpida e livre de transbordamentos vocabulares.

                Há, pelo menos, três tipos de história no livro: os realistas, os neogóticos, como quer Révia Herculano, e os de ficção científica. Nos dramas vividos pelos personagens dos dois primeiros grupos a realidade cede lugar à fantasia, ao mistério, ao inusitado, ao extraordinário, ao inesperado. Podem ser vistos como realistas aqueles em que pouco de mistério se pode vislumbrar em suas tramas, embora nos desfechos se encontrem laivos de obscuridade dos fatos. Em “O Grito Final”, o narrador Nimrod, domador de serpentes, fala para gravador portátil, momentos antes de sua morte. Picado pela serpente Peralta, ao se distrair com a presença de Moya, sua “pequena” de anos atrás, espera a morte. Em “A Sede”, o narrador é “doido varrido”, em cidade pequena, fustigado por alucinações e, ao mesmo tempo, alucinado por mulheres. Estranhamente, essas mulheres vão morrendo, sem que se saiba se ele as matou ou não. Primeiro a tia Ana, encontrada no chão sem vida, “depois de uma trovoada sem fim”. Depois Lindalva, que trabalhou em sua casa algumas semanas. Logo em seguida, Tiana. “E outras mais”. História realista, mas ao mesmo tempo de cunho misterioso. De feitio semelhante a este é “Pesadelo”. O narrador conta episódios de sua infância nas matas de Marajó. Como em outras narrativas, a selva amazônica é o palco desta trama. O protagonista tem pesadelos e em sua mente se embaralham as figuras do avô, do pai desconhecido, da mãe prisioneira em casa, de índio xapacura que guardava a mãe do narrador e um dia o empurrou e pôs o pé enorme no seu peito, da professora morta e, finalmente, da filha manca, Aglaê. A selva é misteriosa, a vida na selva é misteriosa, o narrador é misterioso e mais misterioso é o desfecho, no qual pode ser entrevisto relacionamento incestuoso: “Chamo-a docemente, (...) Ela vem devagar e sinto suas pisadas como se fossem o pé enorme do xapacura sobre o meu peito, nas noites de longos pesadelos e relâmpagos clareando o pantanal (...)”.

Em “A Serpente Enciumada”, uma das mais belas peças da coleção, outra cobra é fundamental no enredo. O narrador é herdeiro de fortuna deixada por tio exótico, colecionador de “cousas e bichos”. Diferente do morto, o homem se livra, aos poucos, de quase todas as coleções, menos de uma serpente, Dafne. Em dado momento planta no leitor uma dúvida: “Não sei se Dafne é mulher. Para mim, é apenas uma serpente”. Ora, no imaginário popular (em lendas e mitologias) a mulher é serpente. “Tia Heliodora ou o Clarão da Súbita Bondade” (título inadequado para a beleza da peça) é tipicamente realista. Narrado por menino, os personagens principais são a solteirona Heliodora e um leproso. A trama se desenrola num tempo em que os hansenianos eram recolhidos em asilos e, quando saíam às ruas, tocavam sineta, para avisar os cidadãos de sua presença. O pânico se instalava nas pessoas, que corriam e se trancavam nas casas. No final, a mulher abre a porta e dá água ao doente, em gesto considerado imperdoável pelos demais cidadãos.

                A presença de cobras nas narrativas de Artur é relevante. Nuns, como ente simbólico; noutro, “O Encantado”, como ser lendário. O protagonista é o homem encantado pela serpente que vive nas águas amazônicas. O drama se inicia quando se perde na selva e “senti qualquer coisa extraordinária à minha volta”. Socorrido por bolivianos, é avisado de que “está encantado”. E conduzido para o seringal: “Aqui, nas proximidades, deve haver uma grande jiboia, com olhos na sua nuca”. Passa a ter pesadelos. Certa vez sonha com imensa cobra e acorda “com o corpo moído, como se algo incomum me houvesse apertado durante a noite”.

Em “Trevas”, o protagonista sem nome explícito (como muitos outros) fala ou pensa (monólogo ou solilóquio), enquanto assiste sozinho a filmes na televisão. E ora se comunica, pela visão e pela audição, com os personagens dos filmes (Conde Drácula, Tom Mix, Flash Gordon) e até com a atriz Catherine Deneuve, como se também fizesse parte da história; ora com os próprios fantasmas, como a sua irmã paralítica já morta, o menino morto na lagoa, aranhas gigantescas. Na realidade, está só, mas “percebe” que há outra pessoa na sala, “invisível e presente”. O tema da narrativa é a solidão: “Sou um lobo solitário. Um homem sozinho. Com medo”. Em “O Último Rosto” também o realismo cede lugar ao mistério. O narrador, ex-funcionário da Sinfônica Municipal, vê desaparecem um a um os rostos de seus companheiros da foto do grupo de sete pessoas, à medida que iam morrendo.

Em mais de uma obra, protagonistas veem e se comunicam com pessoas mortas. Um deles, o de “Trevas”, chega a falar em mediunidade ou hipersensibilidade. Outro, em “A Boa Velhinha”, imagina-se louco, após ter estado com uma senhora, em visita oficial aos moradores de rua cujas casas seriam demolidas para dar lugar à “grande maternidade municipal”. Dias depois, volta ao local e é informado de que a tal mulher “morreu há uns vinte anos” e “nessa casa não mora ninguém desde então...” O mesmo fenômeno se verifica em “O Retrato Pendurado no Tempo”. O narrador é cavaleiro de sociedade hípica. Na primeira cena, nas proximidades do Convento do Carmo, se depara com dois anõezinhos malucos que “estavam a rasgar, aos gritos, as roupas do frade”. Indignado, expulsa a chicotadas os agressores. Dias depois, visita o convento e procura Frei Vitalino, o personagem do primeiro momento da trama. Surpreende-se ao ouvir do zelador a frase: “Frei Vitalino não existe, meu caro. É uma lenda”. Mais adiante o funcionário avisa: “Cuidado! Por aqui aparece visagem. É mal-assombrado. Aqui e na sala dos retratos”. E no final a confirmação de que havia estado com um morto: em placa de prata abaixo do retrato do frade viam-se duas datas: 1820-1896. Em “A Senhora de Azul, com Cabelos Grisalhos”, o narrador conhece estranha personagem, “jovem senhora, vestida de azul”, cuja presença é garantia de tragédia ou acontecimento funesto. Seria a própria morte, ser fictício simbólico.

