segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Carlos Drummond de Andrade (O Segredo do Cofre)


A casa, construída há séculos, ou pelo menos há sessenta anos, tinha uma curiosidade: o cofre de aço embutido na parede, com fechadura de segredo. Ninguém tomava conhecimento da peça; as joias da nova dona eram poucas e não exigiam tamanho resguardo; e o dinheiro do dono cabia folgadamente no bolso, esse cofre sem segredo dos pobres.

Com o tempo, aquilo foi esquecido. Mas um dia, o menino de fora instalou-se na casa, para passar férias e empreender algumas demolições. Findos os atrativos da primeira semana, aquele dínamo em forma de gente começou a explorar o desconhecido, e, à noite, descobriu o cofre, dissimulado por trás de um quadrinho a óleo.

— Vô, quero abrir esse cofre.

— Menino, deixa o cofre sossegado.

— Como é que você deixa um cofre trancado esse tempo todo, sem ver o que tem dentro?

— Não tem nada.

— Deixa ver.

— Perdi a chave, depois eu procuro.

— Não, é agora.

— Sei lá onde eu botei a explicação do segredo.

— Procura também. Se não achar, a gente roda o botão até descobrir como é que é.

Para escapar a uma chateação, o jeito é nos resignarmos a outra. Os troféus foram encontrados depois de intensa busca: a chave, numa pirâmide de coisas enferrujadas, que toda casa conserva sem objetivo aparente; a explicação, dentro da lista amarela de telefones, que se consulta quando se quer comprar não se sabe o que a não se sabe quem, não se sabe onde.

— Fique quietinho aí que eu vou abrir esse cofre para você ver.

— Mas eu queria…

— Menino! Você não se enxerga?

O Homem subiu à mesa, tirou o abajur para ver melhor. Sentou-se, acocorou-se, ajoelhou-se, transpirou. Nada. Os números do botão móvel do cofre estavam apagados pelo tempo, a vista do Homem era curta, cansada.

— Meu pai me contou que os ladrões usam talco — informou o garoto.

— Besteira. Em todo caso, me arranje a lata de talco.

Pois não é que clareia mesmo, aviva os números?

— Onde que teu pai aprendeu essa malandragem?

— Meu pai sabe, ora.

O Homem cumpriu religiosamente os itens da explicação da Casa Vulcano: três voltas para a direita, parar no 25, uma volta para a esquerda, parar no 37, voltar novamente para a direita até encontrar o 12. Nada. Com o calor e a luz no rosto, era de amargar.

O menino sorria:

— Você não está vendo que esse cofre não pode abrir porque foi pintado a óleo e as frinchas estão tapadas?

— É mesmo, confessa o Homem. Não tinha reparado. Agora me lembro que quando mandei pintar a casa… Com uma gilete eu raspo isso.

Vendo que gilete não resolvia, e antes que o Homem, já nervoso, ficasse sem dedo, o garoto apareceu com uma raspadeira fina e um martelo.

— Experimenta isso, vô. É mais prático.

Era. Mas uma ponta da raspadeira, manejada pela mão inábil do Homem, quebrou-se e ficou no interstício, atrapalhando.

— Por hoje chega, sabe? Amanhã mando chamar o serralheiro para ver essa porcaria. E o senhor aí vá dormir, que não é hora de menino de nove anos ficar acordado.

Era tão absurdo ir para a cama, diante de um cofre rebelde, que a resposta do garoto foi voltar à caixa de ferramentas, tirar um pequeno alicate e dizer:

— Deixa por minha conta.

Subiu à mesa com ar resoluto, acenou para o Homem: “Afasta”, e, num gesto leve, fisgou a pontinha encravada. Verificando que os espaços estavam desobstruídos, fez girar a maçaneta. O cofre abriu-se docilmente, como uma blusa.

Dentro, no meio de cartas e programas antiquíssimos de cinema, tinha um dólar de prata, de 1920.

— É meu — disse o vencedor, embolsando-o imediatamente. Para espanto do Homem, que jamais soubera existir na parede de sua casa um dólar de prata.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

domingo, 29 de setembro de 2019

Renato Benvindo Frata (Madrugada)


Insônia e cansaço fazem-me vítima na insensatez do meio sono, em vigília entrecortada entre dormitar e despertar concomitantes e constantes, E produzem pensamentos lerdos que perambulam pela cachola quais mandarovás sobre o lençol, agora transformado em toalha de mesa que o estado de letargia concebe.

