quinta-feira, 7 de novembro de 2024

José Feldman (Cuchulainn* e Danned Dur)

Nota: Cuchulainn, nome do herói mitológico irlandês que aparece nas histórias do Ciclo de Ulster, bem como no folclore escocês e da Ilha de Man. O resto é ficção.
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Em tempos antigos, quando as lendas eram contadas ao redor das fogueiras e os deuses caminhavam entre os homens, havia um herói chamado Cuchulainn, da terra de Ulster. Ele era conhecido por sua coragem indomável e força sobre-humana, mas o que muitos não sabiam era que sua verdadeira força vinha de uma amizade profunda com um cão chamado Danned Dur (dentes de aço), um animal leal que sempre esteve ao seu lado.

Desde pequeno, Cuchulainn e Danned Dur eram inseparáveis. O cão, de pelagem dourada e olhos brilhantes, era mais do que um simples companheiro; era um guardião e amigo. Juntos, eles exploravam as florestas densas da Ulster, enfrentando desafios e desvendando mistérios. Danned Dur sempre estava lá, seja em momentos de alegria ou de tristeza.

Cuchulainn, ao crescer, passou a treinar com os mais valentes guerreiros e, durante suas aventuras, conquistou muitos inimigos poderosos. Mas Danned Dur estava sempre ao seu lado, defendendo seu mestre em batalhas e alertando-o sobre perigos iminentes. A conexão entre os dois era tão forte que muitos acreditavam que eles compartilhavam uma alma.

Certa manhã, enquanto Cuchulainn treinava nas margens do rio, uma voz ecoou em sua mente. Era a Deusa Morrigan, que se manifestava na forma de uma corvo negro. “Cuchulainn, herói de Ulster, um grande desafio se aproxima. Você deve preparar-se, pois os inimigos de sua terra estão a caminho, e você será o único a impedi-los.”

Ele sabia que o chamado da deusa não era em vão. Com Danned Dur ao seu lado, Cuchulainn preparou-se para a batalha, enfrentando não apenas guerreiros, mas também criaturas místicas que ameaçavam a paz de Ulster. Ele lutou bravamente, sua espada cortando o ar com precisão, e Danned Dur atacando ao seu lado, feroz e destemido.

A batalha culminante ocorreu em uma vasta planície, onde os inimigos de Ulster se reuniram em grande número. Cuchulainn, com a força dos deuses correndo em suas veias, enfrentou um inimigo de proporções titânicas, um gigante chamado Ferchtne, que vinha para desferir o golpe final em sua terra.

Durante a luta, Danned Dur lutou ao lado de Cuchulainn, atacando ferozmente, mas o gigante era forte. Em um momento de desespero, quando parecia que tudo estava perdido, Cuchulainn fez um sacrifício. Ele usou uma técnica secreta ensinada a ele por Morrigan, transformando-se em uma forma ainda mais poderosa, mas a um custo: seu corpo ficaria vulnerável após a transformação.

Com um grito de guerra, Cuchulainn derrotou Ferchtne, mas a vitória teve um preço alto. Danned Dur, ferido gravemente na batalha, caiu ao lado do herói.

A dor de perder Danned Dur foi insuportável. Cuchulainn, que havia enfrentado exércitos inteiros, agora se sentia completamente derrotado. Ele segurou a cabeça do cão em seu colo, lágrimas escorrendo pelo seu rosto. “Você foi mais do que um amigo, Danned Dur. Você foi minha alma gêmea. Sem você, estou perdido.”

Com o coração partido, Cuchulainn construiu um túmulo para Danned Dur nas margens do rio onde costumavam treinar. Ele fez um voto diante da sepultura: “Nunca esquecerei sua lealdade. Eu lutarei em sua memória até meu último suspiro.” As estrelas começaram a brilhar intensamente, como se os deuses estivessem chorando junto com ele.

Nos dias que se seguiram, Cuchulainn mergulhou em uma tristeza profunda. Ele abandonou a espada e se isolou, incapaz de enfrentar o mundo sem seu fiel amigo. Foi então que a Deusa Morrigan apareceu novamente, em um sonho envolto em névoa e mistério.

