domingo, 17 de março de 2024

Benjunior (Benevides Garcia) Poemas Escolhidos 5


AGORA E SEMPRE

Amiga amada!
Quero-te
agora e sempre,
na vida
e na morte,
alegre e contente!
Não importam
as ladeiras
e os pedregulhos
desta vida
traiçoeira.
Tenha fé
em Deus
e tudo
se arrumará
no devido
tempo!
É hora
de risos
e canções:
é com alegria
que se vence
as tensões.
Juntos estamos
no azar
e na sorte:
somos um,
somos dois,
somos todos,
somos fortes!            
E com 
amor no ideal
vislumbraremos
a vitória final…
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CANÇÃO GUERREIRA

Quero fazer uma canção triste
que seja como vento ligeiro...
Uma canção para o povo
como um canto de esperança!
Quero fazer uma canção guerreira
que luta para que voltem à vida
aqueles que declararam sua guerra!
Quero fazer uma canção para
animar os que caem...
Quero fazer uma canção de amor
que seja a de todos os tempos
e para sempre...

E que todos se levantem
e levantem suas bandeiras,
acima de seus corpos e cabeças;
levando todos os sonhos,
a todos os povos da terra
que vivem, amam e sofrem
e ainda esperam
uma canção guerreira…
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CÉU DE VIDRO

Abri minha janela
e as certezas
que nunca tive,
entraram junto
com minhas dúvidas e
anseios...

Lembranças queridas
me trazem um pouco de você
e minha alma ri...
Estrelas fugidias,
errantes
irradiam magia,
em meio ao silêncio
da rua deserta...
Mais além,
um som manhoso
de um tango milongueiro
vagueia pelos cantos
daquelas portas de muitas cores,
multicores...

Pra que me entregar
nos braços
de Morfeu
e perder este espetáculo,
que me embebeda
a alma
e mata minha sede?...
Continuo
e me sinto
dono da noite
que galopa
sonhos,
entre brisa e luar.
Na  parede
da  casa  adormecida,
vejo nuances de
verdes que se
encastelam
e se engancham,
mostrando que arte
é também e apenas
uma maneira de viver...
Retorno     
e fecho a janela,
para o dia
que vem chegando.
Adormeço…
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GRITO DE ESTRELAS

"Um grito de estrelas vem do infinito
E um bando de luz repete o grito.
Todas as cores e outras mais
Procriam flores astrais.
O verme passeia na lua cheia"...

Hoje estou com vontade diferente
de ser outra gente
de outro bando e lugar.
Estou com vontade de andar
caminhar [vagar, voar,]
ser infinito
enquanto posso...
Quero libertar de
minhas janelas,
e conhecer a imensidão
dos amanhãs, que
são forjados
nas oficinas do tempo,
que ficam escondidas
em lugar nenhum.
Quero escapar,
dos caminhos que existem
dentro das coisas transparentes,
que refletem os cansaços
e as indecisões.
Quero viver a vida
em "slow motion"
no abrigo
dos corações invertidos,
pintados como trens
que de repente param
em nenhuma estação...
E assim,
como do fundo da música
brotam as notas
que, ora são lembranças,
ora esperanças,
emudeço o grito,
na pauta do silêncio
e da amargura...
E quando a noite vier,
cantarei alguma coisa
pra dormir,
no silêncio das paredes,
que refletem fantasmas
de minha alma...
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QUIMERA

No desalento 
de minha alma
encontrei forças
para seguir em frente
voltar a ser um cavaleiro andante
em busca do sonho, em busca do amor

Visões de um passado há tanto esquecido
turvaram-me coração, olhar e mente
refletindo espectros de quimera
envoltos na lembrança
de um amor
infeliz...

Leon [Liev] Tolstói (Cachorros bombeiros)

(História real)

Nas cidades, muitas vezes acontece de crianças ficarem dentro das casas que pegam fogo e é impossível tirá-las de lá porque, assustadas, elas se escondem e ficam caladas e, com a fumaça, não dá para ver onde estão. Por isso, em Londres, existem cachorros ensinados. Esses cachorros vivem com os bombeiros e, quando uma casa pega fogo, os bombeiros mandam um cachorro retirar as crianças. Um desses cachorros, em Londres, salvou doze crianças; chamava-se Bob.

Um dia, uma casa pegou fogo. E quando os bombeiros chegaram, uma mulher veio correndo falar com eles. Chorava e dizia que uma menina de dois anos tinha ficado dentro da casa. Os bombeiros mandaram o Bob. Bob subiu a escada correndo e sumiu na fumaça.

Cinco minutos depois, saiu da casa, trazendo nos dentes, pendurada pela camisa, a menina de dois anos. A mãe abraçou a filha e chorou de alegria ao ver que a filha estava viva. Os bombeiros afagaram o cachorro e verificaram se não tinha se queimado; mas Bob quis se soltar e entrar de novo na casa. 

Os bombeiros acharam que havia mais alguém vivo lá dentro e o soltaram. O cachorro entrou correndo e logo depois saiu com alguma coisa entre os dentes. Quando olharam o que ele trazia, todos começaram a rir: o cachorro trazia uma grande boneca.

Fonte: Liev Tolstói. Livros de leitura para crianças. Publicado originalmente em 1864. Disponível em Domínio Público

Hinos de Cidades Brasileiras (Barra Mansa/RJ)


Vivo seja teu nome esculpido
No granito das rochas sem par,
E por todos co'amor repetido,
Com preces diante do altar!
Cada lábio o murmure e um hino
Ele seja e o suave penhor
Dum afeto tão grande e divino,
Tão sublime e mais puro que o amor!

Barra Mansa! Barra Mansa!
Glória a ti! Hosana mil!
Lembras suave esperança
Num recanto do Brasil!

Tua glória, fulgindo brilhante,
Com mais vivo fulgor e mais luz,
Repercute no vale distante,
Vai além desses céus mais azuis!
Vai além desses montes e fala
Da existência de um povo a lutar,
Do teu povo feliz, que se iguala
aos titans no feroz batalhar!

Barra Mansa! Barra Mansa!
Glória a ti! Hosana mil!
Lembras suave esperança
Num recanto do Brasil!

O teu nome também nos recorda
Um murmúrio suave, um perdão,
Um carinho que terno transborda
De teus filhos no teu coração!
Ele lembra também a meiguice,
À beleza, a grandeza moral
Das mulheres que tens, a ledice
À pureza sem par de Vestal!

