terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Carolina Ramos (Natal Feliz)

“Ele terá um Natal feliz! Ah, sim! Custe o que custar, o meu moleque há de ter neste ano, um Natal igualzinho ao dos outros!" — Zé Pedro apertava as mãos com vigor, como a transmitir força à decisão. O olhar severo diluía-se em ternura ao pousar sobre o vulto tristonho da criança, que, através da vidraça (opaca de pó, olhava os companheiros de folguedos, a lhe ignorar o afastamento, mal iniciada a discussão dos projetos e preparativos natalinos. Aqueles tinham mãe. Tinham lar. Teriam Natal!

Mas, o seu Betinho, desta vez também teria um Natal! O primeiro Natal, e, talvez, o mais feliz de toda a sua vida!

Logo ao nascer, a morte roubara ao menino a doçura dos carinhos maternos. Crescera aos trambolhões. O pai a desvelar-se. Viril, no trabalho diurno. A noite, premido pelas circunstâncias, a bipartir-se, fazendo o impossível, para dar ao filho a flexível austeridade de um pai e a tépida ternura dos braços maternos. Dupla missão, visando a um fim comum: a felicidade do filho. Atrapalhava-se, sem dúvida. As crianças, por vezes, tornam-se um bocado difíceis de serem entendidas. Mormente, por alguém que no trabalho pesado se embrutecia, calcando ao fundo da alma um cortejo sem fim de ressentimentos, a desfilar tristemente entre as ruínas dos seus pobres sonhos. Sonhos! Que seria isso? Há tanto deixara de sonhar! Sonhos, são para aqueles que ainda pretendem vê-los realizados um dia. Ele nada esperava. Bem... nada, propriamente, não. Queria fazer do filho um homem de valor! Ah! Mas, isto não era um sonho. Era pré-realidade. Palpavelmente concreta? Faria do filho, um homem! Por todos os santos, que o faria! Haveria de estudar, de ser alguém. Nem que o pai não passasse, como até agora, de um sofrido burro de carga.

"Dr. Alberto Celso da Silva!" — "Bom dia, doutor." "Obrigado, doutor!" — Como soava bem! Parecia ver-lhe a placa reluzindo à entrada de uma casa moderna! Casa de gente. Não aquela espelunca!

Zé Pedro desceu à terra. Olhos úmidos, percebeu que andara sonhando. Passou a mão calosa pelo rosto rude, curtido de sol. O certo, é que seu filho teria um Natal feliz!

Olhava a casa modesta, em desalinho, clamando pelos desvelos femininos. Nem de longe, assemelhava-se a um lar! Só as mulheres, com seus filtros mágicos, conseguem dar vida e graça, às coisas sem vida e sem graça alguma! Tentaria repetir o milagre. Pediria até umas férias. Não, nem seria preciso tanto. Uma licença de uns poucos dias, bastaria.

E, assim, tudo começou: "— o encardido das paredes foi escondido por uma camada de cal azul turquesa, talvez um pouco escura demais, mas, sempre azul! " A cor que sua finada Maria tanto apreciava. Casa limpa, tudo pareceu mais fácil. As vidraças, agora transparentes, permitiam que o sol jogasse confetes dourados nas tábuas foscas do assoalho. Zé Pedro exultava! O entusiasmo era tão grande, que o mulherio da vizinhança, sempre pronto ao zelo pelo garoto, em horas de expediente do pai, sentiu uma vez mais o problema, e, uma vez mais, cooperou. A velha Joana, até mesmo a velha Joana, mais dada às críticas e queixas, chegou a enviar-lhe um ramalhete de flores, fresquinhas, colhidas num jardim doméstico, igualzinho àquele que sua Maria esboçara, alguns meses antes que a condição de futura mãe lhe impedisse tais excessos. Maria! Tépida onda de saudade banhou-lhe o corpo, quase a saltar-lhe pelas janelas do olhar. Onze meses de ternura conjugal! E que onze meses felizes! Por que será que a felicidade acaba tão depressa?! Em troca, o infortúnio custa tanto a ir-se! — Uma leve, leve... qualquer ventinho a dissipa; o outro, pesado... pesado demais! Por isso mesmo, talvez nem todo um tufão de boa vontade consegue remove–lo de cima da gente. Ora, Senhor!, lá estava ele, caminhando com os pés virados para atrás, mergulhado no passado! E o presente, combalido, a exigir tantos cuidados!

Quase de mau humor, tentou ajeitar, numa velha leiteira, as flores recebidas. Já rachada, a vasilha partiu-se. A água espalhada por sobre a mesa tosca, arrefeceu o ânimo do homem. Roubou-lhe também um pouco mais do humor.

Fazia falta uma mulher em casa. Por todos os demônios, que fazia! Seis anos de viuvez! Por que não se casava outra vez? — Pergunta que lhe faziam amiúde e que, a si mesmo, repetia com frequência, principalmente, quando certos olhos castanhos ganhavam maior brilho, mal o viam passar. Mas, isso não! Jamais daria madrasta ao filho! A vida, roubando ao seu pequeno o carinho materno, já fora madrasta, e das piores! Não viesse a outra completar-lhe a obra. Tudo se arranjaria, aos poucos, com a graça de Deus.