“Cuchulainn,” disse ela, sua voz suave como a brisa, “a dor que você sente é real, mas não deve deixá-la consumir você. Danned Dur é um espírito livre agora, e ele sempre estará ao seu lado, mesmo que você não o veja.”

Cuchulainn se levantou, a luz da deusa penetrando em sua tristeza. “Mas como posso viver sem ele? Ele foi minha força, minha luz.”

“Você carrega o espírito dele em seu coração. Lute não apenas por Ulster, mas por Danned Dur. Ele viverá através de suas ações, em cada batalha que você travar. A honra dele deve ser preservada, e sua memória deve ser celebrada.”

A sabedoria de Morrigan ressoou em Cuchulainn. Ele entendeu que não poderia permitir que a dor o paralisasse. Com um novo propósito, ele se preparou para a próxima batalha que se aproximava. A memória de Danned Dur agora o guiava, como uma luz nas trevas.

Na batalha seguinte, Cuchulainn lutou com uma fúria renovada. Ele se movia como uma tempestade, cada movimento carregando a força de seu companheiro perdido. Ele gritou o nome de Danned Dur em cada golpe, cada ataque, e a presença do cachorro parecia estar com ele, lutando ao seu lado.

Ao final da batalha, quando a poeira assentou e os inimigos foram derrotados, Cuchulainn ergueu sua espada em homenagem a Danned Dur. “Você não está perdido, amigo. Você vive em cada vitória, em cada lembrança que guardo.”

Com a bênção de Morrigan, Cuchulainn aprendeu a equilibrar sua dor com sua coragem. Ele sabia que a vida continuaria, mas a memória de Danned Dur sempre estaria presente em seu coração. As lendas de Cuchulainn se espalharam ainda mais, agora não apenas como um herói, mas como um homem que conhecia a dor e a perda, e que encontrou força na amizade e no amor.

E assim, entre as histórias de bravura e batalhas, o nome de Danned Dur tornou-se parte da lenda, eternamente ligado ao de Cuchulainn, o grande herói de Ulster, que nunca esqueceu o amigo que o acompanhou em cada passo de sua jornada.

Fontes: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem: criação de JFeldman com Microsoft Bing

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Varal de Trovas n. 616

 

Ana Caroline de Oliveira (As sombras do que foram memórias)

Esticou o braço para os lençóis do outro lado da cama. Frio. Assustado, abriu os olhos. Ainda não era de manhã, já não era noite; uma suave luz da aurora penetrava pela janela do quarto, criava formas abstratas no teto. Mas sua mente vagava por outros caminhos. 

Sua esposa não estava ali. O frio dos lençóis não era normal, e nem o silêncio mórbido que ele sentiu pairar pela casa. Aquelas horas, os filhos o acordariam para fazer café; eles gostavam de ver o sol nascer e depois voltavam a dormir. Chamou pelos nomes de todos, e sua voz ecoou no silêncio.

Devagar, começou a caminhar pela casa. Não chamou por mais ninguém; de repente, ficou com medo de que o som dos seus nomes os arrancasse subitamente de uma realidade longínqua. Passou pela porta do quarto das crianças; as camas pequeninas estavam arrumadas, e não havia ninguém. Continuou andando pelos corredores à meia luz do amanhecer. Passou pela cozinha deserta, onde a filha mais nova às vezes se sentava por horas, encarando o padrão dos azulejos, pensando que passava despercebida. 

Olhou pela janela da sala, aquela que dava para o jardim, o jardim do qual sua mulher cuidava metodicamente todos os dias, logo depois do café da manha; não havia nem sinal dela ao redor das plantas. Andou pela sala, já desperto e deprimido, abrindo caminho para sair pelo restante da propriedade; num dos velhos sofás vermelhos e pesados, o garoto mais velho gostava de ficar lendo com a cabeça encostada no pelo do cachorro. O cachorro dormia ali sozinho, roncando alto, sem se incomodar com sua busca lamentável.

Lá fora, o céu se coloria de azul e rosa, cada vez mais brilhante. E ali, não havia ninguém. Estremeceu com o gelo da grama úmida sob seus pés. já não sabia há quanto tempo estava acordado e por quanto tempo estava procurando; sentia que ficou horas encarando cada cômodo escuro. A luz dos primeiros raios de sol tocou seus olhos, como num clarão de lucidez, e ele se lembrou. Não havia ninguém, porque não poderia haver.

