domingo, 15 de setembro de 2024

Lucília Alzira Trindade Decarli (Trovas em preto e branco)


1
Antes que a vida se acabe,
não seja vão o viver
e aquilo que não se sabe,
que se comece a aprender.
2
Da sua casa ao cartório
apenas um quarteirão...
Dada a preguiça, o casório
se fez por procuração.
3
Desde os tempos mais pagãos,
mulher, revelas quem és...
O mundo sempre nas mãos
e sempre um homem... aos pés!
4
Esta paixão, minha e tua,
transcende em cada arrebol…
Se é noite, ao clarão da lua,
e se é dia, à luz do sol!
5
Levo pela vida afora
este dilema sem fim:
o "sim" que eu neguei outrora
fez mal ou bem para mim?!…
6
Não conhece despedidas,
nem discórdias, nosso teto:
- é que ligam nossas vidas
os laços fortes do afeto!
7
Não sei se todos ponderam
a troca que o livro traz:
- grandes homens o fizeram,
grandes homens ele faz!
8
Nau partindo – céu aberto,–
nas verdes águas do mar;
navega com rumo certo
na incerteza de chegar!…
9
O destino, em nossas vidas
trouxe o reencontro, depois
das distâncias percorridas
nos caminhos de nós dois.
10
Para enxergar a cobiça
e amparar prejudicados,
não deveria, a Justiça,
manter seus olhos vendados!
11
Quando fingir é preciso,
seriamente eu me concentro:
– Levo na face um sorriso,
enquanto eu choro por dentro.
12
Quem julga o seu semelhante
carrega pedras na mão
e o que odeia a todo instante,
as guarda em seu coração!

As Trovas de Lucília em Preto & Branco
por José Feldman

SIGNIFICADO DAS TROVAS; TEMÁTICA E RELAÇÃO COM LITERATOS ARCAICOS E CONTEMPORÂNEOS

1. Reflexão sobre a vida e a importância do aprendizado.
“Antes que a vida se acabe”
A urgência de viver plenamente e a necessidade de buscar conhecimento antes que seja tarde. A ideia de que o aprendizado é uma parte essencial da existência é central.

As poesias de Cecília Meireles frequentemente exploram a efemeridade da vida e a busca pelo conhecimento. Adélia Prado, aborda a importância da experiência de vida e do aprendizado em suas poesias.

2. Preguiça e compromisso. 
“Da sua casa ao cartório”
A ironia do casamento por procuração sugere uma falta de envolvimento emocional. Critica a superficialidade nas relações, onde a comodidade pode prevalecer sobre o verdadeiro compromisso.

Machado de Assis, em suas crônicas, critica a superficialidade nas relações sociais. Marcelino Freire explora a vida cotidiana e suas nuances, refletindo sobre relacionamentos.

3. Papel da mulher na sociedade. 
“Desde os tempos mais pagãos”
A representação da mulher como figura forte, mas ainda assim subjugada. Reflete sobre a desigualdade de gênero através dos tempos, evidenciando a luta pela autonomia feminina.

Florence Nightingale (1890 – 1910), embora não seja poeta, sua influência social é notável, lutou pelos direitos das mulheres na sociedade. Atualmente, as poesias de Tatiana Nascimento abordam a força e a luta das mulheres na sociedade moderna.

4. Amor e sua transcendência. 
“Esta paixão, minha e tua”
O amor é descrito como uma força que se manifesta nas mudanças do dia e da noite, mostrando sua onipresença e a beleza dos sentimentos nas diversas formas de natureza.

Em Vinicius de Moraes, o amor é tema central em sua obra, explorando suas várias facetas. Lígia Fascetti, explora o amor de maneira intensa e poética, refletindo sua profundidade.

5. Dilemas emocionais e arrependimentos. 
“Levo pela vida afora”
O questionamento sobre as escolhas passadas e suas consequências. Reflete a ambiguidade do "sim" e do "não", e como essas decisões moldam nossa vida.

Alfonsina Storni (poetisa argentina, 1892 – 1938) aprofunda-se em questões de amor e arrependimentos em suas obras. Hilda Hilst aborda as complexidades das emoções humanas, incluindo arrependimentos.