Barra Mansa! Barra Mansa!
Glória a ti! Hosana mil!
Lembras suave esperança
Num recanto do Brasil!

Do criador, já a mão justiceira
Teu destino no tempo traçou...
Barra Mansa, serás a primeira
Pelos bens que o Senhor te doou!
Cada etapa vencida em peleja
Traga sempre uma glória melhor,
Uma glória mais santa e que seja,
Entre todo o triunfo o maior!

Barra Mansa! Barra Mansa!
Glória a ti! Hosana mil!
Lembras suave esperança
Num recanto do Brasil!

Luís da Câmara Cascudo (O Veado de Plumas)

Era uma vez uma rainha que seria completamente feliz se tivesse filhos. Estava, numa ocasião, tão excitada que, não reparando que era justamente o pino do meio-dia, hora em que os anjos do Céu estão cantando, gritou:

– Meu Deus! Pelas horas que são! Dai-me um filho nem que seja com cara de bicho...

Nasceu-lhe um filho forte, bem feito, rosado, mas tendo em vez de rosto um focinho de veado.

Cresceu depressa, muito inteligente e agradável, possuindo uma sabedoria fora do comum e virtudes mágicas. O Rei e a Rainha traziam-no escondido para que ninguém soubesse que o herdeiro do trono tinha cara de veado.

Ao pôr-se rapaz, o príncipe pediu que o deixassem sair pelo mundo, procurando aventuras para esquecer seu físico. Os pais deram permissão e o príncipe viajou numa noite escura, para que não o vissem os súditos de seu pai.

Andou, andou, andou dias e dias, até que finalmente chegou a um reinado muito grande e bonito. Logo na entrada da cidade estava um letreiro convidando qualquer homem a construir uma ponte ligando as duas partes do reinado que eram divididas por um abismo sem fundo, obrigando aos moradores a uma volta de mais de cem léguas. Quem construísse a ponte seria pago com o seu peso em ouro e casaria com uma das três filhas do rei. Caso contrário sofreria a pena de morte.

Muita gente morrera tentando levantar a ponte. Quando o trabalho estava prestes a findar-se, erguia-se um pé de vento e desmanchava tudo.

O príncipe de cara de veado ofereceu-se e foi aceito. Ficou na beira do precipício, deitou-se e dormiu como se estivesse em casa. Passou quase todo o dia seguinte passeando e olhando para todos os lados como se não tivesse o que fazer. Da janela mais alta do palácio a princesa acompanhava os passos do Cara de Veado.

Ao anoitecer, o príncipe andou para lá e para cá, como se estivesse rezando. Parou, abriu os braços e apareceu uma nuvem de trabalhadores, em ambos os lados da barranca, iniciando imediatamente o serviço. Toda a noite houve o rumor de um formigueiro e ao romper do dia uma ponte de pedra ligava as duas margens do abismo, ponte larga, sólida, assombrando a todos.

O Rei ficou satisfeitíssimo. Cara de Veado recusou o ouro e esperou a noiva. As duas filhas do Rei nem admitiam a ideia de alguém sonhar em casá-las com uma criatura feia como o Cara de Veado. A mais moça declarou-se pronta a ser mulher do príncipe misterioso.

Foi um casamento feito depressa porque não tinha graça ver-se uma moça bonita casada com um camarada meio homem, meio bicho. Depois da cerimônia, o Rei perguntou ao genro onde ele queria morar.

– Na minha casa, real senhor!

E mostrou um palácio que era uma Babilônia, aparecido por encanto perto da mansão do rei.

A princesa casada vivia feliz, mas Cara de Veado não queria acompanhar a mulher para parte alguma, temendo envergonhá-la. As duas outras princesas casaram com dois príncipes elegantes e estavam orgulhosas dos maridos, fazendo inveja à irmã mais moça.

Sucedeu que, de tantos em tantos anos, o Rei mandava realizar umas cavalhadas muito concorridas. Vinha gente até do fim do mundo assistir. Todos os fidalgos corriam às justas, com lanças, tirando as argolinhas de ouro que eram dadas às damas, com muitos aplausos da multidão. Depois seguia-se um baile que durava a noite toda.

As duas princesas passavam os dias examinando vestidos e sonhando com as festas. A irmã caçula aparentava alegria, mas estava triste porque o marido não havia de correr às argolinhas com aquela cara.

Na manhã do dia das cavalhadas, Cara de Veado chamou a mulher e lhe disse:

– Aqui está o vestido que você deve ir à festa. Dê-me um banho, cate meus piolhos, perfume meu corpo e ficarei fechado num quarto até sua volta. Não quero que notem sua falta.

A princesa fez tudo quanto o marido pedira e, muito a contragosto, trancou-o num quarto, vestiu-se, tomou a carruagem e seguiu. Quando ela apareceu no tablado, todo mundo bateu palmas porque era a mais bonita de todas.

Começou a corrida. No meio dos cavaleiros apareceu um homem desconhecido, bonito, forte, bem armado e num cavalo que era um corisco. Correu todos os torneios e tirou todas as argolinhas. Ninguém o conhecia e quando os cavaleiros desfilaram junto do Rei para saudá-lo, o desconhecido baixou a lança de prata e deixou todas as argolinhas de ouro no colo da mulher do Cara de Veado.

O povo bateu tanta palma que a cidade estrondava.

A mulher do Cara de Veado quis sacudir fora as argolinhas e não fez para não afrontar a fidalguia, mas tomou a carruagem e voltou para casa. Encontrou o marido onde o deixara, perguntando se gostara das corridas. Ela respondeu contando o que sucedera.

– Você não gostaria mais de se ter casado com um cavaleiro como esse que lhe deu as argolinhas, do que comigo?

– Eu não troco meu marido por todos os cavaleiros desse mundo – respondeu a princesinha.

– Menos dois – disse o Cara de Veado.

A mulher não entendeu e o marido não lhe explicou.

No dia seguinte houve o mesmo caso. O cavaleiro desconhecido reapareceu, melhor vestido, montado e armado, e ganhou as argolinhas. Foi saudar o Rei e deitou-as todas no regaço da mulher do Cara de Veado. Depois, picou o cavalo nas esporas e sumiu-se.

A mulher voltou e contou o acontecido. Cara de Veado perguntou se ela não seria mais feliz com o desconhecido do que com ele.

– Eu não troco meu marido por todos os cavaleiros do mundo – foi a resposta.

– Menos dois – resmungou o Cara de Veado.