Não era raro aquele esquecimento; surgia com essas ilusões na cabeça sempre que estava muito cansado, ou quando estava muito escuro para distinguir luz e sombras. A mulher e as crianças já haviam partido há algum tempo; perguntou-se por onde estariam agora. 

Passou a mão no rosto e voltou para dentro de casa, esgueirando-se entre a tristeza. Poderia dormir mais um pouco antes de o sol subir completamente, e refazer o dia em sua memória.

(Este conto obteve o 3. lugar no Concurso de Contos, adulto nacional, do III Concurso Literário “Foed Castro Chamma”, 2020 – Tema: Aurora)

Fonte: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus

Vereda da Poesia = 150 =


Trova de
CELSO LUIZ FERNANDES CHAVES
Cambuci/RJ

De viver tenho prazer
no amor tenho muita sorte,
vivo para te querer
enquanto não vem a morte.
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Soneto de
EMÍLIO DE MENESES
Curitiba/PR, 1866 – 1918, Rio de Janeiro/RJ

Um músico barbudo

Tem a doença do som e a fatuidade
De pensar que todo ele, fibra a fibra,
É o sonoro instrumento em que só se há de
Vibrar o canto em que o universo vibra.

No seu queixo que pesa mais de libra,
E de pelos na escura densidade,
Pensa que o contraponto se equilibra
À harmonia da capilaridade.

Quando, às vezes, a crítica o abarba
Ele, acudindo ao exigente apelo,
Do ardor de um gênio musical se engarba.

De um filho de Isaú, a cara é o selo,
Pois nem o Padre Eterno tem mais barba,
Nem as onze mil virgens mais cabelo.
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Trova de
LUIZ CLÁUDIO COSTA DA SILVA
Parnamirim/RN

A imponente arte conserva,
os traços e a singeleza
da bela deusa Minerva:
- musa da mãe natureza!
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Soneto de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP

À lágrima

Quando a esperança acorda um sonho leve
e o som da natureza se aprimora;
penumbras do passado vão embora
e o toque do relógio não se atreve...

Quando o aperto de mão à paz aflora
e a dúvida do amor torna-se breve;
o gelo da pintura vira neve
e o justo com justiça não demora...

Ressurgem as latentes pradarias;
os olhos não se enganam com a fala
e a liberdade enfim mais aparece.

Tertúlias fraternais noites e dias
lapidam o poeta que se exala
e à lágrima fervente desfalece!
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Trova Premiada de
MERCEDES LISBÔA SUTILO
Santos/SP

Trova – apenas quatro versos
traduzem a  vida, a fundo,
do homem em seus universos
- poesia que abraça o mundo!
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Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

Dedicatória

A pomba d'aliança o voo espraia
Na superfície azul do mar imenso,
Rente... rente da espuma já desmaia
Medindo a curva do horizonte extenso...
Mas um disco se avista ao longe... A praia
Rasga nitente o nevoeiro denso!...
Ó pouso! ó monte! ó ramo de oliveira!
Ninho amigo da pomba forasteira! ...

Assim, meu pobre livro as asas larga
Neste oceano sem fim, sombrio, eterno...
O mar atira-lhe a saliva amarga,
O céu lhe atira o temporal de inverno. . .
O triste verga à tão pesada carga!
Quem abre ao triste um coração paterno?...
É tão bom ter por árvore — uns carinhos!
É tão bom de uns afetos — fazer ninhos!

Pobre órfão! Vagando nos espaços
Embalde às solidões mandas um grito!
Que importa? De uma cruz ao longe os braços
Vejo abrirem-se ao mísero precito...
Os túmulos dos teus dão-te regaços!
Ama-te a sombra do salgueiro aflito...
Vai, pois, meu livro! e como louro agreste
Traz-me no bico um ramo de... cipreste!
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Trova Popular

O meu amor me disse ontem
que eu andava coradinha;
os anjos do Céu me levem
se esta cor não era minha!
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Soneto de
JERSON BRITO
Porto Velho/RO

Sem recato

Chegaste desprovida de recato
Trazendo teus sussurros em oferta
Minh'alma revelada, descoberta
Celebra, degustando fino prato