6. Laços afetivos. 
“Não conhece despedidas”
A celebração do amor que une as pessoas, sugerindo que o afeto verdadeiro supera desentendimentos e separações. O lar é apresentado como um espaço seguro.

Carlos Drummond de Andrade aprecia o valor das relações humanas e afetos em sua poesia. Martha Medeiros, foca nas relações pessoais e na importância dos laços afetivos em suas crônicas.

7. O valor da literatura. 
“Não sei se todos ponderam”
A troca que o livro proporciona, enfatizando a importância da leitura na formação de grandes indivíduos. Sugere que a literatura molda a sociedade e a cultura.

Fernando Pessoa refletiu sobre a literatura e seu impacto na formação de identidades. Juliana Leite explora o poder transformador da literatura e da escrita em sua poesia.

8. Incertezas da vida. 
“Nau partindo – céu aberto”
A metáfora de uma nau navegando em meio ao desconhecido reflete a jornada da vida, que é marcada por incertezas e desafios, mas também pela esperança de um destino.

Em Fernando Pessoa,  a incerteza e a busca por sentido são temas recorrentes em sua obra. Assim como Rupi Kaur (poetisa canadense) foca nas incertezas e nas transições da vida moderna em seus poemas, usando uma linguagem simples e direta, visando atingir um público amplo e expressar emoções de forma imediata, assim como o poeta cearense Bráulio Bessa. 

9. Reencontro e conexões. 
“O destino, em nossas vidas”
A ideia de que o destino pode unir pessoas após longas distâncias. Destaca a importância das experiências vividas e como elas moldam os reencontros.

Cecília Meireles insere a ideia do reencontro em várias de suas obras. Márcio Aires aborda a conexão entre pessoas e a inevitabilidade dos reencontros.

10. Justiça e imparcialidade. 
“Para enxergar a cobiça”
Critica a figura tradicional da Justiça vendada, questionando a eficácia de uma justiça que não vê. Sugere que a verdadeira justiça deve ser mais atenta aos que necessitam.

Antônio Machado (poeta espanhol, 1875-1939) critica a injustiça social em seus poemas, refletindo sobre a condição humana. Adriana Falcão enfatiza a questão da justiça e seus desdobramentos na sociedade atual.

11. Máscaras sociais. 
“Quando fingir é preciso”
O contraste entre a aparência e a realidade emocional. Reflete sobre a necessidade de ocultar a dor por trás de um sorriso, uma experiência comum em muitas interações sociais.

Fiódor Dostoiévski (escritor e filósofo russo, 1821 – 1881), através de sua prosa analisa a dualidade entre aparência e realidade. Rupi Kaur aborda essa dualidade questionando a pressão para manter uma fachada positiva em meio ao sofrimento. Alice Ruiz, reflete sobre a autenticidade e a necessidade de usar máscaras na sociedade, utilizando versos livres e prosa poética, permitindo maior flexibilidade na expressão.

12. Preconceito e autocrítica. 
“Quem julga o seu semelhante”
A crítica ao julgamento alheio e a hipocrisia que muitas vezes acompanha esse comportamento. Sugere que quem julga carrega seu próprio peso emocional e precisa olhar para si mesmo.

Bertolt Brecht (poeta alemão, 1858 – 1956), critica a hipocrisia e o preconceito em suas obras. Lígia Araújo aborda o preconceito e a autocrítica em sua poesia, promovendo a reflexão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As trovas de Lucília se destacam como uma obra que, embora enraizada em temas clássicos, ressoa com as inquietações da poesia contemporânea. Em suas estrofes, Lucília aborda dilemas emocionais universais que permanecem relevantes na atualidade, como a busca por significado, a complexidade das relações humanas e a luta pela justiça e pela identidade. Faz uso de metáforas e imagens evocativas que capturam a essência dos sentimentos humanos, como a nau navegando em mares desconhecidos.

O convite ao aprendizado e à reflexão sobre as escolhas de vida, presente na primeira e na quinta trova, ecoa na obra de poetas contemporâneos que enfatizam a autodescoberta e a experiência. Esse tema é central em movimentos poéticos atuais que buscam um diálogo sincero entre o eu e o mundo.

