terça-feira, 8 de outubro de 2024

José Feldman (Peripécias de um Jornalista de Fofocas)

Na redação da famosa revista de fofocas "Fuxicos e Fofocas", o clima era de agitação. O editor-chefe, um homem de bigode espesso e olhar afiado, caminhava de um lado para o outro como um tigre na jaula. Era dia de lançamento da nova edição, e o que todos esperavam era uma matéria bombástica sobre a última festa da alta sociedade.

No meio daquela confusão estava Pafúncio, o jornalista mais atrapalhado da equipe. Ele era conhecido por suas histórias engraçadas e sua habilidade inata de se meter em encrencas. Para ele, cada dia era uma nova aventura — ou desventura, dependendo do ponto de vista.

Na noite anterior, Pafúncio havia sido enviado para cobrir a festa de lançamento do novo perfume da atriz famosa, Catarina Monteiro. “Isso vai render uma capa!” gritou o editor, enquanto entregava a missão a Otávio, que balançou a cabeça, tomando um gole de café que quase lhe queimou a língua.

“Sem problemas, chefe! Vou tirar as melhores fotos!” prometeu, embora já tivesse esquecido onde havia colocado seus apetrechos.

Chegando ao evento, Pafúncio percebeu que, haviam várias coisas que ele havia esquecido: o nome da atriz, o endereço exato do local e, parece, toda a sua dignidade. A festa estava cheia de celebridades, e ele se sentiu um peixe fora d’água. Ele decidiu que o melhor a fazer seria se misturar à multidão e esperar que a sorte o ajudasse.

“Um brinde ao novo perfume!” anunciou Catarina, com um sorriso que poderia iluminar uma cidade inteira. As câmeras dos paparazzi dispararam, flashes iluminando o ambiente.

Pafúncio, com a mão suando, percebeu que tinha que agir rápido. “Preciso de uma foto! Preciso de uma foto!” repetia para si mesmo, enquanto tentava se aproximar da atriz.

Com um golpe de sorte, ele conseguiu um lugar na primeira fila. Mas, ao se agachar para ajustar a lente da câmera, Pafúncio se distraiu e, em um movimento desastrado, derrubou seu copo de bebida em cima do tapete. “Oh não!” ele gritou, enquanto tentava limpar a bagunça com as mãos.

Nesse momento crucial, ele se esqueceu completamente de sua câmera, que estava pendurada em seu pescoço. Ao se levantar, a câmera balançou, e antes que ele pudesse perceber, foi parar no chão, fazendo um barulho que ecoou pela sala. “Parece que alguém está com problemas!” ouviu alguém rir.

“Ah, ótimo!” pensou Pafúncio, enquanto tentava recuperar a dignidade. Mas ao olhar para o chão, percebeu que a câmera havia desaparecido.

“Não! Não! Não!” ele sussurrou desesperadamente. A única coisa que ele conseguiu tirar da festa era um belo retrato do seu próprio desespero.

Quando a festa terminou, Pafúncio decidiu que não podia voltar à redação de mãos vazias. “Preciso encontrar essa câmera!” pensou. Ele se lembrou de que, durante a festa, havia visto um garçom com um olhar curioso. “Ele pode ter visto alguma coisa!” Então, saiu em busca do garçom.

“Ei! Você viu uma câmera por aqui?” perguntou Pafúncio, tentando parecer confiante.

“O que é uma câmera?” respondeu o garçom, com um olhar de desprezo. “Desculpe, estou mais preocupado com os copos vazios.”

Desesperado, Pafúncio percorreu o local da festa, perguntando a todos os garçons e convidados se alguém havia visto sua câmera. O problema? Ele não conseguia se lembrar de como ela era. “Era uma câmera… grande… com uma lente… e um botão!” ele dizia, mas ninguém parecia entender.

Depois de horas de busca, Pafúncio finalmente se deu conta de que precisava de um plano B. Ele decidiu que a única solução era implorar para o editor que lhe desse outra câmera. Ao voltar à redação, ele se deparou com um olhar furioso do editor.

“O que aconteceu com a sua matéria?” o editor gritou, com os braços cruzados.

“Er… eu… perdi a câmera,” Pafúncio respondeu, sentindo-se pequeno como um grão de areia.

“Perdeu a câmera? Isso é tudo que você tem a dizer?!” o editor exclamou, quase se engasgando com sua própria indignação.

“Mas, chefe! Eu tenho uma ideia brilhante!” Pafúncio disse, tentando mudar de assunto. “E se eu fizesse uma matéria sobre a arte de perder coisas? Não é todo dia que alguém perde uma câmera na festa da Isabela Monteiro!”

O editor o olhou com uma mistura de incredulidade e raiva, mas, para surpresa de Pafúncio, ele começou a rir. “Você realmente tem um talento para arrumar encrenca, não é? Faça a matéria, mas se lembre: sem mais câmeras perdidas!”

E assim, o que começou como uma desventura desastrosa se transformou em uma crônica hilária sobre a arte de perder coisas, com Pafúncio como o protagonista de sua própria comédia. O artigo foi um sucesso, e a fama do jornalista atrapalhado cresceu na redação.

Na próxima festa, Pafúncio prometeu a si mesmo que não perderia a câmera. Mas, se isso acontecesse, ele sempre poderia escrever sobre “Como perder a dignidade em 10 passos”. Afinal, com ele, cada dia era uma nova aventura — ou desventura — e ele estava mais do que disposto a compartilhá-la com o mundo.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Vereda da Poesia = 128 =


Soneto de
VICENTE DE CARVALHO
Santos/SP (1866 – 1924)

Velho tema I

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

"Casamento... - alguém já disse -
é chegar à encruzilhada
onde acaba a criancice
e começa...a criançada..."
= = = = = = 

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Somos barcos que navegam sem partirmos

A distância nos separa, mas sonhamos...
E nos sonhos, somos muito mais felizes,
Pois nas cores mais sensíveis que criamos,
Inventamos flores de novos matizes.