— "Casa sem flores, pode ser casa, nunca um lar." dissera-lhe, certa vez, a companheira, quando, ao vê-la colocar à mesa, entre os pratos, um vaso cheio de flores, pilheriara: — "Vamos comê-las com sal, ou com açúcar?" Em resposta, haviam rido juntos. A esse tempo, já era possível sentir a presença irrequieta do filho, por sob a bata franzida, da mãe.

Ah! Maria, Maria... sempre Maria!

Zé Pedro enfiou as flores da velha Joana num bule de café. À volta do trabalho, trazia um vaso debaixo do braço. Seu filho teria um Natal feliz! Faltava ainda tanta coisa! E a verba andava curta! Quanto, para que uma casa se transformasse num lar!

O Natal batia à porta. Poderia vender algo. Aquele relógio que lhe dera Maria. Guardava-o com tanto carinho!... Quebrado mesmo, já o farmacêutico lhe oferecera por ele um bom cobre. Era um caso a estudar. Não tinha tempo para estudos. Acariciou o relógio uma última vez... reservava-o para o filho. Bobagens! Até que fosse gente para poder usá-lo, dar-lhe-ia outro melhor e mais bonito. E Maria? — não ficaria, acaso, magoada, se lá de cima visse tudo? Ora, claro que não! As mães compreendem tudo! E tudo não era para que o filho tivesse um Natal feliz?

O relógio ganhou novo dono. O menino, roupa nova. Terninho azul, como tanto desejara. Azul! Sempre o azul presente. Seria azul a cor dos sonhos? Se assim fosse, não seria de estranhar que, uma vez realizados, conservassem algo a lhes lembrar a primitiva cor. Santo Deus, por que pensava em tais tolices?! Aquele Natal lhe estava deixando miolo mole e coração, também. Devaneios de poeta! Olhou-se no espelho que pendia torto da parede. Endireitou-o. — "Toma jeito, Zé Pedro!" murmurou, mastigando um sorriso.

E vieram as frutas secas! Importadas! As amêndoas, as nozes e as avelãs. Um bocadinho de cada. E os bolsos ficando leves! As passas, os figos. Mania de copiar os outros! Por que não festejarmos o nosso Natal à brasileira, com as nossas próprias castanhas, os nossos pinhões, os nossos tão gostosos amendoins? Não são por acaso, frutos secos? E as peras d'água, as laranjas, os abacaxis de coroa na cabeça, e as uvas deliciosas, nossas, tão nossas?! Qual! — o mundo é assim mesmo! Quem sabe lá, se nas mesas europeias mais aristocratas, não haveria uma banana dourada, pintadinha, envolta em papel de seda, à espera de ser parcimoniosamente servida em fatias?

E veio a árvore de Natal. Pequenina, galhos rijos de arame recoberto de crepom verde. Maria não gostava de nada artificial. Maria tinha gosto! Tivesse paciência desta vez. Artificial, o pinheiro era mais econômico, não requeria tantos cuidados, servindo para o próximo ano, ou mesmo, para muitos mais.

Pai e filho: duas crianças iluminadas pelo ingênuo prazer de engalanar a primeira árvore de natal! Qual a mais feliz?

— "E a estrela, pai?"

— "Bolas! — tantas bolas comprara, e esquecera da estrela! A arvorezinha enfeitada, parecia pequenina, ricamente vestida... e lhe esquecera a coroa!"

— "Sabe, pai, se eu pudesse ia roubar aquela estrela bonita que brilha lá em cima, no céu!"

Zé Pedro desgostou-se. Que fascinação tinha o filho por esse verbo maldito! Roubar! A própria palavra causava-lhe irritação! Era pobre, mas, honesto. Tivera ao alcance oportunidades sem conta de melhorar de condição. Jamais manchara o nome, que, aliás, já nem considerava seu, mas, do filho. E o seu pequeno... sim, o seu pequeno, com que facilidade lançava mão do alheio! Não havia sido uma, nem duas vezes! Ontem, uma bola furada, sem aparente utilidade. Hoje um velho bodoque e quiçá uma estrela, caso a tivesse ao alcance. E amanhã?... Oh! Deus de misericórdia! — como podia gerar tão monstruosos pensamentos, comprometendo o futuro do futuro Dr. Alberto Celso da Silva?! O tempo, os conselhos e, principalmente, o exemplo paterno, se encarregariam de solver o problema. Coisas de criança! De uma criança que já entrara no mundo baseada em seu maior tesouro!

— "Amanhã, sem falta, terás a tua estrela".

— "E o presépio?"

— Estrilou. “Já estás querendo demasiado, não?" "Insaciáveis as crianças! Mais têm, mais querem!

- "No próximo ano, teremos um presépio bem bonito! Com pastores, carneiros e a Virgem Maria ninando um Menino de cabelos encaracolados. Iguaizinhos aos teus!"

— "E anjos, também?"

— "Anjos também. Muitos anjos!"

