domingo, 2 de junho de 2024

Vereda da Poesia = 23 =


Trova Humorística de Juiz de Fora/MG

José Tavares de Lima

Nosso motel não tem cama,
mas tem rede ... Vão topar?
E o jovem casal exclama:
- Nós não viemos pescar...
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Poema de Ponte da Barca/Portugal

Diogo Bernardes
Ponte da Barca, 1530 – c.1605, Lisboa

JÁ NÃO POSSO SER CONTENTE

Já não posso ser contente,
Tenho a esperança perdida,
Ando perdido entre a gente,
Nem morro, nem tenho vida.
Prazeres que tenho visto
Onde se foram, que é deles,
Fora-se a vida com eles
Não ma vira agora nisto,
Vejo-me andar entre a gente
Como coisa esquecida,
Eu triste, outrém contente,
Eu sem vida, outrém com vida.
Vieram os desenganos,
Acabaram os receios;
Agora choro meus danos,
E mais choro bens alheios;
Passou o tempo contente,
E passou tão de corrida,
Que me deixou entre a gente
Sem esperança de vida.
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Aldravia de Anastácio/MS

Flávia Guiomar Ferreira da Silva Rohdt

chamou-me
lua
desde
então
tenho
fases
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Soneto de Joaçaba/SC

Miguel Russowsky
(Miguel Epstejn Russowsky)
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC

SONETO ALEXANDRINO

Se queres praticar soneto alexandrino,
esquece do relógio em primeiro lugar.
É uma composição, que por não ser vulgar
põe rimas de cetim em versos de ouro fino.

Elegância ao dizer… Luzir de sol a pino…
Sonoras locuções num alto patamar…
Um verso a colorir o verbo “conjugar”
usando tons sutis, de beijos sem destino.

Quando ele escolhe “amor” por núcleo do poema,
“saudade” passa a ser um mero estratagema
que o engenho em si dispõe para aquecer as almas.

E, sendo alexandrino, adquire um tal conceito,
que a nossa língua o faz artístico e perfeito.
Para um soneto assim… até Deus bate palmas!…
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Trova de Pedro Leopoldo/MG

Wagner Marques Lopes

A Natureza retrata
seus pendores imanentes:
no verde calmo da mata,
na limpidez das correntes.
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Sextilha de Porto Alegre/RS

Delcy Canalles
(Delcy Rodrigues Canalles)
Osório/RS, 1931 –  ????, Porto Alegre/RS

O amor,  em verdade, encerra
 o  verdadeiro  viver!
 Quem ama e se faz amado,
 sabe, ao outro, compreender
 e  vive  uma  vida plena,
 num contínuo  renascer!
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Quadra Popular

A árvore do amor se planta
no centro do coração;
só a pode derrubar
o golpe da ingratidão.
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Soneto de Campinas/SP

Guilherme de Almeida
(Guilherme de Andrade e Almeida)
Campinas, 1890-1969, São Paulo

FELICIDADE

Ela veio bater à minha porta
e falou-me, a sorrir, subindo a escada:
"Bom dia, árvore velha e desfolhada!"
E eu respondi: "Bom dia, folha morta!"

Entrou: e nunca mais me disse nada...
Até que um dia (quando, pouco importa!)
houve canções na ramaria torta
e houve bandos de noivos pela estrada...

Então, chamou-me e disse: "Vou-me embora!
Sou a Felicidade! Vive agora
da lembrança do muito que te fiz!"

E foi assim que, em plena primavera,
só quando ela partiu, contou quem era...
E nunca mais eu me senti feliz!
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Trova Premiada  em São Paulo/SP, 2010

Wanda de Paula Mourthé 
Belo Horizonte/MG

Que bom seria um enlace
entre a mente e o coração:
o que a gente desejasse
também quisesse a razão!
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Poema de Blumenaus/SC

Luiz Eduardo Caminha
Florianópolis/SC, 1951 – 2015, Blumenau/SC

IMPRECISÕES

Quem sou eu,
este ser inerme,
que faz da voz,
arma contusa?

Quem sou eu,
este ser inerte,
que mexe, remexe,
látego impiedoso?

Quem sou, afinal,
este ser sereno,
que num ímpeto se faz,
irascível mordaz.

Oh, cruel, inominado e controverso ser,
Verso, reverso, homo erraticus et perdidit!

Acaso uma criatura?
Erro da Criação,
insigne animal,
pedestal de areia?

Quiçá um dia,
de tanto me procurar,
alcance, almejo,
lugar pra descansar.

Desta busca infindável,
deste contínuo rebuscar.
Neste dia, quiçá, porvir,
Deus se ponha a me perdoar.
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Haicai de Curitiba/PR

Mário A. J. Zamataro
Mário Augusto Jaceguay Zamataro)

LUA

Perto do horizonte,
a grande lua amarela…
e o vento parado.