Os contos de fundo científico (science-fiction) de Artur envolvem seres humanos, extraterrestres e máquinas, alguns destes alcançando a posição de protagonistas. O mistério neles é de outra natureza, menos psicológica e mais ontológica. Em “Depoimento Sigiloso” o narrador é homem afeiçoado aos objetos voadores não identificados que nega conhecer os estranhos acontecimentos relacionados a Ovnis. Aliás, toda a narrativa é composta de negativas. A história que dá título ao volume se enquadra perfeitamente no subgênero ficção científica. Narrado também por ser humano, o protagonista é, no entanto, um computador superinteligente, de nome Stanley, um semideus, no ano de 2106. Em “Zyw” o ser fictício principal é alienígena, vindo de satélite de Júpiter, “um garotão de quase três metros de altura”, criado em fazenda experimental no Araguaia. O narrador é também extraterrestre, nascido em Tritão.

O poeta está presente nas narrações e descrições de quase todas as peças. “A Sede” é obra poética, sem deixar de ser narrativa. Há frases em que a poesia se mostra em sua plenitude: “Estava a chover nos telhados da infância” (p. 61). A última peça, “As Carruagens do Sem-Fim” é composição de fino lavor, talvez o mais misterioso dos contos do livro. É poesia pura. Os personagens, que não são poucos, vêm dos confins das lendas e dos mitos e viajam na grande nave interestelar, até que o círculo se feche. E Artur Eduardo Benevides fecha o seu livro com chave de ouro, como só os narradores criativos, os poetas, os iluminados sabem e podem fazê-lo: envolto em mistérios.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Prof. Garcia (Caderno de Trovas)