No terceiro, a mesma façanha. Cara de Veado ouviu a história e a resposta da esposa e disse:

– Menos dois...

E mandou que a mulher se vestisse para o baile. A mulher não queria ir, mas ele obrigou-a. A princesinha foi resolvida a não dançar porque só desejava dançar com o marido. No meio da festa apareceu o cavaleiro misterioso tão bem-vestido que causou espanto. Todas as damas e donzelas queriam dançar com ele, mas o cavaleiro foi até onde estava a mulher do Cara de Veado e pediu-lhe a honra de uma dança. Para não fazer desfeita, a moça aceitou e dançaram com muita graça várias vezes.

À meia-noite a princesinha saiu do baile e voltou para a casa. Encontrou Cara de Veado na mesma posição e houve a mesma troca de perguntas e respostas.

– Menos dois – repetiu.

Pela manhã a mulher deu a comida ao marido e foi administrar sua casa. Num quarto velho que havia no fim do palácio, viu um armário grande, empoeirado. Espanou-o e abriu-o. Qual não foi sua surpresa quando deparou todas as roupas que o cavaleiro misterioso usara nos três dias do torneio e no baile da véspera. Estava de boca aberta mirando aquelas maravilhas, quando ouviu um gemido. Voltou-se e viu o Cara de Veado.

– Você não ouviu eu dizer, por quatro vezes, “menos dois”? Pois cada vez que tinha uma prova de sua fidelidade, descontava dois anos no tempo do meu encanto. Esse quarto fechado não podia ser aberto porque fica fora do governo da casa. Sua curiosidade mudou meu destino e não posso mais ficar aqui.

A princesinha começou a chorar. Cara de Veado abriu uma janela enorme que havia e pediu que a mulher olhasse para o nascente e fosse dizendo o que avistasse. A mulher obedeceu.

– Estou vendo uma nuvem escura!

– Não é essa...

– Estou vendo uma nuvem cinzenta!

– Não é essa...

– Estou vendo uma nuvem branca!

– É esta! Adeus!

A nuvem branca foi crescendo, crescendo, encheu o quarto e no meio dela Cara de Veado pulou. A nuvem subiu, subiu, e a mulher avistou um grande Veado coberto de plumas, olhando-a do alto. E desapareceu.

Imediatamente o palácio desmanchou-se como se fosse feito de fumaça. A princesinha voltou para o palácio do rei seu Pai, chorando como uma órfã. O Rei recebeu-a muito bem, mas as duas irmãs riram muito da situação dela.

– Quem lhe obrigou a casar com bicho em vez de casar com gente? Vá procurar seu marido nos matos!...

A princesa deliberou procurar o marido pelo mundo. Muniu-se de um bordão e caminhou, caminhou, caminhou...

Num cair da noite chegou a uma casinha muito limpa e agradável, onde viu uma velha asseada e risonha que a recebeu com caridade. Deu-lhe de comer, de beber. A princesinha contou sua vida. A velha lhe disse:

– Minha filha, isto aqui é perigoso, mas, como você é protegida de Deus, eu vou tentar. Esconda-se por trás desse fogão porque a minha Filha quando chega, tudo fica gelado.

– Quem é sua filha?

– A Lua!

Quando a Lua chegou, a casinha ficou banhada por uma luz que parecia leite. A Lua estava de mau humor, farejando alto:

– Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

– Não é nada, minha filha. Jante e vamos conversar.

A Lua jantou e sossegou. A mãe perguntou:

– Minha filha, se por aqui chegasse uma peregrina, cansada e triste, que faria você?

– Eu, minha mãe? Tratá-la-ia bem...

A moça saiu de trás do fogão e a Lua recebeu-a bem, ouvindo-a contar sua história. Depois disse:

– Queria ajudar mas não sei onde fica o reinado do Veado de Plumas. Quem deve saber é minha madrinha, a Noite.

Sucedeu na casa da Noite o mesmo que houvera na casa da Lua. A Noite ignorava o reinado do Veado de Plumas e indicou a casa do Sol.

A princesinha seguiu seu caminho. O Sol, aquietado por sua mãe, conversou com a moça, mas desenganou-a quanto ao itinerário.

– Não sei. Quem deve saber são os Ventos.

Lá se foi a princesinha para a casa dos Ventos. A mãe dos Ventos alimentou-a, escondeu-a e aplacou a fúria dos filhos que chegaram uivando como uns desesperados. Depois do jantar, puseram-se às boas e entraram na conversa. O Vento Norte não sabia, nem o Vento Sul. O Vento Oeste já ouvira falar. O Vento Leste ficou importante:

– Sei onde é. Fica longe. É um reinado bonito, governado por um veado vestido de plumas muito alvas e brilhantes. Eu a levo amanhã.

Pela madrugada a mãe dos Ventos acordou a princesinha e lhe disse:

– Minha filha, quando você chegar lá, esconda-se na mata da lagoa do meio. Tem duas pedras de prata numa margem e aí todos os bichos encantados vêm beber água, diariamente. Fique de jeito que, assim que o Veado de Plumas baixar a cabeça na água, pule em cima, agarre-se nele e não se solte, haja o que houver. Deus a leve...

O Vento do Nascente arrebatou a moça e voou quase todo o dia. Ao tombar da noite deixou-a num caminho, perto da floresta. A moça viu a lagoa. Correu para lá e escondeu-se junto das duas pedras de prata.

Todos os animais vinham beber, aos grupos. Ao crepúsculo, ouviu-se um barulho de paus quebrados e galhos partidos e os bichos todos correram com medo. Apareceu então um Veado de Plumas enorme, majestoso como um monarca, e veio vindo, veio vindo, devagar, o focinho para o ar, desconfiado. Ia chegando para perto e, de repente, dava um trote e ficava longe. Depois voltava, aspirando forte, inquieto. Tanto se chegou, tanto se chegou que deu as costas para o lado da moça e pôs o focinho na água da lagoa. A moça, mais que depressa, saltou-lhe em cima, grudando-se no seu pescoço como se fosse um cadeado.

O Veado de Plumas deu mais de mil saltos, pulos, reviravoltas, bramando, atirando coices que escureciam, esfregando-se pelas árvores, correndo, mas a princesinha não o largou e mais e mais se segurava naquele turbilhão de pinotes e piruetas. Tanto o Veado saltou e se encostou nos espinhos que as plumas foram voando, uma a uma, e o couro se transformando em pele humana. Quando o veado cansou extenuado, e parou, estava mudado num príncipe bonito e forte, com a princesinha pendurada ao pescoço.