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Poema de Portugal

António Botto
(António Tomás Botto)
Concavada/Abrantes/Portugal, 1897 – 1959, Rio de Janeiro/RJ

A JULIETA DO BECO DAS CRUZES 

Aos arrancos, lá vai ela 
Despedir-se do amante 
Nesta manhã de Janeiro! 
Coitada, morre por ele! 
- Foi o seu primeiro amor 
E será o derradeiro. 
Todas as tardes, risonha, 
Ela falava com ele 
Num beco escuro de Alfama. 
Era ali que ela morava; 
- Até que uma noite foram 
Pernoitar na mesma cama. 
Estou a vê-la!, cingida 
Ao corpo delgado e quente 
Desse esbelto carpinteiro! 
E vejo-a, dias depois, 
nervosa, afastar-se dele 
Chamando-lhe: trapaceiro. 
Mais tarde ia procurá-lo 
À oficina e chorosa 
Seguia-o sem que ele a visse; 
E naquela perdição 
Adoeceu porque um dia 
Com outra o viu, - mas, sorriu-se... 
Soube-lhe bem ser «mulher» 
Do homem que apenas teve 
Um desejo passageiro! 
Mas, agora, - cruel preço! 
Dos olhos fez duas fontes
E do amor um cativeiro. 
Adoeceu gravemente. 
Nunca mais saiu à rua, 
Sempre a tossir e a sofrer... 
E era a mãe que, mendigando, 
De porta em porta arranjava 
Qualquer coisa pra viver. 
Hoje, constou-lhe que a Guerra 
O chamara para as linhas 
Do combate, - e combalida, 
Vai ao embarque levar-lhe 
No silêncio de um olhar 
Os restos da sua vida.
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Trova de Rio Claro/SP

Antônio de Oliveira

Prato de vidro, vazio,
feito um espelho, em teu fundo
refletes o olhar sombrio
das injustiças do mundo!
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Glosa de Fortaleza/CE

Nemésio Prata
(Nemésio Prata Crisóstomo)

MOTE:
Ah, se eu fosse um construtor
eu faria estradas novas
incrustadas com amor;
pelo chão... milhões de trovas!
José Feldman 
Campo Mourão/PR

GLOSA:
Ah, se eu fosse um construtor
de estradas, falou o Bardo;
faria, com muito amor,
estradas, sem qualquer fardo!

Pelas trilhas mais fechadas
eu faria estradas novas
com versos sinalizadas, 
e balizadas com trovas!

Disse mais o Trovador:
que as estradas, as faria
incrustadas com amor;
a mais pura pedraria!

Assim vive do Trovador,
construtor de estradas novas,
espalhando, com amor,
pelo chão... milhões de trovas!
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Epigrama de Salvador/BA

João Amado Pinheiro Viegas
1865 – 1937

Entre as folhas amarelas,
A melhor é o Imparcial.
Mas, como paga em parcelas, 
Só pode ser parcial.

(contra o jornal baiano O Imparcial que pagou a Pinheiro Viegas parceladamente um artigo de sua autoria)
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Spina de São Paulo/SP

Solange Colombara

INTUIÇÃO 

Enquanto meu eco
levita com sutileza
sobre os corrimões,

ouço sons, talvez meras ilusões 
que emaranhados entre os vãos, 
tentam livrar-se de seus grilhões.
Fitando um soalho bem cuidado,
sinto vida em outras dimensões.
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Trova Humorística, de São Paulo/SP

Campos Sales  
Lucélia/SP, 1940 – 2017, São Paulo/SP

A receita é de colírio
mas o bebum se apavora
e lê, cheio de delírio:
- pinga, só uma vez por hora? 
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Poema de Évora/ Portugal

Carlos Nogueira Fino

UMAS VEZES FALAVAS-ME DOS RIOS

umas vezes falavas-me dos rios
e densas cicatrizes
e o sangue
procedia
outras vezes velava-te uma lâmpada
de faias e de enigmas
e a sombra
repousava
outras vezes o barro
originava
uma erupção de insónia recidiva
no gume do incêndio onde jazias
nessas vezes a água do teu riso
abria nos meus pulsos uma rosa
e eu entontecia
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Poetrix* do de Porto Alegre/RS

João Pedro Wapler

mulher nua

na ponta do barbante 
a roupa se faz 
e depois morre no corpo de alguém. 
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* Poetrix (s.m.): poema com um máximo de trinta sílabas métricas, distribuídas em apenas uma estrofe, com três versos (terceto) e título.
 
CARACTERÍSTICAS
 
1 O poetrix é minimalista, ou seja, procura transmitir a mais completa mensagem em um menor número possível de palavras e sílabas.
2 O título é indispensável. Ele complementa e dá significado ao texto. Por não entrar na contagem de sílabas, permite diversas possibilidades ao autor.
3 Não existe rigor quanto à métrica ou rimas, mas o ritmo e a exploração da sonoridade das sílabas é desejável.
4 Metáforas e outras figuras de linguagem, assim como neologismos, devem ser elementos constitutivos do poetrix.
5 É essencial que haja uma interação autor/leitor provocada por mensagens subliminares ou lacunas textuais.
6 Os tempos verbais – pretérito, presente e futuro - podem ser utilizados indistintamente.
7 O autor, as personagens e o fato observado podem interagir criando, inclusive, condições supra-reais, cômicas ou ilógicas (nonsense).
8 O poetrix deve promover a multiplicidade de sentidos e/ou emoções, não se atendo necessariamente a um único significado.
(Coordenação Geral do Movimento Internacional Poetrix)

Francisca Júlia (O senhor cura)

O senhor cura era o homem mais caritativo e generoso que havia na aldeia.