A necessidade de esconder a dor sob uma aparência sorridente, explorada na décima primeira trova, reflete um dilema contemporâneo sobre a autenticidade nas interações sociais.

A representação da mulher e suas lutas, especialmente na terceira trova, dialoga com a crescente voz feminista na poesia contemporânea. Poetas como Tatiana Nascimento e Lígia Fascetti abordam questões de gênero e identidade, refletindo sobre a autonomia feminina e a resistência contra normas sociais opressivas.

As trovas que tratam dos laços afetivos e das complexidades das relações humanas, como na sexta e na nona, encontram paralelo em obras contemporâneas que exploram a fragilidade e a força das conexões interpessoais. A poesia atual muitas vezes celebra a intimidade, ao mesmo tempo em que reconhece suas dificuldades.

A crítica à imparcialidade da Justiça, presente na décima trova, é um tema que reverbera fortemente na poesia contemporânea, onde muitos poetas se tornam ativistas sociais, utilizando suas vozes para chamar atenção às injustiças e desigualdades.

A linguagem de Lucília se destaca pela sua musicalidade e clareza, enquanto muitos poetas contemporâneos buscam uma conexão mais direta e emocional com o leitor através de uma linguagem mais coloquial e livre. Ambas as abordagens, no entanto, compartilham o objetivo comum de explorar a condição humana e os dilemas emocionais, mostrando que, apesar das diferenças de estilo e forma, a essência da poesia permanece a mesma: a busca por compreensão e conexão.

Em suma, as Trovas de Lucília oferecem um rico panorama emocional que se harmoniza com as preocupações da poesia contemporânea. Ambas as esferas artísticas exploram a condição humana, as relações interpessoais e a luta por justiça e identidade, demonstrando que, apesar das mudanças sociais e culturais, os dilemas emocionais permanecem atemporais. Lucília, assim, não apenas dialoga com o passado, mas também se coloca de forma significativa nas conversas poéticas do presente, para que novas gerações possam refletir sobre suas próprias experiências e emoções.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Contos e Lendas da África (Angola) O Sogro e o Genro

Um belo dia, um sogro e um genro saíram de casa para um passeio.

Ao anoitecer, o sogro convidou o genro para dormir e disse:

— Esta escuridão parece as trevas da cegueira.

O genro ficou triste porque era cego de uma vista, mas nada respondeu.

Noutra ocasião, de noite, ficaram a conversar. O genro disse;

— O luar está tão brilhante como uma careca luzidia e far-nos-á mal se ficarmos cá fora,

O sogro entrou em casa sem se despedir e o genro também se retirou.

Ao fim de três dias, o sogro consultou seis pessoas de respeito acerca do insulto recebido. Elas mandaram chamar o genro e o sogro.

Na presença de todos, o velho descreveu circunstanciadamente o motivo que originou o conflito. Ao concluir, disse:

— Permito-lhe que continue com a minha filha, mas não o considero mais como amigo. Sei que sou calvo, mas por que é que ele me atirou à cara esse insulto? Portanto, recuso a sua amizade.

O genro, convidado a falar, expôs:

— Eu não teria dito isso se o meu sogro não me tivesse insultado primeiramente. Fi-lo só depois de ele ter feito alusão à cegueira, propositadamente para me magoar, porque ele sabe que eu sou cego de uma vista. Agora os senhores decidam.

Os velhos responderam:

— Realmente foste insultado e não fizeste mais do que retribuir a ofensa. Assim não há motivo de desavença entre sogro e genro. Voltai a ser amigos, esquecendo ressentimentos. Tu, sogro não tens outro filho senão o teu genro e se, como mais velho, foste indelicado, ele como mais novo, seguiu o mau exemplo recebido. Não vale a pena continuarem a discutir por uma coisa já sem importância.

E foram beber à saúde de ambos, que voltaram a ser amigos.

Fonte: José Viale Moutinho (seleção). Contos populares de Angola: folclore Quimbundo. SP: Aquariana, 2012.