E o Natal chegou. Cheio de luzes! Bimbalhando sinos e sugerindo Paz e Amor.

Zé Pedro chegava da rua. Braços pesados, sobrecarregados com os últimos pacotes. A alma leve, leve! Vinha com ele a desejada estrela. A mais bela que encontrara!

Viu gente à porta. Muita gente! Não estranhou. Betinho estaria exibindo o seu lar. Os seus presentes. Andava prosa, ultimamente! Lá chegava a Joana com nova braçada de flores. E não tinham outro vaso!

Contudo, ao chegar, Zé Pedro, em vez da esperada alegria, captou tristeza e dor em cada olhar. Ninguém falava! Abriu caminho até o quarto, já pressentindo algo de funesto. Lá estava ele estendido na cama. Parecia dormir! Muito limpinho, estreando seu terno azul, um quase sorriso nos lábios sem cor.

— "Foi um carro..." gaguejou alguém.

— "Ele atravessava a rua correndo... ia contar ao filho do farmacêutico, que o seu Natal ia ser bonito... o mais bonito de todos!"

As lágrimas brotavam devagarinho dos olhos cansados de Zé Pedro. Pingos grossos e quentes, caiam mansamente sobre o corpo inerte do menino.

Seu filho... sim, sabia, seu filho fora roubar uma estrela do Senhor! Lá por cima, encontrara a mãe! Maria, por certo, não o deixara voltar. As mães são assim mesmo... Egoístas como ninguém! — quando conseguem prender os filhos nos braços, se pudessem, não os largariam nunca mais!

O caso é que seu filho agora tinha mãe! Tinha um lar! - um lar belo e azul! Muito mais belo, muito mais azul, do que aquele que lhe pretendera dar!

Ah! e tinha também, ao seu alcance, anjos para brincar e não apenas uma, porém, milhares e milhares de estrelas, sem precisar nunca pensar em roubá-las!

Não... não se enganara! Seu filho teria um Natal feliz! Feliz como jamais tivera! — bem mais do que ele próprio lhe poderia dar!
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  
Carolina Ramos é de Santos/SP

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015. Enviado pela autora.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 05

 

José Feldman (A solidão no coração da cidade)

PRÓLOGO
A linha entre a solidão como um refúgio e como uma prisão é tênue. Para aqueles que se sentem abandonados, a solidão pode rapidamente se transformar em um estado de desespero. O que começa como um momento de paz pode se transformar em uma espiral de tristeza, onde a conexão com o mundo exterior se torna cada vez mais difícil. A falta de interação social pode provocar sentimentos de inadequação e a crença de que não se é digno de amor ou amizade. Nesse cenário, a pessoa pode se isolar ainda mais, criando um ciclo vicioso que parece não ter fim. 
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

Em um pequeno apartamento no coração da cidade, onde a agitação nunca termina, vive um homem chamado Luca. O espaço é modesto, mas acolhedor, decorado com quadros de paisagens que ele mesmo pintou em momentos de inspiração. Ao seu lado, sempre, está a fiel companheira, uma cadela chamada Bolota, que se tornou sua única fonte de amor e alegria. 

A rotina de Luca é marcada pela solidão. Os dias começam com o sol tímido percorrendo suas janelas, e o primeiro som que ouve é o leve arranhar das patas de Bolota no chão de madeira. Ela se aproxima, balançando o rabo, e isso, por um breve momento, desvanece a nuvem que paira sobre seu coração. Com um carinho suave, Luca a cumprimenta, e, juntos, eles se preparam para mais um dia que se desenha no horizonte. 

Nos últimos anos, a vida de Luca tomou um rumo inesperado. A família, antes unida, se desfez em desentendimentos e distâncias. Os amigos, que não eram muitos, foram se afastando, cada um mergulhando em suas próprias rotinas e compromissos. A solidão se tornou a constante e, com o passar do tempo, ele aprendeu a conviver com essa dor. Mas a presença de Bolota, com seu olhar profundo e amoroso, trazia um pouco de luz a essa escuridão. 

As tardes se perdem em longas caminhadas no parque, onde Luca observa as famílias se reunindo, as crianças brincando, e os sorrisos compartilhados. Cada risada que ecoa ao seu redor é como uma flecha que fere seu peito. Ele vê pais segurando as mãos dos filhos, amigos se abraçando, e sente a ausência de tudo isso. A tristeza se torna uma companheira constante, uma sombra que caminha ao seu lado. Mas Bolota, com sua energia contagiante, faz com que ele sinta que ainda há vida em meio à dor. Ela corre livre, seu pelo brilhando sob a luz do sol, e Luca sorri, mesmo que por um instante, ao ver a felicidade simples que ela traz para si. 

À noite, quando a cidade se acalma e o silêncio domina o apartamento, o vazio se intensifica. As paredes parecem ecoar sua solidão, e os quadros, antes fontes de inspiração, agora lembram momentos de alegria tão distantes. Ele se senta no sofá, e Bolota se aninha ao seu lado, oferecendo a companhia que ele tanto necessita. O calor do corpo dela é um bálsamo para sua tristeza, e ele se perde nos olhos dela, que parecem entender sua dor. 