Já era velho, os cabelos brancos como a neve, quando o viam atravessar as ruas, a cabeça trêmula, o passo incerto, a velha batina de pano grosseiro cheia de rasgões e remendos, os aldeões acompanhavam-no com olhar respeitoso e cumprimentavam-no, sorrindo.

As crianças corriam a tomar-lhe a bênção. Ele afagava-as, alisando-lhes os cabelos; perguntava pela saúde dos pais e dava-lhes moedas em cobre. Todos o amavam.

Quando uma rapariga ia se casar, ia o cura a visitá-la, a dar-lhe bons conselhos, como se fosse o pai. Se a moça era pobre, o cura ia de casa em casa angariando esmolas e presenteava-a com o enxoval e objetos úteis.

À cabeceira do doente, era ao mesmo tempo, médico e enfermeiro: — preparava as tisanas e aplicava-as. No leito do agonizante era confessor e amigo: — aconselhava ao arrependimento, ensinando o caminho do céu, e chorava aos primeiros anseios da agonia.

Nas horas vagas, depois de haver rezado e feito as suas obras de caridade, ensinava às crianças a doutrina cristã e dava-lhes guloseimas.

À noite, quer nas chuvas do estio ou no frio do inverno, ia visitar a miséria da aldeia. A esta dava o azeite para a lamparina, àquela um pedaço de pão, e a todos, em geral, bênçãos, conselhos e carinhos.

No entanto, quanta vez a velha criada que o servia não o ia encontrar sentado à beira da estrada, morto de fadiga e quase moribundo de fome! Ralhava-lhe então com palavras afetuosas e amargas:

— Isto já não tem jeito! Viver por aí a socorrer a pobreza, a pedir esmolas para dar aos outros e não se lembrar de que é pobre também, que está com a batina em trapos, o calçado roto e que em casa não há nem uma côdea de pão para a nossa boca! É de mais! Vamos, saia daí, apoie-se em meu braço e vamos para casa! Até parece que Deus vira seu santíssimo rosto!

E lá iam os dois, estrada afora, de braços dados, como dois mendigos.

Era assim o pobre cura — bom até à dedicação, caridoso até ao sacrifício.

Houve um dia em que uma febre contagiosa e mortal atacou os habitantes do lugar.

Os ricos fugiram; alguns abandonaram suas casas; muitos, porém, preferindo morrer da febre a sofrer miséria em terra estranha, ou talvez, na esperança de ser protegidos pela providência, deixaram-se ficar na aldeia, a trabalhar.

Quem passava pela rua ouvia no interior das casas gemidos de dor e gritos de desespero.

O cura então, saiu, foi de casa em casa em socorro dos doentes, consolando os aflitos, confessando os agonizantes, sempre solícito, sempre carinhoso, sem se importar com o cansaço que lhe invadia o corpo e nem com a fome que lhe devorava as entranhas.

Houve um instante em que, não podendo mais sofrer o cansaço e a fome, se deixou cair no chão, e, tirando do bolso um pedaço de pão duro, dispôs-se a comer.

Um mendigo, que passava, pediu-lhe a bênção e disse-lhe:

— Senhor cura, estou quase morto de fome e mal posso sustentar-me nas pernas. Socorra-me.

— Toma, pobre homem, este pedaço de pão. É o único que me resta, mas a minha fome está satisfeita. — Toma.

O mendigo comeu e partiu.

Minutos depois o velho cura tinha morrido.

Fonte> Francisca Júlia da Silva. Livro da infância. Publicado originalmente em 1899. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (De volta pro aconchego)


 Compositores: Dominguinhos e Nando Cordel

Estou de volta pro meu aconchego
Trazendo na mala bastante saudade
Querendo um sorriso sincero
Um abraço para aliviar meu cansaço
E toda essa minha vontade

Que bom poder estar contigo de novo
Roçando teu corpo e beijando você
Pra mim tu és a estrela mais linda
Teus olhos me prendem, fascinam
A paz que eu gosto de ter.

É duro ficar sem você vez em quando,
Parece que falta um pedaço de mim.
Me alegro na hora de regressar,
Parece que vou mergulhar na felicidade sem fim
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

O Calor do Retorno às Raízes em 'De Volta Pro Aconchego'
A música 'De Volta Pro Aconchego', interpretada pelo icônico Dominguinhos, é uma ode ao retorno às origens e ao conforto do lar. A letra expressa um sentimento profundo de saudade e o desejo de voltar para um lugar ou para junto de alguém que representa segurança e amor. A mala cheia de saudade simboliza as experiências vividas longe de casa e a bagagem emocional que cada um carrega consigo.