São fantasmas roliços e pegajosos que saem á procura de algo enquanto o sono não vem. Tudo corre na lerdeza dos passos de suas mini pemas nos vai-e-vem sem rumo definido, até que surge do nada, posta ali bem no meio sobre o pano branco estendido, uma taça de vinho. Está cheia até a metade e tem na borda marca de batom. Belo pedaço de lábio impresso em carmim. Pela mostra a boca deve ser linda, marca em vermelho vivo o poder, a vitalidade e a ambição, a atração, o amor, a paixão, o desejo, a confiança e a coragem; vermelho também de irritação, impaciência e inconformismo e tudo mais que essa linda cor pode representar.

Está ali na boca impressa e consigo neste meio sono perscrutar, ondulantes, os mandarovás nem se preocupam em resguardar intimidades: amontoam-se na base e se empurram para ganhar caminho, e sobem pelo cristal sem se importar comigo. Acho que estão desejosos pelo vinho do amor que permanece sereno, aguardando talvez um segundo gole do lábio que deixou a marca.

Por enquanto foco apenas o cálice que agora é rodeado e inteiramente tomado por eles que se arrastam da base ao bojo para cheirar, na borda, o bouquet, artificial que dali emana. Como pode o vinho atrair tantos pensamentos-mandarovás? Como estarão ligados os tais que enredados disputam espaço naquele objeto com a toalha, o cálice, o vinho e a marca de batom? Não sei. Isso é coisa de sonho, ou do desejo, ou da aspiração, ou a falta do que fazer enquanto o sono não chega.

Nessa corrida perigosa das lagartas, uma e outra caem pelo lado de dentro. Tentam voltar, esperneiam, batem-se, mas acabam por boiarem, paralisadas, na superfície não mais serena, em redemoinho de volúpia na falta de precaução. Teriam escorregado ou simplesmente pulado para a morte etílica?

Apenas espio, porque nesses pensamentos rastejo com elas até que fiquem adultas, transformem-se em crisálidas, ganhem asas e sejam atraídos pela luz da promessa que a falsa felicidade faz. E me deixem com a minha insônia.

Perambulo o espaço que expõe a imagem vã do meio sonho e da meia consciência e consigo atingir uma distância curta e sem medida que os vários pares de patas alcançam no perímetro do retângulo branco. E crédulo, boquiaberto e na espera do sono inteiro de algumas horas, fixo-me na marca de batom. Não adormeço.

Nessa angústia o tempo passa e consome a noite, o sol se intromete pela fresta, desfaz o cálice e afugenta as caminhantes de vez; e, num esgar de susto ponho-me em prumo para enfrentar a realidade de mais um dia.

Enquanto aliso de leve os olhos vermelhos e empapuçados, fico a matutar sobre o batom vermelho envolvido por mandarovás. A boca, pelo seu formato, deve ser linda, carnuda, sensual; e gostosa ao ser sorvida como se suga polpa de fruta madura, ou quando o vinho é sorvido a dois, aos poucos.…

Fonte:
Livro cedido pelo autor.
Renato Benvindo Prata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) 4


A manhã, de alma serena,
e a tarde, de alma tristonha;
juntas, vão dosando a pena
da solidão de quem sonha!

Ao contemplar a tristeza,
que há, no olhar do sol poente,
uma lágrima indefesa
embaça os olhos da gente!

Ao fim da tarde, eu medito,
e percebo a contra gosto,
que a tristeza do infinito
se faz presente em meu rosto!

Ao ver teus olhos vermelhos,
no olhar, rastros de esperança,
percebo que meus conselhos
dão-te paz, desde de criança!

Aquela flor perfumosa
que tu me deste com medo,
guarda o perfume da rosa
e esconde o nosso segredo!

Carro-de-bois, teu gemido
fez no sertão nossa história;
teu canto triste e sofrido
é culto em nossa memória!

É bem mais pesada a cruz
que arrasta o velho andarilho,
quando o olhar quase sem luz,
é a luz dos olhos do filho!

Entre ilusões, sonhos vãos,
e irreversíveis esperas...
sinto escapando entre as mãos,
as mais sutis primaveras!

Escravo do teu assédio,
a minha alma com ternura,
faz dele, um santo remédio,
para um mal que não tem cura!

Eu vi num pobre andarilho,
a paz no rosto de alguém!
Honra e pobreza, meu filho,
é o que pouca gente tem!