As conversas que antes compartilhava com a família se tornaram ecos em sua mente. Ele relembra os jantares em família, as risadas, as histórias contadas à mesa. Agora, as refeições são solitárias, e ele tem que cozinhar, mesmo que o apetite tenha diminuído. Bolota, sempre atenta, observa cada movimento, como se soubesse que ele precisa dela mais do que nunca. Ao lado dela, Luca encontra um propósito: cuidar, amar, e ser amado de volta. 

Algumas noites, a solidão se torna insuportável. Ele se vê preso em pensamentos, questionando onde tudo deu errado, porque as pessoas que amava estão tão distantes. A tristeza é palpável, quase uma entidade que ocupa o espaço entre ele e o mundo. Mas, então, Bolota se levanta e coloca a cabeça em seu colo, um gesto simples, mas cheio de significado. A conexão entre eles é eterna; ela não precisa de palavras para expressar seu amor. E, por um momento, Luca percebe que, mesmo na solidão, não está completamente só. 

O tempo passa, e as estações mudam. O inverno traz o frio, e Luca se vê cercado pela escuridão mais intensa. As noites são longas, mas Bolota se torna seu cobertor, aquecendo seu coração. Ele aprende a encontrar beleza nas pequenas coisas: o jeito como ela corre atrás das folhas secas, como se cada uma fosse uma nova aventura. A vida, embora marcada pela solidão, ainda reserva pequenos momentos de alegria. 

Ele se dá conta de que a solidão não é apenas dor; é também um espaço para reflexão e crescimento. Com Bolota ao seu lado, ele começa a redescobrir a arte de viver. A cadela se torna sua musa, inspirando-o a escrever, a pintar, a capturar a essência do amor que ainda existe entre eles. Em cada traço, em cada palavra, Luca expressa sua gratidão por ter alguém que o ama incondicionalmente. 

E assim, dia após dia, Luca e Bolota continuam sua jornada. A solidão pode ser um fardo, mas também é um espaço onde o amor verdadeiro pode florescer. Ele sabe que, mesmo na ausência de pessoas, o amor se manifesta de formas inesperadas. Bolota, com seu olhar profundo e afetuoso, mostra que a felicidade pode ser encontrada mesmo nos momentos mais sombrios. 

Às vezes, enquanto observa a cidade adormecer pela janela, Luca sorri ao perceber que, apesar de tudo, ele não está completamente só. A solidão pode envolver seu ser, mas o amor de sua cadela ilumina até os cantos mais escuros de sua alma. E isso, ele sabe, é um presente que poucos têm a sorte de receber.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Formado técnico de patologia clínica, não conseguiu concluir o curso superior de psicologia devido a situação financeira. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras e Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente escreve por Campo Mourão/PR. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura, organizador de concursos de trovas, gestor cultural, poeta, escritor e trovador. Dezenas de premiações em trovas e poesias.

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat.Poe Biblioteca Voo da Gralha Azul 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Sammis Reachers (Deambulações urbanas num domingo carioca)

São dezessete horas de um domingo de primavera. Cumprindo uma missão agora há pouco na UERJ do Maracanã, aquele monstro de concreto, ao sair me deparei com os vazios e desertos de uma cidade grande aos domingos de tarde. Foi instantâneo: me recordei de quando era rodoviário e solteiro e, ao trabalhar nos domingos, por vezes ao largar daquele “trampo” feito de sacolejar e de pessoas, saía sozinho pelos vazios urbanos de Niterói ou Rio, desarvorada, desavisada e destemidamente. Sem destino ou maiores objetivos. Que solidão especial, trotando lotada de melancolia e levando na carroça sua refém apaixonada-pois-adoentada da Síndrome de Estocolmo, a poesia... Sim, muitos poemas nasceram nessas andanças. Não, nunca fui assaltado ou indagado. Deus e minha cara de cana (e minha decana bolsa atravessada nas costas) talvez tenham me guardado.

Outro detalhe que me traz reflexão é que a melancolia de andar numa mata, campo ou descampado deserto é diferente da de andar num deserto urbano. Cada qual tem sua docilidade, mas o campo fala de sentimentos atávicos, instintivos ou transcendentes do que é puramente humano; já a urbe possui uma "linha de ansiedade" (é o melhor termo que pude) toda própria, o humano se celebra e exaure em seus próprios maquinários concretos e simbólicos, num jogo de topofilia*/ topofobia* que nos faz querer continuar o jogo do ver e do rever, do estar e do deixar de estar, enquanto somos acolhidos/ moídos pelo espaço que incessantemente nos ressignifica enquanto o ressignificamos. Jogo por sinal tão caro à corrente da Geografia que me apraz, a Geografia Humanista ou Fenomenológica.

Divagações livres, mas as deambulações (deambular é justamente andar à toa) hoje interditadas a um homem casado. 