Da cela dos sorrisos deste vate
Garbosa e sedutora abriste a porta
Outrora esmaecidos, tela morta
Fizeste dos sonhares o resgate

Em mim, nas remotíssimas paragens
Despontam as recônditas imagens
Pedindo teu carinho, esse pincel

Na face tens deveras duas luzes
Guiando lindas mãos com que produzes
Um mundo refulgente, meu laurel
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Trova de
GERALDO LYRA
Recife/PE

Como simples jangadeiro,
  no mar das paixões da vida
  vou ficando sem roteiro,
  numa jangada perdida...
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Folclore Brasileiro em Versos
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

Saci Pererê

No bosque escuro, um riso a ecoar,
um pé só dança, travesso, à espreita,
Saci, travador de rimas a brincar,
com seu gorro vermelho em meio à colheita.

Nos ventos que sopram, seus truques ecoam,
leva com ele o medo, o riso a flutuar.
Atrás da moita seus rastros enevoam,
sua lenda vive sempre a nos provocar.

Mas não é só travessa a sua essência,
guardião das matas, do fogo a grelha,
ensina ao homem a ter paciência,

que no simples ato, a vida é uma bem-querença.
Em cada folguedo, uma nova centelha,
no coração do povo, sua presença.
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Trova de
ANTÔNIO TORTATO
Curitiba/PR, 1934 – 1992, Paranacity/PR

Como a sombra, o falso amigo
reza na mesma cartilha.
Ambos caminham contigo
somente enquanto o sol brilha.
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Soneto de 
ALFREDO SANTOS MENDES
Lisboa/Portugal

Música divina

É música divina o chilrear,
De uma ave que voa, solta ao vento!
É música divina, doce alento…
Se alguém nos diz baixinho: eu vou te amar!

É música divina o sussurrar,
Que o mar provoca em cada movimento.
Divina melodia, o açoitamento;
Que a onda nos difunde, ao se espraiar!

É música divina, quando o amor,
É cântico divino, sedutor;
Lembrando Pierrot e Columbina!

Até o próprio vento em noite escura,
Sibilando estridente na lonjura…
Nada mais é, que música divina!
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Trova de
FERNANDO CÂNCIO
Fortaleza/CE, 1922 – 2013

O morro grita o seu nome
num frenesi sem igual
e vai sambando com fome
a deusa do carnaval!
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Soneto de 
GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Pedido

Peço aos irmãos, aos filhos e aos amigos,
que, quando a morte venha me levar,
não coloquem meu corpo nos abrigos
cimentados, gelados e sem ar!

E nem me ponham em belos jazigos! 
Nesses lugares, eu não quero estar!
Tristeza e solidão são os perigos.
Minha alma quer seguir a navegar!

Por isso eu peço a quem me queira bem,
leve meu corpo longe ... até o mar!
Onde haja céu! Onde vente também!

Nesse lugar azul só de beleza,
lancem ao mar o que de mim restar,
quero ser parte dessa natureza!
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Trova Funerária Cigana

Sou triste como a tesoura
que corta a negra mortalha,
ou da cova a dura terra
que sobre o morto se espalha.
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Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Metades 

Opostos em transe
circulam na mente
buscando um quê,

reflexões de um carente burguês. 
Em vielas secretas, são espelhos 
indefesos em invólucro de buquê.
Sutis maramos de múltiplos tons,
âmagos dispersos na nula psiquê.

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Trova de 
ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

Gonçalves Dias, teu verso
das terras do Maranhão
aos píncaros do Universo,
prega ao mundo a comunhão!
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Súplica

Aves! Cantai por mim que não possuo lira!
Vós sois como os poetas, livres e inspiradas...
Onde existis, cantais alegres, descansadas,
como a dizer que a vida enleva, encanta e inspira...

Eu não nasci com estro, ó donas da safira!
Jamais foi meu o dom das palavras rimadas,
no peito meu as mágoas sempre estão caladas,
apenas sei chorar! E o pranto já se expira...

Clamor de desespero é só o que eu poderia
arrancar de meu peito. E nunca uma poesia!
Oh! menestréis dos céus, ouvi o que vos clamo!