Vereda da Poesia = 111


Trova de 
JESSÉ FERNANDES DO NASCIMENTO
Angra dos Reis/RJ

Nesta vida, de passagem
sem morada permanente,     
numa tão breve viagem,
sou um turista somente.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Sextilha de
THALMA TAVARES
São Simão/SP

É teimoso meu velho coração!...
Aos menores trinados da poesia
ele esquece que deve se aquietar
e, ansioso, cedendo  a euforia
vai feliz capengando ao entrevero,
com coragem, com fé, com ousadia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Humorística de
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru/SP

Diz o caipira ao chegar
“de fogo”, à mulher que o xinga:
-“Houve engano lá no bar...
eu disse “Mé”... deram “pinga”!!!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
ALBERTO DE OLIVEIRA
Palmital de Saquarema/RJ (1857-1937) Niterói/RJ

Lendo os antigos

Vamos reler Teócrito, senhora,
Ou, se lhe apraz, de Teos o citaredo;
Olhe a verdura aqui deste arvoredo
À beira da água... E o sol que desce agora.

Lécio, o pastor, nesta colina mora,
Onde as cabras ordenha. Este silvedo
Guarda de Umbrano à flauta a voz canora,
Como este arbusto a Títiro o segredo.

Esta água... Olhe, porém, como é tão pura
Esta água! O chão de nítidas areias,
Plano, igualado, límpido fulgura;

E tão claro é o cristal que, abrindo o louro
Cabelo, em grupo trêmulas sereias
Se veem lá em baixo neste fundo de ouro.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Humorística de
RENATA PACCOLA
São Paulo/SP

Para o furacão filmar,
a TV saiu-se bem:
a matéria foi ao ar
e o repórter foi também!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
ANTONIO AGOSTINHO GOMES DE QUEIRÓS
Belo Horizonte/MG

Desenho 

Finda-se o dia. 
Linda! abre-se a noite estrelada.
Brisa perfumada passeia pela prata;
Profetisa a chegada da primavera.

Homens jogam damas;
Consomem o tempo desfiando tramas.
Moles mulheres tricotam mazelas;
Reles fiapos do dia.

Vida tal qual tartaruga;
Lida enfadonha, cansativa.
Qual sentido tem essa vida;
Tal não fosse acredita-la?

Cidade pequena... sem muitas ambições;
Felicidade aqui? um arco-íris.
Desconhece as tramas dos grandes centros;
Acontece, somente!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Popular

Naquela noite saudosa        
quando de ti me apartei, 
cem passos não eram dados
quando sem alma fiquei.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Alma errada

Há coisas que a minha alma, já mortificada não admite:
assistir novelas de TV
ouvir música Pop
um filme apenas de corridas de automóvel
uma corrida de automóvel num filme
um livro de páginas ligadas
porque, sendo bom, a gente abre sofregamente a dedo:
espátulas não há... e quem é que hoje faz questão de virgindades...
E quando minha alma estraçalhada a todo instante pelos telefones
fugir desesperada
me deixará aqui,
ouvindo o que todos ouvem, bebendo o que todos bebem,
comendo o que todos comem.
A estes, a falta de alma não incomoda. 
(Desconfio até que minha pobre alma fora destinada 
ao habitante de outro mundo).
E ligarei o rádio a todo o volume,
gritarei como um possesso nas partidas de futebol,
seguirei, irresistivelmente, o desfilar das grandes paradas do Exército.
E apenas sentirei, uma vez que outra,
a vaga nostalgia de não sei que mundo perdido…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
RELVA DO EGYPTO REZENDE
Belo Horizonte/MG

Desato os nós do passado
e as tramas de um sonho eu teço:
sonho é tear encantado
que motiva o recomeço.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Inspiração

Tua linda inspiração:
Filigranas em poesia
São centelhas do coração,
Inefável poesia…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Um remédio envenenado
e a Julieta morreu...
O Romeu foi condenado
porque ela disse: "Erro meu".
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
ATÍLIO ANDRADE
Curitiba/PR

Arrebol

Naquele arrebol distante
Daquela manhã risonha
Depositei meus sonhos
Abraçando as saudades
E beijando as distâncias
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de 
JOÃO COSTA
Saquarema/RJ

Poesia, vida, beleza,
bem-aventurança, dor,
felicidade, tristeza...
É isso e bem mais o amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
FERNANDO PESSOA
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

Presságio

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
ANDRÉA MOTTA
Curitiba/PR

Se teus versos, poetisa,
são repentes de saudade,
tua vida, feito brisa,
sinonímia de amizade!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
AMAURY NICOLINI
Rio de Janeiro/RJ

Chuva Interior

A chuva cai, lavando estas calçadas,
molhando as plantas de toda a minha rua
como se fosse levando na enxurrada
até o próprio reflexo da lua.