A dor que se intensifica
e amedronta os dias meus,
é pensar na dor que fica
depois da palavra adeus!
* * *
A estrela da mocidade,
que em minha infância brilhou;
brilha em meu céu de saudade,
depois que a infância passou!
* * *
A existência é dividida
em dois extremos da idade:
um, alvorada da vida,
outro, arrebol de saudade!
* * *
A insensatez, na verdade,
separou nossos lençóis;
e agora a dor da saudade
dói muito mais entre nós!
* * *
A liberdade do poeta,
está num verso... Num grito...
No equilíbrio se completa,
vencendo o próprio infinito!
* * *
Amores na mocidade!...
Depois, a contrapartida:
cansaço, dor e saudade
na curva extrema da vida!
* * *
A musa chega e me inspira,
num delírio encantador...
Afina as cordas da lira
e enche o meu mundo de amor!
* * *
A natureza resiste,
mas a tristeza do monte,
é enxugar o pranto triste
dos olhos tristes da fonte!
* * *
Antes que a aurora desponte
dando vida à luz do dia,
tenho que cruzar a ponte
nos braços da poesia.
* * *
Aos  ritos do amor se entrega
um casal apaixonado,
que até nos olhos carrega
o silêncio do pecado!
* * *
A poesia se engalana,
mas só se torna completa,
quando se faz soberana
na voz do próprio poeta!
* * *
As cordas desafinadas
e esta voz chegando ao fim!...
São mimos das madrugadas
guardados dentro de mim!
* * *
A solidão me angustia
e à noite aumenta o meu drama,
vendo a cadeira vazia
que a tua ausência reclama!
* * *
Às vezes, me falta estima,
vendo a multidão que passa...
Muita gente se aproxima,
mas pouca gente se abraça!
* * *
A terra inteira secou!…
E, a dor me fez sofrer tanto,
que quando a chuva voltou,
tinha secado o meu pranto!
* * *
A virtude que mais rego,
vive em mim, nunca passou:
é a FÉ que sempre carrego
de ser feliz como sou.
* * *
Beije e abrace uma criança,
como se beija uma flor!
Pois, nesta rosa se alcança
a essência pura do amor!
* * *
Busquei no universo um dia,
uma resposta eficaz;
que transformasse a POESIA
num hino de amor e paz!!!
* * *
Cada tropeço me ensina
que a vida é eterno sonhar.
Na vida nada termina,
muda de forma e lugar.
* * *
Cadeira velha!...Esquecida,
sem dono e sem mais ninguém...
Só a saudade atrevida
reclama a ausência de alguém!
* * *
Cascata, teu pranto triste,
parece que não tem fim!...
Comparo ao pranto que existe
doendo dentro de mim!
* * *
Como quem faz uma prece,
braços erguidos se abrindo,
a borboleta parece
um anjo da paz dormindo!
* * *
Dai-nos ó, Pai, a razão,
desta santa imagem tua…
e que eu reparta o meu pão,
com quem não tem pão na rua!!!
* * *
Desperto e fico tristonho,
é triste o meu despertar,
ver acabado o meu sonho
antes do sonho acabar!
* * *
Deus - pintor da natureza,
usando a tinta mais viva:
pinta o céu, de azul-turquesa
e os mares, de verde-oliva!
* * *
De volta ao lar que eu não via,
desde a minha mocidade...
Enquanto a emoção crescia,
crescia a dor da saudade!
* * *
Distante dos teus afagos,
nesta inquieta nostalgia,
meus olhos formam dois lagos
que me afogam todo dia!
* * *
Do sino, ouvindo a amargura,
da tarde que já morria,
fiz da triste partitura
a mais feliz melodia !
* * *
Em cada beijo roubado,
que roubo de ti, meu bem,
sinto o gosto do pecado
que o beijo roubado tem.
* * *
Em seu vai-e-vem bonito,
a lua em seu caminhar...
Enche de luz o infinito,
de prata, as ondas do mar!
* * *
Enquanto a ciência avança,
fato novo se descobre…
E o fruto do que se alcança
torna a ciência mais nobre
* * *
Esta aliança que um dia,
já guardou nossos segredos;
hoje guarda a nostalgia
das digitais de outros dedos!
* * *
Esta distância tão triste,
entre nós dois, na verdade,
mede a distância que existe
entre o AMOR e a saudade!
* * *
Esta dor que em mim persiste
e não me deixa dormir!...
é "aquela" lembrança triste
do que deixou de existir!
* * *
Este amor que em mim fervilha,
quando estamos sempre a sós...
se for bem feita a partilha,
será eterno entre nós!
* * *
Eu me curvo ante os conselhos
que recebo todo dia,
quando dobro os meus joelhos
aos pés da Virgem Maria!
* * *
Eu vejo ó linda criança,
neste teu sorriso lindo,
a mais feliz esperança
das esperanças dormindo!!!
* * *
Há uma sombra em meu caminho
que me segue…e, mesmo assim…
Nem quer me deixar sozinho
nem diz o que quer de mim!
* * *
Já escalei morros medonhos,
caminhando passo a passo.
Mas nunca pude em meus sonhos
escalar nuvens no espaço!
* * *
Já pronta e de vela içada
tremulando de ansiedade,
vai para o mar a jangada
carregada de saudade!
* * *
Larga a tristeza e acalanta
teus sonhos, por onde fores.
Nada no mundo suplanta
teus lindos sonhos de amores!
* * *
Mãe preta! teu negro seio
deu-me o mais puro sabor;
nele eu bebi sem receio
a eternidade do amor!
* * *
Meu Deus! se a chuva caída,
fecunda o sertão no estio,
o inverno é fonte de vida
do sertanejo bravio!
* * *
Meus sonhos da mocidade,
hoje são meus pesadelos;
lembrados, sinto saudade,
mas é tolice esquecê-los!
* * *
Minha renúncia...quem sabe...
não seja a chave secreta,
de tudo quanto só cabe
na inspiração de um poeta!
* * *
Morre a flor na flor da idade,
padece a planta de dor;
a ausência deixa saudade,
até na morte da flor!
* * *
Morre a tarde!...E ao fim do dia,
na imagem do sol poente,
há tintas de nostalgia
do fim da tarde da gente!
* * *
Na sinfonia das almas
ensaia-se lindo canto;
ouvem-se preces e palmas:
- Padre João Maria é santo!
* * *
Na loucura dos meus versos,
e em quase todos seus traços,
há pedacinhos dispersos
do amor que tive em teus braços.
* * *
Na manjedoura em Belém,
nasce um mistério profundo:
Uma luz vinda do além,
que se fez a luz do mundo!
* * *
Não me faça mais perguntas,
erro assim, não mais cometa...
Talvez, só nossas mãos juntas
possam salvar o planeta!
* * *
Nas asas de um vento brando,
na espuma branca do mar…
as ondas chegam cantando,
trazendo o sal potiguar!
* * *
Na vida que se renova,
no Natal que se aproxima,
eu forro a mesa com trova,
e brindo a noite com rima.
* * *
Nesta longa caminhada
que fazemos sempre a sós...
Nem o silêncio da estrada
quebra o silêncio entre nós!
* * *
Ninguém é pedra polida,
se não mudar de conduta;
pois, a pedreira da vida
é feita de pedra bruta!
* * *
No outono triste da idade,
meu lago de solidão
transborda só de saudade
dos meus dias que se vão!
* * *
Nosso casebre, é de palha
de pau-a-pique a parede.
O amor que aqui se agasalha,
dorme comigo na rede!
* * *
O aborto, triste ferida,
que nos faz tanto sofrer;
como dói matar a vida,
antes da vida nascer!
* * *
Ó cigarra destemida
o seu disfarce me encanta,
por não ter nada na vida
e ser feliz quando canta!
* * *
Ó coqueiro pequenino,
que tanta água nos deu!
Que ironia o teu destino:
por falta d’agua morreu!!!
* * *
O mundo é roda gigante,
girando sempre a girar,
e eu sou passageiro errante
procurando meu lugar!
* * *
O outono da vida ingrata,
chega fazendo atropelos:
Joga tinta cor de prata,
na tinta dos meus cabelos!
* * *
O Seridó se enternece,
reza e clama todo dia,
orando, em forma de prece,
pelo Padre João Maria.
* * *
Pelas manhãs vou buscando
minha esperança perdida...
Há sempre um sonho vagando
nas alvoradas da vida!
* * *
Pesa a cruz do meu fadário,
mas tenho fé em Jesus
que se aumentar meu calvário
não sinto o peso da cruz!
* * *
Porteira velha, o gemido
desta dor que te corrói...
é o teu passado esquecido
que em teu presente inda dói!
* * *
Por teu amor sofri tanto,
foi tão grande o meu desgosto,
que cada gota de pranto
se fez cascata em meu rosto!
* * *
Prazer é sentir os dedos
de nossas mãos artesãs
pintando os lindos segredos
das auroras das manhãs!
* * *
Primavera é foto linda,
de uma infância toda em flor,
parece que nunca finda
a primavera do amor!
* * *
Quando a minha fé se esmera,
penso que tudo se alcança.
Por longa que seja a espera,
não perco nunca a esperança!
* * *
Quando a tarde veste o manto,
torna escura a luz do dia...
Saudade dói outro tanto
do tanto que já doía!
* * *
Quando um jardim perde as flores,
a mão de Deus recupera,
pintando as mais lindas cores
nas flores da primavera!
* * *
Quantas lições primorosas,
num pequeno beija-flor,
que beija todas as rosas
enchendo o mundo de amor!
* * *
Quase seca...E a fonte insiste
em seu lamento de dor!
É o canto ficando triste
e a fonte jorrando amor!
* * *
Rasga o manto que te cobre,
mostra teu riso e esplendor…
Pois, a cortina, mais nobre,
não cobre um riso de amor!
* * *
Revendo entulhos e tacos,
na tapera dos meus sonhos,
chorei por ver tantos cacos
dos meus dias mais risonhos!
* * *
Saudade de amor… lembrança,
que dói mais que qualquer dor!
Nem na velhice descansa,
quem tem saudade de amor!
* * *
Saudade – no fim do dia,
já sei por que me dói tanto:
aumenta a melancolia,
dobra as dores do meu pranto!
* * *
Saudade – seja onde for,
sempre é saudade, meu bem.
Um sentimento de amor
que dói no peito de alguém!
* * *
Sempre sozinha, aos farrapos,
mas de rosário na mão...
A fé tecida entre os trapos,
remendava a solidão!
* * *
Sempre tristonho…No entanto,
se a alegria é um grande bem,
eu tento esconder meu pranto
por trás do riso de alguém!
* * *
Se o tempo me desse tempo,
de fazer mais do que faço,
queimava a sobra do tempo
no calor do teu abraço!
* * *
Se descobre essa verdade
depois da idade vencida:
que a cada passo da idade,
se encurta o passo da vida!
* * *
Se o mar por insensatez,
naufragar o meu batel...
mando o recado outra vez
pelo barco de papel!
* * *
Sinalizando o caminho,
do nauta na escuridão;
o farol velho, sozinho
é fantasma e solidão!
* * *
Sonho repetidamente,
vendo um clone em tristes ais,
chorando porque não sente
o carinho dos pais.
* * *
Sou sertanejo e não nego
crestei meus pés neste chão.
Nestas marcas que carrego ,
carrego o próprio sertão!
* * *
Teu amor que me enternece,
que acaba todo meu pranto,
da sobra faço uma prece,
e ainda sobra outro tanto.
* * *
Toda tarde o passarinho
bate as asas, quando canta.
Quanto mais longe do ninho,
mais afinada a garganta!
* * *
Um beijo em ti, tão criança,
que agora tão longe vai…
Tudo me sai da lembrança,
mas o teu beijo não sai!
* * *
Velho sino, és sentinela,
a repetir sem maldade...
a dor da saudade dela,
na dor de minha saudade!
* * *
Vem das águas cristalinas
e vem da espuma do mar,
o sal das brancas salinas
do meu rincão potiguar!
* * *
Viver por viver somente,
faz teu mundo tão perjuro,
que este teu falso presente,
é o presente do futuro.

