quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Antonio Brás Constante (Aprisionados, ou melhor... casados)


O casamento é a prisão perfeita, pois faz com que o próprio apenado decida se entregar, construindo sua cela em um terreno financiado por ele mesmo, providenciando o seu sustento e de sua carcereira. Tudo feito por atos espontâneos, motivados pela sociedade, que convence o candidato a prisioneiro com promessas de
felicidade eterna.

A pena para quem casa é de prisão perpétua, pois o juiz, ou melhor, o padre sempre finaliza a sentença dizendo: “até que a morte os separe”. A única forma conhecida de se libertar dessa prisão é por mau comportamento. O casamento é um regime onde
o prisioneiro cumpre sua pena em regime semiaberto. Saindo durante o dia para trabalhar como qualquer homem livre e solteiro, e voltando ao seu cárcere ao anoitecer.

Para que o homem não se sinta tentado a “pular o muro” em busca de alguma louca aventura fora de sua cela, existem dispositivos extremamente eficientes para monitorá-lo, intitulados de “vizinhos” e “parentes”, que conseguem rastrear suas atividades, impedindo qualquer desvio de sua conduta.

Uma das curiosidades sobre o casamento é que o homem (por se achar muito esperto) resolve em um dado momento que pode roubar a sua noiva dos pais dela, mas esquece que fazendo isto é ele quem acabará preso. Aliás, o casamento é o único sistema penal onde o prisioneiro pode abertamente ter relações íntimas com sua carcereira, tendo inclusive filhos com ela, que podem ser futuros prisioneiros ou futuras carcereiras. Como o aprisionado dispõe dessa liberdade com a carcereira, fica proibido de ter outras visitas íntimas.

As punições por seus erros de conduta vão desde a falta de um jantar até algumas noites dormindo no “solitário” (também conhecido como sofá), que é uma versão doméstica da solitária. É nesse lugar que o pobre marido tem de se sujeitar a ficar em eventuais brigas conjugais. Ao invés de algemas, o apenado recebe uma aliança, que deve permanecer em seu dedo enquanto viver. A retirada ou perda dessa joia é recebida com sessões de tortura, que começam nos ouvidos e terminam com a ameaça da vinda de sua sogra para morar com eles em sua cela.

Nos finais de semana, os prisioneiros têm direito a banhos de sol, desde que façam os mesmos segurando uma enxada, que será utilizada para capinar o pátio. O prédio da prisão onde o apenado reside serve para duas situações: garantir o conforto de sua carcereira e prole, bem como facilitar a localização do mesmo para o recebimento dos impostos vindos pelo correio, onde é cobrado pelo governo por estar preso.

O homem, quando se deixa enfeitiçar pelos encantos de uma mulher, fica cego de amor e logo vai entregando a chave de seu coração, esquecendo-se de que o resto do corpo também faz parte do pacote. Em algumas dessas prisões chamadas de lares, as carcereiras efetuam revistas nos prisioneiros quando estes retornam do trabalho, procurando em seus corpos e bolsos marcas ou bilhetes que sirvam de prova contra os réus.

Algumas normas devem ser obedecidas na prisão: Não “roubar” doces da geladeira. Não ficar atirado no sofá da sala “matando” tempo. E principalmente não “desviar” olhares para outras mulheres.

Enfim, o casamento é uma prisão dentro de outra prisão chamada vida, e, apesar de todas as reclamações que possam surgir, ainda é um lugar maravilhoso, seguro e aconchegante, pelo qual vale a pena cumprir integralmente a sua pena. Case-se, e saberá se estou dizendo a verdade ou apenas lhe pregando uma peça.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 7


AS DUAS MÃES

MOTE:

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da Virgem Maria,
era uma santa escutando
o que outra santa dizia.
(Barreto Coutinho)

GLOSA:

Eu vi minha mãe rezando
numa prece doce e pura;
por todos estava orando,
com grande amor e ternura!

A minha mãe, ajoelhada,
aos pés da Virgem Maria,
parecia a madrugada
ao romper de um novo dia!

Como um sol que vem raiando
vislumbrei com emoção:
era uma santa escutando
da outra santa, a oração!