O reencontro descrito na canção é carregado de afeto e intimidade, evidenciado pelo desejo de um sorriso sincero e um abraço reconfortante. A estrela mais linda mencionada na letra pode ser interpretada como uma pessoa amada ou mesmo como uma metáfora para o próprio lar, que ilumina e guia o caminho de volta. A música transmite a sensação de que, apesar das dificuldades e da distância, há sempre um lugar ou alguém que nos completa e nos faz sentir inteiros novamente.

A canção também reflete a cultura nordestina, da qual Dominguinhos é um grande representante. A melodia e o ritmo remetem ao forró, um gênero musical tradicional do Nordeste do Brasil, e a letra evoca a simplicidade e a autenticidade dos sentimentos e valores dessa região. 'De Volta Pro Aconchego' é, portanto, um hino à saudade e ao amor, seja pelo lar ou pela pessoa que faz o coração se sentir em casa.

Artur de Azevedo (Vi-tó-zé-mé)

Vi-tó-zé-mé? Que quer isso dizer? Perguntará o leitor, imaginando que escrevi esse título em algum idioma bárbaro e desconhecido.

Tenha o leitor um pouco de paciência; não vá procurar no final do conto a explicação do título, que será plenamente justificado, por mais estranho que pareça.

Durante os primeiros dois meses da revolta de 6 de setembro, fui vizinho de uma família, que eu não conhecia, composta de marido, mulher e um filhinho de pouco mais de dois anos, encantadora criança que fazia a delícia dos meus olhos quando todas as tardes, azoado (atordoado) pela artilharia e pelos boatos, voltava à casa para jantar.

Poucos dias depois de declarada a revolta, comecei a notar que os pais do menino se retiravam da janela quando eu me aproximava e volviam ao peitoril quando só pelas costas me podiam ver, evitando, ao que parecia, o cerimonioso cumprimento que eu lhes fazia dantes.

Atribui o fato a alguma intriga de vizinhança, e, como não os conhecia nem eles me interessavam, não me importei absolutamente com isso. Como de nenhuma vergonha me acusa a consciência, tenho por hábito não dar a mínima importância ao juízo – bom ou mau – que os estranhos possam fazer da minha pessoa. É uma questão de temperamento.

Quem me fez cismar foi a criança. Essa estava quase todas as tardes à janela, e, quando eu passava, dizia-me com uma vozinha esganiçada e penetrante:

Vi-tó-zé-mé.

Debalde tentei apanhar o sentido dessas quatro sílabas misteriosas, que eu ouvia diariamente, à mesma hora, e acabaram, como já disse, por me dar que pensar, não obstante partirem dos lábios inconscientes de uma criancinha.

E isto durou mais de um mês.

Ao cabo desse tempo vieram as andorinhas da Empresa Geral de Mudanças, e os meus vizinhos abalaram para outro bairro, deixando-me a curiosidade fortemente excitada por aquele vi-tó-zé-mé enigmático e cronométrico.

Há dias achava-me num bonde, quando de repente o pai da criança, que eu perdera inteiramente de vista, entrou no veículo, sentou-se ao meu lado e cumprimentou-me com muita amabilidade, pronunciando o meu nome.

Bem que o reconheci: entretanto, obedecendo a um ressentimento muito natural, correspondi com certa frieza ao seu cumprimento, o que o levou a perguntar-me, sorrindo:

— O senhor não se lembra de mim?

— Confesso que não.

— Veja bem.

— Tenho uma ideia vaga...

— Fomos vizinhos. Morávamos na mesma rua – o senhor no número 55 e eu no 49 – quando rebentou aquela maldita revolta cujas consequências ainda estamos sofrendo...

— Ah! sim... agora me lembro...tem razão...

E não pude me conter.

— Por sinal que tanto o senhor como sua senhora se retiravam bruscamente da janela quando me viam.

O pai da criança baixou os olhos, suspirou, e, pôs-se com a ponteira da bengala e empurrar um fósforo apagado para uma das frestas do soalho do carro. Depois, levantou a cabeça, suspirou de novo, e disse-me com uma expressão dolorosíssima na voz e no olhar.

— É verdade... Praticávamos essa grosseria... Desculpe... eram coisas de minha mulher... Que quer o senhor? – Eu tinha a fraqueza de me deixar dominar...

E o homem procurou num sorriso uma atenuante para a seguinte revelação.

— Ela não podia vê-lo.

— Ah!

— Não podia vê-lo, não, senhor, e então exigia que saíssemos ambos da janela para evitar o seu cumprimento. Eu, com medo de um escândalo, fazia-lhe a vontade... Ora, aí tem o senhor!

— Não me podia ver? Mas... por quê?

— Asneiras. Não podia vê-lo, porque o senhor era um florianista intransigente e ela uma custodista exaltada.

— Ainda bem, disse eu, sorrindo.