Já viste a simplicidade
da majestade da flor?
Majestosa na humildade
torna-se a diva do amor!

Maria, mãe peregrina,
mãe de todos os mortais;
eternamente divina
e alívio de nossos ais!

Na velha ermida parece
que a solidão, que a conforta,
vem do achado de uma prece
que há, na paz da tarde morta!

No entardecer da cidade,
antes do sol se esconder...
Há mais cinzas de saudade
nas cinzas do entardecer!

No meu sertão causticante,
há dois milagres divinos:
O amor à terra escaldante
e o riso dos nordestinos!

O orvalho caindo aos molhos,
ao despertar da alvorada...
Revela o pranto nos olhos,
dos olhos da madrugada!

Por decisões tão profanas,
cumprindo seus rituais...
Como crer nas leis humanas
com rumos tão desiguais?

Por ironia ou por terdes
falso orgulho, é que, no entanto,
há nos vossos olhos verdes
perpétuas gotas de pranto!

Quando o sol dobra os joelhos,
de rubro a tarde se banha,
para escutar seus conselhos
sobre os braços da montanha!

Quanto mais ouço conversas,
mais eu vejo esforços vãos,
em mãos, incultas, perversas,
escravizando outras mãos!

Se a vida é luz e esperança,
riso, alegria, acalanto...
Por que será que a criança
ao vir à luz, chora tanto?!...

Seguindo os teus passos certos,
não temo o peso da cruz!...
Quero em teus braços abertos,
crucificar-me de luz!

Sem teu amor eu não vivo,
sem teus abraços, tampouco.
Sou velho escravo e cativo
desse amor que me fez louco!

Se um sonho bom, não te alcança,
fujas da vida vazia,
plantando pés de esperança
na esquina de cada dia!

Sino! Por que tanto alarde?
Há mais pranto em teu cantar...
Se és mesmo o pastor da tarde,
a tarde não quer chorar!

Só uma verdade me inspira,
não suporto a falsidade.
Por mais que brilhe a mentira,
não brilha mais que a verdade!

Sou poeta de alma nua
fazendo versos ao léu...
Cobrem-me, as vestes da lua
e as nuvens brancas do céu!

Tanta alegria no ninho,
tanto amor, no antigo lar!...
E agora, o meu passarinho
não tem mais onde morar!

Teu adeus, triste miragem!
Aos teus sinais, me anteponho:
Por que buscar noutra imagem,
a ilusão de um novo sonho?

Todo poeta é um peregrino
com coração de criança;
nas costas, leva o destino,
no coração, a esperança!

Tu tens dois gestos dos sábios,
no teu modo de pensar:
Tens o silêncio em teus lábios
e a humildade em teu olhar!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.  
Livro gentilmente enviado pelo autor.

sábado, 28 de setembro de 2019

Luiz Poeta (Roceiro)


O caminhão-basculante veio arrastando o mato, a poeira embaçando a grama, o barulho potente do motor importado assustando os camaleões e lagartos, espantando os tizius, coleiras, sabiás e sanhaços.

De repente, o baque! Dois bezerros foram colhidos em cheio; outros saltaram a cerca de arame farpado, ferindo-se atabalhoadamente. A caminhonete vermelha foi parar no barranco.

O vaqueiro chicoteou a égua baia, chegou perto, gritou para o motorista:

- Eh, cumpadre, ocê matou dois bezerro!

- Matei!? - respondeu o outro perguntando.

- Matou?!

- Pois aqui não é lugar de bezerro pastar!

~ É, mas ocê podia pelo menos diminuir a marcha, não carecia de correr tanto...

- Meta-se com a sua vida, seu... Eu corro onde quiser!

- Correr ocê inté pode, só num pode é matar os bicho...

- Se matei, tá matado, que se dane!

- Que se dane não, moço... Ocê tem que pagar os bicho morto, no preço justo!

- Pagar uma ova! Quero ver quem é o macho que vai me cobrar - ameaçou.

- Pois daqui o senhor não sai. Bezerro custa caro.

- Não saio? Vamos ver se não saio!

O homem foi atrás do banco do carro, pegou uma barra de ferro e desceu disposto a tudo, avançando ameaçadoramente para o outro.

O vaqueiro não se intimidou. Meteu a mão numa garrucha e disparou.

Os dois únicos tiros que a arma suportava, pegaram numa das pernas do motorista.