Foram juntos para o palácio que se erguia no centro da floresta. Entraram e foram recebidos pelos fidalgos que eram os animais desencantados. Um jantar magnífico apareceu e festejaram toda a noite o fim da penitência.

Pela manhã o Rei, sogro do Cara de Veado, foi olhar pela janela do seu palácio e viu um castelo muito mais imponente que o seu, ao lado. Mandou perguntar quem morava nele e, ao saber que voltara sua filha e o marido, correu para abraçá-los, chorando de alegria.

Houve festejos públicos três dias.

As duas princesas ficaram tão furiosas com a vitória da irmã que se precipitaram da torre, espatifando-se nos lajedos da calçada.

A rainha-mãe de Cara de Veado, que estivera todo esse tempo muda, recobrou a fala, sinal de que Deus lhe perdoara.
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OBSERVAÇÕES SOBRE O CONTO

Dividindo-o, é possível reconhecer as procedências, nos fabulários europeus, especialmente da península ibérica. Poder-se-ia chamar a história Cara de Veado, mas as narradoras teimavam em dizê-la Veado de Plumas. Os príncipes encantados que nasceram com focinho de cão, de macaco, de burro foram muitos. A atuação do Cara de Veado nas corridas de argolinhas já o filia a outro ciclo, assim como a presença no baile, tentando seduzir a própria esposa. No conto Bicão, que Silva Campos recolheu na Bahia (nº LXVIII), há o mesmo diálogo entre a moça e o príncipe encantado, mandando este que ela diga se vê as nuvens. A moça anuncia as nuvens escura, cinzenta e branca, que o leva. A viagem da esposa, peregrinando pela casa da Lua, da Noite, do Sol e dos Ventos, procurando saber onde ficava o reinado do Veado de Plumas, é um dos pormenores mais tradicionais na Europa. Ocorre, entre alguns contos, no Le Pays des Margriettes (Jean Fleurys, Littérature Orale de la Basse-Normandie, Paris, 1883), no A Paraboinha de Ouro (Teófilo Braga, nº 31), El Castillo de Oropé (Aurélio M. Espinosa, nº 128, Soria, Espanha), etc. O final exótico, da luta com o Veado de Plumas, não recordo haver encontrado símile.

A viagem da esposa é um dos motivos mais conhecidos dos contos europeus, ao redor do tema da “Terra a leste do Sol e a oeste da Lua”, os ventos (o vento Sul ou o Norte) levam a moça para o esposo, seguindo-se pormenores sempre diversos. Os contos dos irmãos Grimm, de George Webbe Dasent, a coleção escocesa de Campbell registram variantes.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

sábado, 16 de março de 2024

Trova ao Vento – 009


 

Cláudio de Cápua (O revisor)


Ele era jornalista e trabalhava das 17h às 23h. Mas por causa de uma loira de se tirar o chapéu e o resto da roupa, dizia à esposa que trabalhava até as quatro da manhã e explicava 
que, após o expediente da redação, se ocupava da revisão de diversas matérias na oficina do "Diário". No começo, levou algumas broncas da esposa, que, após anos de rotina, acabou por não falar mais nada.

Certa noite, aconteceu o inesperado. A loira viajou para o interior, pois sua mãe precisava ser operada. 

E ele, que por mais de três anos, tinha a casa da loira como passagem diária, resolveu sem saber o que fazer, ir direto para casa, pensando numa boa desculpa. Uma possível enxaqueca resolveria a questão.

À chegada, notou que sua mulher cantarolava ao chuveiro. Encaminhou-se ao quarto, arrancando a roupa no percurso, certo de fazer uma surpresa à cara metade.

Em sua cama estava o colega de trabalho, o Ricardão, revisor do jornal, que, de olhos fechados e braços abertos, dizia:

- Vem, querida, estou à espera... para mais uma revisão de material...

(Linguagem Viva - março 1992)

Fonte> Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020. Enviado pelo escritor.

Lairton Trovão de Andrade (Descontraindo em versos)


01.
Destrua a melancolia,
pois a vida se renova!
Contra a tristeza, Maria,
beba chazinho de trova!

02.
O plagiário é caricato
que no mundo se repete;
é escritor co'a mão do gato
e pintor que pinta o sete.

03.
Ninguém é tão educado
como o fino do Joaquim;
nas lojas, mesmo calado,
saúda até manequim.

04.
Só de ver a sucuri,
adoentou-se a saracura;
com licor de licuri*
nada sara, nada cura.
= = = = = = = = = 
* licuri = coquinho
= = = = = = = = = 

05.
Diz a crença popular:
Não há coisa que enlouqueça
mais que a boca a relinchar
de uma mula-sem-cabeça!

06.
O pobre incauto eleitor
feliz ficou na procura;
diz que o voto é do doutor
que lhe deu uma dentadura.

07.
O símio, bem natural,
exclama ao réptil, de pé:
"Oh, que boquinha sensual
tem o amigo jacaré!"

08.
- Masculino ou feminino?
Perguntou o frei José;
– “Marculino ou Felisbino
não, não! É Zé que o pai qué"!

09.
No velório do riquinho,
há, no íntimo, festança;
"Choro, sim, por meu padrinho,
(mas que venha logo a herança)".

10.
Aquele gato é baiano,
assim nos diz o Lalau;
ouça o miado do bichano:
"Me-au, me-au, me-au, meau"!

11.
É, na Internet, o namoro
paixão que "dá choque"... e muito;
A cada abraço - um suadouro...
e ao beijar - curto-circuito!

12.
Foi assim que aconteceu
entre meu tio e o Mansur;
– Você, meu filho, é ateu?!
- Não, senhor, eu sou Artur!

13.
Era boa caipirinha
de esquentar qualquer "moringa"*.
- O que de bom é que tinha?
- "Açúcar, limão e pinga".
= = = = = = = = = 
* Moringa: Orelha, ouvido (regionalismo).
= = = = = = = = = 

14..
Depois de muito ovo por,
a angola* aguça a matraca
e, festejando com suor,
canta: "tô fraca, tô fraca"!
= = = = = = = = = 
*Angola: Galinha d'angola.
= = = = = = = = = 

15.
Quanta gente cuja obra
é cheia de desatino!
- Tem no cérebro, de sobra,
o que é próprio do intestino.

16.
O cravo brigou co'a rosa,
a rosa despetalou-se;
chora a rosa escandalosa;
- Minha corola encravou-se!

17.
Gosta muito de "pregar"
a mulher do seu Mané;
repete "né", sem parar...
e, no fim, diz "né, né, né".

18.
Neste Brasil brasileiro,
lê-se coisas de arrepiar;
num comércio está o letreiro:
"Volto já, fui ao mossar".

19.
Quão exímia pensadora
é a coruja que se cala;
é tão nobre esta doutora,
que besteira nunca fala.

20.
Para o torcedor fanático,
jogador profissional
é um exemplo claro e prático
de mercenário ideal.

21.
O velhote tagarela,
sozinho em sua viuvez,
propaga muita balela
de mil feitos que não fez.

22.
Às vezes, nem tudo passa
como nem tudo se pode;
nos dias de grande arruaça
pode dar cabra ou dar bode.