— Conhecia os seus escritos... ouvia-o conversar, e... e não podia vê-lo!

— Com efeito!

— O senhor não faz ideia até que ponto a pobrezinha levava o seu fanatismo por aquela revolta que nos desgraçou. Imagine que havia um homem, um bom homem, um pai da vida, que há cinco anos nos vendia ovos... ovos frescos, deliciosos, mais baratos que no mercado...

— Pois bem: deixamos de ser fregueses desse pobre-diabo; ela despediu-o porque ele se chamava Floriano... Coitada! – tinha essas coisas mas era uma excelente criatura. Não há dia em que eu não chore a sua morte!

— Ela morreu?!

— Morreu, sim, senhor... ou por outra: mataram-na, porque naquele corpo havia seiva para cem anos.

E o viúvo enxugou uma lágrima que lhe rolava na face.

— E quer saber o que a matou? Uma bala atirada pelos revoltosos! Foi uma das vítimas dessa guerra estúpida que tanto a entusiasmava! – Um dia estava debruçada tranquilamente à janela, quando, de repente –, pá! mesmo aqui...

E o pobre homem levou a mão à testa.

— Não sobreviveu dois minutos. Quando lhe quis acudir, já era tarde: estava morta! 

E com a voz embargada pelos soluços.

— Deixou-me um filhinho, coitada! – um filhinho a quem faz mais falta que a mim próprio...

Para que o infeliz marido chorasse à vontade, conservei-me silencioso durante cinco minutos; passado o acesso, perguntei pelo menino.

— Está bem, obrigado... Mora no colégio... é pensionista... e vai indo.

— Lembra-me bem do menino, porque todas as tardes – quando eu passava e ele estava janela – dizia-me alguma coisa que eu não podia perceber e, por isso mesmo, tal impressão me causou, que nunca me esqueceu.

— Que era?

— Vi-tó-zé-mé.

— Ah! já sei...

— Sabe?

— Coisas da falecida... Era para o moer... Ela ensinava o filho a gritar todas as vezes que o senhor passava: “Viva Custódio José de Melo!” E ele, coitadinho, na sua meia língua dizia: “Vi-tó-zé-mé!”

— E aí está explicado o título.

Fonte> Artur de Azevedo. Contos efêmeros. Publicado originalmente em 1897. Disponível em Domínio Público.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 30

 

Silmar Bohrer (Croniquinha) 113

Sabe aquele riacho estrondoso que desce lá da serra levando tudo pela frente? Pois é... Assim anda a vida. As notícias de hoje são como torrentes que arrastam as de ontem, porque as de hoje amanhã já se foram também. 

Doida, doidivana, adoidada vida. Anda em disparada. E lembrar que não era assim. Belos dias de calmaria, de sossego, de suspiros serenos, de vislumbres, de imagens, de piqueniques nalgum cantinho do interior, das festas de igreja lá na vila, das bochas ali na cancha, do futebol na várzea, inesquecidas domingueiras. 

Hoje? Pensar, hoje? Para a vida não há tempo de pensar hoje. Ela corre célere, celerada. Automatismo puro. E eu me perguntando, o que houve com você, vida, parece que estás sempre com pilha nova? 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Vereda da Poesia = 22 =


Trova Humorística, de Pouso Alegre/MG

Newton Meyer Azevedo
1936 – 2006

Tira a roupa, e, quase nua
diz ao marido, emburrada:
- Pareço ainda "Perua "?!
- Parece, sim... depenada!
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Poema do Rio de Janeiro/RJ

Carlos Drummond de Andrade 
Itabira/MG, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ

AMAR

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e mal amar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.
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Aldravia de Belo Horizonte/MG

Clevane Pessoa
(Clevane Pessoa de Araújo Lopes)

Aquém 
da
porta
segredos
abraçam 
medos.
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Soneto de Poços de Caldas/MG

Laércio Borsato

A ORQUÍDEA

NA ENTRADA da casa, a orquídea abriu
Seu vasto sorriso, lilás e amarelo.
O verde das folhas também aderiu,
Esbanjando um quadro, nobre e mui belo!

Da sacada eu contemplo de perfil
Essa obra que Deus. De modo singelo,
Mormente nos recantos de meu Brasil,
Faz da graça e da beleza um forte elo!

Quem passar por ali sentirá a candura
Dessa flor, que com delicadeza pura,
Indelével toca o coração humano...

Nesse meditar a minha alma cogita.
Meu ser acende, se rende e acredita,
Isso só é possível, com o toque soberano!
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Trova de Maringá/PR

A. A. de Assis
(Antonio Augusto de Assis)

Havia à noite um poema:
as luzinhas em cardumes...
Hoje sequer no cinema
pisca-piscam vaga-lumes.
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Sextilha do Ceará

Walmar Coelho

O AMOR

O amor é uma plantinha
Que medra no coração!
Com o afeto se avizinha,
Bem querer ou ilusão,
Vive e cresce, não sozinha,
Nem prescinde afeição.
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Quadra Popular

Saudade consumidora,
eterna sócia de amor,
serás minha companheira,
irás comigo onde eu for.
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Soneto de Assaré/CE

Patativa do Assaré
(Antonio Gonçalves da Silva)
1909 – 2002

O BURRO

Vai ele a trote, pelo chão da serra,
Com a vista espantada e penetrante,
E ninguém nota em seu marchar volante,
A estupidez que este animal encerra.