Bem, melhor assim.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  
* Vocabulário:
Topofilia = Preferência ou conexão sentimental que alguém apresenta em relação a determinados lugares.
Topofobia = Medo mórbido de um lugar ou localização específica.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

Sammis Reachers Cristence Silva nasceu em 1978, em Niterói/RJ, mas desde sempre morador de São Gonçalo/RJ, ambos municípios fluminenses. Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É autor de dez livros de poesia, três de contos/crônicas e um romance, e organizador de mais de cinquenta antologias.  Aos 16 anos inicia seus escritos e logo edita fanzines, participando do assim chamado circuito alternativo da poesia brasileira, com presença em jornais e informativos culturais. Possui contos e poemas premiados em concursos do Brasil, bem como textos publicados em antologias e renomadas revistas de literatura.

Fontes: Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Vereda da Poesia = 185


Trova Humorística de
RENATA PACCOLA
São Paulo/SP

Teve um chilique tão forte
que logo tomou vacina
e se mandou para o norte
temendo a gripe sulina ...
= = = = = =

Soneto de
LEANDRO BERTOLDO SILVA
Padre Paraíso/ MG

Esperança

Quero fazer dos meus olhos mentira
Para acordar igual a um passarinho
Ouvindo ao longe, bem longe do ninho
O que o cansaço fadiga e suspira.

Oh, mar de gente, de sangue e de ira!
Torpe desejo de espúrio caminho.
Faça-me livre de seu escarninho.
Não me embandeire; seu ardil não me inspira.

E nesta febre que (se)invade - há jeito?
Saudades tenho as que me recordo
Quando, feliz, dormíamos no leito.

Há de chegar o dia em que a bordo,
Mesmo a noite sendo em meu peito,
Desta cingida nau outro me acordo. 
= = = = = = = = =  

Trova de
ADELIR MACHADO
São Gonçalo/RJ (1928 – 2003) Niterói/RJ

A empregada de hoje em dia
quando vai para o fogão,
cozinha em banho-maria
as cantadas do patrão!!!
= = = = = = 

Poema de
CRISTINA CAMPO
Bolonha/Itália, 1923 – 1977

Teu Nome…

Amor, hoje teu nome
a meus lábios escapou
como ao pé o último degrau…

Espalhou-se a água da vida
e toda a longa escada
é para recomeçar.

Desbaratei-te, amor, com palavras.

Escuro mel que cheiras
nos diáfanos vasos
sob mil e seiscentos anos de lava
Hei de reconhecer-te pelo imortal
silêncio.

Ficou para trás, quente, a vida,
a marca colorida dos meus olhos, o tempo
em que ardiam no fundo de cada vento
mãos vivas, cercando-me…

Ficou a carícia que não encontro
senão entre dois sonos, a infinita
minha sabedoria em pedaços. E tu, palavra
que transfiguravas o sangue em lágrimas.

Nem sequer um rosto trago
comigo, já traspassado em outro rosto
como esperança no vinho e consumado
em acesos silêncios…

Volto sozinha
entre dois sonos lá ’trás, vejo a oliveira
rósea nas talhas cheias de água e lua
do longo inverno. Torno a ti que gelas
na minha leve túnica de fogo.  
= = = = = = 

Poetrix de
LUIZ GONDIM DE ARAÚJO LINS
Rio de Janeiro/RJ

Procura

Averiguara portas e janelas,
percorrera todas as telas
do perímetro da solidão
= = = = = = 

Soneto de
HILDEMAR CARDOSO MOREIRA 
São Mateus do Sul/PR, 1926  – 2021, Contenda/PR

Lagrimas e risos

Você chorou quando aportou na terra,
E nós choramos de alegria imensa,
Por isso cremos que em teu peito encerra
Toda a pureza que o amor condensa.

 E foi grande a euforia que sentimos
Naquele lindo vinte e um de julho,
Que então choramos e então sorrimos
Num misto de alegria e de orgulho.

 Você é o fruto de um amor bendito.
O pranto e o riso assim se misturaram
Ao contemplar o teu perfil bonito.

 E hoje existe com mais intensidade
Aquele amor dos dias que passaram
Porque ele aumenta quanto avança a idade.

= = = = = = = = = 

Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/ RN

Esta dor que em mim persiste
e não me deixa dormir!...
é "aquela" lembrança triste
do que deixou de existir!
= = = = = = 

Poema de
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira do Mato Dentro (1902 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

Poema patético

Que barulho é esse na escada?
É o amor que está acabando,
é o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.

Que barulho é esse na escada?
É Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
É a lua imóvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.

Que barulho é esse na escada?
É a torneira pingando água,
é o lamento imperceptível
de alguém que perdeu no jogo
enquanto a banda de música
vai baixando, baixando de tom.

Que barulho é esse na escada?
É a virgem com um trombone,
a criança com um tambor,
o bispo com uma campainha
e alguém abafando o rumor
que salta do meu coração.
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Da Bebida fiquei farto, 
bebendo, perdi quem amo; 
hoje bebo no meu quarto 
as lágrimas que eu derramo.
= = = = = = 

Poema de 
MÁRIO A. J. ZAMATARO
Curitiba/PR

Lances

Às margens do acaso,
um lance de sorte!

