segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Seis) Filosofia elevada ao quadrado



As palavras com *, há um glossário ao final do texto
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O NOVO PROFESSOR DE FILOSOFIA entra na sala, dá uma boa noite a todos, vai até o quadro negro e escreve seu nome em letras garrafais. Os quase quarenta alunos trocam olhares silenciosos entre si, mas nada comentam. Abrem os cadernos e esperam ansiosos, pelo começo da aula.

— Antes de entrarmos no assunto que me trouxe até aqui —  fala como se estivesse propelido a rude sacrifício —  devo esclarecer a vocês, um ponto muito importante. Como podem ver, coloquei na lousa o meu nome. Sou, portanto, o professor Barata e estou substituindo, por tempo indeterminado, seu antigo mestre, o meu ilustre e querido amigo Gracindo Januário, que, infelizmente, se encontra acamado. Não sei como ele agia em suas aulas, no tocante às matérias ministradas, quando algum dos senhores e senhoritas o interrompiam para esclarecer dúvidas concernentes ao assunto que estava sendo ventilado. O que pretendo e vou deixar claro, é o seguinte. Quem desejar fazer perguntas, dentro dos tópicos que aqui trarei a partir de hoje, para cada um de nossos encontros, deverá proceder da seguinte forma. Levantar a mão, pedir licença, dirigir-se a mim —  professor Barata, meu nome é fulano de tal ou Sicrana da Silva e eu gostaria que o senhor explicasse novamente sobre tal assunto. Não tolerarei ser molestado se não for dessa maneira. Fui claro?

Como não houve resposta, continua taciturno:

— Passemos então ao tema de nossa aula inaugural. Asseguro aos presentes que este assunto é rico em surpresas, e, por ser abastado em sua essência, de nuances os mais variados, com certeza envolverá a todos com uma magia inebriante. Alguma pergunta?

O silêncio segue denso e pesado.

— Ok. Então vamos começar. Iniciaremos a nossa conversa discorrendo sobre os conflitos diatópicos intercerebrais.

Um aluno, logo de supetão, levanta o braço:

—  Pois não?

—  Eu gostaria que...

O professor cala precipitadamente o rapaz antes que ele termine:

—  Você sabe ler?

—  Sei professor.

—  De onde está consegue distinguir o que escrevi na lousa?

—  Sim, seu nome!

—  E qual é por gentileza?

—  Barata.

—  Quer repetir, por favor, para que os demais colegas seus tomem ciência?

— Claro. Professor Barata.

— Perfeito. Barata. Professor Barata. Repetindo o que acabei de falar. Quero deixar claro, e, agora, essa interferência abrupta do seu colega ali atrás que fique de uma vez para sempre carimbada como exemplo. Qualquer dos senhores e senhoras que quiserem interagir, devem se dirigir a mim desta forma: professor Barata meu nome é fulano de tal. Eu gostaria de etc. etc. etc... Vamos tentar?

— Com licença —,  repete o aluno em tom de acanhamento. —  Professor Barata, boa noite. Meu nome é Euclides.  Gostaria que o senhor explicasse melhor essa coisa de conflitos diatópicos intercerebrais.

O professor bate palmas em sinal de aprovação.

—  Muito bem. Isso que acabei de fazer com seu colega Euclides, repetindo, novamente, para que não haja dúvidas depois, vale para todos aqui presentes. Sempre que quiserem saber alguma coisa, tirar aquelas minhoquinhas chatas, esclarecer pontos obscuros, essa é a maneira correta de como se dirigirem a minha pessoa. Estamos conversados?

Todos a uma só voz concordam gritando um sim não muito entusiasmado.

—  Respondendo, pois, sem mais delongas ao jovem Euclides. Conflitos diatópicos intercerebrais que nem comecei a explicar e já causou todo esse rebuliço desnecessário, são aqueles que se externam diante das intercorrências intrapessoais que extrapolam e ultrapassam as psicossomias pessoais*...

—  Professor Barata —  Estica a mão, desta vez, uma aluna. Meu nome é Giovanna. Eu gostaria que o senhor explicasse intercorrências intrapessoais.

—  Perfeito. Show de bola! Intercorrências intrapessoais são aquelas, minha cara Giovanna, que envolvem o dualismo individual de cada situação exógena.  Antes que alguém interrompa para questionar exógena, vou dizer logo do que se trata. Exógena ou exógeno é algo que cresce exteriormente para fora. Aquilo que está na superfície. No nosso caso, o dualismo nada mais é que a doutrina que, em qualquer ordem, ou ideia, admite a coexistência pacífica de dois princípios irredutíveis, AY e BY. Essas intercorrências se refletem diretamente nos exsudatos furbóticos* das atividades psicossociais das sociedades tribais perfuncturiais*.

Um novo aluno volta a mutilar o pernóstico professor:

—  Professor Barata boa noite. Meu nome é Tupinambá. Alcides Tupinambá. Essa parada da qual o senhor está falando ai tem alguma coisa a ver com o iluminismo?

—  Por certo. Boa colocação a sua. Não só com o iluminismo, como também com a efervescência grandiloquente, que, por sua vez, foi a precursora de tais fatos. Claro que esta incongruência causou sérias implicações,  evidentemente inequívocas naquilo a que denominamos chamar de similitude das situações caróticas...

—  E no que consiste exatamente essa tal de similitude das situações caróticas? Aliás, professor, não seria, por acaso, carótidas?

—  Quem perguntou?

—  Eu professor. Aqui.

—  O prezado tem problemas de vista?

—  Não que eu saiba...

—  Prestou atenção ao que falei no comecinho da aula?

—  Sim.

—  E o que eu disse exatamente?

—  Ah!... Que ao se dirigir a sua pessoa, fazê-lo desta forma. Professor Barata.  Meu nome é Ítalo Pereira.

—  E por que não agiu dessa forma preestabelecida? Sofre de algum tipo de amnésia?

O infeliz fica desconcertado e cobre o rosto com as mãos.

—  Não vou tolerar mais amputações a bel prazer de vocês. É preciso ter norma. Continuando, a similitude das situações consiste no ego pórigo* do épice. Não confundam com ápice. É, na verdade, o todo no complexo. A válvula propulsora, eu diria, da brópise* na sua escala mais elevada. Todavia, as interpelações constantes das dicotomias análogas, vejam bem, análogas, demonstraram e demonstram claramente o profundo grau de submissão clerical dessa situação fundia na hegemonia feudal.

La no fundo outro Zé Mané levanta a mão. Pede um aparte. Parece meio perdido diante de todo aquele linguajar estranho do professor.

—  Professor Barata, desculpe ser inconveniente. Meu nome é Afonso e eu confesso que não entendi bem o pórico do épice...

—  Vou tentar ser claro, Afonso. Pórigo do épice é o todo no complexo. O complexo no todo. A porta de escape, a textura da filosofia. Trocado em miúdos: a tampa da panela, o sapato faltoso, para o pé descalço, ou o dedo que o Fula gostaria de implantar no lugar do que cortou fora, de sacanagem, para cavar uma aposentadoria. Filosoficamente falando, o pórigo do épice, por favor, pelo amor de Deus, não confundam com ápice, faz parte do rol das transmutações...

—  Transmutações ou transmudações? —  Grita um abestalhado bem lá dos fundos.

O professor Barata para e perscruta para os confins da sala com a atonia de quem reflete nos olhos a aspereza da indignação. Quer identificar o sujeito que lhe cortara o discurso com sofreguidão, impondo desrespeito a sua ordem expressa de levantar o braço, pedir licença, declinar o nome, e, por fim, bailar a dúvida.

— Não deveria responder, já que o engraçadinho não foi homem suficiente para suspender o braço e mostrar a cara. Apesar dos pesares, além do fato de não possuir a tolerância dos calmos e mansos de espírito, abrirei exceção apenas esta vez. Apenas esta vez. Fui claro? Pois bem. As transmutações, e não transmudações conjuntamente atreladas ao poder exacerbado e a desintegração do passado, suprimiram escatologicamente as falésias morais* ocasionando uma grande e irreparável perda para a idiossincrasia humana... Daí, vir a...

—  Como o senhor classificaria a idiossincrasia humana...?

O silencio cai geral. Dá para ouvir uma agulha voando.

—  Vou avisar pela derradeira vez. Pela derradeira vez vou avisar. Não mais tolerarei ser bruscamente estorvado. Quem quiser fazer pergunta, se manifestar, perquirir, fique a vontade. Estou aqui para isso, esclarecer dúvidas, aparar arestas, os cambaus. Contudo, vocês devem, antes, levantar o braço, berrar o nome e, então, só então, formular a pergunta.

João Cabeludo ouve de novo essa balela toda. Está pê da vida com tanta arrogância e altivez daquele professor metido a besta. Assim, não levanta a mão. Não pede licença. Fica de pé, na cara dura. Encara o sujeito e manda bala, o desejo saliente a avoaçar seu lado animal:

— Amado professor Mafú...

O sisudo mestre Barata dá um murro tão forte na mesa que estronda os vidros das janelas. Culmina a sua ira soltando um berro feroz, bravio e pesadamente perverso:

—  Barata, seu imbecil, Barata. De onde foi que você, seu energúmeno, tirou esse tal de Mafú?

O aluno não se faz de rogado diante de toda aquela atitude possessiva. Enfrenta a criatura, a peito aberto, como se fosse dono do pedaço.

—  Lá em casa, meu amado, meus pais matam as baratas que aparecem com Mafú.

—  Seu descarado. Vadio. Por acaso está me igualando a esses insetos blatídeos, achatados e ovais, de hábitos noturnos, que vivem por ai assustando as mulheres?

—  Se a carapuça lhe serviu seu Mafú Barata, não posso fazer nada. Fique sabendo que não sou parente de Bakbarah, aquele personagem de As Mil e Uma Noites, que se submetia a vexames. Não vou abaixar a cabeça para o senhor, nem a crista para nenhum outro girafales de meia tigela, seja por amor ao dinheiro que pago às mensalidades, religiosamente em dia, seja por essa sua droga de aula chata e maçante. E tem mais, meu ilustre. Toda essa papagaiada, toda essa conversa fora de esquadro, esse seu linguajar difícil, complexo, intrincado, essa sua postura de  cavalheiro mal nutrido, me enoja, me afronta, me enfeza. E quer saber? —  Vá lamber sabão!!!