Muitas vezes, manhoso, ele se emperra,
Sem dar uma passada para diante,
Outras vezes, pinota, revoltante,
E sacode o seu dono sobre a terra.

Mas contudo! Este bruto sem noção,
Que é capaz de fazer uma traição,
A quem quer que lhe venha na defesa,

É mais manso e tem mais inteligência
Do que o sábio que trata de ciência
E não crê no Senhor da Natureza.
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Trova Premiada  em Taubaté/SP, 2000

Antonio Juraci Siqueira 
Belém/PA

Perdão no amor que se apruma
sem guardar mágoas, constrói.
É flor que enfeita e perfuma 
as mãos de quem o destrói.

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Décima de Belo Horizonte/MG

Úrsula A. Vairo Maia

MULHER-PEIXE

Um segredo quero contar
Muitos pensam em mim
Como uma habitante plena do mar
Sou mulher-peixe a suspirar
Durante o dia me ponho a nadar
Ao cair da noite, me banho ao luar
Tenho a lua e o mar como habitat
Sou do dia, sou da noite
Sou do mar ,  sou do luar
Sou de quem, em sonhos , me desejar
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Haicai de Jacarepaguá/RJ

Antonio Cabral Filho

Seu laço de fita
Abalou meu coração:
Paixão virtual.
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Poema de Porto União/SC

Benjúnior
(Benevides Garcia Barbosa Júnior)

CANÇÃO GUERREIRA

Quero fazer uma canção triste
que seja como vento ligeiro...
Uma canção para o povo
como um canto de esperança!
Quero fazer uma canção guerreira
que luta para que voltem à vida
aqueles que declararam sua guerra!
Quero fazer uma canção para
animar os que caem...
Quero fazer uma canção de amor
que seja a de todos os tempos
e para sempre...

E que todos se levantem
e levantem suas bandeiras,
acima de seus corpos e cabeças;
levando todos os sonhos,
a todos os povos da terra
que vivem, amam e sofrem
e ainda esperam
uma canção guerreira…
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Trova de Caicó/RN

Eva Garcia

A bela flor de papel
que tu me deste, outro dia...
Foi tão perfeita e fiel,
que o cheiro dela eu sentia!
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Poema de Lisboa/Portugal

Antero Jerónimo

PAZ 

Vem de dentro para fora
caminho seguro de pés descalços
imune aos cardos crescendo descontrolados
Sábio silêncio do homem que não cala a voz
isolado de guerras inúteis 
ecos de palavras ocas 
Nobre missão em cruzada atemporal
na luta sem decreto nem cartel
contra o inimigo invisível e cruel
Tecida pelos mais alvos fios solidários
jardim cultivo de amor e justiça, onde
nardos de esperança florescem no mais pleno viço
Só na presença da tua asa suprema
se tranquiliza da desordem o meu coração.
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Epigrama de Salvador/BA

Roberto Correia
1876 – 1937

De muitos “doutores” sei
Que fundamente acatamos,
Aos quais, se dizem: – “Cheguei”,
Retruca a Morte: – “Chegamos”.
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Trova de Fortaleza/CE

Nemésio Prata
(Nemésio Prata Crisóstomo)

Dizem, com propriedade,
que a saudade é inexplicável;
explica-se: na verdade,
o senti-la é indecifrável!
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Spina de Berilo/MG

Nina Mariza

DANÇARINA 

Ritmada ao som
do meu coração,
ela alegre dança.

Roda, roda, não se cansa.
Como é bom vê-la assim!
No ar, sacoleja sua trança.
Esse lindo jeito ágil, vivaz,
é emoção que me balança.
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Poetrix de Recife/PE

Antonio Carlos Menezes

LISBOA

uma guitarra que chora 
de longe, um fado
que me toca a alma.
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Glosa de Portugal

António Aleixo
(António Fernandes Aleixo)
Vila Real de Santo António, 1899 — 1949, Loulé

ONDE NASCEU A CIÊNCIA E O JUÍZO

MOTE
Onde nasceu a ciência?…
Onde nasceu o juízo?…
Calculo que ninguém tem
Tudo quanto lhe é preciso!

GLOSA
Onde nasceu o autor
Com forças p’ra trabalhar
E fazer a terra dar
As plantas de toda a cor?
Onde nasceu tal valor?…
Seria uma força imensa
E há muita gente que pensa
Que o poder nos vem de Cristo;
Mas antes de tudo isto,
Onde nasceu a ciência?…

De onde nasceu o saber?…
Do homem, naturalmente.
Mas quem gerou tal vivente
Sem no mundo nada haver?
Gostava de conhecer
Quem é que formou o piso
Que a todos nós é preciso
Até o mundo ter fim…
Não há quem me diga a mim
Onde nasceu o juízo?…

Sei que há homens educados
Que tiveram muito estudo.
Mas esses não sabem tudo,
Também vivem enganados;
Depois dos dias contados
Morrem quando a morte vem.
Há muito quem se entretém
A ler um bom dicionário…
Mas tudo o que é necessário
Calculo que ninguém tem.