De calar contido:
Aguardado lance
em lúcido olhar
em úmida boca
em túmida carne
em único afeto
em cínico corpo...
A falar revanche,
dado sem sentido:

No acaso das margens,
a sorte de um lance!
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/ RS, 1932 – 2013, São Paulo/ SP

Enquanto a guerra inundar 
num dilúvio, a Terra inteira, 
onde a pomba irá buscar 
outro ramo de oliveira?!…
= = = = = = 

Hino de
PUXINANÃ/ PB

Enchei de orgulho vossos corações
para o nosso torrão exaltar!
"Cidade dos Lagedos" imponentes,
que ostenta como marco singular.
Outrora, foi a nobre e boa fonte
que a sede de tantos matou;
por isso, ao espelho das águas
gente amiga teu núcleo formou.

Puxinanã, a nossa fé desponta
na tua gente brava e sem temor!
Hás de crescer por nossas mãos,
fiéis que somos, pelo vosso amor!

Ó terra mãe por crença de teus filhos,
rua independência se fez!
Joaquim Limeira e Zoroastro
erguerão o pavilhão, com altivez,
da luta pelo Desenvolvimento
com teu Trabalho e União.
No campo, mostra tua riqueza,
na Cultura, também na Educação.

Já inspiraste a musa do Poeta
com "As flores de Puxinanã",
que evoca o vigor da juventude:
a tua esperança do amanhã..
"Lagoa da Pedras", foste no começo,
amada pelos ancestrais;
agora, mais do que outrora,
os teus filhos te adoram muito mais.
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/ SP

Felicidade, abre a porta 
vem logo ressuscitar 
minha esperança já morta 
cansada de te esperar.
= = = = = = 

Soneto de 
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Ouro Preto/MG, 1870 – 1921, Mariana/MG

Quando eu disser adeus...

Quando eu disser adeus, amor, não diga
adeus também, mas sim um "até breve";
para que aquele que se afasta leve
uma esperança ao menos na fadiga

da grande, inconsolável despedida...
Quando eu disser adeus, amor, segrede
um "até mais" que ainda ilumine a vida
que no arquejo final vacila e cede.

Quando eu disser adeus, quando eu disser
adeus, mas um adeus já derradeiro,
que a tua voz me possa convencer

de que apenas eu parti primeiro,
que em breve irás, que nunca outra mulher
amou de amor mais puro e verdadeiro.
= = = = = = = = =  

Trova Humorística de
NEWTON MEYER
Pouso Alegre/MG (1936 – 2006)

Verão assim, credo em cruz?
– Foi tanto calor na cuca,
que uma porca deu à luz
três leitões à pururuca!!!
= = = = = = = = = 

Contos e Lendas do Paraná – 24 -

MUNICÍPIO DE CAMPO MAGRO
A lenda da lagoa feia

Na localidade de Campo Novo, município de Campo Magro, encontramos a Lagoa Feia, cuja lenda está repleta de “causos”, que povoam o imaginário popular da região. Contam os moradores locais que há mais ou menos 150 anos existia ali uma igreja e todos os que moravam nas suas proximidades reuniam-se quinzenalmente para os cultos religiosos.

Num belo dia, algumas pessoas resolveram fazer um baile nas dependências da igreja, já que não existia outro local na região para divertirem-se. Mas, coincidentemente, o baile foi realizado numa sexta-feira santa, dia de expiação da paixão e morte de Cristo. Para os costumes cristãos tal ato é considerado um verdadeiro sacrilégio.

Não tardou a intervenção divina, exatamente à meia-noite a igreja ruiu e afundou com todos os participantes do “baile profano”, matando a todos. Não ficou vestígio algum da existência da igreja e os corpos das pessoas nunca foram encontrados. 

No local formou-se a Lagoa Feia. Dizem os moradores que nunca se achou o fundo da lagoa, e que, muitas vezes, as suas águas turvas mudam de tonalidade, ficando ora avermelhadas, ora esverdeadas e em outros momentos amareladas. 

Ainda hoje, nas noites de sexta-feira santa, à meia-noite, ouve-se o choro de crianças e murmúrios de pessoas nas proximidades da lagoa feia.
= = = = = = = = =   = = = = = = =  

MUNICÍPIO DE ESPERANÇA NOVA
Sanga de Urutu 

Pirangueiros e pescadores falam de muitas histórias acontecidas no Paranazão. São inúmeros os casos de crimes hediondos praticados nas proximidades do grande rio, sendo alguns de conhecimento público, outros, no entanto, sem pistas até os dias atuais. É aí que as histórias viram causos e lendas.

Por volta de 1990, lá pelos lados da Sanga do Urutu, nas proximidades da Lagoa São João, o estimado Sansão foi brutalmente assassinado a facadas e jogado no rio. Mas o corpo nunca foi encontrado. Dizem que os acusados, Sidinei e seu comparsa Dirceu, praticaram o delito por causa de pinga e mulher. Os suspeitos até foram interrogados e presos, mas por falta de provas foram inocentados.

