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quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Minha Estante de Livros (Renato Cascão & Sammy Maluco: Uma dupla do balacobaco, de Sammis Reachers)

 
 
Introdução do Livro, pelo autor

Este pequeno volume reúne algumas memórias de minha infância, transcorrida entre meados da década de 80 e inícios da década de 90 do século passado. Não faz assim tanto tempo, mas ainda era numa época em que as crianças, então não feridas pelas virtualidades da web ou enjauladas pelo risco da violência lá fora, brincavam de fato e de direito. E era um brincar na acepção plena do termo, na configuração máxima das 24 horas do dia, onde os pequerruchos exploravam o seu geralmente vasto espaço vital à exaustão.

Claro, nem tudo eram flores; a pobreza exercia o seu duro reinado, e aprendendo a driblá-la levávamos a vida – uma vida sofrida, transida de malandragem e inocência, mas, atropelando os pesares, profundamente feliz. Afinal, o chão da memória é apagar o grosso das sofrências, ou romantizar pela nublagem o rude dos amargos momentos.

Há um texto anônimo de grande beleza, e que acredito sirva de excelente introdução às pequenas e divertidas narrativas que aqui vão rascunhadas:

O QUE É UM MENINO?

Os meninos se apresentam em tamanho, peso e cores sortidas. Encontram-se por toda a parte, em cima, em baixo, dentro, fora, trepados, pendurados, caindo, correndo, saltando. As mães os adoram, as meninas os detestam, as irmãs e os irmãos mais velhos os toleram, os adultos os ignoram e o céu os protege. Um menino é a verdade de cara suja, a sabedoria de cabelo esgadelhado, a esperança de calças caindo. Tem o apetite do cavalo, a digestão do avestruz, a energia da bomba atômica, a curiosidade do mico, os pulmões de um ditador, a imaginação de Júlio Verne, a timidez da violeta, a audácia da mola, o entusiasmo do buscapé e tem cinco polidáctilos em cada mão, quando pratica suas reinações. Adora os doces, os canivetes, as serras, o Natal e a Páscoa; admira os reis e os livros de figuras coloridas; gosta do guri do vizinho, do ar livre, da água, dos animais grandes, do papai, dos automóveis e dos trens, dos domingos, das bombas e traques. Abomina as visitas, o catecismo, a escola, os livros sem figuras, as lições de música, as gravatas, os casacos, os barbeiros, as meninas, os adultos e a hora de dormir.

Levanta cedo e está sempre atrasado à hora das refeições. Nos seus bolsos há sempre um canivete enferrujado, uma fruta verde mordida, um pedaço de barbante, dois botões e algumas bolinhas de gude, um estilingue, um pedaço de substância desconhecida e um objeto raro, que lhe é precioso por 24 horas. É uma criatura mágica. Você pode fechar-lhe a porta do seu quarto de ferramentas, mas não a do seu coração... Pode expulsá-lo do seu escritório, mas não do seu pensamento. Toda a sua importância e a sua autoridade se desmoronam diante dele, que é o seu carcereiro, seu chefe, seu amo... Ele, um despótico e ruidoso mandãozinho!... Mas quando você volta para casa, à noite, de esperanças e ambições despedaçadas, ele pode compô-las num instante com as suas palavrinhas mágicas: "OH! — MAMÃE!".

É de se imaginar que as travessuras aqui narradas tenham como personagens principais esses dois aí do título: Meu amigo de infância, Renato “Cascão”, e o Sammy “Maluco”, este pacato alucinado que vos escreve. Mas não apenas eles ou nós: Outros atores desta ópera bufa que é a vida numa periferia se fazem presentes, emprestando suas histórias para, queira Deus, trazer um pouco de alegria e diversão a você, amigo leitor.
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Sobre o Autor
Nascido em 1978, em Niterói, mas desde sempre morador de São Gonçalo, ambos municípios fluminenses, Sammis Reachers é poeta, escritor, antologista e editor. Autor de dez livros de poesia e três de contos/crônicas, organizador de mais de quarenta antologias e professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa. Possui textos em vários blogs e sites.

Como autor, publicou:
São Gonçalo de Todos os Santos (poesias, 1999); Uma Abertura na Noite (poesias, 2006); A Blindagem Azul (poesias, 2007); Poemas da Guerra de Inverno (poesias, 2012); Deus Amanhecer (poesias, 2013); Pulsátil – Poemas canhestros & prosas ambidestras (poesias, 2014); Grãnadas (poesias, 2015); O Pequeno Livro dos Mortos (crônicas, 2015); Rodorisos – Histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários (contos, 2017); Poemas de Amor em Trânsito (poesias, 2018); Cartas & Retornos (poesias, 2021); Renato Cascão e Sammy Maluco – Uma dupla do balacobaco (crônicas, 2021).


Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco – Uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. Do Autor, 2021.

domingo, 13 de março de 2022

Sammis Reachers (O patrão, o lambão e a festa de aniversário)

Era ainda naquela época romântica onde não tínhamos os rádios Nextel: era tudo na base do radinho PX mesmo.

Em cada ponto final das linhas da Ingá, havia um desses rádios. O canal era um só, e sendo  assim o que um falava era ouvido por todos. Sim, TODOS, em cada ponto.

Então vamos lá: Certa feita, o veículo do motorista Marcelo, modelo novíssimo, acendeu uma das luzes de alerta    de    problema    (que    chamamos    na    gíria    dos rodoviários    de    "belga")    no    painel.     Problema    por problema, o motorista não sabia que símbolo era aquele, ou o que ele representava. Bem, ele sabia que era um problema mecânico ou elétrico, e a norma era uma só: que ele parasse o carro e ligasse para a oficina da garagem, requisitando instruções sobre como proceder.

Enquanto o motorista passava os passageiros para outro carro, solicitou ao cobrador que fosse até um telefone público (o popular orelhão) próximo, e ligasse para a empresa.

Ao atender, do outro lado, o rapaz da portaria colocou-o em contato via rádio com a oficina. Lá, o responsável perguntou:

– Alô, é da oficina. É para comunicar alguma belga?

- Sim, sim, é o carro prefixo Nit 101.045... Belgamos aqui perto da faculdade Plínio Leite.

- O que houve?

- Acendeu uma luz no painel, aí paramos o carro.

- Que luz que acendeu?

- Olha, eu não sei não...

- Você é o motorista? Como não sabe?

- Eu sou o cobrador. Mas ele também não sabe!

- Ué?!! Ele está aí perto? Chame ele aí, ou pergunte como é o símbolo que se acendeu.

O cobrador então perguntou ao motorista, que já havia colocado os passageiros em outro veículo, e foi lá novamente olhar no painel, comunicando então seu parecer ao cobrador.

- Olha, ele está dizendo aqui que nunca havia nem visto nem reparado nesse símbolo... Ele disse que se parece com um bolo... e outro símbolo por cima como uma faca... Ele tá dizendo que parece um bolo de festa ou aniversário...

Nesse terrível instante, o dono da empresa, o senhor Francisquinho, que ouvia a todo o estranho diálogo pelo rádio que havia em sua sala, tomou o comunicador e assumiu a palavra:

- Pois seu cobrador, aqui quem fala é seu patrão, o senhor Francisco. Diga ao motorista que a luz "que parece um bolo de aniversário" acendeu porque hoje é o aniversário desse carro. Isso mesmo. E diga para ele sair do volante e bater palmas, e você bata palmas também com ele, para comemorar!!!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

domingo, 6 de junho de 2021

Sammis Reachers (A maratona da panificação: Quem vencerá?)

O tema deste capítulo não é um assunto politicamente correto, mas este livro e o próprio humor também não o são. Vamos falar de uma realidade algo delicada, algo controversa: os idosos que, valendo-se do fato de não pagarem passagem, e do tempo de sobra que têm para fazer (ou não fazer) o que quiserem, pegam ônibus à esmo, seja subindo num ponto para descer no seguinte, seja percorrendo grandes distâncias, por motivos fúteis ou mesmo à toa, para "fazer hora".

Em mais um dia comum na garagem da Ingá, pela manhã, a galera está reunida para aquela tradicional resenha, o bate-papo que dá o ânimo do dia. Alguém começa a falar do assunto, dizendo de um ancião que sai do bairro Fonseca para, todos os dias, comprar quatro míseros pães franceses no mercado Extra, no centro de Niterói. Sendo que, no mesmo Fonseca, ele tem à disposição umas 15 opções de compra, sem ter que apanhar ônibus algum. Todos os presentes dizem então conhecer casos semelhantes. Mas nisso o motorista Fabiano "Gueiry", antiga "cria" da empresa, toma a palavra e, dizendo que o que eles viam no dia-a-dia não era nada, passa a relatar o seguinte:

- Na linha do Apolo (bairro de São Gonçalo, coberto pela empresa Fagundes), eu costumava pegar às vezes o carro de certo motorista, no horário das 5h00. O motorista seguia normalmente apanhando os passageiros do horário nos respectivos pontos. A maioria, galera que trabalhava nos estaleiros de Niterói. Certa vez, ao apanhar uma leva e dar a arrancada no carro, alguns dos passageiros puseram-se a gritar:

- Ei! Ei, motorista! Está vindo um senhor lá atrás, espera ele aí!

Conhecendo a 'peça' e um pouco contrariado, o motorista ainda fez menção de acelerar mais o veículo, cujo horário era extremamente apertado, mas alguns dos passageiros sentados na parte de trás chegaram a xingá-lo.    

O motorista    então    puxou    o freio de mão e pacientemente esperou. Lentamente    o senhor se aproximou e subiu com dificuldade no ônibus.

- Obrigado meu filho, se eu perder esse ônibus eu não pego a fornada de pão das seis horas...

O motorista, a essa altura já com a cara fervendo e querendo ensinar uma lição aos passageiros, mesmo sabendo que estava completamente errado, resolveu ir devagar. Os pontos já ficavam normalmente cheios, e com a lentidão repentina eles enchiam ainda mais, e assim também o ônibus,    que nunca vira tantos passageiros na vida, enquanto o piloto tranquilamente se arrastava, rebocando como um pé-de-pano.

Aquela lentidão já prefigurava o atraso daqueles trabalhadores, que tinham hora certa para pegar no serviço. A insatisfação e o burburinho dentro do veículo só faziam crescer, até que a galera não se conteve e começou a reclamar:

- Como é que é, ô piloto! Vamo com essa carroça! Nós temos hora pra chegar em Niterói!

Era o momento pelo qual o motorista, alma tinhosa, esperara e trabalhara,

- Ué rapaziada, vocês têm hora? Não me xingaram, lá atrás, para esperar o coroa? Pensei que vocês não tivessem pressa.

- Mas ele é velho já, se perdesse esse ônibus o outro ia demorar!

- E vocês sabem o que ele vai fazer? Ele sai todos os dias lá do Apolo, só para ir em Niterói comprar meia dúzia de pães!!! Atravessa centenas de padarias, pega engarrafamento, toma chuva, só pra ir em Niterói comprar pão porque "o de lá é mais gostoso"! E ele não tem nada melhor pra fazer mesmo... Então esse é o preço do atraso de vocês: um saco com seis pães franceses. Agora podem xingar, pra ver se anima o motor.

A galera ficou contrariada e, confusa entre ficar com raiva do motorista vingativo ou do idoso de paladar exigente, ficou em silêncio o resto da viagem.

Desnecessário é dizer que eles nunca mais pediram àquele piloto para esperar ninguém!

Após tal relato, Fabiano acreditou que se sagrara o vencedor da disputa sobre a maratona da panificação, praticada diariamente por milhares de velhinhos. Mas então Marqulnho, motorista baixinho e grande zoador, morador do bairro gonçalense do Jockey, terminou de tomar seu café e tomou a palavra.

- Malandros, como alguns aqui sabem, antes de trabalhar como motorista na Ingá eu era da empresa Rosana, em São Gonçalo. Pegava às 17h00 e largava às OlhOO da madruga. Acontece que a garagem da Rosana era problemática, e quando chovia, corria o risco de alagamento. Assim, em noites de muita chuva o dono da empresa ligava pra lá e pedia pra galera fazer uma força e rodar até às 05h00 da manhã, e se ainda assim a chuva continuasse e a garagem ficasse alagada, era pra largarmos os ônibus nas ruas próximas a ela. Nessas vezes, sempre às 04h00 da manhã, quando eu ia com minha última viagem, já exausto, sempre pegava um velhinho, que dizia estar esperando o outro carro da linha, que era efetivo de todo dia, mas passava às 04h20. Com o tempo fui pegando uma certa amizade com o velho, pois sempre que tinha que rodar até às cinco lá estava ele, sem falta. Até que chegou certo dia, e eu perguntei:

– Trabalha aonde?

- Ô meu filho, eu não trabalho não... Sabe o que é, é que há muito tempo eu morei no município de Rio Bonito, e gostei muito do pão de lá. Aí todo dia eu vou lá comprar pão.

Ou seja: o indivíduo saía às 05h00 da matina do município de São Gonçalo, pegava dois ou três ônibus só de ida, e além de São Gonçalo atravessava os municípios de Itaboraí e Tanguá para chegar em Rio Bonito, quase duas horas depois... apenas para comprar pão.

E com essa bordoada o presepeiro do Marquinho aniquilou todos os presentes e sagrou-se campeão da disputa.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Sammis Reachers (É uma macumba? É um despacho? Não, é um despachante!)

Luiz Antônio (Nome de guerra: "Macumba") é um despachante atualmente em atividade na Auto-Lotação Ingá. Antigo e experimentado malandro, morador da Baixada, rodado nos paranauês e na Central do Brasil, e com conhecidos entre bandidos e milicianos. É também um cara zoador e sacana, sempre pronto pra fazer a galera rir (mesmo sem querer!) com sua expressão brava, mas divertida.

Numa certa época, Macumba era despachante do turno da manhã no bairro de Charitas, ponto final das então três linhas 62 (Fonseca / Sta. Bárbara / Caramujo x Charitas). Seu parceiro de então, o despachante da tarde, era o Lucas, jovem centrado e de grande capacidade, então recém-promovido de cobrador a despachante.

Todos os dias, ao chegar ao ponto para a rendição, Lucas perguntava a Macumba qual era o último carro que ele marcara e o horário do mesmo. Assim, Lucas iniciava seu mapa (planilha onde se marcam os horários dos ônibus da linha) a partir daquele último ônibus marcado.

Ah, antes de continuar deixem-me abrir um parêntese: Na Ingá e em algumas outras empresas há uma disputa silenciosa, um torneio secreto para saber qual despachante tem a letra mais feia e incompreensível. Na Ingá a disputa era acirrada: Macumba de um lado, Adão de outro, Paulo Maluco (Lobisomem) na outra ponta e por fim o baixinho do Eduardo, que muitos acreditavam ser o campeão. Mas a disputa estava em aberto, e, como veremos, prestes a decidir-se.

Um belo dia, Lucas chega ao ponto e, apanhando sua prancheta, rotineiramente principia a preencher seu mapa de horários. Há um ônibus parado no ponto, o último que Macumba marcara, Lucas, como era corriqueiro, pergunta ao enfezado Macumba qual fora o horário que ele marcara para aquele carro. Ao olhar em seu mapa, Macumba arregala os olhos, em seguida aperta-os, como quem se esforça para enxergar algo pequenino, e por fim percebe que não pode compreender o que ele mesmo marcara. Isso mesmo, o bruto não conseguia entender a sua própria letra.

Na dúvida, foi até o veículo e pediu a ficha ou guia ao motorista. Ao olhar o horário escrito na ficha, novamente não entendeu a própria letra. E por sinal, nem mesmo o motorista entendera nada. E nem Lucas, que também fora olhá-la. A confusão estava estabelecida. Macumba então pergunta ao motorista:

- Está ruim de entender... Você não se lembra que horário que eu falei, não?

- Hum, Macumba, eu não me lembro não. Mas uma coisa eu sei: um camarada não entender a própria letra, isso eu nunca vi.

A galera próxima caiu na gargalhada. Para arrematar, o despachante Lucas, vendo um pratinho de quentinha jogado na lixeira do ponto, perguntou a Macumba:

– Já almoçou?

– Já sim, almocei onze horas,

– Comeu o que hoje?

Macumba pensou um pouco... E pensou mais um pouco... E depois de uma última e forte pensada, concluiu:

– Xará, sabe que eu não sei?

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Sammis Reachers (Perseguição perigosa)

Este mesmo motorista, o nosso querido Paulo Paixão, em anos anteriores havia sido cobrador na empresa Fagundes, tendo depois passado para a manobra (a escolinha de motoristas dentro das garagens).

Uma bela tarde, lá vai Paulo para o município de Itaboraí, levando um carro desde a garagem da empresa, que ficava no bairro Laranjal, em São Gonçalo. Após deixar o veículo no destino, Paulo dirigiu-se tranquilamente ao ponto de ônibus para pegar uma viação e voltar para a garagem. Era de tardinha, por volta das três e pouco da tarde.

De repente para ou ancora no ponto, dando uma grande freada, um veículo da empresa Maravilha, lotado até gargalo. Imediatamente, nosso amigo Paulo escutou um grande estouro, parecido com um tiro. E na verdade era mesmo um tiro! As portas do ônibus se abriram, e muitos passageiros saltaram à toda, desesperados.

Todos já engataram a correr, assustados com o que quer que tinha acontecido dentro do ônibus.

O primeiro a descer foi um 'coroa', um idoso aparentando seus sessenta anos.

Paulo, não sabendo o que ocorrera, mas entendendo que coisa boa não fora, resolveu não pagar pra ver e imediatamente pôs-se a correr, acompanhando de perto o tal coroa, e sem olhar pra trás!

À certa altura, um carro encostou numa rua à frente, na direção para onde ambos corriam. O coroa imediatamente entrou no carro, que saiu à toda, cantando pneus.

Paulo, esbaforido, imaginou então que alguma coisa estava errada. Tinha que estar. Olhando para outros que corriam logo atrás dele, perguntou;

- Mas afinal o que houve lá?

Ao que um dos corredores, assustado, respondeu:

- Foi um assalto dentro do ônibus! O cara roubou a bolsa de uma senhora e ainda por cima atirou nela! E aquele coroa com quem você corria era o ladrão! Vocês estavam correndo tão próximos que pensei que você estivesse com ele...

Imagine se o velho ladrão, armado com um belo trabuco, pensasse que o pacato Paulo o estava perseguindo.

Escapou por pouco, o inocente!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 10 de julho de 2021

Sammis Reachers (O Novo Milionário)

Nos idos dos anos 80 do século passado, não tínhamos Mega-Sena, Rio de Prêmios e outros jogos e loterias como hoje. Naquela época, quem mandava ainda era a hoje esvaziada Loteria Esportiva. Na rede Globo, ficou famosa a “Zebrinha”, que dava os resultados das partidas de futebol.

Naquela época havia um cobrador de ônibus na empresa niteroiense Ingá, indivíduo verdadeiramente “viciado” na jogatina: toda semana, religiosamente, lá ia ele fazer seus joguinhos na loteria esportiva.

Pois eis que, certo dia, ouvindo no radinho de pilha os resultados dos jogos, enquanto trabalhava, no turno da tarde, na linha 49, o coração de Marco (esse era o nome do nosso apostador) quase parou de bater: Finalmente, depois de tantos anos, ele acertara na loteria!!! Meio sem fôlego e sem acreditar, ficou ouvindo desesperado o radinho, para confirmar o resultado do último jogo, o que lhe daria o prêmio. Era isso mesmo, o resultado fora o que ele apostara, Marco ganhara a bolada! Nosso amigo não perdeu muito tempo: comunicou imediatamente ao motorista, e ordenou, agora já com o tom de patrão:

– Recolha esse carro.

– Mas Marco, qué isso, rapaz? Vamos terminar os trabalhos...

– Que terminar o quê, amigo, tô mandando você recolher. Pra mim chega disso tudo!

Sem opção, ao chegar no ponto final, o motorista comunicou ao despachante que iria recolher o carro. E Marco já foi falando para todos os companheiros ali presentes:

– Aí cambada! Ganhei, ganhei na esportiva! Chega de Ingá! Chega de trabalho! Sofram aí carregando praianos, aturando assalto! Eu agora vou ser patrão de vocês!

A galera, entre acreditar ou não, ficava em silêncio. Afinal ele estava recolhendo o carro e nem era ainda a metade do período de trabalho, e isso era grave. O malandro não faria isso à toa...

Bem, rapidamente a notícia chegou à garagem, e aos inspetores. Ficaram, é claro, chateados com o fato de o funcionário recolher o carro, mas secretamente tinham era inveja de Marco, que agora ia nadar no dinheiro.

Enquanto isso, nosso ganhador já havia prestado conta da féria arrecadada e se dirigia para casa, andando como se flutuasse.

Ao chegar em casa, foi logo gritando a boa-nova para a mulher, e ligando a velha TV de marca Telefunken, preto-e-branco, que hoje só se vê em museus. No telejornal as notícias avançavam, até que chegou a hora do resultado da loteca. Os números dos jogos de futebol foram repetidos, e Marco confirmou pela trecentésima vez que realmente acertara. A seguir o apresentador avisou:

– Segundo a Caixa Econômica Federal, foram 13.650 os acertadores...

– Êpa! Mas isso tudo? – disse para si mesmo Marco.

– E após o rateio, cada apostador receberá a módica quantia de CR$ 10.050.000...

Sim, amigo leitor, são muitos zeros, e se fosse em moeda de hoje, em reais, seria um respeitável valor... mas naquela época dos cruzeiros, de inflação galopante, aquela grana mal dava para... pagar um jantar para a patroa num restaurante decente.

Um balde de água fria, melhor, uma piscina de água da Antártida, com pinguins e tudo, caiu com estrondo na cabeça do pobre Marco. Aquilo pelo que ele esperava há anos, o sonho que acalentara tanto (e lhe custara já tanto dinheiro), durara apenas algumas horas...

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No dia seguinte, uma tremenda segunda-feira, Marco, a quem muitos julgavam que nunca mais veriam, apareceu na empresa, bonitinho, de uniforme passado e tudo.

– Ué Marco, a galera tá toda falando que você ganhou na loteria, e é o mais novo milionário – foi logo dizendo o primeiro companheiro que o viu.

E assim foi o avanço de ganhador da loteria, tendo que explicar a cada um a sua triste história. A galera não sabia se ria ou chorava...

Ao adentrar a empresa, Marco se dirigiu logo para a sala dos inspetores. Após relatar sua história agora triste, recebeu diversas broncas de praxe, e ficou aguardando enquanto seu caso era levado ao diretor da empresa. Todos davam já sua demissão como certa, e o sonho de Marco ganhava a cada instante ares de pesadelo.

Mas, muitos minutos depois, eis que chega a boa notícia: o dono da empresa se condoera da situação de Marco, e disse que dessa vez iria “perdoá-lo”. Ele poderia voltar ao trabalho. E assim nosso amigo fez.

Mas a chamada “Rádio Leão” (assim chamada pela alcunha que cariocamente se aplica aos rodoviários: ‘leões’), a rede de fofocas dos rodoviários, que dissemina informações à velocidade da luz, já existia naquela época, e trabalhava a todo vapor, dando as notícias sobre o novo “milionário”. E nas duas semanas seguintes, CADA LEÃO que via Marco, e alguns deles várias vezes por dia, tinham que perguntar algo como:

– E aí, milionário? Comprou esse ônibus aí e tá trabalhando nele?

– E aí Marco, meu “patrão”! Me empresta um dinheiro aí!

– Olha lá, olha lá o “milionário”! Fala milionário! Como tá aquela favela lá? Vai se mudar de lá para a mansão quando?

– E aí, jogador? Deu “zebra,” hein???!!
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O apelido de “milionário” pegou e nunca mais saiu. Já o emprego do Marco, coitado, não durou tanto: não suportando a zoação frenética, em duas semanas ele foi até o homem e pediu as contas…

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Sammis Reachers (Rivaldo e o tour infernal no Morro do Céu)

Toda empresa de ônibus que tenha uma quantidade boa de linhas, tem aquela(s) linha(s) em que quase ninguém quer trabalhar. A Ingá não foge à regra.

Talvez a pior das linhas, na opinião de uma maioria de rodoviários, seja a linha 26-A (Morro do Céu x Terminal). É a linha do "castigo". Embora não admitam, quando querem castigar algum profissional que tem vacilado bastante, eles o enviam para lá, seja como efetivo, seja para trabalhar apenas um dia. Os motivos de a linha ser detestada por muitos? Basicamente há dois principais: Primeiro porque a carona rola solta. Isso mesmo, praticamente ninguém paga passagem lá dentro do bairro. Mas há também o outro problema: a bandidagem. O bairro {ou "complexo") do Caramujo (e em especial o sub-bairro do Morro do Céu) é simplesmente o maior reduto do Comando Vermelho em Niterói, e um dos maiores do estado do Rio. Depara-se com homens e até crianças armadas a todo momento por lá. E encontrar-se em meio a um tiroteio entre policiais e bandidos não é coisa rara.

E é aqui que entra o nosso Rivaldo. Funcionário antigo, fala mansa e gente fina, curtidor de um bom pagode e bom mulherengo, a história de vida de Rivaldo já daria por si só um livro: Mesmo ainda jovem, sobreviveu a um infarto que o deixou literalmente entre a vida e a morte; após cirurgia de ponte de safena, voltou à ativa, e alguns anos depois envolveu-se num trágico e grave acidente, ao chocar-se o ônibus que dirigia contra uma das pilastras de sustentação da Ponte Rio-Niterói, na altura do Moinho Atlântico. E mais uma vez, embora tenha ficado preso nas ferragens, Rivaldo sobreviveu.

Em seu início na Ingá, Rivaldo passou diversos anos como cobrador, até que resolveu partir para a direção. Após o período regulamentar na escolinha, Rivaldo foi finalmente promovido. Mas sua carreira em inícios foi sofrida: Rivaldo pegava sempre os piores horários. Com o passar do tempo, isso foi gerando uma revolta natural no coração do amigo. E essa revolta o levou a dar alguns "vacilos" propositais com a chefia da empresa, de tão aborrecido que Rivaldo estava.

Pois bem: em mais um belo dia (e o leitor já percebeu como este livro é cheio de "belos dias"), a chance que certo despachante queria para castigar o bom Rivaldo surgiu.

Ele iria tirar um carro no turno da manhã, e o despachante lhe empurrou para dirigir um micro-ônibus, justamente no malfadado Morro do Céu. Briga daqui, regateia dali, e sem ter outra opção e precisando trabalhar, lá vai o nosso Rivaldo, ainda de madrugada, em direção ao Morrão.

Chegando ao local, na área conhecida como lixão, onde ele aprendera, no tempo de cobrador, ser o ponto final daquela linha, o cidadão Rivaldo, cabreiro com a escuridão do lugar, deu meia-volta e, tranquilamente, se pôs a manobrar o veículo em direção à descida do morro.

De repente, aquela freada. Saído de lugar nenhum, um marginal brotara em frente ao ônibus, com um detalhe: um fuzil apontado para a cara de Rivaldo! O malandro parecia que ia pra uma guerra, além do fuzil nas mãos, tinha uma pistola e uma granada penduradas na cintura.

- Ei! Ei! Tem que ir lá dentro! - Berrou o marginal.

Rivaldo, assustado, gaguejou:

- Lá dentro? Lá dentro aonde? Aqui á o ponto final, estou descendo para fazer linha.

- Descendo o caramba! Tem que ir lá dentro, lá na "balança". Pode dar a volta e ir lá que lá tem passageiro te esperando.

Ao perceber a confusão de Rivaldo, o malandro aliviou e perguntou;

- É a sua primeira vez aqui? Se é, fica sabendo que tem ponto lá no final - e apontou para mais acima no morro.

Assim, após manobrar lá se foi Rivaldo morro acima, numa direção em que ele imaginava que nem casas havia. Chegando a certa altura, ele percebeu que realmente haviam passageiros por lá: oito pessoas esperavam aquele que era o primeiro carro do dia.

Mas todo castigo pra rebelde é pouco, já diziam os opressores do trabalhador, e os perrengues de Rivaldo estavam só começando. Somente após o embarque dos passageiros foi que ele percebeu que o espaço para manobrar o ônibus e voltar para baixo era absurdamente pequeno. E, um tantinho além do pequeno espaço de manobra, havia nada mais nada menos que um despenhadeiro, uma encosta altíssima. Um erro do motorista e o veículo poderia cair lá embaixo.

Rivaldo, assustado, disse aos passageiros que não teria como manobrar ali, num espaço mínimo, no escuro e ainda por cima numa área que ele não conhecia. Mas os passageiros insistiram que todos os motoristas da linha manobravam ali, e um deles se prontificou a descer do veículo para ajudar Rivaldo a manobrar. Assim, depois de muito sufoco, mudanças de marchas à frente e à ré, nosso amigo conseguiu manobrar o veículo.

As viagens seguiram-se naquele mesmo ritmo, caronas, bandidos e sustos. Lá pelo meio dos trabalhos, estando no morro do Céu, um elemento grita:

- Ôòôuuu, espera aí motô!!!

Rivaldo para, e ao olhar para a direção de onde gritara o "passageiro", vê que era de dentro de um bar, uma birosca de beira de estrada. Assim que o veículo parou, o cidadão do grito apanhou dois engradados de cerveja, de cascos vazios, e entrou no ônibus. Ao colocá-los no corredor do pequeno veículo, disse simplesmente:

- Espera aí que tem mais.

E assim foi trazendo, de dois em dois, até somar oito engradados. Após colocar tudo no corredor, desceu.

- Tem mais ainda? - perguntou Rivaldo.

- Não, é só isso. Pode ir. Ah, um cara está te esperando lá embaixo, na pracinha, e vai pegar as caixas.

Após dizer isso, o elemento simplesmente virou as costas e entrou tranquilamente no bar. Rivaldo, entre confuso e irritado com o abuso do cidadão, que além de não ir levar a própria mercadoria, nem pediu o favor e nem sequer agradeceu, desceu com a frágil carga que se apertava entre os passageiros.

O caminho de descida é tortuoso, o famoso "só vai um", e lá desceu Rivaldo, tendo que ir relativamente rápido pois precisava fazer o horário, mas preocupado com aquela carga balançando devido aos solavancos que o veículo dava, sendo segurada pelos passageiros.

Lá    embaixo    realmente    um    indivíduo    esperava. Apanhou as caixas e tudo que disse foi um "Valeu". Nem um beijinho, nem um Guaravita nosso Rivaldo recebeu...

Já lá pelas doze horas, finalmente Rivaldo esperava que iria largar. Ufa! Que dia! Ao chegar no Terminal Rodoviário, ele falou para o despachante;

– Essa é a 'boa' (a última viagem), finalmente! Não aguentava mais!

– Ué, a boa? Não te avisaram na garagem não?

– Avisaram o quê?

– Esse carro dá uma viagem extra, amiguinho. Sua largada deve ser lá pelas 13h20...

Fulo da vida, lá foi Rivaldo de volta ao Morro do Céu, sabendo que teria uma outra viagem. Foi vendo os outros carros que pegaram num horário depois do dele largando, e ele ainda tendo que dar mais uma volta - e isso o fez ferver ainda mais de raiva. Do Morro do Céu ele desceu novamente em direção ao Terminal, e, agora sim, na volta sabia que iria largar.

Mas todo bolo que se preze, precisa ter uma cereja em cima. E a cereja do bolo estava esperando por Rivaldo, rechonchudinha, num dos acessos ao Caramujo, ali perto do Morro do Bumba (sim, aquele mesmo da tragédia dos deslizamentos em 2010).

Um cidadão com pinta de matuto de roça, as roupas bastante sujas e segurando um saco enorme, desses de farinha de trigo, deu sinal. Rivaldo foi encostando e já logo abrindo a porta do meio, pois ali já era área das caronas, e com um saco imenso daqueles o indivíduo não iria conseguir passar na roleta mesmo. Mas somente quando o Jeca Tatu entrou foi que Rivaldo percebeu do que se tratava a "carga": Naquele saco enorme, muito mal acondicionado, o camarada estava levando um enorme e fedorento porco, e vivo! Assim que ele entrou o porco começou a gritar e a se debater, e o cheiro rapidamente dominou todo o veículo.

– Isso aí é um porco?!!!!

– É sim, mas tá seguro.

– Pô, meu amigo, mas ele está fedendo e cheio de lama...

– Não esquenta não, lá em cima eu jogo uma água no ônibus.

E assim Rivaldo completou os trabalhos do dia, ouvindo  os altos grunhidos e sentindo aquela catinga de porco insuportável.

Quanto ao dono do suíno, ah: ao chegar no Morrão, já perto do Morro do Céu, ele desceu sem nem fazer menção de jogar água em nada...

Rivaldo manobrou no Morrão, desceu e largou o ônibus no ponto final do Caramujo. Saiu sem falar nada com ninguém e avoado, aliviado por passar aquela pesada cruz para outro sofredor!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do 
dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Sammis Reachers (o Incrível Hulk)


O motorista era um colosso de massa, e seu apelido fazia jus à sua musculatura: Hulk. A empresa, a Mauá.

Vamos conhecer um episódio ocorrido com nosso descontrolado companheiro Hulk.

Certo dia, no meio dos trabalhos, circulando pelo trânsito apertado e estressante de São Gonçalo, Hulk percebeu que a temperatura do motor estava muito elevada. Temendo “belgar o carro” (sujeitar o veículo à quebra), nosso amigo resolve levar a viatura para a garagem. Lá chegando, e depois de estacionar o veículo no pátio, depara-se com nada mais nada menos que o dono da empresa, o Sr. Domênico, que por sinal não estava num bom dia. Mas, até aí tudo bem. O velho que cuidasse dos próprios problemas; Hulk já tinha os seus.

Ao ver o motorista descer do veículo e se dirigir tranquilamente para a área de repouso e espera dos motoristas, Domênico o interpelou:

- Mas que houve aí, rapaz?

Hulk respondeu:

- A temperatura está alta, o radiador periga de ferver. Trouxe o carro pra oficina.

O velho, estressado, diz:

- Mas ora! Este carro é novo! Está bom! Como você diz que está a ferver? Sabe quanto custa um carro desses? Você não quer é trabalhar...

O nosso amigo Hulk, já estressado do dia, acabou de explodir com essa. Apanhou o velho pelo braço, arrastou-o pelo pátio e, levantando-o quase como a uma criança, simplesmente jogou o velho escada acima, praticamente empurrando-o por sobre o capô, e apontando, com seu braço imenso;

- Pois olhe ali, senhor! 170 graus de temperatura! Acha que estou aqui de brincadeira?!!!!

Domênico, que já estava branco de susto e com o bracinho ainda sendo esmagado pela forte manopla de Hulk, só conseguiu gaguejar, bem baixinho:

- Vo-vo-você está ce-certo, meu filho. Fe-fez muito, mu-muito bem em trazer o carro...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Sammis Reachers (A pouca valentia de Anésio)

O hoje motorista Carlos Pompeu era então cobrador, trabalhava na linha 62, na parte da tarde, tendo por parceiro o motorista Anésio. Anésio, por sua vez, era um grande zoador.

Certa feita, tarde da noite, eis que dá sinal para o ônibus uma moça aparentemente muito bonita. Mas, ao encostar o veículo para o embarque, Anésio percebe que aquela moça não tinha selo de originalidade...

A roleta era na parte de trás, Anésio, que nunca perdia a chance de sacanear o cobrador, não perdoou e lá da frente foi logo zoando o Carlos, rapaz tranquilo e pacato:

- Aêê, hein, Carlos, ganhou pra hoje!!! Já não vai perder de zero!!!
 
Carlos ficou muito sem graça. Mas a menina, na verdade um enorme travesti, percebeu que a zoação envolvia a sua distinta pessoa.

- O que ele está dizendo lá? - perguntou.

-Acho que ele tá dizendo que eu vou ficar com você...

- Ah, é, né, ele então é o espertão...

Dito isto, a 'menina' foi lá para a frente, sentou-se próxima ao    motorista e se espreguiçou no banco, fingindo dormir.

Anésio olhou pelo retrovisor, e viu a figura aparentemente dormindo. Era a chance de ele continuar a zoar.

- Como é que é Carlos, levanta daí. Sente-se ao lado da moça, rapaz. Seja macho! Vem dar um beijinho nela, cê tá solteiro mesmo...

De repente, a 'moça' se endireitou no banco, e olhou fixamente para o espelho central do carro, olhos nos olhos de Anésio. Só então que o sacana do piloto reparou que a menina era bem grande, e tinha ombros largos e braços grossos.

O ponto da moçona descer se aproximava, e ela levantou-se. Chegou ao lado de Anésio e falou com uma até ali insuspeita voz grossa e rouca:

- Seu velho babaca, o que você estava falando de mim aí?

- Eu? Eu nada... Só disse que o cobrador precisava de uma namorada...

- E porque você não namora ele, seu babaca?!!

- Ei, olha como você fala comigo, hein! Tá me faltando com o respeito!!!

- Respeito é o caramba! Onde estava seu respeito quando eu subi no ônibus? Levanta daí desse banco que eu vou te mostrar meu respeito!

- O quê, o quê???!!! Tá me chamando pra porrada? Se eu levantar eu arrebento contigo!!!

- Então levanta, seu babaca!!!

Nesse ponto, o pacato (e perdoador) Pompeu já havia se levantado e ido até a frente, para apartar as duas 'meninas'. O ônibus parou, e por fim o travesti maior desceu no seu ponto.

Num momento de rara sinceridade, Anésio olhou para seu parceiro e falou:

- Sabe Carlinhos, que bom que você não deixou eu brigar com aquele traveco. Eu estava reparando o tamanho dele daqui, e se eu entrasse numa acho que ia é entrar na porrada! Com aquele tamanho e aquele bração, ela ia bater em mim e em você!!!

- Eêê, para! Em mim não, cara-pálida, o espertão aqui é você. Agora, veja que coisa! O zoador deu mole, o valentão do volante amarelou para um traveco, imagine o que a galera vai dizer...

- Qué isso, Pompeu, faz isso não, cara, sabe que somos amigos e tudo aqui é na brincadeira...

- Pois se você me fizer passar vergonha só mais uma vez, eu vou explanar a sua amarelada pr'aquela boneca...

E, enquanto durou aquela simpática dupla, nunca mais o valente e zoador Anésio sacaneou o pacato Carlos…

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Sammis Reachers (Cavalo ou égua?)

O motorista Marcão havia há pouco tempo saído da manobra ou escolinha. Como é de praxe na empresa Ingá, foi posto para trabalhar no sereno ou bacurau (o turno da madrugada}, para ganhar experiência.

Em mais uma noite de serviço, após rodar pra lá, rodar pra cá, lá pelas cinco da manhã, nosso amigo Marcão, homem tímido porém mulherengo, segue sonolento, carro vazio, já em sua última viagem. A linha é a 24, Palmeiras x Gragoatá. O dia começava a clarear, e Marcão apagou as luzes do salão, deixando o carro na penumbra.

Chegando em frente ao Plaza Shopping, no sentido de quem ia para o bairro do Gragoatá, àquelas horas, tranquilo e deserto, uma mulher dá sinal. Marcão para, abre a porta, ainda sonolento e desinteressado. A moça passa na roleta. Ao perceber que não havia outros passageiros no veículo, ela diz:

- Carro vazio, hein! Que legal. Bom para namorar... E aí, como você vai querer que eu pague a passagem, no dinheiro ou... Quer fazer alguma outra coisa?

Ao ouvir tal pergunta indiscreta, nosso sonolento e tímido Marcão deu como que um pulo no banco, entre assustado e já eriçado. Pensou em seu coração;

- É hoje! É hoje que eu tiro o atraso!

Já prestes a responder à moça, Marcão, agora sim bastante interessado, acende as luzes do salão e olha bem para a menina, pelo espelho retrovisor. Era bonita, a danada! Mas Marcão nota algo estranho, olhando para o pescoço dela: a "moça" possui um enorme pomo-de-adão, um enorme gogó, como se diz. Bem, para um bom entendedor, um pomo basta: aquilo significava que aquela Coca-Cola era Fanta, que aquela égua era na verdade um cavalo: um tremendo traveco...

Já murchinho em seu banco, Marcão respondeu:

– Dinheiro mesmo...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 15 de janeiro de 2022

Sammis Reachers (Aidano e o marimbondo de fogo)

Nosso amigo Aidano é um camarada polivalente. Mecânico de mão cheia, já foi gerente de loja, trabalhou em agência de aluguel de automóveis e por fim resolveu ganhar a vida como motorista de ônibus.

O ocorrido que iremos relatar aconteceu enquanto Aidano trabalhava na empresa Fagundes, em São Gonçalo. Uma das linhas onde nosso amigo  ficou efetivado foi na linha Alcântara x Curuzu, que ele mesmo classificou como "a melhor linha de ônibus em que já trabalhei".

Aidano trabalhava com uma cobradora da pá virada, enfezada e meio doida. Em certa viagem, ainda em Alcântara, o ônibus quase sempre era tomado por estudantes, que faziam a maior algazarra no veículo, enquanto voltavam para suas casas no Curuzu. A cobradora, muito aporrinhada, dizia para Aidano:

- Quando chegarmos no Curuzu, naquela rua cheia de buracos e quebra-molas, pode acelerar o ônibus pra essa galerinha que gosta de agitar, sentir um agito de verdade.

- Mas e você lá atrás? (as roletas ainda ficavam na parte de trás do veículo).

- Não esquenta comigo não, eu levanto e vou em pé. Mete bronca!!!

Pois assim Aidano fazia: era chegar no Curuzu e ele acelerava a velha jardineira à toda, botando a molecada pra pular. A cobradora vibrava, vendo o sofrimento dos agitadores...

Certa feita, chegando no Curuzu na viagem fatídica, nosso companheiro fez conforme o combinado. Mas, de repente, um grande marimbondo entrou pela janela ao lado de Aidano, e, sem ele ver, foi pousar diretamente em seu colo. Foi aí que o inacreditável aconteceu. O Infeliz do inseto foi dar uma ferroada lá, justamente no ponto fraco do homem; Ele sentiu aquela  pontada e imediatamente afastou o marimbondo. Mas em instantes a ferroada fez efeito e Aidano passou a gritar de dor, fazendo caras e bocas, xingando mais que a saudosa Dercy Gonçalves, mas sem diminuir a velocidade do veículo. Afinal, ele pensava, precisava chegar logo no ponto final para ir ao banheiro e avaliar o estrago, além de poder jogar uma água naquela fervura.

Enquanto isso, a molecada, já meio acostumada com o pula-pula, gritava adoidado. E lá de trás, em pé ao lado da roleta, a cobradora, ao ver Aidano berrando como um louco, imaginou que ele estava zoando junto com os moleques devido ao pula-pula, e resolveu entrar na onda: passou ela também a gritar e a rir alucinadamente, enquanto Aidano berrava e acelerava e o ônibus corria e sacolejava como se fosse desmanchar-se! Quem visse de fora aquela zona pensaria que aquilo era ônibus especial levando foliões de carnaval...

Pobre Aidano, somente ao chegar no ponto final é que pode ver que o lugar atingido estava inchado, do tamanho de uma laranja, e das grandes...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Sammis Reachers (Cleomir e a saída do baile funk)

Cleomir era um camarada baixinho e magricela, antigo morador do morro do Juca Branco, em Niterói, Era a figura do malandro: bom de lábia, cheio de ginga e com as gírias na ponta da língua. Cleomir trabalhou durante alguns anos na empresa Ingá, como cobrador. No início da carreira, não teve jeito: o malandro magricela teve que trabalhar no sereno (horário da madrugada) por algum tempo. Das linhas de sereno da Ingá, a pior naquela época (e ainda hoje?) era com certeza a linha 26 (Caramujo x Centro). O bairro do Caramujo quase sempre foi um bairro chapa-quente.

Durante alguns anos, lá ocorreu um tradicional baile funk. O baile era tão requisitado e conhecido que vinham galeras de outras comunidades (controladas, claro, pela mesma facção criminosa) para curtir o baile. Se você é rodoviário, deve saber como são as festas: as pessoas vão chegando aos poucos, espalhadas. Mas, na hora de ir embora, parecem sair todas ao mesmo tempo, e lotam o primeiro ônibus que estiver na reta.

E assim era o tal baile, até porque não havia mesmo outro ônibus senão aquele único que fazia o sereno.

Num belo (pelo menos até ali) final de madrugada, já prestes a dar sua última viagem, por volta das 4h20 da manhã, eis que o motorista chega à pracinha do Caramujo, onde a carona rolava solta, até mesmo durante o dia. Final de baile. O motorista parou o veículo e, macaco velho e vacinado, diante daquela multidão, abriu as duas portas. Todos ali, claro, entraram pela porta dianteira, sem pagar. O Cleomir estava lá atrás, na roleta, tranquilamente observando a movimentação e tentando perceber algum conhecido naquela    multidão,    ou    ao    menos    alguma gatinha. Mas que nada: nem havia mulher alguma, nem algum conhecido, e olha que o Cleomir conhecia era malandro!

Parte então o velho carroção, indo em direção ao centro de Niterói, onde faria ponto final no Terminal Rodoviário João Goulart. Mas antes de sair do Caramujo, uma discussão se estabeleceu entre alguns passageiros. Enquanto o ônibus avançava,    o    tom rapidamente    foi    subindo;    algum desentendimento entre uma galera da Vila Ipiranga com uma turma vinda de São Gonçalo era o motivo do falatório, Ao sair do bairro para pegar a estrada, parece que    um    sinal    tocou    em    algumas    daquelas    cabeças alcoolizadas, e a pancadaria rufou, como se diz. O que era uma troca de sopapos entre dois elementos rapidamente foi crescendo e contaminando todo o ônibus, para susto e desespero de Cleomir, que era malandro, mas sempre correu de briga. Rapidamente a pancadaria chegou à parte de trás do busão, e Cleomir viu-se encurralado.

Tentou gritar para o parceiro:

- Pare esse ônibus aí, Alfredão!

Mas lá na frente alguns elementos já haviam dito ao motorista, Alfredo,    que se parasse ele também    iria apanhar, e deveria acelerar para chegar logo na Vila Ipiranga.

Acontece que o porradal estava tão intenso que até o Cleomir, coitado, acabou levando uma cipoada de raspão na cara. Não sabendo o que fazer e desesperado, o malandro pensou: "Em rosto que mamãe beijou ninguém mete a mão não!"

Em seguida pulou de seu trono, enfiou-se entre dois elementos que se esmurravam perto dele e abriu a janela. Era mesmo uma "janela de emergência": o malandro havia há muito tirado os parafusos que impediam que a janela se abrisse por completo, e assim o vidro abriu-se de par em par.

Mas haviam dois problemas: Um - o dinheiro. Este Cleomir resolveu pegando as notas que estavam na gaveta, e deixando para trás as muitas moedas e seus apetrechos, como o carimbo que se usava para carimbar os vales-transportes, que naquele tempo eram de papel.

O outro problema era mais indigesto: Seguindo as ordens da vagabundagem, o motorista Alfredão acelerara o ônibus à toda, e neste exato momento descia o morro da Caixa D'água por conta de Satã! Ao tomar mais uma pancada, o pequeno Cleomir não pensou duas vezes: tomou coragem (ou chegou ao limite o medo de apanhar?) e pulou pela janela do carroção encantado em alta velocidade, se esborrachando no chão!

Mas o malandro estava com o sangue tão quente que parece nem ter sentido o baque: levantou-se e saiu correndo, e correndo sem parar, da descida da Caixa D'água até a portão dos fundos da empresa (a Ingá), algumas centenas de metros distante.

Chegou na garagem esbaforido, ralado e sujo. Os poucos funcionários presentes o reconheceram, mas estranharam tanto seu estado quanto a ausência do ônibus.

- O que houve, Cleomir? Dormiu na rua? Cadê o ônibus?

Cleomir recuperava as forças para falar.

- Ah... ah... a porrada comeu... a porrada comeu dentro do ônibus... mais de trinta cabeças...

- Caramba! - disse um. - E o carro tá aí fora?

– ... Tá não... aff... tá não.

- Ué, e como você chegou aqui? Tá todo sujo e lanhado por quê? Te baixaram a porrada também???

- Não... é ruim hein?! Tô todo ralado mas porrada eu não levei não! Eu vi que não tinha jeito e pulei pela janela, que não sou otário!

- Mas mano, e o motorista, cara, e seu parceiro Alfredão? Deixou ele lá com os trinta?

- Amigo, sei lá de Alfredão, quero saber lá de parceiro! Quem tem parceiro é bandido! Pulei pra salvar a minha vida e nem olhei pra trás! Farinha pouca, meu pirão primeiro!!!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.