Ao primeiro homem sabido,
Quem foi que lhe deu lições
Pra ter habilitações
E ser assim instruído?…
Quem não estiver convencido
Concorde com este aviso:
— Eu nunca desvalorizo
Aquele que saber não tem,
Porque não nasceu ninguém
Com tudo quanto é preciso!
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Glosa, estrofe onde é recuperado e explicado um determinado tema apresentado num mote que é colocado no início do poema e do qual pode repetir um ou mais versos em posição certa, como um refrão.

A glosa prolifera como estrutura formal da poesia lírica do séc. XV, designando as estrofes da poesia obrigada a mote, que desenvolviam o tema proposto por este. Inicialmente fazia parte de composições poéticas breves, como o vilancete, que apresentava uma ou mais glosas de sete versos, ou como a cantiga, que apresentava uma glosa de oito ou dez versos. O verso utilizado era o heptassílabo e, menos frequentemente, o pentassílabo.

No entanto, segundo Le Gentil, progressivamente, a glosa deixou de ser exclusivamente composta a partir de um mote de dois ou três versos, podendo retomar uma cantiga, um vilancete inteiro. 

O poeta devia repetir e explicar sucessivamente cada verso de uma destas composições, criando um novo poema de tamanho variável. Em cada estrofe da nova composição poética, podiam reaparecer um ou dois desses versos, colocados em qualquer posição, com a condição desse local permanecer fixo até ao seu final. Normalmente, citavam-se dois versos por estrofe, um no meio e outro no fim, podendo existir outras combinações, como por exemplo, um verso no princípio e outro no meio, ou os dois no fim. Quando apenas um verso era retomado, podia surgir em qualquer posição da estrofe, embora fosse mais usual o seu reaparecimento no final. Deste modo, a extensão da glosa dependia do modelo selecionado pelo poeta e do número de versos da composição glosada.

O hábito de realizar glosas implementou-se em todas as cortes do ocidente latino europeu, constituindo um dos principais passatempos dos serões do paço onde praticamente todos os participantes eram simultaneamente produtores e ouvintes deste tipo de composições sujeitas a um mote. Os temas abordados eram essencialmente de sentido amoroso ou satírico, visando geralmente pessoas conhecidas por todos. A improvisação e o amadorismo dos seus intervenientes tornaram algumas destas composições artificiais e dignas de pouco interesse, sendo frequente a repetição exaustiva de ideias, vocábulos e rimas

A glosa continuou a sofrer transformações durante a Renascença, começando a ser constituída por um mote de quatro versos que lhe servia de introdução e quatro estrofes de dez versos cujo último verso era a repetição de cada um dos versos do mote inicial, mantendo a medida velha.

Mais tarde, especialmente em Espanha, durante o Século de Ouro, a glosa continuou a ser uma forma poética bastante utilizada, através da qual os poetas demonstravam grande perícia intelectual e verbal, combinando conceitos subtis e figuras de retórica .

Tendo sido ignorada pelo Romantismo, esta forma de discorrer sobre um determinado tema acabou por chegar até aos nossos dias, continuando alguns poetas populares a glosar diversos assuntos. 

Arthur Thomaz (O beijo e a montanha)

 
Nilsen cresceu em condomínio de classe média, com uma segurança que permitia muitas brincadeiras infantis. As famílias organizavam muitas festas de aniversário. 

Na festa em que comemorava 10 anos, tudo corria tranquilamente, até que na hora das despedidas, um primo adolescente veio em sua direção para o clássico beijo de até logo.

Percebeu, com horror, que ele era portador de acne e que iria encostar o rosto no seu. Aquelas acnes, em sua mente, transformaram-se em enormes montanhas de pus.

Sem conter a expressão de asco, viu-se soterrada por aquele Everest desmoronando sobre seu rosto, e ainda por um descuido, o primo escorregou e seus lábios tocaram parte dos dela.

Aquele hálito de brigadeiro com refrigerante inundou seu cérebro, fazendo-a correr enojada ao banheiro mais próximo, onde vomitou incessantemente e lavou o rosto e a boca, ao menos, 30 vezes.

À noite teve pesadelos com montanhas de pus, atolando-se em areia movediça daquela substância horripilante. O cheiro de brigadeiro misturado a refrigerante infiltrou-se em algum recôndito local em seu cérebro, de onde nunca mais saiu.

Evitou festinhas e jamais esteve perante a este primo. Na adolescência, vivia em consultórios de dermatologistas para evitar qualquer possibilidade de ter acne.

Enfim, a faculdade de Veterinária em outra cidade, longe do tal primo.

Nunca sequer aventou a hipótese de beijar uma pessoa, mas em uma festa na república de colegas de turma, beberam como era de costume nessas reuniões, e evitando beijar, relacionou-se sexualmente com um rapaz, que alcoolizado, preocupou-se apenas em consumar o ato para voltar logo ao lado dos amigos, sem sequer ter reparado que era a primeira vez dela.

Para ela, foi um alívio em não ter tido que beijar uma boca estranha e nem encostar seu rosto em alguém potencialmente portador de acne.

Mas nela ainda havia o temor de um dia apaixonar-se e ter que trocar beijos e carícias, porque, afinal, a imagem das montanhas de pus permaneciam em suas lembranças.

Foi convidada por uma colega de faculdade a assistir a um jogo de polo a cavalo. Era um amistoso contra La Dolfina, um famoso time argentino.

Notou, apesar de corado pelo esforço, que o cavaleiro do time brasileiro possuía um rosto liso. Lembrou da palavra rubicundo e riu intimamente.

No intervalo do jogo, aproximou-se do local onde estavam os cavalos e ofereceu uma cenoura a um deles. O jogador perguntou o porquê ela tinha uma cenoura na bolsa, já sorrindo pelo inusitado da situação.

Sem graça, ela respondeu que trouxera também frutas, porque avisaram-na que tudo era caro neste ambiente hípico e que ainda era estudante sem muito dinheiro.

Ele sorriu e convidou-a para almoçar no caríssimo restaurante do clube. Bem apessoado, aparentando ter uns 40 anos, muito atencioso, mostrou-se encantador aos olhos dela.

Ela, fitando insistentemente as faces do acompanhante, lembrou da dermatologista, que dizia ser a acne muito mais rara em adultos e sentiu-se segura.

Empresário, ele possuía também um pequeno haras, onde criava e treinava cavalos para o jogo de Polo.

Nilsen, agora esposa do “face lisa”, como carinhosamente o chamava, tornou-se uma veterinária especializada em éguas e cavalos de polo. Seus dois filhos tiveram acne na adolescência, sem que isso a traumatizasse novamente.

Na hora da intimidade, quando no esforço do amor, o rosto dele ficava corado, ela adorava provocá-lo chamando-o de rubicundo, o que causava muitas risadas. Ele, então, zombava carinhosamente das histórias que ela lhe contara a respeito da “terrível” acne.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (Avôhai)


Compositor: Zé Ramalho

Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde quarava
Sua camisa e seu alforje de caçador

Oh, meu velho e invisível
Avôhai
Oh, meu velho e indivisível
Avôhai

Neblina turva e brilhante
Em meu cérebro, coágulos de sol
Amanita matutina
E que transparente cortina
Ao meu redor

E se eu disser que é mei sabido
Você diz que é mei pior
E pior do que planeta
Quando perde o girassol

É o terço de brilhante
Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo da porteira
Nem também da companheira
Que nunca dormia só

Avôhai! Avô e pai!
Avôhai! Avôhai!

O brejo cruza a poeira
De fato existe um tom mais leve
Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos
Que amargam as pessoas que fitar

Mas que bebem sua vida
Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas
Cabelos de avôhai

Na pedra de turmalina
E no terreiro da usina, eu me criei
Voava de madrugada
E na cratera condenada, eu me calei

E se eu calei foi de tristeza
Você cala por calar
E calado vai ficando
Só fala quando eu mandar

Rebuscando a consciência com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta no jogo de improvisar

Entrecortando eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa
Pra doutor não reclamar
Não reclamar!

Avôhai! Avô e pai!
Avôhai! Avôhai!
Avôhai!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Avôhai: Uma Ode às Raízes e à Sabedoria Ancestral
A música 'Avôhai' de Zé Ramalho é uma homenagem poética e carregada de simbolismo ao avô do cantor, figura que representa sabedoria, tradição e a conexão com as raízes familiares e culturais. O termo 'Avôhai' é uma junção das palavras 'avô' e 'pai', indicando a importância do avô na vida do artista, como um segundo pai ou até mesmo um guia espiritual.

A letra descreve o avô com imagens rústicas e místicas, como um homem de 'botas longas' e 'barbas longas', adornado com um colar de ouro, sugerindo uma figura quase mítica, que carrega consigo a história e a cultura de seu povo. A menção à 'neblina turva e brilhante' e à 'amanita matutina' (um tipo de cogumelo) pode ser interpretada como uma alusão a estados alterados de consciência ou sabedoria transcendental, que o avô parece possuir.

A música também aborda a relação entre a vida e a morte, a sabedoria e a ignorância, e a importância de enfrentar os medos e desafios da vida. A referência à 'pedra de turmalina' e ao 'terreiro da usina' onde o cantor cresceu, trazem o ouvinte para o ambiente físico e cultural do Nordeste brasileiro, onde Zé Ramalho foi criado. 'Avôhai' é uma celebração da ancestralidade e do legado que as gerações mais velhas deixam para as mais novas, um convite para honrar e lembrar das origens.