Moradores da região e pescadores que por lá andam, relatam que quem quiser pode ir lá para constatar um fato: na Sanga do Urutu, basta cair o silêncio costumeiro do lugar para se ouvir um assombro que assovia, mexe na água, geme; enfim, espanta os peixes e provoca arrepios até nos mais destemidos. 

Pescadores distraídos punham barcos à deriva; em vez de peixes, fisgavam nas águas profundas pedaços de roupas e pertences do lendário Sansão.

Talvez, por isso, hoje os mais avisados frequentadores do rio Paraná, no trecho Altônia, São Jorge do Patrocínio, Esperança Nova e Vila Alta, evitam permanecer naquelas paragens, em respeito à visagem comentada na Sanga do Urutu.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

MUNICÍPIO DE IVATÉ
A lenda da figueira

Surgiu há mais de 40 anos, próximo à cidade em uma área rural. Contada por quase todas as pessoas que ali habitavam naquela época. Relata-se que um certo pé de figueira, muito grande, era assombrado.

Viam-se luzes nele, ouvia-se barulho, outra hora ele gemia. Isso acontecia sempre à noite, quando as pessoas passavam por ali. A figueira era tão sombria e assustadora, que ninguém queria morar por perto. 

Contam que um certo dia, irritados com tanto medo que passavam, reuniu-se um grupo de homens, compraram uma bomba potente para soltar no tronco da árvore e ver o que acontecia.
Assim fizeram, acenderam a bomba e correram para ver a explosão. Um barulho de passos veio e pisou na bomba, ninguém viu nada e ela não explodiu. Depois desse dia, ninguém nunca mais desapontou a figueira.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

MUNICÍPIO DE PLANALTO
Tiracisma

Tudo começou na década de 1950, onde próximo da ponte do rio Capanema, a cerca de um quilômetro, no município de Planalto, havia uma estrada de chão que dava aceso a todos que vinham de Realeza a Planalto. Estes deveriam passar por um morro, o morro do Tiracisma.

A estrada foi aberta por volta do ano de 1955 e o morro foi batizado com esse nome porque tirava a “cisma” de qualquer motorista que se aventurasse a subir em dias de chuva. Qualquer motorista de caminhão que tentasse subir, ali ficava. Os moradores puxavam os caminhões com juntas de bois. A partir dos anos 1970 utilizavam tratores agrícolas até subir o morro, e a partir daí os motoristas podiam seguir as suas viagens.

Em 1965, foi batizado o riacho que atravessa a estrada no início do morro, com esse nome. Em 1979, a inauguração da estrada asfaltada PR-281 acabou com o drama dos motoristas nos dias de chuva, embora a estrada que corta o morro no seu lado oposto continue com forte declive.

Contam os populares que no morro houve um desastre. Um lenhador que por ali passava, com uma carga de madeira em seu carro de boi, ao descer o morro teve o azar de seu carro tombar, matando-o. Até hoje, as pessoas que passam pelo morro do Tiracisma dizem ouvir as madeiras rolando e fortes ruídos na mata que o circunda.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

MUNICÍPIO DE PLANALTO
Rio Siemens e suas lendas

Por volta do ano de 1974 na localidade de Santa Cecília pesquisadores encontraram ouro em moedas na margem do rio Siemens. Essas pessoas não eram da região e nunca mais se ouviu falar delas.

À altura do morro, perto do suposto pé de cactos onde foi tirado o ouro, existe uma grande área de flores de diversas cores, batizada na época pelos alemães de Palzamina. O curioso sobre as flores é que se uma pessoa colhe muda das flores, algo de diferente passa a acontecer na família, como a queima de uma casa, acidentes, assassinatos, separações. 

O local possui várias nascentes. Inclusive, foram feitos exames da água pela Paranapanema, empresa que asfaltou o trecho até Planalto. O laudo atestou que a água é de excelente qualidade.

Existem inúmeras outras lendas associadas ao rio Siemens. Contam que uma mulher de branco aparecia para os rapazes nas noites de sexta-feira, numa estrada próxima ao rio Siemens, aparecia e sumia repentinamente.

Conta-se que, certa vez, dois amigos estavam pescando à noite e foram surpreendidos por uma forte tormenta. O vento balançava fortemente a mata ao lado do rio. Os dois homens saíram correndo, com a finalidade de retornar para casa, quando chegaram próximo à pedreira perceberam que não havia vento algum, o céu estava estrelado, sem indício qualquer de tormenta.

Alguns dias depois, um caçador de pombas encontrava-se no mesmo local e, sem explicação alguma, os dois canos de sua espingarda dispararam, levando-os a cair dentro do rio. Uma outra noite, na mesma localização, um morador local estava pescando e avistou um animal estranho, que lhe pregou um grande susto. Ele estava um pouco distante, porém resolveu atirar no animal. Quando disparou na direção deste, ele duplicou de tamanho e correu em direção ao homem. No ataque, o homem perdeu anzóis e espingarda, sem contar seus apetrechos de pescaria.