Prof. Garcia (Outros Versos)

SETILHAS

Distante de minha terra
só sinto tristeza e dor,
ao lembrar de minha infância
simples com tanto esplendor;
podia me faltar tudo
mas era rica de amor.
* * *
Enfrentei ventos fracos e refregas,
calmarias e fortes vendavais,
a procura da musa que me inspira
nos refrões dos antigos madrigais;
mas a sorte, madrasta dos meus planos,
só me deu versos soltos e profanos
e os gemidos sofridos dos meus ais!
* * *
Foi assim que eu pensei e sempre quis
e este meu pensamento eu não desfaço,
acredito na força do destino
confiando no verso que inda faço;
pois da fonte da santa inspiração,
eu bebi gotas d'água de ilusão
afastando as loucuras do fracasso.
* * *
Sempre tive a maior veneração,
por Deus Pai, nosso eterno criador,
que me quis pequenino deste jeito
e me fez seu eterno sonhador;
como quem diz abrace o que te dei,
e a poesia, feliz eu abracei,
me tornando poeta e Trovador.
* * *
Podem ver que os colibris
são amantes sonhadores,
que apesar de pequeninos
são felizes sedutores,
vivem beijando, e beijando,
de manhã cedo roubando
a virgindade das flores!
* * *
Sempre vi na grandeza do Senhor,
esta mão benfeitora e artesã:
no trinado das aves seresteiras,
despertando a floresta, o morro e a chã,
num concriz quando canta uma toada,
que enfeitiça o romper da madrugada
nos primeiros gorjeios da manhã!
* * *
Esqueci das barreiras que transpus
percorrendo as vertentes da poesia,
sempre em busca da forma mais completa
das origens dos versos que eu fazia;
só depois que bebi desta vertente,
Deus me fez tangerino do repente
e tropeiro do verso que me guia!

SEXTILHAS

É um eterno labutar
essa luta sempre a sós;
um no Sul, outro no Norte,
e o verso frio, sem voz,
quebrando o silêncio mudo
desta distância, entre nós.
* * *
A inspiração de meus versos
vem do infinito, do além;
dos arpejos dos suspiros
que as cordas da lira tem,
e do sorriso da noite,
de todo canto ela vem!
* * *
A saudade é um grande bem
na vida de um sonhador;
pois se não fosse a saudade
que provoca pranto e dor,
não havia entre os amantes
os lindos sonhos de amor!
* * *
Nossos versos não merecem
tratamentos desiguais;
são os fiéis guardiãs
que amamos  cada vez mais,
e a mais feliz harmonia
das liras celestiais!
* * *
Se o destino na verdade
aponta o nosso caminho,
que me dê a inspiração
de um poeta passarinho,
que canta versos ao vento
e faz serestas no ninho!
* * *
Penso na vida que passa
ligeira como quem voa,
no amor que se faz presente
no lar de cada pessoa,
e em tudo quanto se alcança
na graça de quem perdoa!
* * *
Eu vivo sempre a rezar
neste mundo em desatino,
peregrinando no tempo
igualmente a um beduino,
que leva o terço na mão
e a fé na luz do destino!
* * *
É na força da oração,
que a inspiração nos convém.
Quando dobramos o orgulho
erguemos um grande bem,
vão-se as tristezas da vida
e os desenganos também!
* * *
No mar onde a poesia,
beijando as ondas passeia;
meu barco cheio de encanto
por todo canto vagueia,
buscando as ondas dos versos
para adormecer na areia!
* * *
Que bom na vida seria
um sono à luz do luar,
onde um poeta cantasse
linda canção de ninar,
e a lua beijasse os lábios
dos versos que vem do mar!
* * *
Fontes:
Prof. Garcia, Zé Lucas e Ademar Macedo. Debate em Setilha Agalopada. RN, 2012.
Zé Lucas, Gislaine Canales, Ademar Macedo, A. A. de Assis, Delcy Canalles e Prof. Garcia. Sexteto em sextilhas: debate pela internet.