Unidas, no mesmo amor,
a mãe de Jesus, ouvia,
com carinho e com fervor
o que outra santa dizia.
_____________________

CANIÇO DE TROVAS

MOTE:

No imenso "mar da ternura",
eu fiz pescarias novas:
Cheguei a pescar ventura,
com meu caniço de trovas!
(Delcy Canalles)

GLOSA:

No imenso "mar da ternura",
eu navego com carinho
e a paz, na minha procura,
eu encontro em meu caminho!

E nesse mar de poesias,
eu fiz pescarias novas:
pesquei muitas alegrias...
Os meus versos são as provas.

Eu afoguei a amargura!
Dei vida ao contentamento!
Cheguei a pescar ventura,
naquele exato momento!

Multipliquei, eu bem sei,
na piracema, em desovas,
os peixes que, então, pesquei,
com meu caniço de trovas!
____________________

SILÊNCIO E LÁGRIMA

MOTE:

A lágrima silenciosa
ninguém lhe presta atenção,
por isso é mais dolorosa
quando inunda o coração!
(Fernando dos Santos)

GLOSA:

A lágrima silenciosa
abre sulcos em nossa alma,
ela é sutil, misteriosa
e nos tira toda a calma.

Por ser assim. sorrateira,
ninguém lhe presta atenção,
rola e se esconde, ligeira
num grande mar de emoção.

É uma lágrima teimosa
que machuca de verdade,
por isso é mais dolorosa
e causa infelicidade.

Sofremos intensamente
na maré da solidão,
com essa lágrima dolente
quando inunda o coração!
__________________
NOVO ACALENTO

MOTE:

Ao sentir falta dos laços
de um amor, mesmo bisonho,
eu me acalento em teus braços
no horizonte do meu sonho!
(Florestan Japiassú Maia)

GLOSA:

Ao sentir falta dos laços
do amor que a nós dois unia,
eu preencho meus espaços
com lembranças: noite e dia!

Sinto saudade do amor,
de um amor, mesmo bisonho,
mas sonhando com fervor
a minha angústia transponho!

Diminuindo meus cansaços,
na minha imaginação,
eu me acalento em teus braços
e vivo nova emoção!

E nesse novo acalento
eu me faço bem risonho,
um sonho novo, eu invento,
no horizonte do meu sonho!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas VI. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. 
http://www.portalcen.org. abril de 2003.

Concurso Internacional de Poesia do Clube da Simpatia (Classificação Final)

O Clube da Simpatia envia muitos Parabéns aos poetas que foram premiados no “Concurso Internacional de Poesia/2018” e agradece, com muito carinho, a todos os que nele participaram.

“POESIA LIVRE”

VENCEDORES

1º PRÊMIO 
Jorge Ferro Rosa (Portugal)
Título: “Olhar Trespassado”

2º PRÊMIO 
Isidoro Cavaco (Portugal)
Título: “Recordando”

3º PRÊMIO 
Maria Helena Ramos (Portugal)
Título: “Não Sabemos Amar”

MENÇÕES HONROSAS

Donzília Martins (Portugal)
Título: “Desencontro”

Natália Vale (Portugal)
Título: “Pintando Um Retrato”

Mifori (Brasil)
Título: “Jornadas”

Leonilda Yvonneti Spina (Brasil)
Título “Juventude”

Alfredo Nogueira Pereira (Brasil)
Título “Um Anjo Voou Ao Céu”

"QUADRAS (TROVAS)"

VENCEDORES

1º PRÊMIO 
Isidoro Cavaco (Portugal)

2º PRÊMIO 
António Augusto de Assis (Brasil)

3º PRÊMIO  
Joel Hirenaldo Barbieri (Brasil)

MENÇÕES HONROSAS

Domingos Freire Cardoso (Portugal)

Natália Vale (Portugal)

Lóla Prata (Brasil)

Nadir Nogueira Giovanelli (Brasil)

Fontes:
- A. A. de Assis

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Franz Kafka (O Vizinho)

Meu negócio descansa inteiramente sobre os meus ombros. Duas senhoritas com suas máquinas de escrever e seus livros comerciais no primeiro quarto, e uma escrivaninha, caixa, mesa de informações, cadeiras de braços e telefone no meu, constituem todo meu aparelhamento de trabalho. É muito fácil controlar isso com uma vista de olhos, e dirigi-lo. Sou muito jovem e os negócios se acumulam aos meus pés. Não me queixo, não me queixo. 