Ide bem alto, alto, e lá no céu profundo
ao Criador dizei que eu peço neste mundo,
amor, somente o amor do alguém a quem eu amo!
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Como é bom saber que o filho 
vida afora alegre vai, 
dando forma, força e brilho 
aos sonhos do velho pai!
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Poema de
JOSÉ LEZAMA LIMA
Campamento de Columbia/Cuba, 1910 – 1976

Ah, que você escape

Ah, que você escape no instante
em que tenha alcançado sua melhor definição.
Ah, minha amiga, não queira acreditar
nas perguntas dessa estrela recém-cortada,
que vai molhando suas pontas em outra estrela inimiga.
Ah, se fosse certo que, à hora do banho,
quando, em uma mesma água discursiva,
se banham a imóvel paisagem e os animais mais finos:
antílopes, serpentes de passos breves, de passos evaporados,
parecem entre sonhos, sem ânsias levantar
os mais extensos cabelos e a água mais recordada.
Ah, minha amiga, se no puro mármore das despedidas
tivesses deixado a estátua que poderia nos acompanhar,
pois o vento, o vento gracioso,
se estende como um gato para deixar-se definir.

(Trad. Claudio Daniel)
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Trova de
SELMA PATTI SPINELLI
São Paulo/SP

Quando a paixão acontece
de uma forma alucinada,
qualquer esquina parece
uma grande encruzilhada.
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Soneto de
JOSÉ XAVIER BORGES JUNIOR
São Paulo/SP

A última rosa

Quero agora te abraçar, por um instante!
E ficar, assim, quieto nos teus braços,
E sentir teu respirar, nesses compassos
Desta música divina e alucinante!

Quero assim, permanecer nesse teu mundo
De sussurros de hinos e de magias...
De teus olhos vem a luz onde me inundo,
De tua voz vem a candura de alegrias...

Quero assim estar contigo quando um dia,
Nos chamar para o seu seio a eternidade.
Quem ficar não deve nunca sentir dor.

Quem ficar deve viver em alegria
E na rosa carregada de saudade
Ofertar à eternidade o grande amor!
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Trova de
JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Fui rever meu chão de outrora,
mas a saudade era brava:
meus olhos sorriam fora;
dentro o coração chorava!
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Poema de 
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro/RJ, 1901 – 1964

Dois cravos roxos

Esta noite, quando, lá fora,
campanários tontos bateram
doze vezes o apelo da hora,
na minha jarra, onde a água chora,
meus dois cravos roxos morreram...
Meus dois cravos roxos morreram!
Meus dois cravos roxos defuntos,
são como beijos que sofreram,
como beijos que enlouqueceram
porque nunca vibraram juntos...
São como a sombra dolorida
de olhos tristes, que se perderam
nas extremidades da vida...
Oh! miséria da despedida...
Meus dois cravos roxos morreram...
Meus dois cravos roxos morreram!
Meus dois cravos roxos, fanados,
crepuscularam, faleceram,
como sonhos que se esqueceram,
alta noite, de olhos fechados...

Eu pensava numa criatura,
quando os campanários bateram...
Tudo agora se me afigura
irremediável desventura...
Irremediável desventura!
Meus dois cravos roxos morreram...
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Trova Humorística de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Quando a lágrima do olhar
beijar o sol num Adeus,
um arco-íris vai brilhar
entre os meus olhos e os teus!
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Hino de 
Arapoti/PR

Verde planalto de belezas mil.
És o recanto feliz do meu Brasil.
Orgulho dos filhos teus.
Terra mais rica não há.
Arapoti! Arapoti!
Celeiro natural do meu Paraná.

Rio das Cinzas imponente majestoso.
A cingir qual diadema este solo generoso.
E a ponte sulfurosa presente da natureza.
A mostrar qual venturosa esta terra de riqueza.

Em cada passo em direção ao progresso.
Consolida a esperança de um grandioso sucesso.
Nasceste de um braço forte de herói desbravador.
É o milagre do norte, terra de luz e esplendor.
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Trova de
ALFREDO ALISSON VALADARES
Sete Lagoas/MG

Cai a velha na lagoa
sendo a custo resgatada,
mas seu genro não perdoa:
– tanto barulho por nada?!!!
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Soneto de 
LAÉRCIO BORSATO
Poços de Caldas/MG

A moça e a rosa

Numa manhã de sol, na rosa entreaberta,
As pétalas luziam com as gotas de orvalho.
Ao longe um carrilhão repetia a hora certa.
Muita gente agitada corria pro trabalho.