Prof. Garcia (1946)

Francisco Garcia de Araujo (Prof. Garcia), nasceu na fazenda Acari, Município de Malta-PB, em 27 de novembro de 1946. Em 1959, foi para Caicó-RN, na companhia do tio, poeta e amigo José Lucas de Barros, com quem morou vários anos, e vive até hoje.

    Licenciado em Letras (Português e Inglês), Bacharel em Direito pela UFPB e Pós-graduado em Teologia e Éticas Especiais.

    Poeta, trovador, escritor e compositor.

    Publicou em 1974 o livro TROVAS QUE SONHEI CANTAR.

    Foi bancário, vereador e secretário municipal em Caicó-RN.     

    Lecionou Português, Francês, Inglês e Espanhol.

    Casado com Anunciada Laura de Araujo Garcia, com quem tem três filhas: Mara Melinni de Araujo Garcia (Advogada, Pós-graduada e poetisa), Ava Murielli de Araujo Garcia (Pedagoga e Pós-graduada) e Eva Yanni de Araujo  Garcia (Formanda em Pedagogia e poetisa).

    Presidente do Clube dos Trovadores do Seridó (CTS),

    Delegado da União Brasileira de Trovadores (UBT) em Caicó-RN,

    Delegado do Portal Cen para o RN.

    Sócio-efetivo da Academia de Trovas do Rio Grande do Norte e da União Brasileira de Trovadores, seção de Natal-RN.

    Detentor de várias premiações em concursos de trovas e outras modalidades poéticas no Brasil e em Portugal.

    Radio Amador com prefixo PS7-ACK, e em 26 anos de radioamadorismo já fez mais de 53 mil contatos internacionais, tendo colaborado em situações extremas para salvar vidas humanas.

    Atualmente, é pequeno empresário no ramo de atacado, em Caicó-RN.

Fonte:
Carlos Leite Ribeiro – Portal CEN – http://www.caestamosnos.org/autores/autores_p/Professor_Garcia.htm

sábado, 30 de novembro de 2013

A. A. de Assis (Revista de Trovas “Trovia” – n.168 – dez 2013)


Ao céu eu faço, baixinho,
um pedido, o dia inteiro:
que seja sempre vizinho
do meu o teu travesseiro...
Adalberto Dutra de Rezende

Neste Natal eu vou pôr
minha boca na janela
para você, por favor,
deixar o seu beijo nela...
Antônio Roberto Fernandes

Ele trouxe ao seu rebanho
muito amor e muita luz;
barqueiro de um barco estranho
talhado em forma de cruz!...
Izo Goldman

No Ano Novo passado
tanto juraste, meu bem,
que espero tudo, ao teu lado,
– no Ano Novo que vem!...
Newton Meyer

Contemplo o céu para vê-las
com um respeito profundo,
pois na raiz das estrelas
eu vejo o dono do mundo.
Rodolpho Abbud

Trovador é um timoneiro
no mar da imaginação,
conduzindo seu veleiro
por mil mundos de ilusão...
Walneide Fagundes Guedes

Adeus, querido Irmão e Mestre Rodolpho Abbud. Por meio século você
ajudou a fazer da Trova a mais bela escola literária do mundo.


 

Simplinha, porém cheirosa;
fogosa, apesar de feia,
Xilinha era a mais beijosa
das moças da minha aldeia!
Archimedes de Maria – RJ
 

Preso em flagrante arruaça,
diz num sonoro impropério:
– “Prendam também a cachaça,
que é quem me tira do sério!”
Ma. Madalena Ferreira – RJ

Se a esposa toma injeção,
ciumento, o esposo inseguro,
ao final da aplicação,
confere onde foi o furo...
Maria Nascimento – RJ

Com seu corpo lindo e forte,
a garota de olho azul
só libera a zona norte
e bloqueia a zona sul...
Marilúcia Rezende – SP

Quando, dengosa, tu piscas
os teus olhinhos assim,
não precisas de outras iscas,
esse anzol cuida de mim...
Nélio Bessant – SP

O alfaiate Zé Lucena,
perseguindo um sonho eterno,
vive sempre atrás da sena,
mas, coitado, só faz terno...
Pedro Ornellas – SP

“O vinho seco faz bem”
– recomendou-lhe a vovó...
E ele foi ao armazém
para comprar “vinho em pó”!
Renato Alves – RJ

Garota que, muitas vezes,
com jantares se tapeia
vai, durante nove meses,
“chorar... de barriga cheia!”
Therezinha Brisolla – SP


 
O mundo precisa crer
num Deus que se chama Amor.
Se essa crença não valer,
nada mais terá valor!
A. A. de Assis – PR
-
Ante a doida correria
de um povo que vai e vem,
nas cidades de hoje em dia
ninguém conhece ninguém.
Agostinho Rodrigues – RJ
-
Na tarefa que lhe cabe,
Deus trabalha com você;
mas, por você, já se sabe,
Deus não faz nem diz por quê.
Amilton Maciel – SP

A primavera enternece
e me traz grande ventura.
Qualquer desgosto fenece
ante tanta formosura.
Angela Stefanelli – RJ

Parabéns, presidente Abritta, pelo seu ótimo trabalho na UBT nacional.

Na velha casa vazia,
onde entrei com ansiedade,
só o silêncio respondia
ao chamado da saudade.
Angélica Villela Santos – SP

Xícaras postas na mesa
e o café sobre o fogão...
Só não aguento a incerteza
se você virá ou não.
Antonio Seixas – RJ

Quero viver pra valer
a vida de que disponho.
Vou sorrir, brincar, correr,
e fazer da vida um sonho.
Arlene Lima – PR

Ave feita prisioneira,
meu pássaro coração
tem lutado a vida inteira
contra as grades da razão!
Arlindo Tadeu Hagen – MG

Se em sonhos eu volto à infância,
curto as delícias da idade.
– Deleto o tempo e a distância,
faço um auê na saudade...
Bruno Pedina Torres – RJ

Há na tragédia da fome
este mistério profundo:
é Cristo quem se consome
em cada pobre do mundo.
Clevane Pessoa – MG

Mãos tristes, temendo ausências,
se despedem com revolta...
– Nosso adeus tem reticências
que acenam gritando: – Volta!
Carolina Ramos – SP
 

Rústico curral bovino,
maternidade do Amor.
– No corpo de um Deus-Menino,
nasceu-nos o Salvador.
Cônego Telles – PR

Cuando nace la alborada,
los pájaros agradecen
con cantos en la enramada,
¡o en árboles que florecen!
Cristina Olivera Chávez – EUA

Com o andar cambaleante
fiz a trilha verdadeira;
não sei dar passo gigante,
porém sei chegar inteira.
Dáguima Verônica – MG

A trova, pra defini-la,
precisamos entendê-la,
amá-la, lê-la, senti-la
e, sobretudo, escrevê-la!
Delcy Canalles – RS

Não há palavra nenhuma
tão grande quanto “saudade”
que em sete letras resuma
a dor e a felicidade.
Diamantino Ferreira – RJ

Preenchi a tua vida:
fui musa, amante e modelo.
Mas, hoje, a minha partida
resiste a qualquer apelo.
Dilva de Moraes – RJ

Quisera eu trova compor
sobre a raiz da emoção...
Contar que a raiz do amor
tem por vaso o coração,
Dinair Leite – PR
 

Em minha varanda, a sós,
vendo os ganchos na parede,
eu choro a falta dos nós
que amarravam nossas redes!...
Domitilla B. Beltrame – SP

Sou livre, sem restrição,
mas afinal, para quê?
Mil vezes a escravidão...
mas juntinho de você.
Dorothy Jansson Moretti – SP

Alegre, meiga, estouvada,
em constante movimento,
tão inconsequente e amada,
a brisa é a infância do vento...
Élbea Priscila – SP
 

Vejo no espaço infinito
e em cada constelação
nosso amor nos céus inscrito
como obra da criação.
Eliana Jimenez – SC

Bebo lembranças em tragos,
ao ponto da embriaguez,
para curar os estragos
que a tua ausência me fez!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

É meu o teu coração,
embora fujas de mim...
Teus lábios dizem que não,
mas teu olhar diz que sim!...
Ercy Maria Marques – SP

Eu redobrei a procura
e encontrei com tanto gosto
duas fontes de ternura
nas covinhas do teu rosto.
Francisco Garcia – RN

Embora o tempo me marque
com várias rugas na tez,
se um dia voltar ao parque
serei criança outra vez.
Francisco Pessoa – CE

Paz, amor, fraternidade,
eis o lema entre as nações;
porém quanta falsidade
em só três afirmações
Gasparini Filho – SP

Que Deus me dê paciência
para sofrer esta dor
de ver que a inconsciência
mata e diz que é por amor!
Gisela Sinfrónio – Portugal

Uma luz incandescente
emana de forma nova
quando alguém declama e sente
todo o prazer que há na trova.
Gislaine Canales – RS

Uns duros feito rochedos;
outros, plumas que esvoaçam...
Os corações têm segredos
que nem os sábios devassam.
Héron Patrício – SP

Junto à Fontana di Trevi
joga moeda o turista;
faz um pedido e se atreve
a sentir amor à vista!
Hulda Ramos – PR

Não há dor mais dolorida
do que a tristonha aparência
de quem matou pela vida
a sua própria inocência.
J. B. Xavier – SP

Meu Deus, ante o desatino
da descrença e do desdém,
que eu pratique o Teu ensino
de não julgar a ninguém!
Jeanette De Cnop – PR

Não há sorriso que emplaque
na comédia desta vida,
se na ironia da claque
qualquer verdade é escondida.
João B. X. Oliveira – SP
 

Ainda és minha namorada,
teu namorado ainda sou.
Nosso amor não mudou nada
pelo tempo que passou.
João Costa – RJ
 

Tanta gente em si perdida
entre sombras se escondendo.
Cada dia é outra vida
que em disfarces vai morrendo.
José Feldman – PR

Vou brincar com pirilampos
e beijar as flores nuas
pra ver se encontro nos campos
a paz que fugiu das ruas!
José Lucas de Barros – RN

Eu sou pequeno, seu moço,
mas, quando tiro o chapéu,
minha alma estica o pescoço
e enxerga Deus lá no Céu!
José Messias Braz – MG

A esperança é algo suave,
que não apenas conforta,
mas funciona como chave
que faz abrir qualquer porta!
José Ouverney – SP

O girassol não desiste
da busca eterna da luz:
sabe que nada resiste
à perda que isso conduz.
Laérson Quaresma – SP

Foi no tempo da janela
e do namoro à distância
que a vida, muito mais bela,
tinha tão grande importância!
Luiz Carlos Abritta – MG

A cada dia que passa,
muda minha realidade,
meus sonhos viram fumaça,
amores viram saudade.
Luiz Hélio Friedrich – PR

Votos de máximo sucesso para Domitilla na presidência nacional da UBT.