Cambaleante, ele arrastou-se até o carro, ligou o motor estabanadamente, manobrou o carro e arremessou-o contra o vaqueiro - que se desviou com precisão - e saiu como um relâmpago.

O roceiro apeou, caminhou até os dois animais ensanguentados. Uma difícil lágrima rolava-lhe discreta na face cabocla...

- Desgraçado! - Choramingou.

Um dos bezerros estertorava, o outro nem se movia.

- Malvado! Nem pra andar devagar... Por que correr daquele jeito?

De repente, as sirenes. A viatura policial deslizava ao longe, levantando a poeira amarela da estradinha que circundava o pasto.

O triste homem levantou-se, afagou os animais mortos, montou na égua e sumiu no meio do capinzal.

Véi Mundim consertava a cerca que circundava a casa de madeira. Um prego na boca, outro entre os dedos, o martelo na mão.

De repente, o rumor de cascos no barro.

A sirene acordando o pasto, os tiros pipocando no silêncio vivo do capinzal.

O vaqueiro vinha feito uma bala riscando o tempo, arriado sobre a sela, a égua avançando ligeira. Quando divisou a porteira, o animal entrou apertado no pequeno vão. O carro da polícia passou direto, estilhaçando a madeira.

O velho estava boquiaberto; o prego semi-enterrado na primeira martelada...

Do que jeito que vinha, o boiadeiro desmontou num salto, a bota afundou no charco, a égua foi parar logo adiante.

- Que foi, homem? — indagou o velho.

- Depois eu conto, agora é fincar pé no mato!

E sumiu no meio do capim-navalha.

A viatura deu marcha a ré e dela saltaram um tenente, dois soldados e o motorista do caminhão-basculante, capengando. Os homens foram entrando cocheira-adentro, o pé do
oficial arrebentou a taramela.

Véi Mundim olhava-os de soslaio, por trás de uma das lentes dos óculos rachados, o cigarro de palha torto num dos cantos da boca. O martelo firme numa das mãos.

- Onde está o bandido? - perguntou o tenente.

O velho bateu o segundo prego, sem responder; as pupilas azuis como um céu aberto sobre o vale.

O tenente aborreceu-se.

- Como é que é, meu senhor? Onde está o marginal?

O velho nada respondia. O soldado tentou segurá-lo. O martelo tomou-se um machado,

- Se chegar mais perto, eu abro sua cabeça, sordado!

E abria mesmo, não fosse a intervenção do tenente.

- Calma, rapaz, deixe o moço. - chegou-se para o velho demonstrando atitude pacífica. - Amigo... aquele homem que entrou aqui correndo, baleou este moço aqui - apontou para o irritado motorista que massageava a perna atingida.

- Agora já se pode começar uma conversa... - disse o velho. De primeiro, ocê preguntô por um bandido... Que se saiba, aquele moço num é nenhum bandido...

- Bem, meu senhor... ele baleou um motorista....

- Adispois, - continuou o velho - vosmicê quis sabê de um marginá... se se refere àquele moço que sumiu no mato, também num se trata dele...

- Meu senhor, ele fez uma vítima...

O velho não se abalou:

- Adispois ainda, o sordado raso ai tentou botar a mão ni mim... Como é que ocê ainda tem o descaramento de fazer pregunta a uma pessoa que nunca viu mais gorda? Seja mais educado, homem! Cadê os estudo? Cumpra o seu dever, mas num martrata as pessoa di bem.

O tenente coçava a cabeça, os soldados franziam a testa, o baleado enrijecia os músculos faciais e não se conteve:

- Aquele safado me deu dois tiros!

~ Eu conheço ocê de algum lugar? - indagou o velho sem se abalar... Além do mais, se levou dois tiro, à toa é que num foi... nessas banda, ninguém leva tiro a troco de nada...

- Ora, seu... - o motorista avançou para o velho, que muniu-se de um pedaço de madeira da cerca.

– Eu acho que ocê num tá satisfeito com os dois tiro. Se me provocar, vai ter dois buraco na perna e um taio na cabeça. Vem procê vê!

- Calma, gente, vamos conversar - interrompeu o tenente.

- O que nós queremos é saber onde foi aquele moço que estava montado nesta égua aqui, o senhor poderia nos ajudar?

- Que eu visse, se embrenhou no mato.

- Onde?

- Ué ! É só oiá pro mato e procurá.

- Bem, o senhor vai nos mostrar onde ele está!