Essa chuva afinal é benfazeja,
e não demora a cessar, serena e mansa,
para que a noite de novo calma esteja
e permita aquele sono de criança.

Tenho inveja da chuva e suas águas,
que colocam no calor um pouco o fim
nesta nova temporada de verão.

Enquanto eu enfrento minhas mágoas,
que chovem sem parar dentro de mim
e acabam me afogando o coração.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
LUIZ HÉLIO FRIEDRICH
Curitiba/PR

O adeus naquele momento,
por orgulho de nós dois,
não mediu o sofrimento,
sem remédio, do depois.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de 
JÉRSON BRITO
Porto Velho/RO

Nos Braços do Amazonas

Rabiscando matagais
Com as águas colossais,
Meu Rio Madeira avanças.
Distritos, cidades, vilas
Festam enquanto desfilas,
Apreciam essas danças.

Nas tuas sendas incríveis
Despencas pelos desníveis
Em teu caminho encontrados.
No colo de teus banzeiros
Lá vão troncos e barqueiros
Por teu céu emoldurados.

À frente, finda o roteiro
Num abraço derradeiro
Com o gigante do Norte.
O Amazonas te devora
E, Madeira, nessa hora,
Confundem-se amor e morte...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de 
ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

Apita o trem na estação,
agitando os viajantes…
Nas malas, sonho, emoção
e os corações palpitantes.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Glosa de
GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Alma do cosmos

MOTE:
Quando à noite, o infinito se levanta
à luz do luar, pelos caminhos quedos
minha tátil intensidade é tanta
que eu sinto a alma do cosmos nos meus dedos!
(Quarteto do soneto: AO LUAR)
Augusto dos Anjos
Cruz do Espírito Santo/PB, 1884 – 1914, Leopoldina/MG

GLOSA:
Quando à noite, o infinito se levanta
e surge em seus abraços com as estrelas,
eu sinto, dentro em mim, algo que canta,
que canta, então, feliz por poder vê-las!

Segue minha alma, assim, pura alegria,
à luz do luar, pelos caminhos quedos.
Vai respirando a Lua, que é poesia
e realizando os seus desejos ledos!

Essa beleza fascinante, encanta
e nesse doce sonho-encantamento,
minha tátil intensidade é tanta
que eu aspiro, a verdade do momento!

Faço da Lua, então, a minha amante,
repartindo com ela, meus segredos,
e, tão contente, fico neste instante,
que eu sinto a alma do cosmos nos meus dedos!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova da Princesa dos Trovadores 
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Vai-se um dia... Vai-se um mês...
E eu te imploro, sem revolta,
se não regressas de vez,
esta noite, ao menos, volta!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Hino de Rio Tinto/PB

De um córrego surgiu seu grande nome
Sobre as águas vermelhas a correr
Do engenho com início de ventura
Diz a história de um povo a crescer
Hoje estás de fronte erguida para o alto
Desfrutando seus sonhos desejados
Com orgulho bradamos em prece
Rio Tinto és o símbolo do nordeste.

Salve ó terra de um povo desejoso
Ao trabalho unidos a lutar
Levantando com impulso da coragem
Hoje vemos sua bandeira desfraldar. (Bis)

Hoje a árvore que te fez com grande impulso
Hoje és branco tal qual a sua flor
Homenagem sinceras desejamos
A quem teve seu início e te criou
Rio Tinto hoje vives na história
Reina sempre no céu o seu fulgor
Prende a brisa a segura luz da aurora
Rio Tinto és a fonte do amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de 
JOSÉ CORREIA FRANCISCO 
Ponta Grossa/PR

Dos tempos do nunca mais,
resta comigo a saudade
das lembranças imortais
dos tempos da mocidade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de 
CECIM CALIXTO
Pinhalão/PR (1926 – 2008) Tomazina/PR

Colheita da fé

É pouca chuva! E o sol sem dó castiga
a terra arada que semente espera.
A luta insana não lhe traz fadiga
e nem fenece a singular quimera.
.
A vocação não lhe sugere briga
e nem o ódio o coração verbera.
Chuva madrinha há de lhe dar a espiga
que no paiol o dissabor supera.
.
Vai à capela e de emoção se agita
e ao Lavrador que lá no céu habita
em pranto implora tudo a nova empreita.
.
E a chuva cai… tão silenciosa veio…
para alegria do celeiro cheio
e à gratidão pela integral colheita.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
NILTON MANOEL DE ANDRADE TEIXEIRA
Ribeirão Preto/SP, 1945 – 2024

Tu que zombas da Saudade
que me faz tanto sofrer,
pagarás tua maldade:
de saudade hás de morrer...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O carreteiro atolado

Por caminho apaulado,
Mui barrento e mal gradado,
O seu carro conduzia,
Que trazia
De erva e feno carregado,
Inexperto carreteiro:
Por incúria o desgraçado
Num grandíssimo atoleiro
Enterrar deixou seu gado:
Era longe o povoado,
E não vinha caminheiro
Que o ajudasse e lhe acudisse:
De aflição desesperado,
Se maldisse!
E exclamou todo inflamado:
«Vem, ó Hércules sagrado,
Acudir-me pressuroso;
Pois que já sobre o costado
Sustentaste o céu formoso,
O teu braço vigoroso
Se me acode,
Este carro tirar pode
Do atoleiro.»
Deste modo se carpia
O carreiro,
Quando ouviu uma voz forte,
Que não longe lhe dizia
Desta sorte:
«Se quiseres que te valha,
Mandrião, lida, trabalha,
Examina donde vem
Esse estorvo que te encalha,
Ou detém:
Salta acima desse carro,
E tirando-lhe um fueiro,
De redor lhe arreda o barro;
Bota pedras no atoleiro,
Calça as rodas, e depois
Põe-te à frente, e pica os bois.»

Tudo fez o carreteiro
Que lhe tinham ensinado;
E ficou muito pasmado,
Quando viu surdir avante
O seu carro do lameiro:

«É milagre, exclamou logo,
Ouviu Hércules prestante
O meu rogo,
E evitou-me o precipício!»

Acabando
De falar apenas ia,
Outra voz, em tom mais brando,
Lhe dizia:
«Confiar na Providência
Para obter o que intentamos
Sem que os meios lhe ponhamos,
É demência.
Nada obtém quem não procura;
Que foi sempre a diligência
Mãe da sólida ventura.

Dicas de Escrita (Como escrever em primeira pessoa) – 2

texto por Stephanie Wong Ken

MÉTODO 2 = Usando a primeira pessoa para construir um personagem

1. Dê ao narrador uma voz distinta. 
Narradores em primeira pessoa geralmente têm uma maneira particular de enxergar o mundo, de acordo com o seu passado. Dê ao seu narrador em primeira pessoa uma voz que seja distinta e própria dele. Considere a idade do narrador, classe e história de vida. Use esses elementos para criar a voz em primeira pessoa.

Por exemplo, se o seu narrador é um adolescente que mora na periferia de São Paulo, é bem provável que ele use gírias específicas da região e algumas variações de palavras no português.

2. Filtre as ações da história através do narrador. 
O leitor deve ver o mundo através da perspectiva do narrador em primeira pessoa. Isso significa que é preciso descrever as cenas, outros personagens e os ambientes de acordo com o ponto de vista do narrador. Tente filtrar toda a ação da história através do narrador para que o leitor possa entender sua perspectiva.

Por exemplo, em vez de dizer “Não conseguia acreditar no que estava vendo. Uma aranha assassina desceu em minha direção e logo pensei ‘estou morto’”, se concentre em descrever a ação diretamente do ponto de vista do narrador. Você pode escrever “Eu não acreditava no que estava vendo. Uma aranha descendo em minha direção. Vou morrer”.

3. Use sempre o “eu” para manter o ritmo e a ação sempre seguindo em frente. 
Tente não deixar o narrador em primeira pessoa preso no passado ou em descrições longas, principalmente se estiver escrevendo no presente.

Mantenha o ritmo e a ação seguindo. Concentre-se em manter o narrador em ação a cada cena.

Por exemplo, em vez de escrever “Eu tentei falar com a Sara sobre como eu estava me sentindo, mas ela não queria ouvir o que eu tinha a dizer”, trabalhe as ações e os diálogos. Escreva “‘Sara, por que não quer falar comigo?’ Eu estava determinado a fazê-la ouvir o que eu tinha para dizer”.

4. Leia exemplos de narrativas em primeira pessoa. 
Para ter uma noção melhor da perspectiva em primeira pessoa, leia exemplos da literatura. Observe exemplos no passado e no presente para poder entender como eles são usados. Há diversos exemplos conhecidos de obras escritas em primeira pessoa, incluindo:

- O sol é para todos de Harper Lee;
- Moby Dick de Herman Melville;
- O grande Gatsby de F. Scott Fitzgerald;
- Lucy de Jamaica Kincaid;
- "Atirando num elefante" um ensaio escrito por George Orwell;
- "A morte da mariposa" um ensaio escrito por Virginia Woolf.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
continua…
Fonte:

Recordando Velhas Canções (Ai, que saudades da Amélia)


(samba, 1942)
Compositor: Ataulfo Alves

Nunca vi fazer tanta exigência 
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Não vê que eu sou um pobre rapaz

Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo que você vê você quer
Ai, meu Deus, que saudades da Amélia
Aquilo sim é que era mulher

Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
Mas quando me via contrariado
Dizia: meu filho, o que se há de fazer ?

Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era a mulher de verdade

A Nostalgia de uma Mulher Idealizada em 'Ai, Que Saudades da Amélia'
A música 'Ai, Que Saudades da Amélia', composta por Ataulfo Alves e imortalizada na voz de Mário Lago, é um clássico do samba brasileiro que retrata a figura de uma mulher idealizada, Amélia, em contraste com as mulheres da época em que a canção foi lançada, na década de 1940. A letra expressa a nostalgia de um homem que se ressente das exigências de sua atual companheira, comparando-a com a submissão e simplicidade de Amélia, que ele considera o parâmetro de 'mulher de verdade'.

A canção utiliza a figura de Amélia como uma metáfora para discutir as mudanças nos papéis sociais das mulheres. Amélia é descrita como alguém que aceitava passar necessidades sem reclamar, valorizando a resignação e a falta de vaidade como virtudes femininas. A letra reflete um saudosismo de uma época em que as expectativas em relação às mulheres eram de total dedicação ao lar e ao parceiro, sem aspirações pessoais de luxo ou riqueza. A música, portanto, pode ser vista como um comentário sobre as tensões geradas pelas transformações nos costumes e na dinâmica de relacionamentos.

É importante notar que, apesar de 'Ai, Que Saudades da Amélia' ser frequentemente interpretada como uma ode à mulher tradicional, a canção também pode ser entendida como uma crítica à idealização da mulher e à desvalorização de suas aspirações e necessidades. A Amélia da música é um ideal inatingível e, possivelmente, uma crítica à expectativa irreal que a sociedade impõe sobre o comportamento feminino. A canção se tornou um marco na cultura brasileira, sendo regravada por diversos artistas e permanecendo relevante como um retrato de seu tempo e como ponto de reflexão sobre as relações de gênero.

"Ai Que Saudades da Amélia" tem três personagens: o protagonista, sua mulher e Amélia, a mulher que ele perdeu. O tema é um confronto dos defeitos da mulher atual com as qualidades da mulher anterior. A atual, a quem o protagonista se dirige, é exigente, egoísta, "Só pensa em luxo e riqueza", enquanto a anterior é um exemplo de virtude e resignação - "Amélia não tinha a menor vaidade, (...) achava bonito não ter o que comer... '. Em suma, a primeira é o presente, a realidade incontestável; a segunda é o passado, uma saudade idealizada na figura da mulher perfeita, pelos padrões da época.

Este primoroso poema popular, coloquial espontâneo, escrito por Mário Lago , recebeu de Ataulfo Alves uma de suas melhores melodias, que expressa musicalmente o espírito da letra. E o paradoxal é que não sendo carnavalesco, este samba fez estrondoso sucesso no carnaval.

Segundo Mário Lago, "Amélia nasceu de uma brincadeira de Almeidinha, irmão de Araci de Almeida, que sempre que se falava em mulher costumava brincar - 'Qual nada, Amélia é que era mulher de verdade. Lavava, passava, cozinhava..."'. Então, Mário achou que aquilo dava samba e fez a letra inicial de "Ai Que Saudades da Amélia". Brincadeiras à parte, a verdade é que a Amélia do Almeidinha existiu e, possivelmente, ainda vivia à época da canção. Era uma antiga lavadeira que serviu à sua família. Morava no subúrbio do Encantado (Zona Norte do Rio) e trabalhava para sustentar uma prole de nove ou dez crianças.

Com a letra pronta, Mário pediu a Ataulfo Alves para musica-la. O compositor executou a tarefa, mas alterou algumas palavras e aumentou o número de versos de doze para quatorze. "Isso é natural" - comentava Ataulfo, em depoimento para o MIS do Rio de Janeiro, em 17.11.65 -, "as composições dos parceiros que são letristas sofrem influência minha, que sou autor de letra e música. Mas o Mário não gostou. E não adiantou dizer que a música me obrigara a fazer as modificações". De qualquer maneira, como o samba estava bom, ficaram valendo as alterações.

Começou então a batalha da gravação. Ataulfo ofereceu "Amélia" em vão a vários cantores, inclusive a Orlando Silva. Como ninguém queria gravá-la, gravou-a ele mesmo na Odeon, no dia 27.11.41, acompanhado por um improvisado conjunto, batizado de Academia de Samba. Convidado na hora, Jacó do Bandolim participou dessa gravação, tocando cavaquinho, sendo sua a introdução.

Lançado no suplemento de janeiro de 1942, "Ai Que Saudades da Amélia" foi conquistando aos poucos a preferência do público, graças, principalmente, a uma intensa atuação de Ataulfo junto às rádios. Relembra Mário Lago que o locutor Júlio Louzada chegou a dedicar, na Rádio Educadora, uma tarde inteira de domingo a "Amélia", com entrevistas e o disco tocando dezenas de vezes. O resultado é que às vésperas do carnaval, quando houve o concurso para escolher o melhor samba, "Ai Que Saudades da Amélia" dividia o favoritismo com "Praça Onze", de Herivelto Martins e Grande Otelo. Realizado no estádio do Fluminense, este concurso reuniu uma enorme plateia que, de acordo com o regulamento, elegeria por aplauso os vencedores.

Precedendo "Amélia", apresentou-se "Praça Onze", valorizada por um verdadeiro show, preparado por Herivelto. Primeiro foram mostrados os instrumentos, explicando-se as funções de cada um; em seguida, vieram as passistas, um grupo sensacional de mulatas rebolando; e, finalmente, cantou-se o samba, que levou a platéia ao delírio, dando a impressão de que o certame já estava decidido. Acontece, porém, que "Amélia" também tinha seus trunfos. Tim e Carreiro, amigos de Mário e craques do time do Fluminense, que acabara de ganhar o bicampeonato carioca de futebol, haviam feito um excelente trabalho junto à torcida tricolor.

Para completar, no momento da apresentação, Mário Lago subiu ao palco e, num rasgo de eloquência e demagogia, fez um discurso emocionante, proclamando "Amélia" símbolo da mulher brasileira. Assim, quando Ataulfo e suas pastoras começaram a cantar o estádio veio abaixo, praticamente exigindo a vitória dos dois sambas. Sem a possibilidade de desempatar, o presidente do Fluminense, Marcos Carneiro de Mendonça - por coincidência, casado com uma "Amélia", a poeta Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça - autorizou o pagamento em dobro do prêmio de campeão a "Ai Que Saudades da Amélia" e "Praça Onze", cada um recebendo como se tivesse ganho sozinho.
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo. Vol. 1. Editora 34, 1997.