23.
- Sou honesto no meu bar,
nada de interrogatório!
De vocês, só vou cobrar
a bebida e o "conversório"!

24.
Pergunta-se, volta e meia,
para quem pouco estudou;
- “Quem deixou a Lua cheia?"
- “Foi o Sol que a engravidou!”

25.
Aquele curvo nariz
é coisa descomunal;
escorre qual chafariz
e, ao assoar, é um temporal.

26.
- Minha cara, dá-me a mão!
É por ti que vivo e morro!
Dá-me afeto, sim, do cão,
não, porém, de um cão cachorro.

27.
Tal paixão te custou caro,
com a mais cega insistência;
esta "coisa", não tão raro,
leva otário pra falência.

28.
Se em toda Literatura
a obra fosse de algum crítico,
carecia sepultura
pra enterrar livro raquítico.

Fonte> Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016. Livro enviado pelo autor.

O. Henry (O Guarda e o Hino)

Soapy mexia-se, inquieto, no seu banco da Praça Madison. Quando gansos selvagens grasnam alto, de noite; quando mulheres que não possuem capa de peles tratam bem dos maridos; e quando Soapy se mexe, inquieto, no seu banco do parque — pode-se ter a certeza de que  o inverno não anda longe.

Uma folha morta caiu no colo de Soapy. Era o cartão de visitas do Homem de Gelo, que é bondoso com os habitantes regulares da Praça Madison e honestamente os previne de sua visita anual. Na encruzilhada das quatro ruas, entrega o seu cartão ao Vento Norte, mordomo na mansão de todos os Sem-Teto, a fim de que seus moradores se precavenham.

Na mente de Soapy formou-se a ideia de que era chegado o tempo de convocar uma espécie de comitê de emergência para proteger-se do rigor vindouro. Por isso, ele se mexia, inquieto, no banco.

As ambições hibernais de Soapy não eram das maiores. Não pensava em cruzeiros pelo Mediterrâneo, em modorrentos céus sulinos, ou em deslizar pela Baía do Vesúvio. Três meses na Ilha era o quanto sua alma aspirava. Três meses de cama e comida garantidas, em companhia congênita, livre de Bóreas e de fardas, pareciam a Soapy a quintessência das coisas desejáveis.

Havia já muitos anos, a hospitaleira Blackwells vinha sendo seu quartel de inverno. Assim como, à chegada do frio, os nova-iorquinos mais afortunados reservavam passagem para Palm Beach ou para a Riviera, assim também Soapy fazia modestos preparativos para a sua estada anual na Ilha. E já não era sem tempo. Na noite anterior, três alentados jornais colocados, um debaixo do casaco, outro ao redor dos pés, e outro sobre o colo, não haviam conseguido impedir o frio de castigá-lo, enquanto ele dormia no banco perto da fonte esguichante da velha praça. A Ilha surgia, grande e oportuna, no pensamento de Soapy. Ele desprezava as providências caridosamente tomadas pela municipalidade em favor dos que dela dependem. 

Na opinião de Soapy, a Lei era mais benigna do que a Filantropia. Havia um sem-número de instituições oficiais ou particulares a que poderia recorrer para obter alojamento e comida consuentâneos com um modesto padrão de vida. Todavia, para os de caráter orgulhoso como Soapy, os dons da caridade são incomodativos. Quando não em moeda, todos os benefícios recebidos de mãos filantrópicas têm de ser pagos em humilhações morais. Assim como César teve um Bruto, toda cama gratuita implica em banho prévio, todo pedaço de pão requer um inquérito particular e pessoal. Por isso mesmo, é melhor ser hóspede da Lei, que, conquanto obedeça as regras, não se intromete indevidamente nos assuntos privados de um cavalheiro.

Tendo decidido ir para a Ilha, Soapy tratou de imediatamente por em prática seu plano. 0s meios para fazê-lo eram muitos. O mais agradável seria jantar lautamente em algum restaurante caro; em seguida, declarar-se insolvente, e ser, tranquilamente e sem escândalo, entregue a um policial. Um Juiz condescendente faria o resto.

Soapy levantou-se do banco e, atravessando a praça, chegou ao liso mar de asfalto que une a Broadway à Quinta Avenida. Subindo a Broadway, deteve-se diante de um café cheio de luzes brilhantes, onde se reuniam todas as noites os mais finos derivados da uva, do bicho-da-seda e do protoplasma.

Do último botão do colete para cima, Soapy sentia-se seguro de si. Havia-se barbeado, seu casaco era decente e a elegante gravata preta de laço feito fora-lhe presenteada por uma senhora missionária, no Dia de Ação de Graças. Se pudesse alcançar uma das mesas do restaurante, teria êxito absoluto. A parte de sua pessoa que se mostrasse acima do tampo da mesa não causaria espécie a nenhum garçom. Um pato assado — pensou Soapy — não seria mau, acompanhado de uma garrafa de Chablis, queijo Camembert, um cafezinlio e um charuto. Bastaria um charuto de um dólar. A conta não devia ser tão alta que exigisse uma suprema manifestação de vingança por parte da gerência do café. A carne de pato, no entanto, o deixaria saciado e feliz para a viagem até o seu refúgio de inverno.

Tão logo, porém, pôs ele os pés no umbral do restaurante, o chefe dos garçons viu-lhe as calças esfarrapadas e os sapatos cambaios. Mãos fortes e experimentadas deram-lhe meia volta e o conduziram, rápida e silenciosamente, de volta outra vez à calçada, alterando assim o ignóbil destino que aguardava o pato.

Soapy deixou a Broadway. Parecia que a estrada para a Ilha desejada não seria epicuriana. Precisava pensar noutro meio de chegar lá.

Na esquina da Sexta Avenida, uma profusão de luzes e vários artigos dispostos com arte por detrás dos vidros de uma vitrina chamavam a atenção dos transeuntes. Soapy apanhou uma pedra e atirou-a contra o vidro.

Logo acorreu um grupo de pessoas, com um guarda à frente. Soapy ficou parado, com as mãos nos bolsos, e sorriu ao ver os botões de metal.

— Quem fez isso? — perguntou o guarda, excitado.

— Não percebe que eu talvez tenha alguma coisa a ver com o caso? — disse Soapy, algo sarcástico, e amavelmente, como quem cumprimenta a boa sorte.

A mente do policial recusava-se a aceitar Soapy, mesmo como pista. Homens que quebram vitrinas não permanecem no local do crime à espera dos mercenários da lei. Fogem logo. Vendo alguém na metade do quarteirão, a correr para tomar um carro, o guarda ergueu o seu bastão e saiu-lhe no encalço. Duas vezes mal sucedido, Soapy demorou-se por ali, com a alma desgostosa.

Do outro lado da rua, havia um restaurante sem muitas pretensões. Atraía grandes apetites e bolsas modestas. Sua louça e sua atmosfera eram espessas; a sopa e a toalha, muito ralas. Sem qualquer dificuldade, Soapy introduziu ali suas calças indiscretas e seus sapatos acusadores. Sentou-se a uma das mesas e devorou bife, doces folhados, roscas e uma torta. Findo o repasto, confessou ao garçom que não possuía um níquel que fosse.

— Agora mexa-se e chame a polícia — disse Soapy. — Não faça um cavalheiro esperar.

— Nada de tiras para gente como você — respondeu o garçom, com voz untuosa e olho salientes. — Vamos lá, Con!

Dois garçons atiraram Soapy ao duro pavimento, onde ele caiu exatamente sobre o ouvido esquerdo. Ergueu-se, junta a junta, como um metro de carpinteiro ao se abrir, e limpou a poeira da roupa. A prisão lhe parecia um sonho róseo. A Ilha estava muito longe. Um policial, postado diante de um drugstore duas portas além, riu-se e afastou-se pela rua abaixo.

Soapy percorreu cinco quarteirões antes de readquirir coragem bastante para tentar mais uma vez ser preso. Então, apresentou-se-lhe uma oportunidade que chamou fatuamente de "barbada". Uma moça de aparência modesta e cativante estava parada diante de uma vitrina, examinando com grande interesse os potes de barbear e os tinteiros ali expostos; a duas jardas da vitrina, um policial corpulento, de aparência severa, encostara-se a um hidrante.

Era intenção de Soapy representar o papel do janota desprezível e execrado. A aparência refinada e elegante de sua vítima e a proximidade do consciencioso tira encorajaram-no a acreditar que em breve sentiria a agradável manopla oficial sobre o braço, o que lhe asseguraria uma temporada hibernal na pequenina e catita Ilha.

Soapy endireitou a gravata de laço feito da missionária, puxou para fora os punhos encolhidos, entortou o chapéu num ângulo audacioso, e foi-se por ao lado da moça. Lançou-lhe olhares insistentes, tossiu e pigarreou para chamar-lhe a atenção, sorriu-lhe afetadamente e com descaro recitou-lhe a litania impudente e desprezível do conquistador. De soslaio, Soapy percebeu que o policial o fitava atentamente. A moça afastou-se um pouco e voltou a concentrar-se nos potes de barbear. Soapy a acompanhou, audaciosamente, tirou-lhe o chapéu e disse:

— Olá, beleza, não quer vir brincar um pouco no meu quintal?

O policial continuava a olhar. Bastaria à moça perseguida mover um dedo e Soapy estaria praticamente a caminho do seu paraíso insular. Já imaginava sentir o calor aconchegante do posto policial. A moça voltou-se para ele e estendendo a mão, agarrou-lhe a manga do casaco.

— Sim, meu bem — disse, alegremente — se você me ensinar a fazer bolhas de sabão. Já lhe teria respondido antes se o guarda não estivesse olhando.

Com a moça agarrada a si como a hera ao carvalho, Soapy, contristado, cruzou pelo policial. Parecia estar mesmo condenado à liberdade.

Na primeira esquina, desvencilhou-se da companheira e pôs-se em fuga. Deteve-se no distrito em que, à noite, se encontram as ruas, vozes, promessas e libretos mais alegres. Mulheres envoltas em peles e homens de sobretudo movimentavam-se lentamente no ar invernoso. Um medo repentino apoderou-se de Soapy, de que algum encantamento temível o houvesse tornado imune à prisão. Tal pensamento deixou-o meio em pânico, e quando encontrou outro policiai rondando imponentemente a entrada iluminada de um teatro, agarrou-se à tábua salvadora da "conduta desordeira".

No pináculo da sua voz rouca, Soapy começou a berrar, em plena rua, o palavrório enredado dos bêbados. Dançou, urrou, esbravejou, e fez tudo quanto sabia para perturbar os circunstantes.

O policial girou seu bastão, voltou-lhe as costas, e observou, a um cidadão.

— É um dos rapazes de Yale, comemorando a surra que deram no Colégio Hartford. Barulhento, mas inofensivo. Temos ordens de deixá-los em paz.

Desanimado, Soapy interrompeu a algazarra inócua. Será que guarda nenhum lhe deitaria as mãos? Na sua imaginação, a Ilha parecia uma Arcádia inatingível. Abotoou o casaco ralo para se proteger do vento enregelante.

Numa tabacaria, viu um homem bem trajado acendendo o charuto numa chama vacilante. Ao entrar, colocara ele seu guarda-chuva de seda junto à porta. Soapy penetrou na loja, apoderou-se do guarda-chuva e foi-se retirando devagar. O homem que acendia o charuto seguiu-o apressadamente.

— Meu guarda-chuva — disse, com voz ríspida.

— Seu, é? — zombou Soapy, acrescentando o crime de insulto ao de roubo ligeiro. — Bem, por que não chama um guarda? Roubei-o, seu guarda-chuva! Por que não chama um guarda? Lá está um, na esquina.

O dono do guarda-chuva diminuiu o passo. Soapy fez o mesmo, com o pressentimento de que a sorte mais uma vez o traíra. O policial olhou para os dois com curiosidade.

— Naturalmente — disse o homem do guarda-chuva —, isto é... bem, o senhor sabe como são esses enganos... eu... se é seu, espero que me desculpe... apanhei-o hoje de manhã num restaurante... se o reconhece como seu, espero que...

— Claro que é meu — respondeu Soapy, rancorosamente.

O ex-dono do guarda-chuva retirou-se. O policial correu a ajudar uma loira alta, em casaco de gala, que atravessava a rua por onde vinha, a dois quarteirões de distância, um bonde elétrico.

Soapy encaminhou-se para leste, por uma rua em conserto. Atirou o guarda-chuva raivosamente dentro de uma escavação de esgoto. Praguejou contra os homens que usam capacetes e bastões. Justamente porque queria cair-lhes nas garras, pareciam considerá-lo um rei incapaz de erro. 

Por fim, Soapy chegou a uma das avenidas de leste, onde as luzes e os ruídos eram mais fracos. Voltou o rosto em direção da Praça Madison, pois o instinto doméstico sobrevive mesmo quando o lar não passa de um banco de jardim,

Todavia, numa esquina particularmente quieta, Soapy deteve-se. Deteve-se diante de uma velha igreja, esquisita, desconjuntada, cheia de empenas. Uma luz suave coava-se por uma janela de vitrais roxos, atrás da qual, sem dúvida, o organista martelava as teclas, certificando-se de que dominava bem o hino de sábado vindouro. Aos ouvidos de Soapy chegavam os sons de uma doce melodia, que o encantaram e o deixaram interdito junto aos arabescos da grade de ferro.

Lá em cima ia a lua, brilhante e serena; os veículos e os pedestres eram poucos; os pardais pipilavam sonolentamente nos beirais — por um instante, a cena pareceu reproduzir um cemitério campestre. E o hino executado pelo organista algemava Soapy à grade de ferro: ouvira-o muitas vezes nos dias em que sua vida incluía coisas como mães e rosas e ambições e amigos e pensamentos e colarinhos imaculados.

A conjunção do estado de espírito receptivo de Soapy e das influências à volta da velha igreja operaram uma súbita e maravilhosa mudança na sua alma. Percebeu, com acerbo horror, o abismo em que despencara, os dias degradantes, os desejos indignos, as esperanças mortas, as faculdades arruinadas e os sórdidos motivos que lhe constituíam a vida. E num instante o seu coração respondeu, emocionado, a esse novo estado de espírito. Um impulso instantâneo e poderoso incitou-o a lutar contra a sua sorte desesperada. Arrancar-se-ia ao atoleiro; faria de si mesmo um homem, novamente; venceria o mal que dele se apoderara. Ainda estava em tempo: era comparativamente moço; ressuscitaria suas antigas e imperativas ambições e procuraria satisfazê-las sem vacilai'. Aquelas solenes, mas suaves, notas de órgão haviam desencadeado uma revolução dentro dele. Amanhã, iria para o turbulento distrito comercial da cidade à cata de emprego. Certa vez, um importador de peles lhe oferecera um lugar de motorista. Iria procurá-lo no dia seguinte para pedir-lhe o emprego. Seria alguém na vida. Seria...

Soapy sentiu uma mão sobre o seu braço. Voltou-se rapidamente e deu com o rosto largo de um policial.

— Que está fazendo aqui? — perguntou-lhe o guarda.

— Nada — respondeu Soapy.

— Então venha comigo — intimou o policial.

— Três meses na Ilha — sentenciou o Juiz, no Tribunal de Polícia na manhã seguinte.

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. 
Disponível em Domínio Público.

Hinos de Cidades Brasileiras (Pedras de Fogo/PB)


Pedras de Fogo, representas
Teus valores culturais,
Muitas riquezas tu ostentas,
Além de tuas reservas minerais

O povoado originou-se
Nos tempo coloniais,
Em terras que André Vidal nos trouxe,
Os índios eram habitantes naturais.

Refrão
As pedras que de ti brotaram,
Traçam bem o teu perfil,
Nascestes na capela abençoada,
Do litoral és a mais bela e varonil

Tuas terras onduladas
Mãe de côncavo viril,
"Para nós és as esmeraldas
Do Nordeste do Brasil"

Rios perenes e tão límpidos,
De mansidão bem tropical,
Aura tal qual mão carinhosa,
Foi acalento do teu filho D. Vital

O céu azul e as verdes matas,
Tesouro ímpar de grandeza,
Sonho de esperança exaltas,
Ó brasão da natureza.

Aparecido Raimundo de Souza (A verdadeira história da pamonha com cãibra)

AS MANHÃS, todos os dias, se abriam numa arquitetura radiosa e indescritível, dessas em que o sol pulava cedo e, ao se levantar, se punha ainda meio que espreguiçadamente sonolento sobre as plantações de milho que se perdiam de vista. Dona Ornela, deficiente visual (contava somente com o olho direito), já havia pulado da cama as quatro, feito o café e chamado seus empregados. Esse pequeno entrave da vista faltosa não se constituía para ela nenhum tipo de problema. Tirava de letra. Levava numa boa. Aceitava a sua condição. Dona Ornela, noventa e nove anos, se constituía numa senhora de mãos calejadas e sorriso acolhedor. De bem com a vida, fazia tempo estava na cozinha preparando as suas famosas pamonhas. O cheiro forte do milho fresco invadia todos os recantos e os vizinhos sabiam que seria mais um dia especial. 

A longeva tinha um segredo que guardava a sete chaves: as suas pamonhas eram as melhores da região. No preparo, ela misturava amor, carinho, afeto, e claro, a tradição transladada do berço de seus pais. Os ingredientes se faziam simples: milho verde, leite, açúcar e uma pitadinha de saudade. Logicamente nesse conjunto, havia algo além. Uma fórmula especial que só ela conhecia de cor e salteado. Naquela manhã enquanto mexia a massa, dona Ornela sentiu uma pontada forte na perna. Sempre na mesma. Não uma coisa de primeira vez. Tal incômodo dava sinais de vida, fazia tempo. Não sabia precisar o diagnóstico correto. Achava ser uma espécie de cãibra oriunda de velhos carnavais. Por conta desses imprevistos, nesses momentos que a cada vez se faziam mais presentes e custosos, parava por breves momentos. Se apoiava na mesa onde trabalhava e respirava fundo. 