O insigne professor Barata azeda os ânimos. Em vista disso, não fala mais nada. Vira as costas, passa a mão em suas coisas e, a passo largo voa para a porta. Antes de batê-la, de vez, atrás de si, com força descomunal, sem conseguir suplantar a sua indignação, comunica a galera, à voz embargada pela deliberação enérgica da raiva inqualificável que o domina, a suspensão da sala inteira por uma semana. Ato contínuo, a classe se levanta e aplaude João Cabeludo, pela coragem que ele teve de enfrentar, cara a cara, o excêntrico  e  esquisito professor.
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Glossário:

Brópise: Uma maneira de se associar a qualquer coisa que ainda não foi descoberta.

Exsudados furbóticos: É uma espécie de sistema de longo alcance para entendimentos considerados difíceis

Falésias morais: Falências morais  vista de forma mais severa

Pórigo é o todo no complexo, a válvula propulsora para qualquer coisa tida como amalucada.
Pórigo ou pórico: A grafia certa é pórigo. Pórico foi escrito erradamente propositalmente.

Psicossomias pessoais: loucuras e neurastenias pessoais.

Sociedades tribais perfunctoriais: Sociedade de tribos vindas do imaginoso do professor Barata. Na verdade, segundo ele, indígenas  que conhecem além daquilo que nunca ouvimos falar.


ESCLARECIMENTOS  AOS  LEITORES:

Na verdade, o texto é apenas uma brincadeira, um divertimento, um passatempo. A começar pelas palavras tidas como difíceis. Em resumo, nada tem de filosofia. A ideia do autor foi apenas a de divertir o leitor, descrevendo uma  suposta aula de filosofia, onde nada  pode ser levado a sério.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

domingo, 15 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 439

 


Ivan Lessa (Ao Professor, com Pêsames)


Todos os professores que eu tive desejavam a minha morte. As lembranças que tenho do jardim de infância são vagas: restou apenas uma sensação de ameaça, de medo. Esta, continua nos dois anos seguintes do primário, só que mais nítida. “Eles” já tinham me sacado, haviam percebido o perigo que eu representava, vigiavam-me, apenas não ousando fazer nada devido ao fato de que eu, ao contrário de alguns colegas mais distraídos, notara a manobra. Eu era, pois, tão perigoso para “eles” quanto “eles” para mim. Eu era pequeno, tímido, incapaz ainda de exercer a força de minha individualidade. Mas sabia de tudo. Tentei, uma ou duas vezes, expor a situação em casa. Pouco articulado, sem provas concretas, agravado pelo fato de possuir um passado em que já fora pilhado em algumas mentiras, de nada valeu minha denúncia. Eu teria que me defender sozinho.

Comecei – deve ter sido no segundo ano primário – a armar, ainda que precariamente, já que dispunha de poucos recursos físicos e intelectuais, meu próprio esquema de segurança. Sabia que entre os outros companheiros que se encontravam na mesma situação (não deveríamos, ao todo, ser mais que quatro na sala de aula) também não encontraria boa receptividade. Muito bem. Que assim fosse. Eles que se virassem. Eu não desistiria sem ao menos oferecer uma boa luta. Optei pela saída psicológica. Se eu tomara conhecimento da situação devido a pequenos olhares e gestos, captados aqui e ali, nada de concreto, teria que, pelo mesmo método, enfrentá-los.

Sempre preferi os últimos bancos, hábito que guardo até hoje quando vou ao cinema e ao teatro, ou quando viajo de ônibus, trem e avião. De lá, tenho uma visão mais ampla do terreno, dificilmente posso ser atacado pelas costas. Lá ficava eu, quieto, o olhar fixo na professora (só no ginásio teria que me ver às voltas com o sexo forte, que, embora possa parecer paradoxal, é muito menos perigoso que o chamado “frágil”), dois ou três lápis bem afiados à minha frente, uma caneta pontuda sem a tampa, tudo bem à mostra em cima da carteira escolar. Ela – qual o seu nome mesmo? Arlete? Amanda? Helena? – discorrendo como sempre sobre questões aritméticas, geográficas e ortográficas, utilizando-se enfim de todos os recursos que pudessem desviar minha atenção de seu verdadeiro objetivo: minha morte.

Minha primeira intenção era deixar claro que estava a par de sua sinistra meta. Foi numa aula de trabalhos manuais em que, pela primeira vez, pusemos as cartas na mesa. A classe fora obrigada a montar, com cartolina, goma-arábica e gilete, algumas figuras geométricas. Um cubo, um cone e um cilindro, se é que estou bem lembrado. Nunca tive jeito para essas coisas. Preferia os ditados, o português, as correrias a que chamavam de ginástica, a lidar com objetos inúteis como cubos, cones e cilindros. Eu estava a ponto de recortar na cartolina o desenho esboçado no quadro negro e cuidadosamente copiado a lápis no papel quando ela – acho que era Amanda mesmo – após disfarçar, fingindo que acompanhava os trabalhos da classe, conseguiu se aproximar de mim. Não levantei os olhos. Tomei da Gillette e, embora o desenho ainda não estivesse pronto, comecei a recortá-lo, tratando de segurar a pequena e fatal lâmina de maneira firme mas, com um leve manobrar do pulso, inegavelmente ameaçador. Amanda debruçou-se sobre mim, as duas mãos ocultas de meu ângulo de visão. Atravessei a cartolina de alto a baixo num golpe profundo. Quase que senti e ouvi os músculos de Amanda se retesarem, sua mente dilacerada pelo gesto. Eu deveria estar suando e procurei fazer com que ela não notasse. Ela deveria estar tremendo, mas não deixou transparecer. O chavão se aplica: segundos que duraram uma eternidade. Amanda afastou-se de mim e passou para a carteira do colega ao lado. Estávamos apresentados.

Acredito que os professores, em sua reunião semanal, juntavam-se para discutir estratégias, traçar planos, prestar relatórios sobre as dificuldades apresentadas por este ou aquele elemento. Naquela semana, posso gabar-me de que fui o principal assunto. “Cuidado com aquele” – eu, eu no caso! – devem ter concluído. Juro que concluíram!

Durante alguns meses, vi-me a salvo. Continuava encarando Amanda e, em troco, recebendo seus olhares discretamente malévolos. Mas eu dera meu recado. Ela que se cuidasse. Eles todos que se cuidassem.

Meus sonhos, naquela época, eram povoados de professores. Todos armados. Acordava no meio da noite, suando frio, gritando por socorro. Davam-me chá de flor de laranjeira, acendiam as luzes, diziam que era só um pesadelo. Isso porque não eram obrigados, como eu, a enfrentar, dia após dia, Amanda. Nem tinham pela frente a cruel perspectiva de sei lá quantos anos de constante ameaça às suas integridades físicas.

Os tormentos, as lutas, prosseguiram primário a fora, com vitórias flagrantes minhas, alguns empates, aquele impasse permanente.

A grande batalha, no entanto, deu-se com o professor de matemática do primeiro ano ginasial. Eu já era veterano de alguns anos de confrontos terríveis. Ele, talvez – é a única explicação que encontro – devido à sua extrema crueldade, repugnante até mesmo entre seus companheiros de “ofício”, não estava a par de meu grau de combatividade. Tentou me pegar num dia em que me vi obrigado a ficar de castigo, terminada a aula, resolvendo diabólicas equações. Estávamos os dois sozinhos na classe. Lá fora, apenas a barulheira dos meninos do primário. Acendeu um cigarrinho e veio se aproximando de mim. Não levantei os olhos. Colocou a mão no bolso. Não me mexi. Sacou a mão fora, segurava alguma coisa. Fiquei firme equacionando. Chegou ainda mais perto. Era o momento da verdade. Levantei-me de repente e gritei com toda a força de meus pulmões:

– Mais um passo e você é um homem morto!

Blefava, é claro, já que nada tinha com que me defender a não ser a caneta esferográfica importada, a única aliás de nossa classe. Seus olhos se abriram como se, de repente, de um só lance, todos os logaritmos do mundo tivessem se voltado contra ele, dispostos a matar. Botou a mão no peito, soltou um gemido de paca agonizante e caiu durinho na minha frente.

Acabei meus deveres, juntei minhas coisas e fui embora. Ele foi enterrado no dia seguinte com todos os alunos presentes. Acho que cantamos o hino do colégio. Contritos e nervosos naquela agitação dispersiva das crianças diante da morte. Fiz como todos. Ninguém percebeu nada. Mas, nós – eu e os mestres – sabíamos. Sabíamos que, daquele dia em diante, não haveria mais luta. A coisa poderia acabar nos jornais.

Terminei o clássico, fui trabalhar em publicidade, nunca mais pensei em professor ou professora. De vez em quando, passo por um, na cidade. Fingimos não nos reconhecer. Mas, às vezes, tarde da noite, alguém liga para minha casa e não diz nada. Já senti mais de uma vez mãos tentando me empurrar da calçada enquanto espero o sinal abrir. E no Dia do Professor, todo ano, chegam flores murchas em casa acompanhadas de um cartãozinho em branco. Sempre digo que deve haver algum engano. Mas não há enganos. A vida é isso mesmo. A gente começa a se matar muito cedo.

Fonte:
Diário Carioca. Rio de Janeiro, 15 out 1975.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXI


ME ASSUMA...

MOTE:
Não busque ocultar os traços
do amor com força nenhuma...
se me prefere em seus braços,
tire o disfarce... e me assuma!
Heloisa Zanconato
(Juiz de Fora/MG)


GLOSA:
Não busque ocultar os traços
desse amor que está sentindo,
nem tente apagar os passos
que estão sempre nos seguindo!

Não queira nunca fugir
do amor com farsa nenhuma...
pois o amor nos faz sorrir
e dissipa qualquer bruma!

Preencha os nossos espaços!
Vem amor, se achegue, então,
se me prefere em seus braços,
me abrace com emoção!

Somos, como a praia e o mar
que adoram beijos de espuma
se sabe que vai me amar,
tire o disfarce... e me assuma!
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NÃO SEI...

MOTE:
Não sei escrever bonito,
pois me falta inspiração,
mas o que aqui está escrito
eu sinto em meu coração!
Sophia Irene Canalles
(Pedro Osório/RS, 1911 – 2004, Porto Alegre/RS)


GLOSA:
Não sei escrever bonito,
mas sei amar e sentir
a beleza do infinito,
simplesmente em ir e vir!

Às vezes, eu não escrevo,
pois me falta inspiração,
outras vezes, eu me atrevo
e escrevo com emoção!

Meu verso não é erudito,
possui grande singeleza,
mas o que aqui está escrito,
sai-me da alma, com certeza!

Eu sou feliz escrevendo,
e não é mera ilusão,
ver a alegria nascendo...
eu sinto em meu coração!
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LUZ DA PAIXÃO

MOTE:
Nosso amor é uma certeza,
dentro do meu coração;
e a luz da paixão acesa
apaga a luz da razão!...
Istela Marina Gotelipe Lima
(Bandeirantes/PR)


GLOSA:
Nosso amor é uma certeza,
já faz parte de nós dois;
vivemos, hoje, a beleza,
dos ontens e dos depois!

Ele já se enraizou
dentro do meu coração;
e, em meu carinho, plantou
a semente da emoção!

Eu me sinto uma princesa,
nesse reino que criamos
e a luz da paixão acesa
é que nós mais nos amamos.

Dessa luz apaixonada,
é tão forte o seu clarão,
que uma única soprada,
apaga a luz da razão!…
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MEU TORMENTO

MOTE:
Quanto mais teu corpo enlaço
mais padeço o meu tormento,
por saber que o meu abraço
não prende o teu pensamento...
Jesy Barbosa
(Campos/RJ, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ)


GLOSA:
Quanto mais teu corpo enlaço
mais me enamoro de ti,
e mil promessas eu faço,
pra que estejas sempre aqui!

Mas por meu ciúme letal,
mais padeço o meu tormento,
por não poder ser total,
ser só eu, no teu momento!

Aumenta, em mim, o cansaço
nessa dúvida infundada
por saber que o meu abraço
para ti, pode ser nada!

É de posse o meu desejo!...
Nem eu mesmo, mais aguento
saber que o meu doce beijo
não prende o teu pensamento...

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XIX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2004.

Estante de Livros (Pedra Bonita, de José Lins do Rego)


Em 1938 é publicado Pedra Bonita, de José Lins do Rego, romance que dá início ao ciclo do cangaço associado ao misticismo messiânico e ao flagelo das secas. Na obra, o chamado santo era um louco, como Antônio Conselheiro, e o drama se desenrola em torno de uma espécie de loucura coletiva.

Como já citado, o misticismo e o cangaço estão presentes em Pedra Bonita. A provável fonte temática, bem como a oralidade da narrativa, nesses casos, teria sido a literatura de cordel, como afirma o próprio autor:

(…) Os cegos cantadores, amados e ouvidos pelo povo, porque tinham o que dizer, tinham o que contar. Dizia-lhes então: quando imagino meus romances, tomo sempre como modo de orientação o dizer as coisas como elas surgem na memória, com o jeito e as maneiras simples dos cegos poetas.

Pedra Bonita é o relato da tragédia pernambucana de 1838, onde morreram várias pessoas, para que com seu sangue fossem lavadas as duas torres da catedral do reino de D. Sebastião, encantado nas duas pedras ali existentes.

Ao ler a obra, temos a impressão de que é atualíssima, uma vez que não fala simplesmente sobre um relato a respeito de Pedra Bonita, porém nas entrelinhas vemos a construção de uma região, o Nordeste, humilde que serve de cenário para heróis, coronéis, santos, místicos, “bandidos”, fanáticos e aventureiros cantadores de viola etc.

É um círculo vicioso do qual não vemos saída, a não ser que haja um progresso muito grande na mente humana. Isso é fundamental no desenrolar do texto, que procura mostrar os conflitos político, econômico, religioso e social em torno destes elementos reais enquanto legitimadores de um regime, de uma determinada articulação social.

O livro, mesmo tendo mais de meio século de sua primeira publicação, apresenta uma ótima coerência interna, explorando muito bem a temática e a imagem do Nordeste sofrido.

Iniciando a análise pelo povoado de Vila do Açu, próximo a Pedra Bonita, o autor monta a trama do romance; nesse cenário vão se destacando uma gama de personagens individualizados e enlaçados as suas neuroses, suas paixões e para seu modo de vida, como o menino Antônio Bento que fora parar na casa do Padre Amâncio trazido pela mãe em virtude da seca de 1904; D. Eufrásia, a irmã do Padre, mulher de personalidade forte e autoritária que vez ou outra aparecia na vila; a negra Maximiliana, criada da casa paroquial, que só tinha alegria quando tornava umas pingas; D. Fausta e a sua aversão crônica ao pai que só tinha olhos e carinho para os pássaros que criava; o sacristão Laurindo e a sua mulher; as beatas; Joca Barbeiro, o bisbilhoteiro que ficava horas a fio em baixo da tamarineira da praça falando da vida de todo mundo; o bodegueiro que saiu explorando o sertanejo; o tirânico juiz Dr. Carmo, sua mulher e o seu filho arruaceiro; e tantos outros.

E ainda, nesse cenário exótico é retratado também de forma contundente, o confronto de dois grupos na política municipal. Em seguida, discorre o povoado do Araticum, começando pelo semi-árido físico onde aparece a geografia do sertão, o clima semi-árido, a vegetação típica ­ caatinga – e a questão das secas, o tipo que habita, nesse clima, transcende a figura de Bento Vieira, criatura seca, desumana e imparcial a tudo que lhe rodeia, sua mulher, a sofredora Sinhá Josefina, seus dois filhos: Aparício, violento, brigão e Domício, tenro e sonhador.

A caminho de Pedra Bonita aparece o místico Zé Pedro que conhece todos os mistérios e segredos da região. Por fim, é nesse palco e com essas personagens inquietas e conflituosas que o autor relata de maneira contundente a dizimação total da família Vieira, absorvida pelo fanatismo religioso e o envolvimento com o cangaço.

A ação divide-se em duas partes.

Primeira parte
No vilarejo de Açu, o vigário cuida do menino Antônio Bento desde pequeno. Frustrada a intenção de colocá-lo no seminário, Bento torna-se sacristão do padrinho. Porém a população do povoado hostiliza-o porque ele participa de um grupo desencaminhado. Protegendo-o, o padrinho acusa o juiz da cidade como responsável. O juiz, transferido para a capital, não lhe perdoa e, por sua vez, acusa-o de proteger bandidos.

Segunda parte

Passa-se em Pedra Bonita, para onde fora Bentinho. O irmão de Bento o inicia nos segredos da Pedra Bonita, mata um soldado e torna-se cangaceiro. Bentinho fica indeciso entre a doutrina do Padre Amâncio e a crença de sua gente, vendo pobres, aleijados e enfermos enlouquecidos na ânsia de cura.

Bentinho retorna a Açu e fica com os seus.

Fonte:
texto por Lucas Gomes in Passeiweb

sábado, 14 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 438

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Os Bem-Te-Vis de Maringá


Bem-te-vi que bem-me-vês, bem-visto sejas também, hoje e sempre e toda vez que bem-me-vires. Amém. –- Na minha rua habitam muitos e fico todo prosa quando um deles me acorda cantando em frente à janela. Ele diz: “Bem-te-vi... Bem-te-vi...”. Respondo: “Obrigado, igualmente”.

Primeiro, porém, quero falar do Brandespim. Aristeu Brandespim, um personagem realmente singular, a quem Maringá até hoje não tributou o merecido reconhecimento.

Mineiro de São Sebastião do Paraíso, gordo e invariavelmente bem-humorado, no início dos anos 1950 era bancário em São Paulo. Num certo dia leu uma entrevista do Dr. Hermann Moraes de Barros falando maravilhas sobre o norte do Paraná. Dias após atendeu no banco um jovem empresário chamado Alfredo Maluf. Conversa-vai, conversa-vem, Maluf gostou do rapaz, ficou sabendo que ele era contador, e de bate-pronto fez a proposta: “Quer trabalhar comigo? Tenho um posto de combustíveis em Maringá”. Aristeu nem pestanejou: “Quero”. Veio de mala e cuia na semana seguinte. Durante alguns anos fez a escrita do Posto Santo Antônio, tendo entre os colegas outro contabilista ilustre – Farid Cury, que mais tarde se tornou sócio de Alcides Parizotto no Atacadão.

Em 1957 resolveu mudar o rumo da vida: ingressou no jornalismo, uma antiga paixão sua. Criou e dirigiu até o final dos anos 1970 a primeira revista da cidade, “Maringá Ilustrada”, que já no segundo número passou a chamar-se “Novo Paraná”, a famosa “NP”.

Aristeu tinha umas coisas muito características. Por exemplo: a capacidade de perceber o que em geral as pessoas comuns não percebiam. Numa manhã de sol, caminhando juntos, ao atravessarmos a praça Napoleão Moreira da Silva ele parou de repente, segurou meu braço, olhou para cima e disse: “Maringá é realmente uma cidade hospitaleira. Em qualquer praça ou rua onde você esteja, escuta a saudação – Bem-te-vi... bem-te-vi...”

“É mesmo, cara... e eu nunca havia pensado nisso” – comentei. Ele riu: “Esses bichinhos simpáticos estão em todas as nossas árvores dando as boas-vindas aos chegantes. Me lembro bem de que no dia em que aqui desembarquei um dos primeiros sons que ouvi foi esse – Bem-te-vi... bem-te-vi... Existe recepção mais generosa?... Quem quer que venha a Maringá se sente de imediato bem-visto. É como se alguém dissesse: – Entre, a casa é sua...”

Deve ter sido assim na chegada das primeiras famílias. Cada vez que encostava um caminhão de mudança apareciam logo os vizinhos oferecendo ajuda. Ninguém nem perguntava a ninguém de onde vinha. Todos sabiam que para sair do chão natal e se embrenhar no desconhecido era preciso ter muita coragem e as melhores intenções. Só gente muito raçuda e boa faria algo assim. Por isso é que eram todos tão bem-vindos.

Sempre ao som do bem-te-vi... bem-te-vi... bem-te-vi...

Pois é, Brandespim. Poderia até, quem sabe, algum dia algum vereador propor uma lei oficializando o bem-te-vi como símbolo da hospitalidade maringaense.
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Crônica publicada no Jornal do Povo – 29-10-2020


Fonte:
texto enviado pelo autor

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 14



Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor.

Prof. Garcia (Pantuns) 1


INTRODUÇÃO


Por definição, o Pantun é um poema de origem Malaia, composto por 4 estrofes de 4 versos cada uma, no sistema ABAB. É uma composição poética e musical que faz parte do folclore malaio, no qual o tema mais comum é o amor e surgiu no século XV. Diria que é um tanto quanto desconhecido e pouco explorado pelos poetas brasileiros; mas um Pantun bem acabado, toma-se uma composição muito atrativa.

Para se compor um Pantun. escolhe-se, inicialmente, uma boa trova de alguém, podendo ser do próprio autor. A trova escolhida passa a ser a trova tema do Pantun. Dela, surgirão 4 novas estrofes,, obedecendo ao sistema ABAB. Atenção: tanto da trova tema quanto das novas trovas, o 3° verso é descartado, usando-se apenas o 2. e o 4. versos, e em cada estrofe surgem dois versos novos até o final, Além disso, finaliza-se o 4. verso da última estrofe com o 1. verso da trova tema.

Atenção: nem toda trova, por mais bela que seja, pode originar um bom Pantun, é bom ficar atento a esse detalhe. A seguir, os Pantuns de nossa autoria, obedecendo às explicações acima.

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PANTUN DO VELHO ABANDONO

Trova tema:
Faminta e desprotegida,
vagando em busca do nada,
ganha o mundo e perde a vida
a criança abandonada.
(Zé Lucas – RN)


Vagando em busca do nada,
perdida e sem esperança,
a criança abandonada,
mata o sonho de criança!

Perdida e sem esperança,
segue a criança tristonha!...
Mata o sonho de criança!
Mas é feliz quando sonha!

Segue a criança tristonha,
exposta aos amores vis,
mas é feliz quando sonha,
que um dia será feliz!

Exposta aos amores vis,
mas pela vida iludida,
que um dia será feliz
faminta e desprotegida!
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PANTUN DO AMANHECER

Trova tema:
Da janela, o amanhecer
reluz sopros de esperança,,.
E a vida, em seu renascer,
lembra um sonho de criança!
(Eva Garcia – RN)


Reluz sopros de esperança
e, o sonho da vida em flor,
lembra um sonho de criança
na primavera do amor.

E, o sonho da vida em flor,
é força que nos conduz;
na primavera do amor,
é sempre de paz e luz.

É a força que nos conduz,
em busca da eterna paz,
é sempre de paz e luz
e o sonho, ninguém desfaz.

Em busca da eterna paz,
vivo a sonhar e a sofrer;
e o sonho, ninguém desfaz,
da janela, o amanhecer!
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PANTUN DA VOVÓ SERENA

Trova tema:
Curvada ao peso da idade,
a vovó, serena e bela,
distrai o tempo e a saudade
entre o novelo e a novela,,,
{A. A. de Assis – PR)


A vovó, serena e bela,
é Feliz como criança;
entre o novelo e a novela...
Enche a vida de esperança.

É feliz como criança;
hoje, não faz nada à toa,
enche a vida de esperança,
vovó que tudo perdoa.

Hoje, não faz nada à toa,
ante o tempo carrancudo,
vovó que tudo perdoa
faz graça de quase tudo.

Ante o tempo carrancudo,
da infância sente saudade...
faz graça de quase tudo,
curvada ao peso da idade!
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PANTUN DA POBRE MARIA

Trova tema;
Maria é um resto somente
no cais largada ao desdém
quem foi mar de tanta gente
hoje é porto de ninguém!
(Arlindo Tadeu Hagen – MG)


No cais largada ao desdém
pobre Maria do cais,
hoje é porto de ninguém
na solidão de seus ais.

Pobre Maria do cais,
entre a tristeza e a saudade,
na solidão de seus ais,
distante da flor da idade.

Entre a tristeza e a saudade,
Maria, pobre Maria,
distante da flor da idade,
abraça a vida vazia,

Maria, pobre Maria,
velha, esquecida, indigente,
abraça a vida vazia.
Maria é um resto somente.

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Stanislaw Ponte Preta (O Sabiá do Almirante)


O almirante gostava muito de ir ao cinema na sessão de oito às dez. Era um Almirante reformado e muito respeitado na redondeza por ser bravo que só bode no escuro. Naquela noite, quando se preparava para ir pro cinema, a empregada veio correndo lá de dentro, apavorada:

— Patrão, tem um homem no quintal. 
 
Era ladrão. Pobre ladrãozinho. O Almirante pegou o 45, que tinha guardado na mesinha de cabeceira e saiu bufando para o quintal. Lá estava o mulato magricela, encolhido contra o muro, muito mais apavorado que a doméstica acima referida. O Almirante encurralou-o e deu o comando com sua voz retumbante:

— Se mexer leva bala, seu safado.

O ladrão tratou de respirar mais menos, sempre na encolha. E o Almirante mandou brasa:

— Isto que está apontado para você é um 45. Seu eu atirar te faço um furo no peito, seu ordinário. Agora mexe aí para ver só se eu não te mando pro inferno.

O ladrão estava com uma das mãos para trás e o Almirante desconfiou:

– Não tente puxar sua arma, que sua cabeça vai pelos ares.

– Não é arma não — respondeu o ladrão com voz tímida: — É o sabiá.

– Ah… um ladrão de passarinho, hem? — vociferou o Almirante.

E, de fato, o Almirante tinha um sabiá que era o seu orgulho. Passarinho cantador estava ali. Elogiadíssimo pelos amigos e vizinhos. Era um gozo ouvir o bichinho quando dava seus recitais diários. Vendo que o outro era um covarde o Almirante resolveu humilhá-lo:

– Pois tu vais botar o sabiá na gaiola outra vez, vagabundo. Vai botar o sabiá lá, vai me pedir desculpas por tentar roubá-lo e depois vai me jurar por Deus que nunca mais passa pela porta da minha casa. Aliás, vai jurar que nunca mais passa por esta rua. Tá ouvindo?

O ladrão tava. Sempre de cabeça baixa e meio encolhido, recolocou o sabiá na gaiola. Jurou por Deus que nunca mais passava pela rua e até pelo bairro.

O Almirante enfiou-lhe o 45 nas costelas e obrigou-o a pedir desculpas a ele e à empregada. Depois ameaçou mais uma vez:

– Agora suma-se, mas lembre-se sempre que esta arma é 45. Eu explodo essa sua cabeça se o vir passando perto da minha casa outra vez. Cai fora.

O ladrão não esperou segunda ordem. Pulou o muro como um raio e sumiu. O Almirante, satisfeito consigo mesmo, guardou a arma e foi pro cinema.

Quando voltou, o sabiá tinha desaparecido.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 437

 


Arthur de Azevedo (Quem Ele Era?)


Foi num teatro que começaram as nossas relações. Estávamos na plateia, sentados ao pé um do outro.

Ele interessava-se muito pelo espetáculo, e de vez em quando me fazia ao ouvido algumas observações críticas, tratando-me pelo meu nome.

Eu estava um tanto contrariado: não gosto de conversar com pessoas que não conheço; mas o meu vizinho da plateia me parecia um homem tão simples, que no meu espírito não se formou nenhuma prevenção desairosa a seu respeito.

- Veja como o F. está representando mal! - disse-me ele, referindo-se a um ator que na realidade metia os pés pelas mãos. - É pena que o F. seja tão mau artista, sendo tão bom rapaz!

- Conhece-o?

- Há muitos anos... desde criança... somos amigos... um excelente guarda-livros, que poderia ganhar um ordenadão numa boa casa, mas prefere ser ator, para fazer esta figura que se está vendo!

Acabado o espetáculo, entrei num botequim para tomar chocolate, e lá estava o nosso homem, que me queria obrigar a sentar-me junto dele. Agradeci-lhe o obséquio e tomei lugar noutra mesa.

Daí a instantes entrou o ator, o tal que não queria ser guarda-livros, e sentou-se perto de mim.

Perguntei imediatamente:

- Você sabe me dizer quem é aquele sujeito?

- Não sei. Conheço-o de vista há longos anos... somos velhos camaradas... tratamo-nos por tu... mas ignoro como se chama e qual seja a sua ocupação.

- É singular!

- É, não há dúvida, mas a vida carioca tem destas coisas...

Depois disso, eu encontrava constantemente o desconhecido nas ruas nos teatros, nos bondes, nas festas, em toda parte, sempre sozinho e apressado, como se tivesse muito que fazer.

A princípio cumprimentava-me com certa reserva cerimoniosa, mas pouco a pouco os nossos repetidos encontros o familiarizaram comigo, e ele começou a usar de um diminutivo afetuoso:

- Adeus, Arturzinho... - ou do latim macarrônico: - Adeus, Arturibus!

Como nos encontrássemos num leilão (ele frequentava muito os leilões, mas não comprava nada), apresentou-me, graciosamente, ao respeitável conselheiro B, a quem perguntei depois:

- O conselheiro faz-me um obséquio?

- Estou às suas ordens.

- Diz-me quem é aquele cavalheiro que nos apresentou um ao outro?

- Oh! o senhor não o conhece?

- Não.

- Nem eu! - Há muitos anos lhe falo... trata-me com certa intimidade... mas não sei como se chama nem quem é.

- Deveras?

- Isso pouco me tem importado, porque vejo que ele se dá com o mundo inteiro.

E de todas as pessoas a quem me dirigia para saber, pelo menos, o nome do "meu amigo", ouvia a mesma indefectível resposta:

- Conheço-o há muitos anos, mas não sei quem é.
    * * *

O seu tipo nada tinha de característico nem de anormal. Ele vestia-se de um modo que nenhuma indicação poderia fornecer sobre a sua vida ou sobre os seus hábitos. A última vez que o vi, ele trazia, aparentemente, a mesma sobrecasaca, as mesmas calças brancas e o mesmo chapéu alto com que estava aquela noite no teatro.

Bem quisera eu perguntar-lhe: - Como te chamas? - e seria esse um meio infalível de saber o seu nome todo, mas isso é lá pergunta que um homem possa fazer a um camarada que há vinte anos o trata por tu...

Um dia lancei mão de um ardil:

- Tens aí um dos teus cartões de visita para a minha coleção? Estou reunindo num álbum os cartões de todos os meus amigos.

- Cartões de visita? Nunca os tive! Nunca me submeti a essa ridícula exigência da vida social. Sou um boêmio. - Adeus, Arturibus.
    * * *

E era, efetivamente, um boêmio.

Entretanto, dispunha de recursos, não pedia nada a ninguém e, de vez em quando, fazia longas que eu o supunha morto.

Quando já estava esquecido, reaparecia, sempre com as suas calças brancas, a sua sobrecasaca, o seu chapéu alto e sozinho sempre, dizendo que tinha feito um viajão.
    * * *

Uma vez, passando por certa rua desta cidade, vi grande ajuntamento de povo às portas de uma farmácia.

Curioso, como toda a gente, perguntei o que tinha havido.

Era um homem que, passando por ali, entrara incomodado e falecera subitamente de uma síncope cardíaca. Estavam à espera da carrocinha que devia levá-lo para o Necrotério.

Entrei na farmácia e reconheci que o morto era ele, o meu misterioso amigo.

O farmacêutico, homem já maduro, conhecia-o tanto como eu.

- Conhecemo-nos há longos anos - disse-me ele. - Tratava-me por tu, não me passava pela porta que não me dissesse: - Adeus, Joãozinho! - mas nunca lhe soube o nome, nem o emprego, nem a residência.

Entre os circunstantes, muitos o conheciam de vista; nenhum ligava o nome à pessoa.
* * *

O cadáver foi removido para o Necrotério.

- Até que afinal vou saber quem ele era! A identidade do morto há de ser reconhecida pela polícia.

Pois não foi. A polícia nem ao menos descobriu o domicílio do meu amigo, e, por mais estranho que isto pareça, a verdade é que figurou no obituário como "um desconhecido de 50 anos presumíveis".

– Quem ele era?

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 4


Leonor de Almeida Portugal
(Marquesa de Alorna)


(Lisboa, 1750 – 1839)

SONETO

Este ser que me deu a natureza,
Vai desorganizando a enfermidade;
Sinto apagar da vida a claridade
Doma as corpóreas forças a fraqueza

Vai crescendo em minha alma a fortaleza
Quanto cresce do mal a intensidade;
As portas áureas me abre a Eternidade,
E lá cessam cuidados e tristezas.

Vou amar quem somente é amável
Em oxigênias luzes abrasar-me
Nunca errar, nem temer gente implacável

Vou nos jardins celestes recrear-me
E no seio de um Deus justo, adorável,
A tudo o que me falta associar-me.
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Manuel Maria Barbosa Du Bocage

(Setúbal, 1765 - 1805, Lisboa)

SONETO

Oh Rei dos reis, oh Árbitro do mundo,
Cuja mão sacrossanta os maus fulmina,
E a cuja voz terrífica, e divina
Lúcifer treme no seu caos profundo!

Lava-me as nódoas do pecado imundo,
Que as almas cega, as almas contamina:
O rosto para mim piedoso inclina,
Do eterno império Teu, do Céu rotundo:

Estende o braço, a lágrimas propício,
Solta-me os ferros, em que choro e gemo
Na extremidade já do precipício:

De mim próprio me livra, oh Deus supremo!
Porque o meu coração propenso ao vício
É, Senhor, o contrário que mais temo.
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Antero de Quental

(Ponta Delgada, 1842 – 1891)

NA MÃO DE DEUS

Na mão de Deus, na sua mão direita
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva no colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
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António Duarte Gomes Leal

(Lisboa, 1848 - 1921)

O ÚLTIMO GOLPE DE LANÇA

Quando Ele enfim morrendo, Ele, o cordeiro,
Rola mansa no ar calado e imundo,
Pendeu, bem como um lírio moribundo,
Sobre a haste do trágico madeiro;

Quando lançado o espírito profundo
Ao reino belo, grande, verdadeiro,
Caiu enfim chagado, justiceiro,
Ainda, ainda perdoando ao mundo:

Um soldado romano vendo-o exposto,
E já morto na cruz, lívido o rosto,
Com um golpe de lança o trespassou.

Saiu daquela chaga sangue e água:
Sangue que ainda quis dar a tanta mágoa,
Água de pranto ainda que chorou!
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Florbela Espanca

(Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos)

ESCRAVA

Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu Senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gesto das minhas mãos tontas de amor!

Que te seja propício o astro e a flor,
Que a teus pés se incline a Terra e o Mar,
P’los séculos dos séculos sem par,
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu Senhor!

Eu, doce e humilde escrava, te saúdo,
E, de mãos postas, em sentida prece,
Canto teus olhos de ouro e de veludo.

Ah! esse verso imenso de ansiedade,
Esse verso de amor que te fizesse
Ser eterno por toda a Eternidade!...

Fonte:
Sammis Reachers (org.). Antologia de poesia cristã em língua portuguesa. e-book.

Ivan Lessa (Maresia)


Tinha bigodes e uma cadeira no bar. Sentava-se de banda para a mesa, um pouco inclinado, como a coluna de rodelas de chope. Por sobre o cinto, que mal se via, a barriga se anunciava feito mercadoria ‒ deliciosa e a preço excepcional ‒ por cima de um balcão.

Era um homem de bar que fora um menino de praia. Mas mesmo na concentração aflita dos que se acostumam à cerveja, guardara um certo jeito de quem foi muito ao mar ‒ parecia, sentado, alguém que quer sair. Se dele retirassem a camada de pele encontrariam logo depois uma outra feita de sal tostado, areia e plasma, sempre ao sol. Ia ao bar como um nadador que procura, de cada vez, aguentar um pouco mais a submersão. Onde quer que ele entrasse havia um clima de fundo de mar: pressões, uma lentidão espessa, um aposento de se cruzar e não se atravessar, com cautela, pois poderia surgir debaixo da mesa um mero e, em cima da cadeira, um polvo estivesse a descansar.

Bigodes, barriga, bar e uma casa também. Nela entrava sempre molhado da rua, as artérias batendo, com sede e querendo se deitar ‒ exatamente como se estivesse saindo do mar.

Mas não havia mais mar, havia bigodes, barriga e bar. Onde fora parar aquele mar todo? Aqueles momentos de pura paixão física? Onde os ruídos que os chinelos faziam arranhando a areia? Onde a camisa com que enxugar o rosto e guardar debaixo da barraca ao lado dos óculos respingados e do maço de cigarros com a chave e a nota de mil debaixo do celofane? Onde aquela tragada molhada? Pés ao sol, cabeça à sombra. As ondas boas, o mergulho bom, bom esse óleo, boa a toalha.
***

Bêbado, muito bêbado, ele dava telefonemas errados em horas impróprias. Ligava de madrugada para mulheres, agora casadas, que atendiam de mau humor e desligavam logo. Ele dizia palavrões baixinhos e passava o copo na testa. Como todo homem de mar, falava mal das piscinas ‒ indecências sem peixes.

Daí ouviu a voz: “Vai ao mar que o mar ensina”. E foi.

“Mar, depois de tanto tempo eis-me aqui de novo. Eu, o turrão, o zangado. Você, suas coisas todas. Mar, me dá. Mais uma vez só. Por favor”.

E, primeiro com os pés, experimentou o mar frio. Molhou os pulsos, com a água fez o sinal da cruz, deixou-se, desajeitado, ir caindo. Entrava no velho quarto sem tatear, conhecia aquela escuridão.

Fonte:
Diário Carioca. RJ, 22 de dezembro de 1965.

Estante de Livros (“Til”, de José de Alencar)


Til é um romance de José de Alencar publicado em 1830, o terceiro romance regionalista de Alencar tem sua ação numa fazenda situada no interior paulista, por volta de 1846. Segundo o projeto explicitado na nota de abertura do romance “Sonhos d’ouro”, o regionalismo permitiria descobrir, nas regiões "onde não se propaga com rapidez a luz da civilização", as tradições, os costumes e a linguagem de timbre brasileiro.

SINOPSE

Berta é uma menina que foi rejeitada quando nasceu, sendo criada por uma viúva chamada Nhá Tudinha, a qual tinha um filho chamado Miguel. Berta, moça "pequena, esbelta, ligeira, buliçosa", é uma garota de quem todos gostam, e por quem a maioria dos mancebos suspira de amor. Ela e Miguel (os quais são irmãos de criação, pois Miguel é filho de Inhá Tudinha) são muito amigos dos filhos de dona Ermelinda e Luís Galvão: Afonso e Linda (Linda tem o mesmo nome da mãe, Ermelinda, por isso é conhecida pela alcunha de Linda). Afonso e Miguel são apaixonados por Berta, e Linda está apaixonada por Miguel, porém Berta trata a todos como irmãos. Luís Galvão também cuida de um sobrinho, órfão de pai e mãe, chamado Brás, que tem problemas mentais. Luís tenta enviá-lo para a escola, porém ele não consegue aprender, o que leva seu professor, o Domingão, a bater-lhe muito com a palmatória. Berta se compadece do pobre coitado, que se convulsiona em prazer e alegria ao ver o sinal do til(~). Portanto, ela resolve ensinar-lhe o alfabeto e, assim, ela relaciona todas as letras do alfabeto às pessoas que Brás conhece, sendo que ela representa o til.

Jão Bugre, mais conhecido como Jão Fera, é um temido matador de aluguel da província de Santa Bárbara. Ele nutre um carinho especial por Berta, e sempre a observa quando ela vai visitar a negra Zana, que vive em uma casa caindo aos pedaços. Zana também tem problemas mentais, e tem um grande terror quando chega perto do quarto da casa, onde parece que ela revive uma terrível lembrança. Jão Fera foi contratado por um estranho, chamado Barroso, para matar o fazendeiro Luís Galvão. Quando Berta descobre isso, impede Jão Fera de concluir a sua atrocidade, salvando a vida de Luís Galvão. Jão Fera, antigamente conhecido como Jão Bugre, por causa da cor da sua pele, foi encontrado na fazenda pelo pai de Luís Galvão, quando tinha por volta de um ano de idade. Não se sabe o que aconteceu com seus pais, mas especula-se que, após uma grande enchente que ocorreu na região, seus pais tenham sucumbido à força das águas e só ele tenha sobrevivido. Jão Bugre tinha grande respeito por Luís Galvão, livrando-o de várias brigas que ele arranjava.

Ambos se apaixonaram por Besita, a moça mais bonita de Santa Bárbara. Quando Jão descobriu que Luís estava apaixonado por Besita, resignou-se com seu sentimento, por amor ao seu irmão de criação. Besita, no entanto, não correspondia ao amor de Luís Galvão, devido à sua má fama de mulherengo e aproveitador. Ela também sabia que Jão a amava, porém ele a pediu que aceitasse Luís Galvão. O pai dela não aceitou o pedido de casamento de Luís Galvão, e enganou a filha, dizendo que ele não queria nenhum compromisso. Por fim, Besita casou-se com Ribeiro, filho de um rico fazendeiro da região. No dia do casamento, Ribeiro foi resolver uns negócios em Itu, a respeito de uma herança que recebera. Ribeiro perseguiu o administrador de seus bens até o Paraná, a fim de receber sua herança, e depois disso, caiu na "gandaia". Nesse meio tempo, em uma noite, Luís Galvão enganou a negra Zana, mucama de Besita, e se passou por Ribeiro. Luís passou a noite com Besita, que ao amanhecer, viu o erro que cometera. Besita deu à luz uma menina. Somente Zana e Jão Bugre sabiam do seu segredo.

Jão Bugre só não matou Luís Galvão a pedido de Besita, que intercedeu pela vida dele. Depois de dois anos, enquanto Jão Bugre estava fora da fazenda, Ribeiro volta para casa e inflama-se de raiva ao ver sua esposa com a criança, que ele sabe não ser sua filha. Ribeiro começa a esganá-la, quando chega Jão Bugre para tentar salvá-la. No seu último suspiro, Besita pede para que Jão proteja sua filha, e Zana chega ao quarto e vê sua ama morrer. Ribeiro foge para Portugal, e Jão tenta cuidar da menina. Inhá Tudinha chega na fazenda e leva a menina para criá-la. Jão fica transtornado com a morte do seu objeto de amor, e torna-se um jagunço, ganhando assim a alcunha de Jão Fera.

Passados quinze anos, Ribeiro volta de Portugal, agora conhecido como Barroso, e deseja terminar a sua vingança. Vai para Santa Bárbara e contrata Jão Fera para matar Luís Galvão. Nenhum dos dois se reconhece, mas Luís Galvão é salvo por intermédio de Berta. Vendo seu plano inicial fracassar, Ribeiro planeja uma vingança mais engendrada: matar Berta e Luís Galvão e tomar o lugar dele como marido de dona Ermelinda. Para isso, maquina junto com dois escravos de Luís Galvão, Faustino e Monjolo, para, na noite de São João, trancarem os negros na senzala e atearem fogo no canavial. Assim que Luís Galvão saísse para apagar o incêndio, eles o jogariam ao fogo; Ribeiro apareceria para salvar a plantação e tentaria conquistar o amor de dona Ermelinda.

Jão Fera descobriu a trama e, na noite de São João, quando Luís Galvão tentava apagar o incêndio, matou Monjolo, Faustino e outro jagunço contratado por Ribeiro, o Pinta, salvando a vida de Luís Galvão. Após esse episódio, perseguiu o Ribeiro, que só sobreviveu por intermédio de Miguel e Berta. Ribeiro fugiu, mas, alguns dias depois, voltou para matar Berta. Jão Fera, que há pouco havia escapado da Justiça, pois havia se entregado às autoridades, salvou Berta e matou o Ribeiro. Berta, ainda sem saber de sua história, ficou horrorizada e Jão Fera fugiu, se entregando novamente às autoridades.

Dias depois, Luís Galvão e sua família vão para a festa do Congo na vila de Piracicaba, para onde Inhá Tudinha, Miguel e Berta também vão. Afonso escapa de seus pais para ir falar com Berta, porém aparece um homem estranho que diz: "Teu pai matou a mãe dela; tu queres matar a filha, e duas vezes!". Após isso, o estranho dirige-se a Luís Galvão e diz: "Teu sangue mau quer teu sangue bom! Toma cautela...". Então, ouve-se que a cadeia fora arrombada. O estranho era Jão Fera, que havia escapado da cadeia.

No caminho de volta, Luís Galvão conta acerca do seu passado à sua esposa, e depois Berta descobre o seu passado. Berta não aceita como pai Luís Galvão, por conta do que ele fez no passado, e diz que o único pai que ela conheceu fora Jão Fera, que sempre zelou por sua segurança. A única coisa que ela pede é que ele dê permissão para que Miguel se case com Linda, contra a vontade de dona Ermelinda. Miguel é enviado para estudar em São Paulo e, ao final de dois anos, voltar para se casar com Linda. Ele ainda tenta convencer Berta a ir com ele para serem felizes juntos, mas ela, por amor à amiga, não o faz. O livro acaba com Berta e Inhá Tudinha acenando para Miguel e Jão Bugre roçando a terra.

PERSONAGENS

Berta: personagem principal, descrita como "pequena, esbelta, ligeira, buliça, altruísta";

Afonso: irmão de Linda e apaixonado por Berta;

Besita: mãe de Berta, assassinada pelo seu marido, Ribeiro;

Brás: deficiente mental, sobrinho de Luís Galvão;

Chico Tinguá: dono da hospedagem da estrada de Santa Bárbara, amigo de Jão Fera.

Domingão: professor de "primeiras letras", um "mestre latagão de verbo alto e punho rijo";

Dona Ermelinda: esposa de Luís Galvão, não conhece o passado do marido;

Faustino: pajem de Luís Galvão, participante da trama para matar seu amo. Foi morto por Jão Fera;

Gonçalo Suçuarana: também conhecido como Pinta, jagunço, tinha inveja da fama ameaçadora de Jão Fera. Foi morto por Jão Fera;

Nhá Tudinha: viúva, mãe de Miguel e mãe adotiva de Berta;

Jão Fera: também conhecido como Jão Bugre, jagunço, apaixonado por Besita (mãe de Berta) na juventude, zela por Berta à pedido de sua amada;

Linda: filha de Luís Galvão e amiga de Berta, apaixonada por Miguel;

Luís Galvão: pai de Linda e Afonso, marido de dona Ermelinda;

Miguel: filho de Inhá Tudinha, inicialmente apaixonado por Berta, passa a gostar de Linda à pedido de sua amada;

Monjolo: escravo de Luís Galvão, participante da trama para matar seu amo. Foi morto por Jão Fera;

Ribeiro: também conhecido como Barroso, marido de Besita, matou sua esposa por ciúmes;

Zana: mucama de Besita, enlouqueceu após presenciar a morte da ama;

Fonte:
Wikipedia

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 436

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 9 e 10

MILAGRE


— Não se faça de besta — disse o sacristão da igreja do Divino Salvador à insólita figura que se postara à sua frente, na noite de quinta-feira, quando ele varria a capela-mor. — Para mim você não é mula sem cabeça, pois tem cabeça e é simplesmente mula fugida do pasto do coronel. Saia imediatamente daqui.

— Coloquei cabeça para falar com ele, pois mula sem cabeça não tem língua. Seja compreensivo e peça ao senhor vigário para me desencantar, ouvindo-me em confissão.

— O senhor vigário não pode ouvir em confissão nem mula sem cabeça nem simples mula. Vá dando o fora.

O sacristão ia pegar da vassoura para brandi-la contra a visita inconveniente, quando uma luz se acendeu no candelabro principal do altar-mor, e a essa luz o corpo do animal se foi convertendo gradativamente no de uma bela mulher arrependida.

O sacristão perdeu a fala. Que é mesmo que ele podia falar, depois disto?
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NASCEU UMA NINFA

Ao nascer a menina, os pais debateram longamente o nome que iriam dar-lhe. Como não chegassem a entendimento, decidiram abrir ao acaso o dicionário, e a palavra mais bonita que fosse encontrada na página seria a eleita.

Por isso ela se chamou Oréade. Os pais explicaram às pessoas curiosas que se tratava de ninfa, habitante dos bosques, talvez de Viena, e das montanhas, possivelmente do Sul de Minas. E todos acharam lindo este nome.

Oréade cresceu igualmente linda, mas sua beleza tinha alguma coisa de vegetal, que começava nos olhos verdes, de um verde-musgo, e continuava na doce penugem dos braços, característica de certas folhas amáveis ao tato. Oréade tinha jeito de árvore e de água; seu sorriso era úmido, lembrava a transparência das fontes.

A moça não tinha mor encanto por festas, embora a alegria se estampasse em suas feições. Preferia caminhar a esmo pelas estradas em torno da cidade, subir aos morros, e lá em cima se quedava escutando a música dos passarinhos e outras vozes naturais.

Uma tarde ela não voltou do passeio. Por mais que a procurassem noite afora, e nos dias seguintes, não foi encontrada. Apareceu meses depois de manhãzinha, para uma visita que disse ser breve, e apresentou um fauno a seus pais:

— Meu marido.

Eles compreenderam imediatamente que o nome da filha não fora escolhido por força do dicionário, mas de um destino impreterível.

Abençoaram a união, e o casal voltou para a serra do Encantamento.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XIV


A inveja pode matar
muitas almas, lentamente.
Nunca tente alimentar
esta maldade latente.
- - - - - -
Antes de exigir respeito
procure-o manifestar,
se esse for o seu direito,
seu dever é respeitar.
- - - - - -
Antes dos primeiros passos
o bebê sempre engatinha
e às vezes para nos braços,
do 'paizão' ou da 'mãezinha'.
- - - - - -
Ao buscares no passado,
soluções para o presente,
segue o rumo já traçado
com primor, anteriormente.
- - - - - -
Ao mostrar-nos os caminhos
que haveremos de seguir,
o mundo aponta os espinhos
que ousam os passos ferir.
- - - - - -
À sombra do firmamento
que engalana nosso ser,
perpassam o sol e o vento
fazendo a vida crescer.
- - - - - -
As vertentes do sucesso
formam ricos mananciais,
que vão regar o progresso
nas estâncias sociais.
- - - - - -
Cada batalha vencida
mostra nova sensação,
de que pra tudo na vida
existe uma solução.
- - - - - -
Com grande rigor na luta,
determinação de andar,
não terá barreira astuta
que impeça de caminhar.
- - - - - -
Dentre as múltiplas opções
que fazes todos os dias,
dumas tens satisfações,
de outras, dores e fobias.
- - - - - -
De posse da liberdade
o homem segue seu caminho,
se andar à luz da verdade
vencerá qualquer espinho.
- - - - - -
Muitas formas vão rolando
para expor o pensamento,
a mais fácil é falando
com total discernimento.
- - - - - -
Na corrida contra a morte
todos sonham co'a vitória,
não seja por mera sorte
entrar nas portas da história.
- - - - - -
Na espessa mata do mundo
onde o sol nunca aparece,
pode estar lá, bem no fundo,
a flor que de luz carece.
- - - - - -
Nos momentos derradeiros
em que a vida se despede,
sempre, gestos verdadeiros,
nosso ser, em prece pede.
- - - - - -
O Criador do universo
do tempo tem o comando,
o homem no mundo, disperso,
à vida segue remando.
- - - - - -
O rigor das intempéries
faz brotar a destruição,
ceifando vidas em séries
numa triste rendição.
- - - - - -
Os nossos investimentos
que normalmente fazemos;
são bem-estar e alimentos
e sonhos que em nós trazemos.
- - - - - -
Pela morte, todo o ser,
se sente fragilizado,
chora a dor de não poder
se tornar eternizado.
- - - - - -
Precisamos entender
que devemos começar
e nunca das mãos perder
a vontade de avançar.
- - - - - -
Riquezas não satisfazem
os corações machucados,
pelas feridas que trazem
nos velhos sonhos truncados.
- - - - - -
Sentir insatisfação
é sintoma da mudança,
cria nova relação
do real e da esperança.
- - - - - -
Sob a luz dos nossos atos
ou da conduta legal,
prefaciamos muitos fatos
dando à conclusão o aval.
- - - - - -
Todo mal se for tratado
dentro do tempo devido,
marcas não terá deixado,
nem sinais de ter havido.
- - - - - -
Todo o pássaro que voa
liberdade quer mostrar,
no cantar também ecoa
algo que busca encontrar.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 4: Ao Pé da Letra


ZAROLHITO, O DONO DA OFICINA,  foi chamado à depor na delegacia de polícia do bairro onde tem, há muitos anos, o seu comércio. A confusão toda se deu com um promotor público e um funcionário novato, que fora contratado recentemente. Logo que se identificou na recepção, foi levado pelo funcionário à presença do delegado.

Escrivão de Polícia:
- Seu nome, por favor?

Zarolhito:
- Zarolhito Chimblego de Oliveira.

Escrivão de Polícia:
- Chimblego com ‘bl’ ou com ‘br?’.  

Zarolhito:
- Acho que com ‘bl.

Escrivão de Polícia:
- O senhor  não sabe se é com ‘bl’ ou com ‘br?’.

Zarolhito:
- Não seu policial. Deve ser com os dois, senhor.

Escrivão de Polícia:
- Está com a sua identidade?

Zarolhito:
- Estou.

Escrivão de Polícia:
- Me deixa ver, por favor.

Zarolhito entregou o documento ao escrivão. Este copiou o nome do pai, da mãe, o dia e mês de nascimento e, por fim, perguntou o endereço.

Zarolhito:
Rua das Cabras Desmamadas, nº 69, bairro Olival da Amanda.

Terminada as perguntas de praxe, o escrivão sinalizou ao delegado, sentado ao lado, que a testemunha estava identificada e pronta para responder as perguntas.

Delegado:
- Seu Zarocito, eu sou o delegado Pinóquio.

Zarolhito:
- Desculpe, seu delegado. Não é Zarocito, é Zarolhito.

Delegado:
- Que seja. Meu escrivão escreveu errado. Mas vamos lá: o que aconteceu na sua oficina, sexta-feira passada com seu funcionário, o Luiz dos Parafusos?

Zarolhito:
- Aconteceu o seguinte, seu delegado Pinópilo...

Delegado Pinóquio:
-... Pinóquio, seu... Como é mesmo o nome? Zarolhito. Continue...

Zarolhito:
-... O doutor, não sei lá das quantas, que fiquei sabendo depois, era da justiça,  foi jogado à força, contra o capô do seu próprio carro, pelo meu funcionário, o Luiz dos Parafusos. Eu vi com estes olhos que a terra haverá de comer.

Delegado Pinóquio:
- E o senhor saberia esclarecer por que esse elemento agiu dessa forma?

Zarolhito:
- Acho que por burrice minha, doutor, eu não me expressei direito e disse ao Luiz - coitado mais burro que eu - eu falei com todas as letras que o novo cliente era pro motor.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (A Tragédia da Rua das Flores, de Eça de Queirós)


texto de Claudia Sousa Dias*

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O romance póstumo de Eça de Queirós – mantido “na gaveta” durante décadas quer pela delicadeza do tema tratado – um incesto entre mãe e filho, fato que chocaria de sobremaneira a sociedade portuguesa -, quer pela crueza das situações e realismo com que dotou algumas das principais personagens fazem deste romance um dos mais vanguardistas da época. Trata-se, nitidamente de uma versão mais realista de Os Maias. Esse realismo encontra-se, simultaneamente, expresso tanto na crueza da linguagem, como no tom amargo e cético contido nas entrelinhas do discurso. A semelhança entre as personagens principais é mais do que evidente, o que nos dá a sensação de que Os Maias são a versão adocicada e idealizada deste romance, mais cru e muito ao estilo balzaquiano.

Algumas personagens mantém-se, como é o caso do Dâmaso que, para além do nome, conserva a figura, a boçalidade nos modos e no vocabulário, a personalidade mesquinha e o desejo de mostrar o “chique” que não tem. Mais velho, independente e abastado que em Os Maias, a constância nas atitudes é tal, que tudo indica tratar-se de uma personagem inspirada num indivíduo ou num grupo de pessoas com quem o autor convivia diariamente pela abundância de pormenores com que é caracterizado.

Outras personagens sofrem ligeiras alterações quanto à sua situação socio-económica ou de temperamento mas mantêm, essencialmente, o seu papel na trama.

Genoveva é muito semelhante, mas ao mesmo tempo, muito mais credível do que Maria Eduarda Maia, a típica heroína romântica. A protagonista de A Tragédia da Rua das Flores é, pelo contrário, uma mercenária que não hesita em prostituir-se com o objetivo único e simples de “cardar” um pedante Dâmaso. Ao contrário da imagem de estátua grega de Maria Eduarda, a beleza loura de Genoveva tem algo de ave de rapina, acentuada pelo perfil aquilino que o autor lhe confere. Trata-se de uma mulher dura, profundamente egoísta, colérica e cínica, cujas atitudes não granjeiam a simpatia do público, sobretudo na época em que foi escrito o romance (finais do sec. XIX). A manifestação do lado mais obscuro do seu caráter só é atenuada quando se apaixona por Vítor uma vez que, para conquistá-lo, tem de adocicar a sua forma de ser.

Vítor é a versão plebeia de Carlos da Maia. Menos sofisticado, mais romântico e sentimental está mais limitado devido à sua situação financeira pouco desafogada.

Timóteo é o tio abastado de Vítor, um Afonso da Maia mais brusco, menos cavalheiresco, menos britânico, mas igualmente inflexível e puritano quanto às características daquela que julga ser a esposa ideal para o seu único herdeiro. Um autêntico Armand de A Dama das Camélias.

O pintor Camilo Gorjão tem o discurso escabroso de João da Ega, com o mesmo diletantismo ideológico que tanto num personagem como no outro os impedem de escolher um estilo ou um tema e desenvolvê-lo. Ambos manifestam, também, o desânimo perante o fato de não terem um público à altura das suas criações excepcionais. Contudo, Camilo Gorjão, é desprovido da jovialidade de Ega, acomoda-se durante um largo período de tempo à sua situação, apesar de insatisfeito. Camilo é, sobretudo, um esteta que ainda não encontrou a sua identidade como pintor. Sem conseguir decidir-se entre a arte apolínea (sóbria, sem excessos, típica dos clássicos gregos, preocupada com as proporções e a harmonia estética) e a arte dionisíaca, a sua verdadeira tendência – orientada para o excesso nas cores nas forma e nas atitudes, que é a atitude que orienta a sua vida privada.

Joana, a mulher do pintor, é de uma beleza escultural e rosto romano, por quem Vítor sente como que uma atração irresistível e animal. Joana é uma personagem cuja alma se encontra nos antípodas de Genoveva. É uma jovem ignorante mas sem o menor vestígio de calculismo e de uma total transparência na fisionomia por onde perpassam todas as emoções. É também diferente de Aninhas, a amante dependente do dinheiro do protetor e da paixão por Vítor. Ambas têm em comum a falta de sofisticação e de requinte, mas esta última é destituída do encanto da simplicidade bravia e inocência de Joana.

Outra personagem de grande interesse é, apesar de periférica, D. João da Maia, proveniente de uma das famílias mais antigas e aristocráticas de Portugal. Ateu e republicano, “de maneiras delicadas, hábitos finos e predileções literárias” é um indivíduo exaltado pela arte, sibarita, mas generoso apesar de empobrecido. Respeitado e amado, ninguém menciona os seus defeitos em voz alta. Com o ar de “príncipe bom rapaz” faz lembrar um Carlos da Maia empobrecido.

Joana Coutinho, uma das frequentadoras das soirées de Genoveva, torna-se amiga íntima de Vítor, depois da morte desta – uma relação intelectual. Trata-se de uma jovem etérea de aparência perfeita, de espírito independente e idealista, um tipo não muito apreciado pelo autor devido à sua aparente frigidez.

Apesar de se referir ao romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, A Tragédia da Rua das Flores é mais uma transposição da tragédia de Sófocles, Édipo Rei. O tema do incesto entre mãe e filho, especialmente nos moldes em que foi concebido – Genoveva é uma cocotte venal e não a digna rainha Jocasta – é especialmente provocador para a época, principalmente pela crueza da linguagem e pelo fato de Eça não tentar pintar a personalidade de Genoveva com as cores românticas: enquanto que Maria Eduarda é caracterizada como a mulher ideal, Genoveva nos é mostrada como a típica mulher fatal, produto típico da sociedade mundana da belle époque.

As principais diferenças em relação ao autor clássico, é que a atitude de Vítor não interfere no destino do pai e, além disso, o jovem não chega a ter consciência da transgressão, logo não é afetado pela culpa ou remorso.

ATITUDES, INDÍCIOS E PRESSÁGIOS

Na cena inicial, observamos uma mulher loira e requintada que chama a atenção do público masculino num camarote do Teatro nacional de S. Carlos, contrastando vivamente com o visual das portuguesas típicas da elite lisboeta.

Em seguida, especula-se sobre a sua identidade e origens. Apesar do seu requinte e sofisticação, há algo na sua toilette e comportamento que trai o seu aparente verniz aristocrático: um bracelete em forma de serpente enroscada no braço, lembrando Sarah Bernhardt, com dois coruscantes olhos de rubi a denunciarem o verdadeiro caráter da dona. Por outro lado, a excessiva familiaridade com um homem vulgar, bajulador e fisicamente pouco interessante, eliminam de uma vez por todas a hipótese de tratar-se de uma senhora, ou de uma princesa como inicialmente se chegou a suspeitar. O comportamento é positivamente inadequado. Os gestos são os de uma mulher mundana. Trata-se de alguém cujo encanto provém unicamente do luxo e da sofisticação patentes, respectivamente, no vestuário e nos gestos de sedução estudados até ao mais ínfimo pormenor. Do contato com artistas e intelectuais, limita-se a repetir aquilo que ouviu dizer aos homens considerados então de gênio superior.

A mulher ideal para fascinar um jovem literato romântico, devoto de Byron e Tennyson, com tendência a uma mórbida melancolia.

Vítor avista-a e, a partir de então, os dados estão lançados. A trajetória da fatalidade é impelida como que por uma força física, semelhante à de uma seta disparada por Eros.

Entretanto, há vários tipos de presságios e indícios ao logo da obra que permitem ao leitor mais atento vislumbrar o desvendar da trama. Por exemplo: logo no primeiro capítulo, no teatro nacional de S. Carlos, uma das principais personagens da peça, Sir Galahad, garante estar ali para punir os amores culpados. E, por várias vezes, é também referida alguma vaga semelhança relativamente às feições de Vítor e Genoveva.

Por outro lado, em vários momentos da narrativa, afigura-se a possibilidade de, através de um informador privilegiado, desviar o curso da tragédia, o que devido a uma série de contratempos, acaba por ser frustrado.

A verdade só vem de cima, após o confronto de Genoveva com o Tio Timóteo, altura em que se dá o reconhecimento da fatalidade numa cena que em tudo lembra o segundo ato de La Traviata de Verdi – até pela presença de violetas e camélias nos vasos da sala onde se dá o encontro.

Também na última ida a S. Carlos, Genoveva enverga uma toilette em tons de vermelho e preto, as cores do sangue e da morte. Outro presságio de morte é dado a entender quando Genoveva afasta Vítor da janela em obras à qual foi retirada a varanda, alertando-o para o perigo das vertigens, seguido da afirmação sinistra do carpinteiro “Era um saltozinho bonito…”. E o último beijo trocado entre os dois amantes antes da chegada do tio traduz o sabor da despedida e da saudade antecipada…o toque de romantismo é aplicado a tudo o que se relaciona com a conduta de Vítor.

A Tragédia da Rua das Flores mostra-nos um Eça especialmente corrosivo, num romance que não foi escrito para agradar às audiências. É por isso que as cantoras do S. Carlos são nos dadas a ouvir a “ganir” enquanto o tenor Sarrotini “muge com furor garibaldino”. Genoveva é constantemente tratada de “bêbada” por várias personagens. A palavra “chulo”, tirada diretamente do vernáculo, é várias vezes mencionada em vez do vocábulo de “proxeneta” - mais utilizado no discurso literário clássico e muito menos expressivo. Tal como quando se refere às “atoucinhadas ancas” do Palma.

Uma obra que se torna irresistível pelo fiel retrato de uma época falsamente puritana onde, salvo raríssimas exceções, a mediocridade é elevada à categoria de excelência.

O Eça menos popular. Mas nem, por isso menos acutilante. Um tiro certeiro nos tabus da sociedade lisboeta nas últimas décadas do século XIX.

Fonte:
*Artigo de Cláudia  Sousa Dias, no blog Há Sempre um Livro

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 435

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 11


Vivemos num tempo de tanta informação e conhecimento para avançar na vida e esquecemos o essencial. Vivemos os atropelos, busca incessante, essa corrida para chegar não sei aonde. E então esquecemos que esquecemos de nós mesmos, que olvidamos nosso principal, nosso EU verdadeiro. Onde está a frase basilar atribuída a Sócrates, que se lê no pórtico do templo do deus Apolo, na Grécia: " Conhece-te a ti mesmo ".

A menos que conheçamos nosso nós - - a seara interior - não conseguiremos produzir os alimentos necessários para abastecer o espírito - nossos pensares - e o corpo - a catedral da existência. Talvez estejamos deslocados, distanciados de nós mesmos. Talvez precisemos de adubos e sementes para fertilizar e produzir algo importante para uma vida válida, vívida, vigorosa. Bem escrevera o lorde inglês: " We must know our self, yes !".

Basta buscarmos !

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

I Concurso de Trovas Troféu Gislaine Canales



Foram recebidas um total de 150 trovas, do Brasil, Japão e Portugal.
Breve os certificados serão enviados aos premiados.
Em virtude de haverem várias trovas homenageando Gislaine Canales, foi criada a menção homenagem, premiando assim mais 5 trovadores/as.

TROFÉU GISLAINE CANALES

TEMA: PESCADOR

CATEGORIA NACIONAL – INTERNACIONAL


VETERANOS

MENÇÃO HOMENAGEM À GISLAINE CANALES


1.
Foi pescadora e poeta,
rimando sonhos ao léu...
Gislaine hoje estende a meta,
pescando estrelas no céu...
Carolina Ramos
Santos/SP

2.

Gislaine levou à risca
a missão de trovadora
e, de quebra, botou isca
pois, também, foi pescadora!
Nemésio Prata Crisóstomo
Fortaleza/CE

3.

Pescadora destemida,
Gislaine, sempre a sonhar,
fisgava versos na vida,
pescava sonhos no mar!
Professor Garcia
Caicó/RN

4.

Era exímia pescadora,
Gislaine e seus dons diversos;
também poeta trovadora
no céu declama seus versos.
Jessé Fernandes do Nascimento
Angra dos Reis/RJ

5.

A pescadora pescava
em redes de puro amar
os versos que publicava
na Revista Trovamar.
Rosicler Antoniácomi Alves Gomes
Ponta Grossa/PR

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TEMA: PESCADOR

VENCEDORES


1.
Enfrentando o mar, avança
o pescador, na missão
de transformar a esperança
em um pedaço de pão.
Edweine Loureiro da Silva
Saitama/ Província de Saitama/Japão

2.

Jamais, ao faminto deixe,
de lhe dar o pão do amor,
mais que oferecer-lhe um peixe
transforme-o num pescador.
Luiz Damo
Caxias do Sul/RS

3.

A pérola negra rara
é sonho do pescador ...
Em casa tem a mais cara:
no berço: o fruto do AMOR!
Dionezine de Fátima Navarro
Ponta Grossa/PR

4.

Sai cedinho na jangada,
lança a rede o pescador...
De noitinha o espera a amada
noutra rede – para o amor!
A. A. de Assis
Maringá/PR

5.

O pescador, peito aberto,
com audácia enfrenta o mar...
Navega com rumo certo
na incerteza de voltar…
Lucília Alzira Trindade Decarli
Bandeirantes/PR

MENÇÃO HONROSA

1.

Quando o peixe vai à mesa,
com tempero e muito amor,        
vai também a chama acesa
do labor do pescador.
Ari Santos de Campos
Balneário Camboriú/SC

2.

Por estes mares bravios
pesco sonhos de bonança,
vou cumprindo desafios,
sou pescador de esperança!
Artemiza Maria Correia da Silva
Ocara/CE

3.

O poeta é pescador
no oceano de emoções...
Pesca a dor... também do amor...
alentando os corações.
Célia Terezinha Neves Vieira
Irati/PR

4.

Noite fria, sem luar...
Enfrentando tempestades,
sou pescador a singrar
o mar de eternas saudades.
Maurício Cavalheiro
Pindamonhangaba/SP

5.

Nos sonhos do dia a dia
- solitário pescador -,
lanço a rede da poesia
e pesco versos de amor...
Gilvan Carneiro da Silva
São Gonçalo/RJ


MENÇÃO ESPECIAL

1.
O maior dos pescadores,
"fisgava almas"- Jesus;
veio salvar pecadores
e o mundo encheu-se de luz!
Myrthes Mazza Masiero
São José dos Campos/SP

2.

Pescando as almas de amor
num mar revolto de ateus,
a rede de um Pescador
foi malha fina de Deus...
Cezar Augusto Defilippo
Astolfo Dutra/MG

3.

Com meu arpão bem repleto
de ternura hoje propago,
que sou pescador de afeto
pelo oceano do afago!
Ailto Rodrigues
Nova Friburgo/RJ

4.

Solitário pescador,
em pesca desoladora,
fui pescado pelo amor
da mais linda pescadora.
César Augusto Ribas Sovinski
Curitiba/PR

5.

Sou um pescador de sonhos
em maré alta, ora mansa,
driblando os dias tristonhos
num verde mar de esperança!
Maria Nelsi Sales Dias
Santos/SP


NOVOS TROVADORES

1.
Peixinho fisgado, triste,  
pescador faz um afago
e à tristeza não resiste:
devolve o pequeno ao lago.
Regina Maria Zanini Damázio
Bragança Paulista/SP

2.

Pescador, com grande calma,
carrega os sonhos no mar.
E na profundeza da alma,
o sentimento de amar.
Agnes Izumi Nagashima
Londrina/PR

3.
Singrando as águas do rio,
volta triste o pescador.
Dentro do barco vazio
só cansaço, fome e dor.
Helder Martinez Dal Col
Campo Mourão/PR

4.

Bela tela, em aquarela,
traz sonhos de pescador:
muitos peixes, barco a vela,
mar e céu, sublime amor.
Alice Gervason Marco Fernandes   
Juiz de Fora/MG

5.

Se eu fosse um bom pescador
jogava as redes ao mar,
meu peixe seria o amor,
imerso num lindo olhar!
Silvania Maria Costa
Campo Mourão/PR


COMISSÃO JULGADORA:
Vanda Fagundes Queiroz (Curitiba/PR)
Therezinha Dieguez Brisolla (São Paulo/SP)
Flávio Roberto Stefani (Porto Alegre/RS)

Fonte:
José Feldman

Leon Eliachar (As Flores)

Há dois meses que Iracema recebia flores, sem cartão. Colocava tudo nas jarras, vasos, copos; mesas, janelas, banheiro e até na cozinha. Quando o marido lhe perguntava por que tantas flores, todos os dias, ela sorria:

— Deixe de brincadeira, Epitácio.

Ele não percebia bem o que ela queria dizer, até que um dia:

— Epitácio, acho bom você parar de comprar tanta flor, já não tenho mais onde colocar.

Foi aí que ele compreendeu tudo:

— O quê? Você quer insinuar que não sabia que não sou eu quem manda essas flores?

Foi o diabo, ela não sabia explicar quem mandava, ele não conseguia convencê-la de que não era ele.

— Um de nós dois está mentindo! — gritou, furioso.

— Então é você! — rebateu ela.

No dia seguinte, de manhã, ele decidiu não sair, pra desvendar o mistério. Assim que as flores chegassem, a pessoa que as trouxesse seria interpelada. Mas não veio ninguém:

— Já são duas horas da tarde e as flores não chegaram, Epitácio. É muita coincidência. Vai me dizer que não era você.

Ele não tinha por onde escapar. Insinuou muito de leve que a mulher devia ter conhecido alguém na sua ausência. Ela chegou a chorar e se trancou no quarto. A discussão entrou pela noite até o dia seguinte. Epitácio saiu cedo, sem mesmo tomar café. Bateu a porta com força e levou o mistério para o trabalho.

Meia hora depois, a mulher saiu e foi ao florista.

— Como vai, Dona Iracema? A senhora ontem não veio, heim? Aconteceu alguma coisa?

À noite, Epitácio viu as flores e não disse uma palavra, mas a mulher não parou:

— Seu cínico. Bastou você sair para as flores aparecerem e ainda tem coragem de dizer que não foi você.

Nessa noite ele teve insônia.

Fonte:
Leon Eliachar. O homem ao zero. Publicado em 1967.