Por volta do ano de 1980, na residência de Silvino Kipper, em Santa Cecília, moravam Silvino e esposa, a filha mais nova com seu esposo e seu primeiro filho. Ao jogar comida para os cães, dona Idalina Maria Kipper chamou o genro para ver o bonito cachorro branco, que estava em meio aos cães policiais. Era um lindo cachorrinho peludo branco luzente.

Sugeriram pegá-lo para que ficasse morando com eles. Porém, toda vez que tentavam pegar o cão ele sumia e aparecia alguns metros à frente. Alguém atiçou os cães, que eram ensinados, para que esses o pegassem, mas os cães não conseguiam, nem sequer pareciam ver o cachorrinho. A perseguição continuou até 800 metros do rio Siemens. Quando estava perto do rio o cão branco pulou na água e sumiu. Era uma noite de lua cheia. E o senhor Irineu se deu conta de que estava no meio do mato, perto do rio; o medo foi seu companheiro até chegar em casa, ofegante pelo susto. O pequeno cão peludo e luzente está presente na memória dele até hoje. Jamais encontrou alguma explicação pelo fato vivido.

Fonte: Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. 
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Por que cargas d’água?”

Com frequência, essa expressão aparece sob a forma interrogativa: “Por que cargas d’água  a criatura fez aquilo?”. Percebe-se no seu uso, quase sempre, o desconhecimento do motivo que levou alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Tal pergunta é habitualmente formulada com perplexidade, com a intenção de demonstrar a falta de lógica de certo ato, fato ou procedimento. É como se você perguntasse: “Por que motivo aconteceu aquilo?”.

Sua origem remonta ao final do século XIII, quando começaram as primeiras navegações portuguesas em águas do Atlântico Norte, região de mar aberto, portanto sujeita a severas tempestades, que desabavam em forma de forte pancadas ou cargas d’água. Fugindo delas, era comum os lentos navios da época se abrigarem no entorno dos Açores ou da Ilha da Madeira. Porém, escapavam às vezes do controle de seus hábeis timoneiros mercê da fúria da procela, fazendo com que as naus acabassem em destinos absolutamente imprevistos, quase sempre na costa africana.

Quando isso ocorria vinha a clássica pergunta, “por que cargas d’água a embarcação se extraviou?” Sua repetição na linguagem coloquial varou os anos, traduzindo-se num questionamento, sempre exprimindo perplexidade. Os portugueses, ainda hoje substituem “cargas d’água” por “raios”, sem que o sentido da indagação se altere: “Por que raios meu time perdeu o jogo?”.

Raul Seixas, o genial e irreverente “Maluco Beleza”, aproveitou a deixa para compor “Sapato 36”, em que ele indaga na música o porquê de usar um sapato menor que o próprio pé, que lhe foi dado pelo pai: “Eu calço 37. Meu pai me dá 36 // Dói, mas no dia seguinte // Aperto meu pé outra vez (…) // Por que cargas d’águas // Você acha que tem o direito // De afogar tudo aquilo que eu sinto em meu peito(…)”. Note-se que a expressão traduz uma indignação, uma incredulidade, um espanto, diante de uma situação inusitada.

De há muito essa curiosa expressão ganhou um sentido mais amplo, alcançando situações para além daquelas vividas pelos navegadores portugueses e definitivamente se incorporou na linguagem do povo brasileiro. Pode-se utilizá-la para aludir às ações de uma pessoa, que saíram por completo do seu próprio controle, ou tiveram um resultado totalmente inesperado ou extravagante.

Como exemplo de como se pode invocar tal expressão, veja-se o caso de um chefe de cozinha que resolveu preparar uma iguaria, mas por errar no tempero, a comida restou intragável, daquelas que de tão ruim acabam provocando revolta em presídio. Ele indagaria certamente, “por que cargas d’água” o alimento ficou com péssimo gosto, por não atinar em que ponto do preparo se deu o erro.

A surpresa, a indignação, a incredulidade e a perplexidade são inerentes às situações fáticas esdrúxulas, inconcebíveis ou patéticas que dão ensejo ao uso da antiga frase dos navegadores portugueses. Como nesse outro exemplo, em que um sujeito estava calmamente sentado à varanda do seu sítio, contemplativo, absorto em seus pensamentos, curtindo o ensolarado fim da tarde, quando lá passou um “espírito de porco”, desses muitos que existem por aí, soltando no ar, em sua direção, o grito de sobressalto:

– Seu José, corra que sua mulher está se afogando no lago!!!…

Desarvorado e sem hesitar, partiu ele em desabalada carreira e mais além, extenuado e ofegante, parou um pouco para recuperar o fôlego e nesse breve tempo, conjecturou de si para consigo:

– Mas por que cargas d’água eu estou correndo feito doido? Meu nome não é José, meu sítio não tem lago e nem casado eu sou…

O certo é que quase sempre a expressão “por que cargas d’água” é utilizada com elevada dose de incerteza, dúvida, trejeitos na voz e até com ímpeto de justa ira, principalmente quando o fato que a motivou, expõe quem a pronuncia a uma situação surreal, senão ridícula ou absurda, como sem dúvida ocorreu com seu José, no hipotético episódio acima revelado.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing