quinta-feira, 3 de maio de 2018

Joaquim de Melo Freitas (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol.5) I


FORGET ME NOT
(não me esqueças)

Não te esqueço, florzinha humilde e bela
Que tornas a campina um firmamento,
Inocente, sublime bagatela,
Joia viva, risonho monumento.

Não sei que poesia encontro n'ella,
Que instila em roda etéreo, vago alento
Tão breve, tão discreta, tão singela,
Qual pirilampo, o nítido portento.

N'essa cintilação fosforescente,
Lágrima-esmalte da urze tão sutil,
Abrandas as escarpas da torrente

Mensageira do lascivo mês de abril
Quem te não ama, o coração não sente
Miniatura com pétalas d'anil!

VENDETTA

Juraste a minha perdição, ingrata,
A quem adoro como adoro a vida
Casta flor, flor de neve estremecida,
Que sorris, quando o teu olhar me mata.

Gravei no peito aquela rubra data
Em que te vi, amor! qual na avenida
Se entalha na fiel casca endurecida
O nome da huri*, que nos maltrata.

E, apesar de seres tão bela e mansa,
Folgas que a desventura me persiga
Dilacerado de cruel esp'rança.

Seja assim! É atroz minha vingança,
Pois que amor e ódio tanto me castiga,
Cada vez te amo mais, doce inimiga.
__________
Nota:
Huri: mulher muito bonita
___________________

DESDITOSA CECÉM*!

Pobre flor, que se estiola**
Na vertente da montanha,
Ninguém aqui te consola
Fria sombra te acompanha.

Comoção que te desola!
Uma peçonhenta aranha
Sobre a nítida corola
A sua rede emaranha!

Quem te lançou no degredo
D'este acerbo pavimento
Para te olvidar tão cedo?

– A meus pais fugi mesquinha
Fugi nas asas do vento
Triste sorte foi a minha!...
_______________
Nota:
* Cecém: lírio
** Estiola: enfraquece, debilita
_____________________

O Marques de Pombal

O rei mendigo cerrará os olhos
E partirá entre nuvens para o céu
Surge, depois, na côrte um escarcéu
Que brame da vingança nos escolhos

D'altas vagas de bronze nos refolhos
Pôs a Intriga um galeão como troféu
A efígie de Pombal tinha em labéu*
Jaz na poeira, no olvido**, e nos abrolhos.

Então a Inveja alastra a baba escura
Qual serpente, que as roscas enovela
E a empresa do ministro transfigura.

Entretanto o Marquês com amargura
Diz fitando a grosseira caravela:
"– Lá te vais Portugal, agora á vela."
_______________
Nota:
* Labéu: desonra
** Olvido: esquecimento
________________________

ABANDONADO!

Uma fita prendi cor de safira
No leve, tênue pé d'uma andorinha;
Este ano regressou a pobrezinha
E junto ao ninho seu constante gira.

Quando o sol no horizonte se retira
Esvoaça em redor de mim sozinha;
Também esta alma, sôfrega, mesquinha
Por ti enfeitiçada geme, expira.

Ela na espuma branca, qual arminho
Foge no mar á raiva dos açores
Não perdendo a lembrança do seu ninho

Só tu na primavera dos amores,
Como víbora oculta em rosmaninho,
De mim te olvidas na estação das flores.

GARIBALDI
(Falecido a 1 de junho de 1882)

É morto o “condottiere”*, o paladino
Soldado da razão e da justiça
Forasteiro, que o sangue desperdiça
Nas refregas do trágico destino.

Gênio do bem, suave e peregrino
Estátua de luz e amor toda maciça
A cujo aspecto a multidão submissa
Se agrupa em alvoroço repentino,

Guerrilheiro da América indomável
Espada de Dijon, e da Marsala,
De Nápoles e Roma inconsolável!

O solitário de Caprera é morto,
E, quando o herói no túmulo resvala,
Um calafrio gela o mundo absorto.
___________________
Nota:
Condottiere: líder

Fonte:
Joaquim de Melo Freitas. Garatujas. 
Aveiro/Portugal: Imprensa Commercial, 1883

Joaquim de Melo Freitas (1852 – 1923)

Praça Dr. Joaquim de Melo Freitas - Aveiro/Portugal
Joaquim de Melo Freitas nasceu em Aveiro, Portugal em 1852 e faleceu nesta mesma cidade em 1923, dedicando toda a sua vida a Aveiro, deixando o seu nome ligado a diversas coletividades, jornais, revistas e outras publicações. Bacharel formado em direito, Sócio correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, Sócio fundador da Associação dos Jornalistas e Escritores portugueses

Hoje, o nome de Joaquim de Melo Freitas é lembrado na toponímia aveirense – Praça Dr. Joaquim de Melo Freitas – junto aos “Arcos” e às “Pontes”, em pleno centro da cidade, precisamente onde se ergue o monumento de homenagem aos Mártires da Liberdade e a José Estevão, do qual foi um dos mentores.

Joaquim de Melo Freitas era oriundo de uma família com fortes pergaminhos liberais. O pai foi perseguido e esteve exilado por motivos políticos, enquanto pior sorte teve o seu tio, Clemente da Silva Melo Soares de Freitas, que foi enforcado na Praça Nova, do Porto, com outros liberais aveirenses também implicados na revolução de 16 de maio de 1828.

Sobre Joaquim de Melo Freitas, o historiógrafo aveirense Eduardo Cerqueira escreveu que “perfilhava os princípios dos seus familiares e primava por um largo espírito de convivente tolerância, foi uma figura singularmente simpática e aliciante, um escritor e orador de faculdades invulgares e um cintilante conversador, pontífice de tertúlia, cultivado, espirituoso, com o dom de amenizar pela anedota propositada, ou a fina ironia da réplica imediata e desconcertante, os temas mais austeros”.

Já o seu contemporâneo Marques Gomes, outro dos grandes nomes aveirenses, anotou que “a forma nova e leve com que reveste os seus escritos, a sua graça espontânea, franca, portuguesa, que em todos eles esfuzia hilariante, a sua muita correção de linguagem, tão opulenta e ao mesmo tempo tão castigada e esbelta, as suas qualidades de observador, de artista e narrador”, acrescentando que Melo Freitas “falava com a mesma suprema elegância com que escrevia”.

Eduardo Cerqueira realçou que a personalidade de Joaquim de Melo Freitas “mais se evidenciaria na colaboração esparsa pela maioria dos jornais aveirenses” de então, “muito particularmente em «A Época», que fundou e dirigiu”, cujo primeiro número saiu no dia 5 de fevereiro de 1885. O último seria datado de exatos dois anos depois”. De acordo com este historiógrafo aveirense “«A Época» espelhava os seus predicados e predileções e marcou, assim, na imprensa local um lugar de evidência já do ponto de visto literário, já na defesa dos interesses regionais”.

Antes de se lançar na publicação de «A Época», Joaquim de Melo Freitas foi redator dos jornais aveirenses «O Povo de Aveiro» e «Locomotiva», tendo ainda colaborado “com assiduidade, no «Campeão das Províncias», no «Distrito de Aveiro», no «Tribuno Popular», na «Revista Ilustrada», no «Democrata» e vários outros periódicos, durante mais de meia centúria de anos”, como referiu Eduardo Cerqueira.

Como escritor, Joaquim de Melo Freitas publicou inúmeros livros, sobre os mais variados temas, dos quais, mais de uma dúzia está disponível para consulta na Biblioteca Municipal de Aveiro. Alguns dos de que foi autor têm por título: “Homenagem a Serpa Pinto”, que escreveu em parceria com o Barão de Cadoro (Carlos de Faria), “A Granel – Diabruras, brado e bagatelas, provincianismos e chinesices”, “Garatujas”, “Ironias transparentes” e “Violetas”.

Joaquim de Melo Freitas foi um ativo interveniente na sociedade aveirense, tendo integrado diversas coletividades e sociedades. Em 20 de abril de 1879, foi convidado a integrar a “Sociedade Construtora e Administrativa do Teatro Aveirense”, constituída por dez acionistas, que construiu o Teatro Aveirense, inaugurado no dia 5 de março de 1881.

No dia 5 de fevereiro de 1888, foi eleito comandante da Companhia dos Bombeiros Voluntários de Aveiro (atual Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Aveiro “Bombeiros Velhos”), cargo que manteve até janeiro de 1893. 

Eduardo Cerqueira recordou que ele era “profundamente arraigado à sua terra”, pelo que “coube-lhe por dilatado tempo, a função, que por tácito sufrágio lhe confiavam os seus concidadãos, de intérprete dos mais estrênuos sentimentos de aveirismo, intramuros da cidade ou fora dela, cantando-lhe as belezas, advogando-lhe as reivindicações; acolhendo os visitantes, singulares ou coletivos, com fidalga e cordialíssima lhaneza; realçando a história, as figuras insignes e demais valores, e as tradições da sua terra”.

O grande escritor português Camilo Castelo Branco correspondeu-se com Joaquim de Melo Freitas, tendo mesmo solicitado, numa carta escrita em S. Miguel de Seide, datada de 26 de maio de 1890, que intercedesse junto do oftalmologista aveirense Edmundo Magalhães, que queria consultar numa desesperada tentativa de evitar a cegueira que o afetava.

Também o jornalista e escritor aveirense Acácio Rosa afirmou que “Joaquim de Melo Freitas é um nome que, grande como é, não cabe bem numa simples nota”.

Alberto Souto, outro dos nomes grandes de Aveiro, proferiu, no dia 9 de dezembro de 1923, o elogio fúnebre de Joaquim de Melo Freitas, dizendo junto ao monumento dos Mártires da Liberdade, no cemitério central, que “em Aveiro, longe do grande mundo, sem que a grande imprensa o soubesse, foi a enterrar em varão ilustre que, tendo vivido apenas para o pensamento e para o sentimento, teve na sua morte uma consagração local que constitui um ato belo e comovente civismo”.

Alberto Souto recordou que o féretro de Joaquim de Melo Freitas saiu dos Paços do Concelho, num domingo, conduzido pelos Bombeiros Voluntários, “rodeado dos estandartes de todos os clubes, de todas as associações, de todas as coletividades da cidade. Cobria-o a bandeira de damasco e ouro do município”.

No centro da atual Praça Joaquim de Melo Freitas ergue-se o monumento aos Mártires da Liberdade. O discurso de encerramento da inauguração desse monumento oferecido a Aveiro pelo Clube dos Galitos em 1909, no centenário do nascimento de José Estêvão, foi proferido por Joaquim de Melo Freitas que então afirmou: “entre os festejos do dia, este obelisco, devido ao lápis e ao cinzel de Ernesto Korrodi, avulta, já pelo seu pensamento generoso, já porque se ergue neste local, onde a 16 de Maio de 1828, um núcleo de cidadãos, unindo-se às forças de Caçadores 10, de guarnição nesta cidade, soltaram o grito de revolta e iniciaram esse grande movimento, que dotou o país com as instituições constitucionais! Nem o exílio, nem o ergástulo, nem a forca, nem os combates, a miséria e a desgraça detiveram esse punhado de bravos patriotas, que se propunham fundar uma pátria nova, impregnada de luz, de progresso e de amor!”

Fontes:
Correio do Vouga. Aveiro. 10 abr. 2013.
Projeto Gutemberg.

Carlos Leite Ribeiro (Aquela Boneca)


(Peça teatral dramática)

Elenco:
- Fernando, 50 anos. Frequentador do café "Ti Pedro" e seu grande amigo ...
- Pedro, 65 anos. A quem o povo chamava carinhosamente, "Ti Pedro" ...
- Joana, 60 anos. A mãe de Américo ...
- Maria do Carmo, 45 anos. Foi ela quem criou a Eunice ...
- Américo, 42 anos. Para que Eunice tivesse oportunidade de ser operada quando era ainda criança e, depois para lhe pagar os estudos, entrou numa de contrabando, e foi preso. Depois, imigrou para o estrangeiro …
- Eunice, 22 anos. Durante muitos anos apreciou e desejou "aquela boneca", nunca pensando que anos mais tarde seria sua ...
____________________________ 

Em todas as pequenas localidades, existe sempre um local, onde se sabe e se discute a vida dos seus habitantes. No local onde se vai desenrolar a nossa história, esse local de encontro era o café do "Ti Pedro". Uma pequena loja com pintura e mobiliário já muito antigo.

Atrás do velho balcão, o seu proprietário, já septuagenário, a quem o povo, respeitosamente e carinhosamente, chamava "Ti Pedro".

Nas poucas prateleiras de vidro que se encontravam por detrás do balcão, na prateleira central e em destaque, encontrava-se uma linda boneca, metida numa caixa de celofane.

Aquela boneca tinha uma história ...

Estávamos em princípios de Junho, quando os dias começam a aquecer. Neste momento entra no café, o Fernando, grande amigo do "Ti Pedro" ...

Fernando: - Boa tarde, Pedro. Os jornais já chegaram ?

Ti Pedro: - Ainda não chegaram, Fernando. O Expresso, como habitualmente, está atrasado. Olha lá, amigo, bebes o costume ?

Fernando: -  Não, hoje apetece-me... nem sei o quê...

Ti Pedro: - Olha, "nem sei o quê", é uma bebida que não tenho cá !

Fernando: - Vejo que hoje estás muito espirituoso. Aproveitando essa tua boa disposição, mais uma vez te peço que me contes a história dessa boneca, que há tantos anos se encontra aí atrás desse balcão.

Ti Pedro: - Qual boneca ?! ... ah, a boneca! Pois está aqui há mais de dezesseis anos, mas por estes dias deve sair daqui.

Fernando: - Nem quero acreditar que vais dar essa boneca ...

Ti Pedro: - Estás completamente enganado, pois eu vou dar esta boneca e com grande prazer e à pessoa certa!

Fernando: - Pedro, tu cada vez estás a ficar mais misterioso. O que se passa contigo, homem? Vá lá, desembucha e diz-me que mistério tem essa boneca?

Ti Pedro: - Podes crer que não tem mistério nenhum. Nenhum mistério...

Fernando: - Então, se não tem qualquer mistério, sê amigo e conta-me a história dessa boneca. 

Ti Pedro: - Amanhã ou por estes dias, conto-te.

(Entra em cena nova personagem)

Joana: - Boa tarde, "Ti Pedro" e Sr. Fernando. Olhe, troque-me esta garrafa vazia por uma cheia de vinho tinto. Se possível, pode ser fresquinho.

Ti Pedro: - Olha a tia Joana! Então, tem tido notícias do seu filho Américo?

Joana: - Tenho, tenho. Ele continua lá pelos "estrangeiros". É a vida dele, sabe?

Fernando: - Vocês desculpem-me de me meter na vossa conversa. Se não me engano, o seu Américo, desde que imigrou para o estrangeiro, nunca mais veio a Portugal, pois não?   

Joana: - O meu filho é um homem de vergonha e, assim que saiu da prisão, foi logo para o estrangeiro, e nunca mais cá voltou.

Fernando: - Que pena! um rapaz tão trabalhador e tão honesto... custa a compreender como é que se meteu naquela embrulhada do contrabando.

Joana: - Nem eu compreendo, Sr. Fernando, pois, o meu Américo sempre foi o que se pode chamar "uma joia de pessoa" e um filho exemplar. Agora é um inválido

Fernando: - O quê? Um inválido?! ... ora diga-me lá o que se passa, tia Joana!

Joana: - Não se passa nada... nada, nada. "Ti Pedro", dê-me a garrafa, pois estou com muita pressa...

Ti Pedro: - É muito curioso. A tia Joana, habitualmente, não vinha aqui comprar vinho, mas, há  uns tempos para cá, vem todos os dias comprar uma garrafa...

Joana: - Sim, sim uma garrafa. Sabe, é para, para temperar a comida ... ganhei agora o hábito de temperar todos as comidas...fazer "vinho d`alhos”... compreende, não compreende ?

Ti Pedro: - Francamente, não compreendo mesmo nada. Mas enfim ...

Joana: - Bem, agora que já estou aviada, tenho que me ir embora.

Ti Pedro: -  Tia Joana, fique mais um pouco, por favor. Disse-nos há pouco que o Américo estava inválido?

Joana: - Mas eu disse isso ?

Ti Pedro: - Pois disse...

Joana: - Então, foi sem querer !

Ti Pedro: - Eu logo compreendi que tinha sido sem querer. Tia Joana, diga-me: o Américo está cá?

Joana: - Ai que chatice... deixe-me ir embora, "Ti Pedro"!

Ti Pedro: - Tia Joana, o Américo está cá?

Joana: - Por favor deixem-me ir embora! Deixem-me, deixem-me. E deixem-no a ele, ao meu pobre filho, pois ele, coitadinho, está inválido!

Fernando: - Tia Joana, o que se passa, ou melhor, o que se passou com o Américo?... Nós somos amigos dele e por isso, temos o direito de saber, para assim o podermos ajudar.

Ti Pedro: - Tia Joana, o Américo sofreu algum acidente?

Joana: - Meu Deus, que infeliz que eu sou... o meu pobre filho sofreu um acidente com a máquina que trabalhava e, ficou sem um braço. Aquele infeliz nunca teve sorte na vida!

Fernando: - Lamento muito. Coitado do Américo!

Ti Pedro: - Mas diga-me lá, tia Joana, o Américo está cá ou não?

Joana: - Está cá, está. Mas tem vergonha de sair de casa. O espectro da prisão persegue-o, e agora pior ainda, pois não tem um braço. Que infeliz é o meu Américo!

Fernando: - Lamento muito, mas mesmo muito. Mas, tia Joana, por favor, acalme-se.

Ti Pedro: - Mas ainda bem que o Américo está cá, pois eu preciso muito de falar com ele.

Joana: - Quem me dera que o meu filho saísse de casa, que convivesse com os amigos. Que saísse daquele quarto escuro, em que voluntariamente se encerrou. Talvez daqui a algum tempo perca os complexos que hoje tem, e então comece a sair. Oxalá que comece novamente a viver a conviver!

Ti Pedro: - Tia Joana, eu hoje sem falta, tenho de falar ao Américo!

Joana: - Falar para quê, "Ti Pedro" ?!... Por acaso, o meu filho ficou a dever-lhe alguma coisa? Se é isso, diga-me por favor, pois eu, apesar de ser muito pobre, com certeza que lhe pagarei.

Ti Pedro: - O Américo não me deve nada, e que eu saiba, não deve nada a ninguém. Mas eu preciso de falar com ele, sobre um assunto pessoal, de interesse comum. Tia Joana, pode crer que é um assunto que interessa a ambos...

Joana: - Se por acaso o meu filho vem a saber que eu contei a alguém que ele está cá, vai ficar muito zangado comigo! E eu não quero que ele fique desiludido comigo, que sou a sua mãe! O Américo tem sofrido muito, muito, e só eu, com o coração de mãe, o posso compreender.
Desculpe-me, "Ti Pedro", mas eu não lhe posso dar o seu recado!

Fernando: - A tia Joana pode-lhe dizer que eu, um dia destes, passei perto de sua casa e que o ouvi falar. Logo fiquei muito desconfiado, e que hoje, por acaso, a encontrei no café e lhe falei no caso. E a tia Joana, sem querer caiu na armadilha que eu lhe montei, para saber se ele tinha ou não regressado a Portugal. Valeu? ...

Joana: - Não sei, Sr. Fernando... Se o meu filho vai aceitar essa desculpa, pois, como é natural, anda muito desconfiado.

Fernando: - Resulta, sim, tia Joana! vai ver que vai resultar. Para mais, o rapaz não pode passar o resto da vida escondido. Lá por ter estado preso por causa de contrabando, e depois, ter ficado sem um braço, quando trabalhava no estrangeiro, não é razão para ele se esconder.

Ti Pedro: - Olha, Fernando. Mudando de assunto, tenho a sensação que vêm aí os jornais.

Fernando: - Tens toda a razão, pois também a mim me parece que estou a ouvir o barulho do motor do expresso ...

Joana: - E eu vou indo para casa. Mas antes, peço-vos que não digam a ninguém que o meu filho Américo, está cá.

Ti Pedro: - Fique descansada, tia Joana!

Fernando: - Tia Joana, peço-lhe que não se esqueça de fazer o que eu lhe disse, está bem?

Ti Pedro: - Assim como também não se esqueça, que eu hoje, sem falta, preciso de falar com o Américo!

Fernando: - Olha que nos enganámos, Pedro. Ainda não é desta vez que chegam os jornais. O barulho que estávamos a ouvir, era de um expresso de excursão, mas...

(Nova personagem entra em cena)

Maria do Carmo: - Boa tardes, "Ti Pedro" e Sr. Fernando! O tempo está a aquecer. O que também não admira, pois já estamos perto do Verão.

Ti Pedro: - Olá, garotona!

Fernando: - Aqui a nossa querida Maria do Carmo, cada vez está mais bonita!

Maria do Carmo: - Ora, ora. O Sr. Fernando está sempre a brincar comigo. Estou a ver que hoje, o expresso, está muito atrasado, não está?

Ti Pedro: - Tens toda a razão, Maria do Carmo.

Fernando: - E os jornais hoje nunca mais chegam!

Ti Pedro: - A tua, ou melhor, a nossa menina, a Eunice, deve chegar ainda hoje, não é verdade, Maria do Carmo?

Maria do Carmo: - Conto que ela venha na próxima carreira, pois já deve ter terminado os exames finais.

Ti Pedro: - Que cabecinha d` ouro que ela tem! Por isso é que ela tem sido uma magnífica estudante e que nunca chumbou nenhum ano!

Fernando: - E só de pensar que ela, por causa daquela doença nos ossos, passou aqueles anos todos num sanatório. Mas, felizmente que hoje, quase não se nota que ela coxeia um pouco.

Maria do Carmo: -  Teve a sorte de ter encontrado um grande cirurgião, além de ter também tido a sorte de uma pessoa desconhecida, que lhe pagou todas as despesas da operação, e também os estudos. Mas Graças a Deus, a esta hora já deve estar licenciada!

Fernando: - Sempre gostava de saber quem foi esse desconhecido que lhe pagou tudo ?

Maria do Carmo: - Eu também não sei e gostava de saber, mas nunca cheguei a descobrir. E parece-me que nem aqui o "Ti Pedro", embora todo o dinheiro que essa pessoa desconhecida mandou para a Eunice, lhe tivesse passado pelas suas mãos. Ou será que o "Ti Pedro" sabe quem é, e não nos quer dizer ...?!

Ti Pedro: - Eu já vos tenho dito muitas vezes que não sei quem é. Por favor não me venham agora com essas conversas, porque eu já vos tenho dito que também não sei quem é essa pessoa; o que também pouco interessa...

Fernando: - Tenho-me questionado se seria algum dos muitos amantes que a mãe teve?

Ti Pedro: - Não, não é esse o caso.

Maria do Carmo: - Também não me parece que seja, pois esses, só a exploraram. Por isso é que a desgraçadinha morreu na pior das misérias!

Tio Pedro: - Já o pai tinha morrido, tragicamente, na chamada Guerra do Ultramar. Se não fosse o tal misterioso benfeitor, o que teria sido da nossa Eunice?

Fernando: - Aqui p`ra nós, vocês não desconfiam mesmo quem possa ser essa misteriosa personagem?

Ti Pedro: - Eu já vos disse que não desconfio de nada nem de ninguém!

Maria do Carmo: - Eu lá desconfiar, desconfio. Mas é assunto só para eu comentar com os meus botões.

Fernando: - Por acaso será que este mistério esteja dentro daquela boneca, que o "Ti Pedro" tem ali naquela prateleira, há tantos anos?

Ti Pedro: - Francamente, por muita vontade que tenha, não vos estou a compreender. Aquela boneca não tem qualquer mistério. Vocês hoje é que se voltaram p`ra aí...

Fernando: - Mas o certo é que tu já me disseste que hoje, aquela boneca, ia sair dali para sempre. Não foi? 

Ti Pedro: - E daí, homem? Em minha casa não poderei dizer o que muito bem queira?

Fernando: - Não é por nada, Pedro, e por favor, não te irrites. Para mais, daqui a pouco deve chegar a Eunice, já com o "canudo" e com o título acadêmico de "doutora".

Ti Pedro: - Cá p`ra mim, tu continuas a tentar esconder alguma coisa ... cada vez te compreendo menos, Fernando!

Maria do Carmo: - Escutem, escutem. Parece que estou a ouvir o barulho do motor do expresso. Vocês, por acaso, não ouvem?

Ti Pedro: - Sim, sim. Também parece que estou a ouvir o motor, do outro lado do vale. Fernando, os teus jornais já devem de estar a chegar...

Fernando: - Como sempre, anseio que eles cheguem, para saber o que vai por esse mundo. Mas, não sei o que sinto, ou melhor, pressinto. Parece-me que hoje vai acontecer qualquer coisa de muito especial

(neste momento entra em cena outra personagem)

Américo: - Boa tarde a todos. A minha mãe disse-me que o "Ti Pedro" me queria dizer qualquer coisa.

Ti Pedro: - Olha, mas és tu, és tu, o Américo, o filho da tia Joana?!

Fernando: - Olha, o Américo! Que saudades já tinha de ti!

Américo: - Sim, vocês não se enganam, meus amigos. Sou eu, o Américo, ex-presidiário e maneta permanente!

Ti Pedro: - Tu, meu rapaz! Que alegria me dás!

Américo: - Alegria... ou piedade ?!

Ti Pedro: - Qual piedade, qual carapuça! Tu, com ou sem um braço, és e serás sempre o mesmo: um grande homem!

Fernando: - Atenção que o expresso, cada vez está a aproximar-se mais.

Ti Pedro: - Américo, por acaso sabes que é que está a chegar no expresso?

Américo: - Como é que eu posso saber, se há tantos anos estou afastado desta terra?

Ti Pedro: - Tens toda a razão Américo, mas eu vou-te dizer: deve vir lá a Eunice, a nossa querida Eunice!

Américo: - De verdade ?!... Então, vou-me já embora, "Ti Pedro".

Ti Pedro: - Não. Tu Não te podes ir já embora, pois ainda não falei contigo!

Américo: - "Ti Pedro", deixe-me ir embora!

Ti Pedro: - Espera um pouco mais, Américo. Olha p`ra aqui: a boneca que há muitos anos deste à Eunice, ainda está aqui. Tu, antes de ires para a prisão, encarregaste-me de ser o seu "fiel" depositário. Pois bem, a Eunice ...

Maria do Carmo: - A nossa menina, a nossa Eunice, finalmente, chegou!

Ti Pedro: - O que vocês querem dizer, é que a nossa querida doutora Eunice, chegou !

(entra em cena outra personagem: a Eunice ...)

Eunice: - Olá!!! Mal estou a chegar e já me estão a ofender. Eu sempre fui e continuarei a ser a Eunice, a vossa menina!

Ti Pedro: - Mas tu agora, tens um curso superior, Eunice!

Eunice: - O que eu tenho é uma valorização pessoal, que muitos podiam ter, se tivessem a sorte de encontrar um benfeitor como eu tive. Mas, com esta barafunda toda, nem sequer ainda os cumprimentei: Boas tardes a todos!... Cheguei, sou a Eunice, aquela menina que vocês bem conhecem desde pequenina !

Ti Pedro: - Senta-te aqui, ao pé do Sr. Américo.

Eunice: - Com todo o prazer. Já há muito tempo que não tinha o prazer de o ver. O Sr. Américo, dá-me licença que eu lhe dê um beijo na sua face?

Américo: - Um beijo?! Um beijo a mim?!

Eunice: - Porque não, Sr. Américo?! Olhe que eu não tenho nenhuma doença contagiosa!

Américo: - Não é isso. È que eu, é que eu ... já estive preso e, além disso, não tenho um braço.

Eunice: - E o que é que isso importa?!... se esteve preso, pagou uma dívida que teve com a Sociedade; se teve um acidente, do qual perdeu um braço, é uma situação que pode acontecer a qualquer pessoa.

Américo: - E também já tenho os cabelos grisalhos.

Eunice: - Ora. Ora. A isso, chama-se vaidade masculina. Vejam lá por ter uns cabelitos brancos, já se considera velho! O Sr. Américo ainda é um belo homem!

Ti Pedro: - Peço desculpa, mas tenho de interromper a vossa agradável conversa, pois, há mais de dezesseis anos que ando como embuchado. Américo, está aqui a boneca que tu, naquele dia em que foste preso, deixaste aqui para quando a Eunice acabasse o curso, a entregar-lhe. Pois bem, entrega-a tu. Eu, estou velho, cansado, mas muito feliz por ter cumprido esta missão.

Eunice: - Esta boneca é para mim?!... E foi o Sr. Américo que me ofereceu?! ... Muito obrigado. Como sabem, eu sempre adorei esta boneca. O "Ti Pedro" deve-se lembrar bem que, quando era pequena, ficava longos minutos a admirá-la. Mas o "Ti Pedro" nunca me disse que a  boneca era para mim!

Ti Pedro: - E também nunca te disse que o teu benfeitor, era o Sr. Américo!

Eunice: - O Sr. Américo?!!! ... Mas, mas porquê?

Américo: - Por favor, "Ti Pedro", peço-lhe que não fale mais neste assunto.

Eunice: - Desculpe, Sr. Américo, mas eu quero saber tudo - tudo, percebem? Eu tenho o direito de saber, por favor, digam-me!

Ti Pedro: -  É um conto muito longo. Mas eu vou tentar ser o mais sucinto possível, pois encontro-me muito cansado, muito doente. Este meu coração...

Américo: - "Ti Pedro", por favor, não se canse mais, pois não merece a pena estar a falar mais neste assunto.

Ti Pedro: - Merece, merece meu rapaz. Para mais, eu tenho de terminar este trabalho que me deste há dezesseis anos. Eunice, vem cá. O Sr. Américo sempre gostou muito da tua mãe (da tua pobre mãe, que tão cedo nos deixou), mesmo antes de ela ter casado com o teu infeliz pai, que lá ficou naquela maldita Guerra Colonial...

Fernando: - Pedro, tu não estás bem, pois não. Deixa-me pôr esta almofada nas tuas costas.

Ti Pedro: -  Põe lá essa almofada. Assim, estou muito melhor  -  obrigado,  Fernando. Mas como ia a contar, tu eras muito pequenina e já há muito que estavas internada num sanatório, para os lados de Lisboa. Precisavas, urgentemente, de seres operada...

Fernando: - Tu não estás a sentir-te muito bem, pois não, Pedro?... Estás cada vez a ficares mais pálido...

Ti Pedro: - Estou a sentir-me muito cansado... ai, este meu coração... mas vamos ao que interessa. Tu precisavas de ser operada por um grande especialista, mas não havia dinheiro. Foi, para conseguir essa importância, que o Américo se meteu nessa do contrabando, acabando por ser preso. Mas, mesmo assim, conseguiu o dinheiro necessário para a tua operação ...

Américo: - Por favor, "Ti Pedro", não continue.

Ti Pedro: - Já falta pouco, podes crer... Depois de sair da prisão, o Américo, por vergonha e por necessidade de ganhar dinheiro para os teus estudos, emigrou para o estrangeiro...

Eunice: - Eu, estou tão confusa, tão surpreendida... tão agradecida, que não consigo encontrar palavras adequadas para me exprimir!

Ti Pedro: - Dentro da boneca, encontra-se um papel, que eu quero que o leiam... depois de eu morrer...

Américo: - O "Ti Pedro" está tão pálido...

Eunice: - Atenção !!!... O "Ti Pedro" está a cair!... Por favor, chamem já uma ambulância. Depressa, depressa...

Ti Pedro: - Não se incomodem... Já não merece a pena, meus filhos... ai, este meu coração... Olha lá, Américo...

Eunice: - Um médico por favor, por favor...                                         
Ti Pedro: - A minha missão... está cumprida... parto em paz...

* * * * * * * * * 
Eunice: - Morreu, morreu o "Ti Pedro" - que bondoso velhinho!

Américo: - Eu, um ex-presidiário e um inválido, é que devia ter morrido!

Fernando: - Tu, Américo, ainda não cumpriste a tua missão cá na Terra. Hoje, morreu um grande homem, o "Ti Pedro". Amanhã morrerá outro ...

Américo: - Para o "Ti Pedro", acabou-se tudo!

Maria do Carmo: - Se há funerais bonitos, este foi um deles.

Eunice: - Tanta gente o acompanhou até à sua última morada... ele bem o mereceu, pois sempre foi muito educado e bondoso para toda a gente.

Maria do Carmo: - Descansa em paz, "Ti Pedro"!

Américo: -  E nós vamos embora, pois nada mais fazemos aqui.

Maria do Carmo: - Nenhum familiar dele o veio acompanhar.

Fernando: - Ele, também nunca nos falou que tinha família.

Maria do Carmo: - Então, não deve ter descendentes... 

Eunice: - Pois não. E sendo assim, é uma pena aquele café ficar encerrado. Por falar em café, tenho que lá passar para ir buscar a minha boneca.

Fernando: - E dentro da boneca, como o "Ti Pedro" nos disse, deve de estar um papel com alguma mensagem. Por curiosidade, gostava de saber o conteúdo dessa mensagem.

Eunice: - Então, podemos ir agora todos ao café.

Maria do Carmo: - E até nos calha em caminho.

Américo: - E assim podemos a ficar a saber a última vontade do "Ti Pedro".
* * * * * * * * * 

Eunice: -  Quem havia de dizer que esta boneca um dia seria minha! Madrinha, estou tão impressionada...

Maria do Carmo: - A boneca é muito linda, mas, sobretudo representa um gesto muito bonito de um verdadeiro altruísta, ou seja, o Américo.

Américo: - Por favor, não falem mais em mim. Ainda me obrigam a eu ir-me embora.

Fernando: - Oh Américo, modéstia em demasia, é um grande defeito que deve ser corrigido. Para mais, tu és tão brioso!

Maria do Carmo: -  O Fernando tem toda a razão. O Américo não pode ser tão modesto, pois é um homem que tem muito valor.                                                                                              
Fernando: - Com esta conversa toda, já estou a ficar ansioso por saber qual o teor da mensagem que o "Ti Pedro" deixou dentro dessa boneca.

Eunice: - Tenha calma, Sr. Fernando, pois já vamos ver.

Américo: - A caixa de celofane está deslocada na parte de trás.

Eunice: - Tem razão, e é por esse lado que eu vou tirar a boneca do celofane ... Olhem, cá o papel. O Sr. Américo quer lê-lo? 

Américo: - Eu mal sei ler. Lê tu, Eunice.

Eunice: - Então tomem muita atenção: "A 2 de Janeiro de mil novecentos e tal, no cartório da cidade, fiz o meu testamento, considerando meu herdeiro universal, Américo Araújo. Depois de eu morrer, entreguem esta mensagem ao Américo Araújo, pois, a partir dessa data, este café passa a ser dele ...".

Américo: - Não compreendo... Porque seria que o "Ti Pedro" me fez seu herdeiro universal?!... Mas eu não posso aceitar, para mais, sou um inválido ...

Fernando: - O "Ti Pedro" fez-te seu herdeiro universal, porque te apreciava muito. Agora, meu rapaz, é preciso teres brio, pois capacidade tens tu. E este café não pode fechar...

Eunice: - O Sr. Américo, só é um inválido se quiser. Mas eu, ou melhor, todos nós temos confiança em si, pois temos a certeza que irá reagir. Madrinha, vamos fazer a limpeza ao café? 

Maria do Carmo: -  É p`ra já. O "Ti Pedro", tinha os utensílios de limpeza e os detergentes todos bem arrumadinhos, naquela dispensa. Vou já buscá-los.

Fernando: - E eu também vou ajudar... a limpar o pó, claro!
Américo: - Ai! Aonde eu estou metido!... Um inválido como eu, e além disso, não percebo mesmo nada deste negócio, pois eu sempre trabalhei na indústria metalúrgica.

Maria do Carmo: - Olha Américo, escusas de estar p`ra aí com essas lamúrias, pois ninguém te está a ouvir. Vamos mas é ao trabalho!

Fernando: - Se nós te não conhecessemos tão bem, diríamos que estavas a fugir ao trabalho, e que não querias fazer nada, alegando que estavas inválido!

(Outra personagem entra em cena : Uma Voz mais outra Voz)

Voz: - Boa tarde. Vendo refrigerantes, águas e cervejas - o que é que precisa para a próxima semana ?

Américo: - O senhor é o distribuidor ?
Voz: - Sou o empregado do distribuidor.

Américo: - Então, para a próxima semana pode trazer: três grades de sumos, duas de águas e quatro de cervejas.

Voz: - Muito bem. Então, até p`ra a semana, e obrigado.

2ª Voz: - Vizinho, pode aviar-me um sumo de maçã, sem borbulhas?

Américo: - Pois posso, pois não estou aqui para outra coisa. Olha, queres um copo?

2ª Voz: - Pode ser e, também quero daqueles chocolates.

Américo: - Este aqui?

2ª Voz: - O que está ao lado desse. Está aqui o dinheiro e trocadinho.

3ª Voz: - Um maço de cigarros e uma bica curta. Já chegaram os jornais?

Américo: - Ainda não chegaram, mas o expresso não deve tardar aí. Queres que te guarde algum?

3ª Voz: - Eu espero pelo expresso.

2ª Voz: - Vizinho, o chocolate tem um prêmio.

Fernando: - Chiuu, cheguem aqui. Estão a ver o que eu estou a ver?

Maria do Carmo: - Isto aqui p`ra nós que ninguém nos está a ouvir: o Américo tem muito jeito para o negócio. Até parece que passou toda a sua vida atrás de um balcão.

Eunice: - E sobretudo, muita força de vontade. È um homem brioso. Reparem como ele, apesar de não ter um braço, consegue tirar tão bem as tampas das garrafas!

Fernando: - Temos o homem. O café "Ti Pedro" vai continuar...

Américo: - E vocês aí só falam, falam e não trabalham. Daqui a pouco os clientes começam a reclamar, pois há muito pó no ar!!!

FIM

Peça teatral dramática de Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal

Fonte:

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Vinicius de Moraes (O Amigo Exemplar)

Pois é, compadre. Você, no exagero da sua delicadeza, não quis esperar por mim, eu trançando pela Europa inteiramente por fora do que se passava. E você morrendo sua morte com essa discrição que, melhor que uma prova de refinamento, era uma decorrência normal da sua integridade como homem. Porque eu desconfio muito dos que se deixam engessar em moldes éticos, seja por conveniência profissional, seja por medo de romper estruturas tradicionais impostas.

Você não, querido morto cada vez mais vivo. Você era uno e indivisível como um diamante que tivesse chegado ao limite máximo do seu grau de lapidação. Não havia dinheiro, glória, tentações, comendas capazes de comprar a sua honra. Talvez só a amizade - e isso porque você dava um crédito de confiança total aos seus amigos - pudesse, senão demovê-lo, pelo menos fazê-lo contornar dialeticamente uma posição moral assumida. Você nunca abstraía do humano, meu compadre. Você sabia que o homem só muito raramente é aquilo que ele diz ser; é, muito mais, "esse bicho da terra tão pequeno" de que fala Camões, passível, por amor, fé ou sectarismo, dos piores compromissos; capaz de dizer, no mais enxuto dos estilos, as maiores besteiras ou as coisas mais convencionais - e com a maior convicção. E do mesmo posso tentar realmente penetrar os mistérios do ser humano, da sociedade e da natureza, em sua busca permanente de Deus (ou de uma tábua social comum de salvação).

Você vivia num estado de quase permanente indignação contra os inimigos do homem e do que ele cria no plano da beleza. Você foi o grande e puro leão-de-chácara do nosso humilde patrimônio histórico e artístico, e não fosse você, rodeado de sua belle equipe, não só todos os nossos santos barrocos seriam hoje peças de antiquários, como a pedra sabão em que o gênio do Aleijadinho materializou o verbo austero dos Profetas do Antigo Testamento, estaria coberta de palavrões de mictório. Você, em benefício dessa missão, não só abdicou de uma vocação de escritor, para a qual era dotado dos instrumentos mais aptos, como se deixou envelhecer antes do tempo, vitimado por uma sobrecarga de aborrecimentos inúteis, quais os que lhe eram diariamente despejados em cima pelo natural mau gosto arquitetônico da classe média em ascensão, desservida pela desonestidade profissional de arquitetos de araque ou pela politicagem de alguns prefeitos do interior mais interessados em votos que em ex-votos; em fazer média com obras excêntricas e anti patrimoniais com vistas ao meio ambiente e ao futuro, que na restauração e preservação das autênticas, legadas pelas dores do passado e, de resto, as únicas capazes de fazer progredir, através do turismo, as cidades e regiões sob sua administração. 

Você lutava uma luta miúda contra o mão-de-paca da administração federal, sempre curto de verbas para atender às múltiplas e prementes exigências de restauração de obras do patrimônio sob sua guarda. Essa luta, você a levava para casa, fazia dela participarem sua admirável companheira, seus filhos e seus amigos mais íntimos. 

Houve um tempo - o tempo da rua Bulhões de Carvalho - em que toda quarta-feira nós íamos - Manuel Bandeira, Pedro Nava, eu e, com menos frequência, Afonso Arinos de Melo Franco e Prudente de Morais, Neto - jantar com você e sua Graciema, na casa arrumada com tanto gosto e carinho; e ali ficávamos até altas horas traçando nosso uísque; debatendo os problemas de nossa vida e nossa época; lendo ainda no original os poemas admiráveis de Carlos Drummond; por vezes convivendo com escritores amigos de Minas e Pernambuco, de passagem pelo Rio, e para os quais uma chegada à sua casa, e à de Aníbal Machado, constituía a melhor das obrigações. 

A conversa era inteligente, bem escandida, não isenta de humor negro, no qual, como bom mineiro, você não deixava de se comprazer. Nem faltava, tampouco, lirismo - um tanto macabro, é certo - não fôssemos nós, como diria seu também amigo Otto Lara Resende, inquilinos vitalícios da morte, sempre carregando o eterno Defunto (de Pedro Nava) em nosso cotidiano mais fisiológico. Você ria sua risada levemente dispneica, passando a mão felpuda rosto abaixo e balançando a cabeça de cabelos ralos mas impecavelmente penteados, a cada novo sutil achado de Nava ou de Prudente; ou à lembrança de minhas aventuras em nossa primeira viagem a Ouro Preto, no inverno de 1938, quando fomos com esse caro José Reis debulhar os gavetões da sacristia de São Francisco de Assis à cata de comprovantes de obras de talha do Aleijadinho ainda não autenticadas: e com que sucesso. 

Eu tivera meu primeiro desafio ao violão com o famoso improvisador Zé Badu, provocado por este, que queria brilhar à minha custa, mas por um desses azares da parlenda, estrepou-se em verde e amarelo: e, irado, partiu a dar tiros para o alto que só não mataram a família do dono do restaurante, dormindo no andar de cima, porque bala não sabe o que faz - e é só perguntar aos então jovens arquitetos Carlos Flecha Ribeiro e Vladimir Alves de Sousa, de corpo presente. Ou meu namoro com uma Mariliazinha (mesmo!) de 13 anos, mais linda e meiga que sua antiga homônima, com enormes olhos em calda... E UM CRISTO MAL CRUCIFICADO NO SEIO DE BRINQUEDO.

Ah, eu posso sentir ainda, amigo amado, o frio seco prisioneiro das belas fachadas coloniais da rua São José, e o som de nossos passos nos pés-de-moleque do calçamento. Na nesga de céu acima brilhavam as estrelas mais despudoradas do Brasil, que são as de Ouro Preto. Nós aquecíamos o peito com birita de rico, aguardente bem destilada com que nos regalavam, e resfolegávamos ladeira acima no rastro da beleza sempre a se desdobrar à nossa frente, sempre a nos surpreender a cada esquina, entre sons de serenata. 

Meus olhos, amigos, ainda não choravam sua morte. A gastura da vida que me cerca, e a grosseria dos homens que a povoam, com raras exceções, me têm de certo modo endurecido. Mas eu sei que um dia, no silêncio de uma madrugada, à simples lembrança do seu rosto erosado de rugas; à simples sensação do toque de suas mãos fraternas, no tato breve e discreto da amizade; à simples materialização do seu espectro amado no espaço expectante da minha vontade de rever você - ah, eu sei que elas correrão livres e intermináveis, para que eu possa dessedentar a saudade excruciante que sinto cada minuto, cada hora, da sua presença; do som da sua voz ao telefone a me saudar assim: "Então, querido?..."; do aconchego de sua casa e do carinho da amiga Graciema, a quem ainda não tive coragem de ir ver, para não repisar-lhe as penas. Mas sei que vou chorar, e só então você se incorporará definitivamente ao boca-livre permanente que mantenho em casa para os meus mortos. Onde você chegará, querido retardatário, me pedindo perdão pelo atraso - quando eu é que lhe devia pedir perdão de ainda não ter podido chorar -; e ficará contente de ver tantos amigos comuns que se anteciparam a você : Zé Cláudio, Zé Lins, Gastão Cruls, Mário de Andrade, Jayme Ovalle, Graciliano, Portinari, Aníbal... toda essa linda curriola. E sobretudo - penúltimo a chegar e primeiro em precedência no nosso coração - seu muito amado Manula, meu paizinho Manuel Bandeira, que um dia se perguntou como melhor precisar esta palavra amizade. E sem hesitação respondeu: nomeando o amigo exemplar - Rodrigo M.F. de Andrade.

Falou e disse.

Fonte:
Vinicius de Moraes. in Jornal do Brasil, Rio de Janeiro/RJ, 31/12/1969.