Tomava água. Muita água. Em seguida, mandava uma caneca até a borda de café com leite. O café nunca faltava. A dor, coisa de meia hora depois, sumia de vez. Nesses interregnos, ela se dobrava sobre si mesma, via estrelas. Às vezes chorava e mal conseguia gritar por socorro. Passado o transtorno, ficava a lembrança. Esse registro perdurava. Chegou a pensar, numa dessas, que se não se tratasse, poderia ficar aleijada, ou pior, carecesse de amputar o membro adoecido. Todavia, não parava. Seguia feliz o diário de seus afazeres: “A vida da gente —, nas vezes em que relatava seu problema com a Delza e a Bibiana —, as moças que ajudavam na cozinha, argumentava que se assemelhava “como a uma pamonha com cãibra.” E completava: “Às vezes, precisamos enfrentar a dor para saborear, logo em seguida, o doce prazer de continuar viva e respirando.” 

Enquanto as pamonhas cozinhavam, dona Ornela refletia sobre a sua própria jornada. E que jornada! Daria um romance, se alguém se dispusesse a escrever. Perdera o marido, o Luiz Corneteiro, muito precocemente. Quando o conheceu, a criatura tocava corneta na praça da matriz e angariava uns trocados. A figura acabava de completar vinte e cinco anos e ela florescia na esteira dos vinte. Com o falecimento, aos oitenta, dona Ornela batia o pé e reclamava que o Luiz poderia ter esperado mais um pouco para bater as botas. Sozinha, criara os filhos num total de seis. Os rebentos, anos depois, se casaram, arranjaram famílias e, como se esperava, todos, sem exceção, bateram asas em busca de horizontes mais prósperos. Sozinha, a matriarca enfrentara tempestades e secas. 

Contudo, sempre encontrava no vazio da sua vida, forças suficientes para seguir em frente, assim como o milho que brotava teimosamente no solo fértil da sua quinta, propriedade que fora comprada com muito sacrifício por seu saudoso e querido pai. Por volta das oito horas, a galera chegava. Abeirava em peso. Às vezes vinham poucos aos bocados. Noutras, pareciam brotar como água em nascente. Davam os ares da graça, não só os confinantes. Também rostos estrangeiros, com paladares atraídos pelo aroma irresistível do comestível caseiro. Dona Ornela servia junto com a Delza e a Bibiana, as pamonhas com um sorriso largo e franco embaladas com jarros de bebidas geladas (sucos de sabores os mais variados). Em cada gole, se alguém quisesse ouvi-la, uma história real de vida sofrida capaz de deixar as pessoas boquiabertas bailava a todo vapor. Cada mordida levava a uma viagem no tempo, tipo uma conexão paradisíaca com as raízes mais profundas e em erupção. 

Os clientes riam, choravam e agradeciam. A pamonha, mais do que comida, se precipitava como um abraço apertado para dentro das barrigas esfomeadas, o que a levava, logo depois, a um consolo saudável, talvez, quem sabe, pelas horas difíceis que às vezes precisava atravessar. No final do dia, quando o sol se punha e as estrelas riscavam o firmamento, dona Ornela dispensava as empregadas para as suas residências (as moças moravam dentro do próprio terreno junto com os demais empregados, cada um no seu quadrado) e só então se sentava na velha cadeira de balanço ao lado do fogão de lenha, o bule de café recém-saído do fogo e contava calmamente o montante do dinheiro que conseguira com a venda das pamonhas. Em seguida, saia no terreiro, olhava longamente para o céu, se ajoelhava perto do paiol (onde guardava as espigas de milho a serem usadas) e agradecia à Deus. Orava com humildade e fervor. 

Se fechava numa eufemia (prece) aprendida dos tempos em que fizera a primeira comunhão. A bondosa sabia que a vida se assemelhava e sempre repetia esse jargão, como um mantra —, “uma pamonha com cãibra.”  Sorria alimentando essa loucura meio que neurastênica. Por vezes, o incômodo chegava doloroso, subversivo, cada vez mais forte e resistente. Tempos depois, coisa de vinte minutos, meia hora, o molesto se retirava. E dona Ornela se quedava recheada de momentos encantadores. Dessa forma meio que piegas, a lenda da pamonha com cãibra se espalhou pela cidade. Não só naquela comunidade pequena. A coisa se alastrou. Correu para outras paragens próximas, como Bandeirantes, Cambará, Barra do Jacaré, Palmital e Itamaracá. Havia dias em que as pessoas vinham dessas urbes para provarem a iguaria mágica de dona Ornela. À frente de seu casarão se ancorava uma infinidade de carros, ônibus de excursão e até caminhões pesados que atravessavam a BR vindo ou indo em direção à São Paulo. 

Uma fila enorme se formava para comprar o alimento que cheirava gostoso e cujo sabor donairoso se propagava além da linha da velha estação da antiga Maria Fumaça que cortava a pequena e bucólica Andirá. Ela nunca revelou seu segredo, mas todos sabiam: nas pamonhas habitava um amor incondicional que fazia a diferença. Hoje, meu caro leitor amigo, quando você saborear uma pamonha, se lembre de dona Ornela e a sua inesquecível lição de vida. “Às vezes, precisamos enfrentar as cãibras, as dores corriqueiras, para nos depararmos com o verdadeiro sabor da existência.”  Como ela, a querida dona Ornela, encontrou o bálsamo da verdadeira substancia que a matinha viva, forte e a seu modo, feliz. A boa velhinha, infelizmente, veio à óbito aos cem anos. Em seu velório, se fez impossível contar o número de pessoas e carros presentes. No cemitério local a idosa desceu à sepultura enterrada ao lado do marido, o Luiz Corneteiro. 

Para quem se dispõe a visitar a pequena e aconchegante Andirá e logicamente o Campo Santo na Rua Ingá, número duzentos e trinta e três, certamente se deparará, no jazigo perpétuo do casal, com duas peças interessantes. Uma corneta em bronze ao lado do busto do Luiz Corneteiro. Na parte dos restos mortais de dona Ornela, a escultura enorme talhada em forma de uma enorme pamonha. E a inscrição feita por toda a comunidade: 

“Aqui jaz a memória inquestionável de uma senhorinha elegante e o segredo de uma pamonha de primeiríssima qualidade que fez muita gente se deslocar de rincões distantes para provar o seu sabor inconfundível. Aos cem anos, ela nos deu adeus e hoje repousa dos braços do Pai Maior, para quem, agora, dona Ornela deve estar preparando as suas suculentas e saborosas pamonhas como ela carinhosamente as cognominou de “Pamonhas com cãibra.” Dona Ornela, descanse em PAZ.  

Fonte: Texto enviado pelo autor