Ali embevecido, o rapaz se põe alerta!
Uma janela abriu e na fresta de um galho,
Viu a moça surgir toda risonha, liberta;
Estendeu ao sol, uma colcha de retalho...

Fez na manhã seguinte, o mesmo itinerário...
A rosa toda se abrira. No campanário,
Repetia-se as batidas da manhã anterior...

Ele novamente ali! Voltou pra ver a rosa!...
Ou quem sabe, a moça faceira e formosa,
De farto sorriso e os olhos cheios de amor!...
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Retida além do horizonte
onde a razão se esvazia,
dos sonhos ergo uma ponte
e prossigo a travessia.
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Recordando Velhas Canções
Ideias erradas 
(samba, 1959) 

Não faça ideias erradas de mim
Só porque eu quero você tanto assim
Eu gosto de você mas não esqueço
De tudo quanto valho e mereço.

Não pense que se você me deixar
A dor será capaz de me matar
De um verdadeiro amor não se aproveita
E não se faz senão aquilo que merece
Depois ele se vai, a gente aceita
A gente bebe, a gente chora, mas esquece.
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José Feldman (Pafúncio no lançamento de um livro)

Era uma vez, em uma cidade onde a fofoca corria mais rápido que o vento, um jornalista chamado Pafúncio. Ele trabalhava para a renomada revista de fofocas "Fuxico & Fofocas", conhecida por suas histórias exageradas e manchetes que faziam até as pedras rirem. Pafúncio, um homem baixo e gordinho, tinha uma habilidade especial: ele conseguia transformar qualquer evento mundano em uma comédia tragicômica.

Um belo dia, a revista recebeu um convite para o lançamento do novo livro de um escritor famoso, o aclamado autor de romances, Aureliano Cabrito. O evento prometia ser o maior do ano, e Pafúncio estava determinado a ser o primeiro a descobrir todos os segredos por trás da obra. Com seu bloco de notas e caneta de tinta permanente (que estava mais permanente do que o próprio Pafúncio gostaria), ele se preparou para o grande dia.

No dia do evento, o salão estava repleto de celebridades. Havia atores, cantores e até aquele influenciador que ficou famoso por postar vídeos de gatos fazendo yoga. Pafúncio, com sua camiseta da revista e uma calça que parecia ter sido escolhida por um toureiro, se espremeu entre os convidados. Ele tinha um plano: entrevistar Aureliano e descobrir se ele realmente escrevia seus livros enquanto fazia malabarismos com laranjas, como alguns diziam.

Quando finalmente encontrou o escritor, ele estava cercado por fãs e jornalistas. Pafúncio, com sua voz de locutor de rádio, gritou: “Aureliano! Como você lida com a pressão de ser um autor tão famoso?” 

O escritor, surpreso, olhou para ele e respondeu: “Com muito café e algumas doses de solidão.”

Pafúncio, em sua mente, transformou isso em uma manchete: “Aureliano Confessa: Café e Solidão São Seus Melhores Amigos!” Mas ele não parou por aí. Com um olhar astuto, decidiu que era hora de fazer perguntas mais inusitadas. 

“E se você tivesse que escolher entre escrever um livro ou dançar tango com um gato, o que você escolheria?” Aureliano, sem saber se ria ou chorava, respondeu: “Bem, eu acho que o gato tem mais ritmo!”

Pafúncio, já rindo da sua própria piada, decidiu que precisava incluir o pato na matéria. Em um momento de pura inspiração, ele começou a imaginar como seria a capa da próxima edição da revista: “Aureliano e Seu Pato: A Revolução Literária da Dança!”

Mas a situação ficou ainda mais extravagante quando a assistente de Aureliano, uma mulher alta e elegante chamada Serena, decidiu que era hora de fazer a tradicional leitura de trechos do livro. Enquanto ela se preparava, Pafúncio avistou uma mesa com um bolo enorme, decorado com a imagem do escritor. 

Sem pensar duas vezes, ele se aproximou e, antes que alguém pudesse impedi-lo, cortou um pedaço generoso do bolo com uma colher de sopa.

Enquanto devorava o bolo, ele ouviu Serena começar a ler um trecho profundo e poético sobre o amor. Com a boca cheia de glacê, ele não pôde conter uma risada alta, que ecoou pelo salão. Todos os olhares se voltaram para ele, e Pafúncio, em sua típica falta de jeito, tentou se justificar. “Desculpem, mas essa passagem é muito doce… assim como o bolo!”

A plateia, entre risadas e olhares de desaprovação, começou a aplaudir a espontaneidade de Pafúncio. Vanessa, sem saber se ria ou se ficava brava, continuou a leitura. Mas ele, agora inspirado, começou a fazer comentários entre os trechos, criando uma espécie de stand-up literário.

“E quando Aureliano diz que ‘o amor é como um pássaro que voa para longe’, eu só consigo pensar: será que ele também dança tango com um gato?” 

A plateia, em um momento de cumplicidade, riu alto e a tensão do evento desapareceu.

No final do lançamento, ele saiu do evento não apenas com um pedaço de bolo na mão, mas com a certeza de que, em meio a tanta seriedade do mundo literário, sempre há espaço para uma boa dose de humor e, é claro, um gato dançarino.

Assim, Pafúncio voltou para a redação, onde escreveu sua matéria com entusiasmo, transformando o lançamento em um dos eventos mais cômicos da cidade. E assim, o jornalista e seu espírito travesso continuaram a fazer história nas páginas da revista, sempre prontos para a próxima fofoca que brotasse como um bolo em uma festa.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

José Feldman (Grinalda de Versos) * 6 *


 

Jorge Ribeiro Marques (A Aurora que não veio)

Ninguém notou quando ele chegou com a mesma roupa surrada e seu saco de aniagem inseparável que lhe servia de travesseiro, sofá e armário.

Esgueirou-se por baixo da mesma marquise, recolheu-se num canto, colocou a muleta ao longo da soleira da loja, ajeitou o que lhe sobrara da perna direita e da garrafa pet de sempre e sorveu o último gole da branquinha.

Noite de Natal. Num frenesi eufórico, que beirava à histeria, pessoas vestidas em papel de presentes circulavam como se estivessem atrasadas, Inexplicável para um mês de dezembro fazer o frio que fazia, mesmo sendo São Paulo, e ainda não eram vinte e uma horas, como acusava o relógio da praça. Vez por outra uma lufada de vento mais forte renovava as folhas e os papéis espalhados de maneira disforme pelas ruas,

Num dos andares do prédio em frente, o pisca-pisca colorido, que parecia marcar o som alto, adornava simetricamente o pinheiro imperial num canto da sala. A todo esse minueto, Chico assistia com olhos de filmadora em câmera lenta, pneumonia mal curada, cíclica, coração débil, que a mendicância itinerante o tornava a cada dia mais fraco, com uma sensação esquisita de impotência. Tinha perdido a guerra contra a cidade grande. 

Tateou os bolsos rotos de sua farda diuturna, procurando uma guimba, sem encontrar. Com o frio aumentando, esgueirou-se melhor em si mesmo.

Invejou três rapazes, um pouco mais à direita, que fumavam um cigarro até aos dedos, de forma e cheiro estranho e de maneira sutil, parcimoniosa, apartando-se depois em meio à escuridão, companheira de suas noites.

Fechou os olhos e transportou-se até São José de Mipibu, viu Maria Rosa ao seu lado, curtindo as cores matizadas da aurora às margens do Rio Itaporanga, seu cachorro Fumaça e mais ninguém. 

A tosse de sempre e uma forte fisgada nas costas cancelaram a sua viagem, fizeram-no se encolher ainda mais e ficar inerte. O silêncio tinha preenchido os seus pensamentos.

O Bar da esquina tinha acabado de fechar para os clientes e Francisco de Assis Ferreira dos Santos, 61 anos, para a vida: Aurora-14 de setembro de 1958 - Ocaso- 24 de Dezembro de 2019.

(Este conto obteve o 2. lugar no Concurso de Contos, adulto nacional, do III Concurso Literário “Foed Castro Chamma”, 2020 – Tema: Aurora)

Fonte: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.