- Quando ele chegou aqui, eu tava pregando as tábua da minha cerquinha. Tava ainda no primeiro prego, quando ouvi toda a barulheira que ocês fizeru.

- Tudo bem, tudo bem, gritou um dos soldados! E pra onde ele foi? O senhor já está deixando a gente nervoso!

- Vem cá, me diz uma coisa... Quem é o comandante desse pelotão? É ocê? É aquele cidadão capenga ou é o outro sordado?

- Soldado, cale-se!

- Mas eu...

- Cale-se! Eu faço as perguntas! O tenente estava irritado.

- Meu senhor, aquele homem é um criminoso e nós vamos pegá-lo!

- Que nós? Eu e ocês? Eu num güento nem carregar um molho de agrião, quanto mais correr atrás de alguém. Ocês é que se vire!

- Mas nós temos que alcançá-lo!

- Ué, e por que não arcançaru ainda? Ocês num ião de carro? Ele tá a pé. Qual o pobrema?

- O problema é que... Ora, meu senhor...

De repente, um grito no capinzal:

- Eu tô aqui, seus trouxa! Para de conversa-fiada e vem me buscar!

Estupefatos, todos saíram voando na direção do grito. O tenente, os soldados e o capenga.

O velho balançava a cabeça reprovando:

- São uns bando de maluco..,

As botas pisavam fundo as barrentas poças de lama amassando capinzal; concomitantemente, frangos-d'água, galinhas-d'angola e gaviões acordaram o vale num estrondoso farfalhar de asas, pios, chiados e gritos...

- Vêm me pegá, seus bunda-suja ! - gargalhava o peão dentro da capoeira - Cês num intendi de genti, vai intende di mato?

Dois filas, um doberman, um rotweiller e um pitbull que guardavam a casa grande despertaram do seu sono rural e, curiosos, empinaram ouvidos e narinas na direção do vento que trazia rumores e cheiros urbanos e partiram para cima dos barulhentos forasteiros.

Paralelamente a esse fatídico acontecimento inesperado, as entonações já não mostravam tanta gana em pegar o fugitivo.

Os sons eram outros:

- Uma cobra! - berrou um dos soldados, a jararacuçu grudada na sua bota.

O velho continuava a martelar sua cerca, um riso capenga atravessando o vazio entre os dois caninos cariados, enquanto completava: - São uns bunda-suja mermo.

- Socorro! - era outro gritando, agora o que levara o tiro.

No seu encalço, um touro preto enorme - um pedaço de cueca vermelha num dos chifres do boi babão,

Bruscamente, o desfecho da perseguição:

- Cuidado! Areia movediça!!!!

E todos estavam chafurdados naquele monte de lama misturado com gravetos, animais mortos, frutas podres e folhas secas...

A margem da capoeira, o touro bufando, os cães rosnando e o fugitivo mordendo um galhinho de murubu.

- Ocês sabia que aí tem jacaré do papo amarelo daqueles grandão?


(Texto premiado pela Academia Irajaense de Letras)

Fonte:
Livro cedido pelo autor.
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) IV


A JANGADA

Ei-la singrando a imensidão dos mares
tão frágil, tão veloz e independente,
deixando a praia, busca outros lugares
sem medo, sem temor, inconsequente...

Lançada ao mar... As ondas pelos ares...
Vai conquistando o mar azul, fremente,
não há tristezas, dores, nem pesares...
Só a jangada deslizando à frente.

As ondas vêm e vão... E chega a tarde,
aflora um sentimento de saudade
e ela retorna cheia de emoções...

Quantos sonhos viajam na jangada?
mas ao raiar da fresca madrugada
vai para o mar repleta de ilusões!

COISAS DE AMOR

É noite calma. A lua está brilhando,
namorados passeiam pela rua,
enquanto aqui a sós fico sonhando,
- como dói no meu peito a ausência tua.

Quisera, nesta noite, estar amando
tranquilo a contemplar a luz da lua
e seguirmos, unidos, procurando
novos sonhos, que a vida continua...

Meu coração, porém, desconfiado,
parece reviver triste passado,
— não acredita mais nesta emoção. '

Se a vida não perdeu o encantamento
desse sonho de amor, desse momento,
— coisas de amor não têm explicação.

IPUPIARA
(Retratada no livro “Coronelismo no Antigo Fundão de Brotas," de Mário Ribeiro Martins)

Cravada no Sertão, jardim de flores
nasceu uma cidade hospitaleira.
Seus campos coloridos, sedutores,
tornam a vida bela e corriqueira.

Berço de heróis, poetas, escritores,
produzem versos na cidade ordeira.
O clima é quente, bom e aviva as cores
da alegria que é sempre verdadeira.

Ipupiara é flor cheia de encanto,
cuja beleza inspira o bem, porquanto
as alegrias são puras e completas.

Há de brilhar no céu, mesmo à distância,
esta Terra de amor e de elegância,
pois tu és a cidade dos Poetas!

OLAVO BILAC

Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac,
estrela de primeira, um verso alexandrino.
Perfeito no soneto, o vate foi destaque
e primou pela forma, ourives diamantino.

Como parnasiano revelou-se um craque
com seu verbo fluente e forte foi divino.
Palestrou, escreveu, amou e sem sotaque
"ora (direis) ouvir estrelas," seu destino.

Orador, literato e um grande sonetista,
foi também pensador, ardente jornalista,
gigante na palavra, um poeta de escol.

"Ultima Flor do Lácio" o vate da Esperança,
amante do Saber, da Pátria e da Criança,
por isso és fulgurante como a luz do Sol!

PERSISTÊNCIA

Sou persistente como o garimpeiro
que busca a joia rara e deslumbrante,
cavando a terra, construindo aceiro,
para encontrar, altivo, o diamante.

Sou incansável pelo tempo inteiro,
busco a palavra e o brilho fascinante
do verso ardente, puro e verdadeiro
que brilha como o sol, inebriante.

Ninguém me deterá neste garimpo,
irei, se for preciso até o Olimpo
buscar minha divina inspiração.

E nestes versos pobres, mas floridos
meus sonhos ficarão mais coloridos,
oriundos do Amor, do coração!

VERSOS DA NOITE

É noite. O céu azul, todo estrelado,
a brisa perfumada vem do mar,
lembrando aquele sonho do passado,
a teu lado viver, sorrir e amar...

Por que será, destino malfadado,
que a ventura se foi sem começar?
Hoje vejo em ruínas meu reinado
nesta noite tão bela a me saudar.

Breve os clarões da loura madrugada
vão surgir, como prece, em clarinada,
e em borbotões meus versos vão jorrar.

Para que ao lê-los, saibas da verdade:
aqui tens um poeta sem vaidade
que, os teus pés, inspirado vem beijar!

VIVENDO A DOIS

Recordo, com saudade, a caminhada
que fizemos ao longo desta vida.
Curtimos nosso amor na madrugada,
sem medo de cansaço na subida.

O tempo foi passando em disparada,
como a brisa que sopra na avenida,
e a ventura chegou tão encantada
que nos levou à Terra Prometida.

Andamos devagar pelos caminhos,
trocamos beijos como os passarinhos
e nos amamos com intensidade.

Mas, quando terminar esta jornada,
serás ainda a minha doce amada,
pois te amarei por toda a eternidade!

Fonte:
Livro cedido pelo poeta.
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

Malba Tahan (Um Noivado em Bagdá)

    


Quando eu tinha vinte anos de idade, fui, certa vez, a Bagdá.

No dia seguinte ao de minha chegada - tendo a necessária licença do Valli (1) - armei uma grande tenda junto à praça de Otmã e preparei-me para vender aos vaidosos "bagdalis" perfumes, tapetes e as mil quinquilharias que lhe trouxera das terras longínquas da índia e da China.

    Em dado momento aproximou-se de minha tenda uma mulher, já velha, magra e esfarrapada, o rosto descoberto, o andar curto e arrastado. Depois de examinar, com o olhar distraído, talvez por mera curiosidade, as bugigangas espalhadas sobre grossos tapetes hindus, disse-me:

- Ó jovem e formoso mercador! Seja Allah o teu guia e o teu amparo! Há quarenta anos passados, um homem do teu tipo escolheu-me para esposa e tirou-me do serralho de meus pais! E a felicidade sempre me sorriu no harém (2) de meu amado!

Ao ouvir palavras tão bondosas, cuja simplicidade parecia aliar-se a uma emoção sincera, fiquei profundamente lisonjeado.

- Agradeço-vos - respondi-lhe - a expressão amável e a forma gentil do vosso salã! Seja a paz a vossa estrada e a alegria sã e perfeita a luz dos olhos de vossos filhos!

- Ualá! - acudiu a velha. - Vejo que és afável e eloquente. Desejo verificar agora se a generosidade que aflora nos teus lábios provém realmente de teu coração. Escuta, mercador: sou pobre e não tenho de meu um único dinar. Queres, ainda, assim, fazer comigo uma transação?