Se caem do céu as águas,
com tanta beleza e encanto,
por que desencanto e mágoas
há nas águas do meu pranto?
Mª Conceição Fagundes – PR

Amizades são pedrinhas
de brilhante verde-mar.
Conquistadas, são rainhas,
neste mundo vão reinar.
Mª Luiza Walendowsky – SC

Quando a dúvida se instala
dentro de um peito infeliz,
não importa o que ela fala,
já se sabe o que ela diz!
Mª Thereza Cavalheiro – SP

É da flor mais delicada,
e fruto do bom trabalho,
o suor que à madrugada
brota em pétalas de orvalho.
Mário Zamataro – PR

Saudade, mágoa sentida,
barco distante do cais;
pedaço da própria vida
que a gente não vive mais ...
Marta Paes de Barros – SP

Já chorei demais por ela
sem que tenha merecido...
Hoje as lágrimas são dela
por eu já tê-la esquecido.
Maurício Cavalheiro – SP

Se encontro, ao voltar pra casa,
as tuas mãos carinhosas,
o meu amor já se abrasa,
com teu perfume de rosas.
Maurício Friedrich – PR

Meu caminho é o teu caminho!
Se a morte nos separar,
quem chegar no céu sozinho
chora até o outro chegar.
Mílton de Souza – RS
 

Ficou mais lento o meu passo?
Caminharei, mesmo assim!
Só temeria o cansaço
se me cansasse de mim...
Newton Vieira – MG

Se faltar coragem para sacudir a poeira, ficaremos eternamente
escrevendo as mesmas coisas, do mesmo jeito.


Quem vive a vida por cima,
conversa, versa e, no céu,
nem se preocupa se a rima
é perfeita ou dá troféu.
Nilton Manoel – SP

No começo de um namoro,
quanta promessa se faz...
Mas tudo termina em choro
quando o sonho se desfaz.
Olga Agulhon – PR

Passa o tempo... e, enquanto corre,
a lembrança vai sumindo...
Mas a saudade não morre:
– Apenas fica dormindo.
Pedro Melo – SP

Deixa a lágrima rolar...
Deixa teu pranto fluir...
Quem nunca sabe chorar
não é capaz de sorrir.
Selma Spinelli – SP

As dores e os desencantos
não foram tantos assim...
Tua boca e os teus encantos
calaram bem mais... em mim!
Sérgio Ferreira da Silva – SP

Pinheiro do Paraná,
eu não te esqueço jamais,
algo mais lindo não há
no chão dos Campos Gerais!...
Sônia Ditzel Martelo – PR

Meu coração não se acalma
quando a saudade me vem;
é o soluçar de minha alma
chorando a ausência de alguém.
Sônia Sobreira – RJ

Quem se concentra no estudo
vence o mundo, sem esquema.
Leva consigo um escudo:
- Enfrentar qualquer problema.
Vânia Ennes – PR
 

Poeta, vês a beleza
em tudo o que há por aí,
mas afirmo com certeza
que ela está dentro de ti.
Zenaide Marçal – CE

========================
FELIZ NATAL – FELIZ 2014
=======================
Visite →    http://poesiaemtrovas.blogspot.com/
http//www.falandodetrova.com.br/
http://universosdeversos.blogspot.com/
http://aadeassis.blogspot.com/

Eduardo Campos (O Abutre)

A sala estava quase na penumbra.

                O ruído que vinha da rua era manso; não conseguia violar o silêncio que havia. Devia chover porque alguém puxou um agasalho para os ombros e fez um gesto de quem sente frio.

                Um fósforo foi riscado. O zap! do palito, ao se incendiar naquele silêncio, soou a todos como uma explosão de uma bomba. A chama avivou o rosto do cavalheiro de marrom, conferindo-lhe um toque todo especial aos seus olhos tristes. Mas ninguém falou ainda. Apenas u'a mão estendeu o cinzeiro, por mera delicadeza. Nada mais.

                Agora, todos podiam ouvir o ruído da chuva no telhado, sentir a presença do vento enfriado que vibrava as cortinas da sala, velhas cortinas bordadas com esmero e estranguladas por laços de fita amarela, desbotada pelo tempo.

                A empregadinha, que apareceu à porta do quarto, contou mentalmente o número de pessoas que se achavam com a doente. Eram seis. Seis xícaras de café outra vez! A velha estava de lado, não contava mais. Morria na certa. Se o Dr. Balduíno dizia que ela podia levantar-se, convalescer, era por não querer perder a freguesia gorda de quase dez anos. E estirava, estirava...

                Ela virou sobre os tacões dos sapatos e, com os seus passos, foi aumentando o ruído que se precipitava agora do telhado para o chão, da rua para dentro de casa.

                – Deve ter bastante febre...

                Homens e mulheres ergueram a vista a um só tempo.

                D. Maria falara mais uma vez. Que força, que coragem! Naquele casarão, há dois dias, desde que a velha adoecera de repente, apenas a sua voz fazia-se ouvir. E como a temiam os outros! A todo instante, os irmãos expectavam uma acusação. Por isso, não falavam, e só de raro em raro confirmavam a sentença do médico: – o caso é perdido, mas pode ser...

                Não é apenas D. Maria que lhes infunde medo. O homem que ali está, parado, absorto, lançando uns olhos maus para os demais, representa o perigo na repartição da herança. Veio de longe, do Rio de Janeiro, logo soube do ataque da mãe. Dizem, e tudo pode ser verdade, que assassinou a esposa friamente, e, em seguida, fugiu para Buenos Aires com a amante.

                Na roda familiar houve quem se insurgisse à presença de um filho tão ruim naquela casa de dor. Mas Pedro veio. Apareceu sem se saber como, sem haver telegrama, nada. Chegou ao velho sobrado emparelhado com aquele temporal que desabava sobre a cidade e comunicava a morte, a todos, por um friozinho arrepiante.

                D. Maria compreende por que não o querem em casa. A herança da velha fica melhor dividida para seis; tocava uma fazenda de criar para cada filho. Dez léguas de terra e o sítio Felicidade estavam ali esperando a partilha. Era um quinhão gordo, que pertencera a cinco gerações.

                E Pedro veio. O abutre estendia agora as suas garras, fazia calar as bocas do ódio, do crime e do embuste.

                D. Maria, que não se aliara aos outros, não consentia porém palavra ao intruso. O irmão mais velho representava um perigo mortal para cada um. Viera destruir, simplesmente aniquilar os castelos que eles erguiam. E quando se retirava da sala em que, esquálida, a mãe agonizava, era para armar um golpe, também mortal, contra o irmão indesejável. O abutre precisava ser vencido.