Desde o Ano Novo, um jovem alugou sem hesitar a sala contígua, pequena e desocupada, que por tanto tempo titubeei, estupidamente, em tomar para mim. Trata-se de um quarto com antecâmara e, além do mais, uma cozinha. Tivesse podido utilizar o quarto e a antecâmara - minhas duas empregadas sentiram-se mais uma vez sobrecarregadas em suas tarefas -, mas, para que me teria servido a cozinha? Esta pequena hesitação foi a causa de permitir que me tirassem a sala. Nela está instalado, pois, esse jovem. Chama-se Harras. Com exatidão não sei o que faz ali. Sobre a porta lê-se: "Harras, escritório". Pedi informações, comunicaram-me que se trataria de um negócio idêntico ao meu. Na realidade, não vem ao caso dificultar-lhe a concessão de crédito, pois se trata de um homem jovem e de aspirações, cujas atividades tenham talvez futuro, mas não se poderia, contudo, aconselhar que se lhe outorgue crédito, pois atualmente, segundo todas as presunções, careceria de fundos. Quer dizer, a informação que se dá habitualmente quando não se sabe de nada. 

Às vezes encontro Harras na escada, deve ter sempre uma pressa extraordinária, pois se escapuliu diante de mim. Nem mesmo pude vê-lo bem ainda, e já tem pronta na mão a chave do escritório. Num instante abre a porta, e antes que o observe bem já deslizou para dentro como a cauda de uma rata e aí tenho outra vez à minha frente o cartaz "Harras, escritório", que li muitas mais vezes do que o merece. 

A miserável finura das paredes, que denunciam o homem eternamente ativo, ocultam porém o desonesto. O telefone está pendurado à parede que me separa do quarto de meu vizinho. 

Não obstante, destaco-o apenas como constatação particularmente irônica. Mesmo quando pendesse da parede oposta, ouvir-se-ia tudo da sala vizinha. Evitei o meu costume de pronunciar ao telefone o nome de meus clientes. Mas não é necessária muita astúcia para adivinhar os nomes através de característicos mas inevitáveis torneiros da conversação. Às vezes, aguilhoado pela inquietação, sapateio nas pontas dos pés em volta do aparelho, com o receptor no ouvido, mas não posso impedir que se revelem segredos.

 Naturalmente, as resoluções de caráter comercial se tornam assim inseguras e minhas voz, trêmula. Que faz Harras enquanto telefono? Se quisesse exagerar muito - o que é preciso fazer com frequência para ver claro -, poderia dizer: Harras não precisa telefone, usa o meu, colocou o sofá contra a parede e escuta; eu, em troca, quando o telefone toca, devo ir atender, tomar nota dos desejos do cliente, adotar resoluções graves, sustentar conversações de grandes proporções, porém, antes de tudo, proporcionar a Harras informações involuntárias, através da parede. 

Ou antes, nem mesmo espera o fim da conversação, porém que se ergue depois da passagem que lhe informa suficientemente sobre o caso, atira-se, segundo o seu costume, através da cidade e, antes de eu ter pendurado o receptor, está talvez trabalhando já contra mim.

Fonte:
Franz Kafka. Contos.

sábado, 29 de setembro de 2018

Ógui Lourenço Mauri (Primavera, De Novo!...)



Fonte:
Poema enviado pelo autor

Vinicius de Moraes (A Bela Ninfa Do Bosque Sagrado)


Hollywood, novembro de 1946: A noite é alta, Ciro's terminou e estamos todos - um destacado grupo de "estrelas" e "astros", entre os quais sou um modesto meteorito - na casa de Beverly Hills de Herman Hover, o notório dono da famosa boate de Sunset Boulevard. Vou nas águas de minha amiga Carmen Miranda, com quem saí e a quem, como um cavalheiro que sou, depositarei em sua vivenda de Bedford Street. Lá estão também as figuras ciclópicas de José do Patrocínio de Oliveira, o não menos conhecido Zé Carioca, e seu sonoplástico parceiro Nestor Amaral, ambos homens dos sete instrumentos, sendo que este é capaz de tocar o Hino Nacional batendo com um lápis nos dentes e o "Tico-tico no fubá" mediante pequenos cascudos acústicos aplicados no cocuruto - tudo diante de um microfone, bem entendido. 

Carmen está quieta, sentada no braço de minha poltrona. Tornamo-nos rapidamente grandes amigos. Celebramo-nos com o devido foguetório quando nos encontramos e uma vez juntos temos assunto para conversas intermináveis, sempre salpicadas de história sobre seus inícios como cantora, que me encantam. Sua verve é inesgotável e ninguém imita como ela antigas situações marotas em que se viram envolvidos, nos primeiros contatos com o público, seus velhos companheiros Mário Reis, Francisco Alves e Ari Barroso, na fase renascentista do samba carioca. Aprendi a querer-lhe muito bem e admirar a coragem com que enfrenta, ela uma mulher toda sensibilidade, a tortura de se ter tornado um grande cartaz comercial para Hollywood e de ter de sorrir à boçalidade, com raríssimas exceções, dos produtores, diretores, cenaristas, cinegrafistas, iluminadores e demais mão-de-obra dos estúdios. : Mas hoje Carmen está quieta. Seus imensos olhos verdes se horizontalizam numa linha de cansaço, quem sabe tédio, daquilo tudo já "tão tido, tão visto, tão conhecido", como diria Rimbaud. Cerca de nós, o ator Sonny Tuffs toca um piano mais bêbedo que o do genial Jimmy Yancey nas faixas em que foi gravado sem saber. Depois seu corpanzil oscila, ele se levanta só Deus sabe como e sai por ali cercando frango, não sem antes abraçar à passagem a atriz Ella Raines, que compareceu de noivo em punho e deixa-se estar com este a um canto, com um ar de Alicinha que só enganaria os drs. Sobral Pinto e Albert Schweitzer.

Numa poltrona a meu lado estira-se, com um viso suficientemente decomposto, o magnata Howart Hughes. Troco duas palavras com ele, mas o tedioso multimilionário e playboy, descobridor e bicho-papão de "estrelas", me parece muito mais interessado em Ella Raines - espécie de Grace Kelly de 1940, só que menos pasteurizada. Deixo-o, pois, à sua nova conquista, enquanto no meio da sala, Zé Carioca e Nestor Amaral "se viram" para chamar a atenção sobre os seus dotes de instrumentistas. Mas a pressão geral é grande e cada um procura cavar o pão da noite como pode, enquanto Herman Hover passeia com um ar de Napoleão em Marengo. Há propostas para um banho de piscina, para um concurso de rumba e outras trivialidades, mas ninguém topa mesmo porque o Sol (ou melhor "Ele", como dizem com o maior nojo meus amigos Américo e Zequinha Marques da Costa) já deve, contumaz ginasta matutino, estar pendurado à barra do horizonte para a sua atlética flexão de cada dia. O ambiente se está nitidamente desgastando em álcool e semostração. 

Vou propor a Carmen irmos embora quando uma cortina se entreabre e surge uma mulher espetacular. Não creio que ninguém houvesse reparado, mas a mim ela me pareceu tão linda, tão linda que foi como se tudo tivesse de repente desaparecido diante dela. 

Fiquei, confesso, totalmente obnubilado ante tanta beleza, muito embora essa beleza se movimentasse, por assim dizer, um pouco à base da dança a que chamam quadrilha: dois passinhos para diante e três para trás com direito a derrapagem. Mas o que o corpo fazia, o rosto desconhecia; pois esse rosto tinha mais majestade que Carlos Machado entrando no Sacha's. Ela olhou em torno com um soberano ar de desprezo e logo, dando com Carmen, tirou um ziguezague até ela, vindo postar-se no esplendor de todo o seu pé-direito justo diante de mim, coitadinho que nunca fiz mal a ninguém. 

- Hey, Carmen - disse ela. 

- Hey, honey - respondeu Carmen com o seu sorriso no 3. 

- Gee, Carmen, I think you're wonderful, you know. I think you're tops, you know. Tops. You're terrific. 

Para quem não sabe inglês, esse diálogo inteligente exprimia a admiração da moça por Carmen, a quem ela chamava de "do diabo", de "a máxima" e toda essa coisa. Passado o quê, dá ela de repente comigo lá embaixo, pobre de mim que tive bronquite em criança, e olhando-me por cima de suas pirâmides, fez-me a seguinte pergunta num tom de rainha para vassalo: 

- Who are you? (- Quem é você?) 

Declinei minha condição de modesto servidor da pátria no estrangeiro, o que não pareceu interessá-la um níquel. Em seguida, sem aviso prévio, ela debruçou-se a ponto de eu poder ver o algodãozinho que havia juntado no seu umbigo, pôs as mãos sobre os meus braços, trouxe o rosto até um centímetro do meu e cuspindo-me todo como devia fez-me a seguinte indagação: 

- Do you think I'm beautiful? (- Você me acha bonita?) 

Fiz-lhe os elogios de praxe. Ela esticou-se novamente e concordou comigo: 

- You're right. I'm very beautiful. But morally, I stink! (- Você está certo. Eu sou muito bonita. Mas moralmente eu... como traduzir sem ofender tanta beleza, tirante os ouvidos do leitor? - não cheiro muito bem.) 

Dito o quê, partiu como chegara, através da mesma cortina, para onde suponho houvesse um bar privado. Só sei que aquilo deu-me uma grande animação, a festa continuou até "Ele" raiar e eu acabei dançando com a linda moça, ela bastante mais alta do que eu, o que permitia ouvir-lhe bater o coração, de resto levemente taquícárdico. Antes de sair vi vários casais no Jardim que não se sabia mais quem era quem, vi Sonny Tuffs atravessado num sofá, vi coisas como só se vê em baile de carnaval. Festinha familiar, como diria a finada dona Sinhazinha. 

Fora perguntei a Carmen se ela sabia quem era a deusa. 

- É uma atriz nova que está entrando agora. Bonita, não é? Chama-se Ava Gardner.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para viver um grande amor.

Emílio de Meneses (Poemas ao Anoitecer) IV


DIES IRAE
(Sobre o Desastre do “Aquidabã”)

I
Na vastidão das águas da baía
Tudo é luz, íudo é paz neste momento.
Límpido, ao alto, nos acaricia
O amplo côncavo azul do firmamento.

Do mar ao céu, é mais profunda a calma.
Quer junto a nós, quer na amplidão remota,
Raramente nos ares a asa espalma.
Solitária branquíssima gaivota.

À barra, um transatlântico que ao mastro
Alto., estrangeiro pavilhão desfralda,
Deixando empós um marulhoso rastro,
Corta, solene, a líquida esmeralda.

Nuns tons leves de nítida aquarela,
Sobre um barco de pesca tardo e lento,
Em forma de triângulo, uma vela
Desenha ao longe o bojo pardacento.

Dentro do porto alteia-se a floresta
Dos mastros com suas flâmulas aflantes,
E, num silêncio abrigador de sesta,
Dormem os transatlânticos possantes.

O sol envolve com seu manto de ouro
As fortes naus afeitas às tormentas,
Que, ora, na quietação do ancoradouro,
Parecem grandes aves sonolentas.

Um que, certo, entre todos é o mais forte,
Parece estar sonhando em pompa de galas,
Num tempo em que ele se entregava à sorte.
Debaixo de uma abóbada de balas!

II
Sonha o grande couraçado,
Sonha o navio, e, no sonho,
Revê todo o seu passado
De heroísmo no mar medonho.

Tem dentro de si, contente,
A marujada louça
Que a glória nunca desmente
Do nome de Aqindabã.

Todo ele é uma alma sonora,
É da pátria a própria imagem,
A dar provas, de hora em hora,
De nobreza e de coragem.

Sonha que a sonhar desperta
Por uma alegre manhã
A uma voz que brada: Alerta!
Marujos do Aquidabã.

III
Ao balouço do mar que aos beijos o rodeia,
Todo em galas desperta o potente navio,
E aquela nobre gente aos perigos alheia,
Presto, provas quer dar de luzimento e brio.

A azáfama começa e em toda a plenitude,
Do vigor de um pulmão, as vozes de comando,
Qual hino triunfal de alegria e saúde
Brotam de um peito heróico os ares recortando.

Vibra em roda o estridor clangoroso de festa.
Move-se lado a lado a marujada ativa.
O grande couraçado orgulhoso se apresta
Pronto para aguardar luzida comitiva.

A hora de levantar e de partir não tarda;
Todo o navio anseia em grande açodamenlo
E em cima, no convés, o sol, de cada farda,
Tira efeitos de estranho e ideal deslumbramento.

Brilham fulvos galões; brilham, presas aos ombros,
Dragonas de retrós metálico de escarcha,
E tudo a refulgir envolve a nau de assombros
Nesse apresto sem par de uma imprevista marcha.

O ouro do fivelame e dos botões rebrilha,
Fulge, dos espadins, o ouro que o punho encerra.
E tudo é o resplendor e tudo é a maravilha
De uma festa de paz na grande nau de guerra!

IV
Ei-lo que chega ao porto entressonhado.
Foi suave a travessia
Mas em todos que estão no couraçado,
Não é a mesma a alegria.

A tarde desce. A noite se aproxima.
Foi todo alegre o dia.
Mas agora, nos astros, lá por cima.
Anda a melancolia.

Não pode ser mais calmo nem sereno
O vir da Ave-Maria.
Para a noite que chega sobre um trenó
De meiga nostalgia:

Foi nas águas do Amazonas
Que aprendi a navegar.
Meu Deus, por que me abandonas
Nas feias águas do mar?!

Ao vibrar melancólico da viola,
Aquele ingênuo canto
De um coração nostálgico se evola
Como sonoro pranto.

Do Pará nas ribanceiras
Deixei meus pais a chorar.
E aqui estou nestas canseiras
Da triste vida do mar!

O céu arqueia protetoramente
O amplo azul constelado,
Como que para ouvir a voz dolente
Que embala o couraçado.

Ai! Maranhão do meu berço.
Para por ti eu rezar,
Tem mais contas o meu terço
Do que vagas tem o mar!

Em torno, à vasta quietacão das águas
Mais o silêncio cresce
E só se escuta este gemer de mágoas
Num sussurro de prece:

Do Piauí nas densas matas
Vivia alegre a cantar
E hoje choro estas ingratas,
Duras tristezas do mar!

Este simples e rústico lamento
Tem talvez a virtude
De espairecer algum pressentimento
Do marinheiro rude:

Ao meu Ceará com certeza
Nunca mais hei de voltar.
Foi meu berço a Fortaleza,
Vai ser meu túmulo o mar!

Seja pressentimento ou desengano,
A meiga singeleza
Daqueles sons, tem do destino humano
A infinita tristeza:

Do Rio Grande do Norte
A terra quer se queimar;
Prefiro na seca a morte,
A morrer dentro do mar!

Fonte:
Emílio de Meneses. Obra Reunida. 
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

IV Concurso Infantil Dê o Nome do Personagem do Livro “Pegadas na Vila” (Prazo: 30 de Novembro)

REGULAMENTO

A partir do livro “PEGADAS NA VILA” da Escritora Neida Rocha, crianças de 4 a 13 anos de idade, de qualquer cidade do Brasil, poderão participar do IV CONCURSO INFANTIL: DÊ O NOME DO PERSONAGEM DO LIVRO “PEGADAS NA VILA”.

A inscrição é GRATUITA e deverá ser feita até o dia:
30 de NOVEMBRO de 2018, através da ficha de inscrição abaixo e o envio para o e-mail neidarocha@terra.com.br ou colocado na URNA no Parque Educativo Vila Encantada.

A título de premiação, a criança que tiver o nome escolhido no CONCURSO INFANTIL, receberá um final de semana em Pomerode com 1 noite de hospedagem, 2 refeições e ingressos para a vila para 2 adultos e 2 crianças.

A entrega do prêmio acontecerá em local e data a confirmar e a divulgação do resultado, com fotos da premiação constará do site: www.vilaencantada.com.br.

Cada criança poderá participar com quantas sugestões desejar, desde que seja feita uma ficha de inscrição para cada sugestão.

A escolha do nome será feita pela autora e dois representantes do PARQUE EDUCATIVO VILA ENCANTADA e levará em consideração a criatividade da criança.

A participação no IV CONCURSO INFANTIL: DÊ O NOME DO PERSONAGEM DO LIVRO “PEGADAS NA VILA” pressupõe a aceitação desse regulamento, por parte do concorrente, cedendo o ganhador, os direitos autorais e autorizando o uso de seu nome e de sua imagem no material de divulgação do resultado e inclusão do seu nome nos próximos livros da autora, sem ônus para a mesma, desde que autorizado por um responsável.

As fichas participantes e não premiadas serão incineradas.

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Para Conhecer o Parque Educativo Vila Encantada, Acesse o Site: www.vilaencantada.com.br
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FICHA DE INSCRIÇÃO

NOME DA PERSONAGEM
NOME DA CRIANÇA
DATA NASCIMENTO
ENDEREÇO
CIDADE/UF/CEP
E-MAIL
NOME RESPONSÁVEL
CPF RESPONSÁVEL
ASS. RESPONSÁVEL

Fonte:
email enviado por Neida Rocha

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Joaquim de Melo Freitas (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 5) V


BARCAROLA

«Corre, voa, borboleta, vai graciosa
Libar ondas de néctar delirante
A anêmona cingir, o lírio, a rosa
Com a asa fugitiva, coruscante.

«Vai sôfrega d'amor e sê ditosa.
Dá-se no céu um caso semelhante
Quando estrelas em noite vaporosa
Se abismam n'uma queda extravagante.

«Vai mariposa, a chama te fascina
Na aresta do ludibrio, como esfinge
Em deserto d'areia cristalina.»

Calam-se as vozes; picam-se as amarras;
A gôndola desliza e o mar atinge
Ao som dos bandolins e das guitarras.

BRIC-À-BRAC

O dono miserável da locanda
O “brocanteur” terrível, sanguinário
Agoniza n'um catre solitário
D'uma alcova minúscula, execranda.

Afinca as mãos convulso n'um rosário,
Ao céu a vida, súplice, demanda,
N'uma imagem de Cristo veneranda
Crava os olhos de abutre, de corsário.

Pois apesar das lágrimas-remorsos
Das vítimas do seu medonho trama
Ruins fantasmas de lívidos escorços.

Nos paroxismos vende, além da cama,
O Cristo a um judeu, e em vis esforços
A alma entrega a Satã, que lh'a reclama.

PAISAGEM

O sol adormecera no horizonte;
As nuvens em retalhos sonolentos,
Parecem nos bizarros tons cinzentos
O grupo despenhado de Phaetonte.

O riacho desliza ao pé do monte
Em frequentes e turgidos lamentos;
A philomela ensina o canto aos ventos
No chorão, que murmura junto á fonte.

A várzea rescende à laranjeira!
Da catedral nas frestas em ogiva
Um rancho d'andorinhas s'enfileira;

E nas trevas soluça a sombra esquiva
Do coveiro, que planta uma roseira
Onde jaz a venal filha adotiva.

"VAE VICTIS"

Rasga sacrílego a amplidão celeste
Um milhafre com azas pardacentas
E a cotovia harmoniosa investe
Armando as garras torpes e cruentas.

Negro como o letargo do cipreste,
Rosna o vento nas franças macilentas,
O sol dardeja n'um palor agreste
Que entusiasma as nuvens corpulentas.

A luz crua p'lo espaço se derrama,
Engrossam os trovões em alcateia,
Rutila do corisco a alegre flama.

A presa que o milhafre saboreia
É o emblema do fraco, o velho drama
Que o sistema do mundo patenteia.

EPISÓDIO BALNEAR

N'uma “soirée” heroica, ígnea e linda
Jurara o fulvo Arthur até à morte
Ser da formosa e pudibunda Olinda
Chumbando a ela p'ra sempre a sua sorte.

Por ela ao inferno iria, o mar ainda
Beberia d'um trago! Ela é seu norte,
Meiga estrela de lúcido transporte,
Palpitante de rubra graça infinda.

De manhã cedo a nossa "Julieta"
Desce nas crespas vagas a banhar-se
Mascarada n'um fato de baeta,

E quando grita prestes a afogar-se,
Chega "Romeu", exibe uma gorjeta,
Mas não vai lá, que teme constipar-se.

“REISCHOFFEN”
6 de Agosto de 1870.

Desfraldam-se estandartes e trombetas,
Ouve-se o crepitar da espingarda;
Quando o canhão rouqueja á retaguarda
Cintila a larga messe das baionetas.

As couraças protegem a vanguarda,
Dos capacetes pousam nas facetas
As crinas marciais, vermelhas, pretas,
Com expressão terrível e galharda.

Bonnemain determina a voz de carga:
Os estribos tilintam, fulge a espada,
Debalde a morte os esquadrões embarga.

N'esta luta ciclópica, gigante,
O exercito francês em retirada
Teve assomos d'heroísmo deslumbrante.

Fonte:
Joaquim de Melo Freitas. Garatujas. 
Aveiro/Portugal: Imprensa Commercial, 1883

Antonio Brás Constante (Engarrafamentos [sem álcool])


Quer conhecer um pedaço do inferno? É fácil (você nem precisa fazer um pacto com o “Tinhoso” para saber como é), basta sair com o seu automóvel e ficar preso em algum engarrafamento. Entramos nos engarrafamentos como alguém que entra em uma garrafa, pois os dois casos acabam sendo um porre. Diferentes de um drinque, que pode ser destilado, os engarrafamentos são amontoados de carros deste lado, daquele lado, de todos os lados. Você fica ali parado, preso naquele lugar por um longo tempo, sentindo-se como um vinho que fica em uma adega para ser envelhecido, porém, ao contrário do vinho, aquela situação não melhora os seus atributos ou lhe faz uma pessoa mais doce e especial; ao contrário, a única coisa que consegue é deixá-lo extremamente azedo.

Os engarrafamentos, assim como as bebidas, nos deixam em uma situação complicada aos olhos de nossos empregadores, que não gostam de funcionários cheirando a álcool, do mesmo modo que não gostam de funcionários chegando atrasados. Seu veículo acaba se transformando em uma garrafa de luxo (pois, novo ou velho, ele ainda custa uma bela grana), onde nesta metáfora você é o líquido ali aprisionado, molhado, suado e exalando o odor de sua própria transpiração. Louco para “vazar” dali. Se pudesse escolher, iria preferir virar um pouco de uísque em um copo para beber, em vez de ter que ficar literalmente “virando roda” na estrada.

Nessas horas, lembra da frase onde orientam: “se beber não dirija”, e fica pensando que o engarrafamento causa o mesmo efeito, pois o impede de dirigir, de seguir o seu caminho. Atrapalhando sua vida. Trazendo sentimentos de frustração, impaciência e raiva, que são servidos de forma seca para você. Sem direito sequer a umas pedrinhas de gelo e rodelas de limão.

Somos pequenas gotas humanas dentro dos engarrafamentos. Somadas a uma infinidade de outras gotas que se encontram na mesma situação que a nossa, esperando o trânsito fluir, para enfim seguirem suas vidas, e quem sabe acharem um rumo melhor para seus destinos do que aqueles reservados para as tais bebidas em nosso organismo.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Olivaldo Júnior (Com a mala cheia de livros*)


Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.
Clarice Lispector

Pelas ruas, com a mala cheia de livros, acho que pareço um fugitivo de minha própria vida, clandestina essência que me habita e me transmuta em ser. Sou o quê? Poeta, escritor, ensaísta? Não, acho que não sou nada disso. Mas, na instância de tentar fugir com a mala cheia de livros, me livro um pouco de mim, do eu que não tem gostado de ser eu. Eu, que me revisto de palavras, me disfarço com poesia, me refaço a cada letra e melodia, eu mesmo.

Ninguém sabe que, dentro da mala, do oco sem fundo, um mundo, moinho, gira e gera um novo mundo em si. A mala, cheia de livros, denota que um dia eu lerei o que ela contém. Ainda que tenha mais livros do que tempo para ler. “Mas quem quer mesmo sempre acha tempo para tudo...”, dirão alguns, talvez você. Mas careço de tempo. Aliás, não só de tempo, mas de um ser que o administre de forma a fazer meu dia caber em mim, em minha vida.

Abençoado pela mala cheia de livros, que os ganhei, meio que pedi, não vou para casa de pronto. Antes, vou à Oração, quem sabe, só pelo gosto de andar mais um pouco nas ruas com a mala nas mãos, como a exibir seu obscuro conteúdo por aí. Clarice escrevera: Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. Carrego, então, o peso da bênção esta noite nas mãos. Ninguém sabe que a mala está cheia de livros. Mas eu, meu ser, ele sabe.
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Nota:
* Escrito ao som de Tocando em frente, canção de Almir Sater e Renato Teixeira, na voz de Maria Bethânia.

Fontes:
Texto enviado pelo autor