- Ouço a vossa proposta, senhora! - retorqui, sem hesitar. - Asseguro-vos, porém, que já está aceita.

- Dá-me, então - atalhou a anciã - um frasco de perfume. Prometo, em troca, ensinar-te alguns versos de um antigo poeta de Mossul.

Tomei de um dos mais belos e valiosos frascos de essência e entreguei-o à misteriosa criatura.

E ao tempo em que ela ocultava sob as vestes rotas, a obra-prima de um perfumista de Basra, disse-lhe:

- Aguardo ansioso o vosso pagamento, senhora!

- Oh, jovem bem dotado! - exclamou - os versos com que pretendo retribuir a tua desmedida generosidade jamais deverão desamparar os teus pensamentos. Escuta-os:

"Só é digno mil vezes da misericórdia infinita de Deus aquele que em si próprio encontra forças para resistir à tentação do pecado!"
    
E, sem mais palavra, afastou-se, o andar arrastado, impelindo para diante o cascalho do caminho.

Era a hora triste do ezzã (3).

A voz cantante do muezim (4) cego chamava os crentes à oração:

- Allah é grande e Maomé é o Enviado de Deus! Vinde à prece, ó muçulmano; vinde à prece! Lembrai-vos de que, na vida, tudo é pó, exceto Allah! Lembrai-vos de que...

Voltei-me na direção da Cidade Santa (5), retirei as sandálias, estendi o meu tapete e em Allah Onipotente, criador do céu e da terra, concentrei meus pensamentos, isolando-me da vida material e vil.

- Ualá! - acudiu a velha. - Vejo que és afável e eloquente. Desejo verificar agora se a generosidade que aflora aos teus lábios provém realmente de teu coração. Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Allah!

E o eco ressoando ao longe, nas montanhas de Kilv, parecia repetir:

- Exceto Allah! Exceto Allah!

Cinco dias volvidos achava-me descuidado junto à tenda, quando avistei um cheique que passava solene em garboso camelo que um escravo negro, seminu, conduzia vagarosamente pela rédea.

    - Cheique dos cheiques! - exclamei, dirigindo-lhe amistoso salã (saudação). - Maahaba ahlã na Sahlã na anastina! Aqui tenho à vossa disposição os únicos perfumes dignos das mulheres encantadoras do vosso harém.

O desconhecido ergueu o rosto para mim, e num sorriso afável traduziu o agradecimento com que retribuía a saudação carinhosa que acabara de ouvir.  Parecia ainda relativamente moço. Os traços enérgicos de sua fisionomia serena faziam pensar que um escudo possante de energia devia revestir-lhe a alma. Ostentava, num requinte de bom-gosto, riquíssimo keffié (6) de três pontas, todo de seda branca, com barras azuis.

O cheique fez parar o camelo, ordenou ao escravo que o fizesse apear-se do matuflê (7) e concedeu-me a honra de vir examinar de perto as ricas alcatifas que eu  vendia, com paciência e probidade, sem ferir um só versículo do Alcorão!

Quis a vontade de Allah (glorificado seja o Eterno!) que o olhar do cheique fosse incidir sobre um pequeno quadro de madeira no qual eu escrevera em belos caracteres negros os tais versos que, à guisa de pagamento, ouvira da anciã.

Mostrou-se o cheique tomado do mais vivo espanto ao se lhe deparar a legenda poética do quadro, as mãos tremiam-lhe e uma onda de acentuada palidez invadiu-lhe as faces.

    - Mercador - interpelou-me, num tom seguro e autoritário - quem te ensinou esses versos?

Contei-lhe - e não via razão para ocultar a verdade - a invulgar transação que, dias antes, fizera com a velha, repetindo-lhe fielmente as palavras gentis que dela ouvira naquela tarde!

    - Louvado seja Allah, o Justiceiro! - exclamou o cheique. - Acabo de descobrir, graças ao teu auxílio, ó mercador, o paradeiro de uma criatura que há três anos procuro pelas terras do Islã.

Naquele momento a desconfiança e a dúvida invadiram-me o espírito. Teria o infeliz cheique a razão perturbada pela loucura? Ou que sentido oculto haveria em suas palavras?

O rico muçulmano, esclarecendo o caso, contou-me o seguinte:

- Meu nome é Abd-el-Uhad, e sou filho do poeta El-Bagavi, de Mossul. Compelido pelas necessidades da vida e forçado, muito cedo, por um destino ingrato, deixei minha família e fui tentar a vida no país de Candahar, na índia, onde graças a Allah, tive um largo período de prosperidade. Passados vinte anos, como já me satisfizessem as riquezas que então possuía e também para livrar minha filha Sálua de um rajá perverso que a queria desposar, resolvi voltar ao meu velho torrão natal. Soube, chegando a Mossul, que meu pai havia falecido alguns anos antes, mas do paradeiro de minha mãe não me souberam dar notícia alguma. E há três anos que a procuro inutilmente pelas cidades e aldeias. Já desanimado, depois de fatigantes pesquisas, deliberei, a conselho de um velho imã de Basra, fazer uma peregrinação a Meca. Cheguei ontem a esta cidade e daqui pretendia partir dentro era breve, com uma caravana de xiitas (8) para o Santuário da Fé. Quis, porém, Allah, o Exaltado, que eu viesse agora encontrar na tua tenda - naquele quadro que ali está - alguns dos mais belos versos de meu saudoso pai. Não me foi difícil inferir - na narrativa que fizeste - que a misteriosa anciã que levou o teu perfume era precisamente aquela que foi a esposa única de meu pai. Na certeza de que ela se acha nesta cidade, espero encontrá-la sem mais canseiras nem jornadas.

    E, ao terminar, pousou no meu ombro a sua larga mão bronzeada e perguntou-me, como se tivesse tomado, no momento, uma resolução inabalável.

    - Quanto queres, mercador, pela tua tenda, com tudo o que nela se encontra?

    Meditei, em silêncio, durante  algum  tempo, e  compreendi  que  o  dadivoso  cheique entendia ter encontrado uma forma delicada de manifestar a sua gratidão. O céu e a generosidade do árabe - ensina um provérbio - não tem limites no possível.

- Pela minha pobre tenda - respondi, fitando-o com desembaraço - nada quero! Considerai-a, desde já, como coisa vossa! Mas pelos versos, que estão naquele quadro, quero - se for possível - a mão de Vossa filha Sálua!

A minha audaciosa proposta causou não pequena surpresa ao rico Abd-el-Uhad.

- Ó mercador! - exclamou. É singular! Acabas de pedir em casamento uma jovem sobre os predicados da qual não tens a menor informação (9). Sálua será formosa ou terá os traços deformados pela feiura?

- Cheique dos cheiques - retorqui, no mesmo instante. - Tenho sobre a beleza incomparável de minha futura noiva, duas indicações preciosas, de grande valor. Primeiro: Sálua é vossa filha!

- E qual é a outra? - indagou o cheique, lisonjeado na sua vaidade de pai.

- Houve um rajá que a desejou para esposa. Não conheço vossa filha, é certo, mas conheço muito bem os rajás; e sei que são homens que não caminham de olhos vedados pelas estradas da vida!

    - Aceito o teu pedido - replicou, risonho o cheique. - És, ó jovem, mais inteligente do que eu pensava. Dou-te minha filha em casamento e tomo-te, de hoje em diante, sob minha proteção.

Foi assim que fiquei noivo em Bagdá. O sol anunciava no horizonte azulado do Islã a hora da prece do crepúsculo.

A voz clara do muezim perdia-se em ondas vagarosas pelo céu.

E naquele momento, precisamente, em que o Destino parecia concluir a página mais feliz da minha louca existência, apontando-me o caminho da Ventura e do Amor, chegava-me aos ouvidos aquelas palavras eternas, que me arrancavam do mundo dos sonhos para a realidade triste da Vida.

    - Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Allah...
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Notas
1- Valli – Prefeito da cidade, governador de uma província.
2- Harém - Vocábulo derivado do árabe harã - proibido. Harém é a parte da casa de um muçulmano onde ficam suas esposas.
3- Ezzã - Oração da tarde.
4- Muezim - Pregoeiro. O muezim chama do alto dos minaretes os fiéis à oração. Os muezins, em geral, são cegos.
5- Meca.
6- Peça do vestuário.
7- Espécie de palanquim que se coloca no camelo.
8- Xiitas - Seita protestante dentro do Islã.
9- Eram, em geral, as velhas que frequentavam os haréns que davam aos namorados indicações sobre os predicados das jovens casamenteiras.

Fonte:
Malba Tahan. Os segredos da alma feminina.