                Marieta, a irmã mais nova, rompeu ostensivamente com D. Maria. Só ela, gananciosa como era, poderia ter tido a ingrata ideia de comunicar o desenlace iminente ao irmão. Foi necessário que Anselmo, trêmulo, metido nos seus complexos, receoso de perder o sítio que cuidava há vinte anos, aplacasse a exaltação.

                Por isso, nessa noite, naquela sala deserta de vidas, estavam todos mais ou menos rompidos uns com os outros, mas intimamente unidos contra o homem que, de longe, viera perturbar o plano que haviam arquitetado. E o abutre - assim considerado pelos irmãos desdenhosos – continuava imperturbável. Se erguia os olhos, era para desfazer um ou outro murmúrio, inconsequente, que vagava pelo quarto, ou baixar o olhar rancoroso, mais atrevido, de alguém.

                Quando o café chegou à sala, procuraram servir-se todos: estavam ávidos. A verdade é que nenhum deles o desejava tanto. Atropelavam-se, a fugir do silêncio que os envolvia, comprimindo-os mortalmente.

                – Açúcar? Mais?

                Anselmo respondeu tão alto, aquiescendo, que ele próprio assustou-se. D. Maria pensou consigo mesma: "Não ouviu lhe perguntarem se queria açúcar... Ele entendeu dinheiro."

                A bandeja, solenemente, recolheu as xícaras e desapareceu levada pelas mãos frias da empregadinha. "Diabo de gente esquisita! Que aperreio, meu Deus! Ao menos se a dona da casa morresse logo e eu também entrasse no seu dinheiro! Ah, o dinheiro da velha!"

                D. Maria cerrou os olhos à impressão de que Pedro é o demônio em uma de suas mil representações físicas. Num sobressalto, bateu com a mão gelada de medo no rosto de Antonino, o irmão caçula. Este, assustando-se, apavorou a todos num grito que abalou a própria enferma. Tremeram homens e mulheres, arrepiados. Menos Pedro, que se mantinha encalmado, os olhos maus, vigiando os outros. Não se mexeu. Nada disse. Escapou-lhe apenas um gesto imperceptível, repreendendo-os.

                Antonino mergulhou na poltrona. Anselmo começou a pensar à toa. Então, aquele bandido é quem lhe vinha tirar a fortuna que merecia?! No seu entender, reconhecia-se o mais honesto dos irmãos. Sempre assistira à mãe em todos os momentos, principalmente nas questões de família. Era justo ganhar maior quinhão, ficar com o estoque de aguardente que valia alguns milhares de cruzeiros.

                Marcos debatia-se adiante, casmurro, a arrolar compromissos. Na certa, o destino ingrato, àquela hora, vinha truncar-lhe os passos, por intermédio do irmão amaldiçoado, indesejável na família. Ah, vida infame! "Paris... Nápoles..." Instante houve, nesse recordar inconsequente, em que não viu na cama a mãe moribunda. Transparecia nela uma criatura mais jovem e linda, a jogar-lhe moedas de ouro aos pés. Inexplicavelmente, ele começou a rir. E rindo estava ainda quando abriu os olhos e viu que o observavam. Teve vontade de dizer que nenhum dos irmãos era menos falso que ele; que estavam todos loucos para ver a mãe morrer, especialmente o abutre, ruim, sórdido, que não falava, silencioso, a vigiá-los. Felipe ergueu-se da cadeira de embalo e de repente foi ao leito. Precisava ocupar-se em algo, passar o tempo, fugir à tensão. Lembrou-se de tomar a pulsação da velha; anotá-la:  

– Deve estar com mais febre...

                Antonino desejou um jarro de flores para esborrachá-lo na cabeça do irmão. "Esse infeliz não podia lembrar outra coisa?"

                Anselmo girava longe dali. Calculava a reforma do engenho, a safra do próximo ano, a viagem ao Rio de Janeiro, a negócios, claro! Elvira não o acompanharia. Assim ele teria mais liberdade, mais dinheiro para gastar no jogo.

                O remorso acudiu-lhe então. E ele, fazendo-se menos cruel, procurava convencer-se de que a ingratidão à mulher importava pouco. A vida era aquilo. Na desgraça de uns, subiam outros. D. Francisca, por exemplo, vivera bastante. Era justo que morresse, que fosse descansar em paz...

                – Sim, descansar...

                Marcos apanhou o resto da frase. Afinal, a velha descansaria em paz para que todos eles fossem felizes; em particular, para o pagamento das dívidas que fizera.

                                                                              ***

                Diminuiu a chuva. Deixara de soprar o vento. No leito, mexia-se a enferma; eram-lhe incompreensíveis os gestos da mão semiparalisada. D. Maria não podia ver. Marcos, distante, prendia-se aos seus sonhos, perdia dinheiro em Paris, na Itália... Felipe pedia a mão de Glorinha em casamento. Anselmo gozava as férias, a adiposa mulher chorando (em casa) e ele a gastar ao pé da roleta... Marieta corria, longe; fugia com o namorado aventureiro.

                                                                              ***
               
Agora, a chuva cessara de todo. O vento aquietara-se. O silêncio, de repente, foi tamanho, que acordou a todos; e os trouxe do mundo de fantasias em que se haviam metido. Com surpresa, viram então o abutre debruçado sobre a enferma. Uma vela, de chama indecisa, ardia-lhe nas mãos. Um a um, mal despertados, foram-se acercando do leito. Pensamentos estranhos tomavam conta deles, e a dúvida crescia angustiante e única: "Teria aquele desgraçado acabado de matar a velha?"

                Já ao pé da cama, sentiram que não existiam; eram simplesmente miseráveis... Aquele homem de feições austeras, silencioso e frio, de vida legendária e infame, tinha os olhos sofridos, enlagrimados.

                E não foi com a voz de abutre que ele começou a falar, sobrelevando a inquietação de todos:

                – Irmãos, choremos. Nossa querida mãe repousa na santa paz de Deus.

                Sobre o telhado, em desespero, rebentou outra vez a chuva.

(Eduardo Campos, O Abutre e Outras Estórias)
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.