Nossas rosas são azuis sem as tingirmos,
Nossos mares são tranquilos ou selvagens,
Somos barcos que navegam sem partirmos,
Ninguém pode impedir nossas viagens.

Somos seres que transcendem sentimentos,
Nosso voo vai muito além da eternidade,
Recriamos nossos próprios pensamentos,
Nosso amor só sobrevive em liberdade.

Colorimos as imagens que queremos,
Encurtamos o espaço que separa
Quem nos ama, com o melhor amor que temos
E é assim que a solidão nos vira a cara.

Mesmo quando alguma dor nos surpreende,
Porque somos seres frágeis e mortais,
Só a nossa fantasia compreende
Esses nossos sofrimentos tão iguais.

Construímos nossas naus e viajamos
Para onde os sonhos possam nos levar
Pois em cada sonho bom que recriamos
Nós soltamos nossa solidão... no mar.
= = = = = = 

Trova  Premiada em Irati/PR, 2023
LILIA MARIA MACHADO SOUZA 
Curitiba / PR

Melhor seguires adiante,
dispenso o anel e as mesuras:
a pedra é falso brilhante,
e falso o amor que me juras.
= = = = = = 

Escada de Trovas de
FILEMON MARTNS
São Paulo/SP

“É frio, a noite descansa;
o espaço é vasto e medonho.
De repente, a lua mansa
surge nos braços de um sonho.”
Humberto Del Maestro 
(Serra/ES)

“Surge nos braços de um sonho”
numa beleza sem fim,
e a poesia que componho
fica mais perto de mim.

“De repente, a lua mansa”
aparece sorridente
dando vivas à esperança
e sorrindo à minha frente.

“O espaço é vasto e medonho”
quase sempre me dá medo,
que às vezes fico tristonho
pensando no teu segredo.

“É frio, a noite descansa”
e eu sonho com as estrelas
tão belas, ninguém alcança,
- só é permitido vê-las.
= = = = = = 

Trova Popular

Alma no corpo não tenho:
minha existência é fingida;
sou como o tronco quebrado,
que dá sombra sem ter vida.
= = = = = = 

Poema de
EUNICE ARRUDA
Santa Rita do Passa Quatro/SP, 1939 – 2017, São Paulo/SP

Um dia

um dia eu
morrerei
de sol, 
de vida acumulada
na convulsão
das ruas

um dia eu
morrerei e
não
podia:

há poemas
escorregando de meus dedos
e um vinho não
provado
= = = = = = 

Trova de
HILÁRIO S. SONEGHET
Ibirassú/ES

No meu cinzeiro de barro
constantemente deponho
ora a cinza de um cigarro,
ora a cinza de algum sonho.
= = = = = = 

Poema de
CLEVANE PESSOA
Belo Horizonte/MG

Origami da sorte

A folha de papel A4, totalmente em branco
é uma tentação a que eu derrame a alma,
para sempre marcando-a com a magia da Palavra...
Meu lado artesã/artista discute com meu lado poetisa:
desenhar, dobrar, fazer
em vez de apenas escrever...
Então, aliso a folha nívea,
triangulo o gesto,
corto a sobra e obtenho
um perfeito quadrado...
As dobraduras se sucedem, aqui e ali,
faço um dos mais básicos origamis:
uns dizem que é um saleiro,
outros, um açucareiro
para qualquer escoteiro,
mas os sonhadores,
viram-no do lado oposto,
encaixam nas abas os polegares e indicadores
e se põem a ler a sorte, a partir de números
pedidos ao acaso...
Para falar de sorte ou atraso,
perdas e ganhos,
amores,
levanto cada espaço
e neles escrevo trovas
sem nenhum embaraço...
assim , ao chamar a menina
que cochilava dentro de mim,
resolvi o impasse:
fiz um objeto, escrevi versos
e pude brincar como se a infância
nunca tivesse acabado…
= = = = = = 

Trova de
IALMAR PIO SCHNEIDER
Porto Alegre/RS

Um verso pobre, uma trova,
merecem sempre acolhida,
pois o sonho se renova
a cada instante da vida.
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Trovador

Não sei se trovador já nasce feito,
ou se ele é feito apenas por amor;
sei que ele lembra muito o amor-perfeito,
se nos encanta, assim como essa flor.

Qualquer das duas formas, com efeito,
talvez nem interfira em seu valor,
pois na flor ou poesia vale é o jeito
encantador que o deu seu criador.

No amor-perfeito o belo é sempre assim,
quer ele nasça num nobre jardim,
ou num quintal bem rude e desprezado.

E o trovador em sua poesia,
tem que insuflar amor, com estesia,
para exaltar alguém apaixonado!
= = = = = = 

Trova do 
Príncipe dos Trovadores
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ (1916 -1977) Santos/SP

Nessas angústias que oprimem,
que trazem o medo e o pranto,
há gritos que nada exprimem,
silêncios que dizem tanto!...
= = = = = = 

Poema de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

O assassino era o escriba

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito
inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, regular
com um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético
de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Erguei-vos flores da noite,
tristes rosas da manhã,
velem umas sobre as outras
O tum'lo de minha irmã.
= = = = = = 

Soneto de 
EMILIANO PERNETA 
Pinhais/PR, 1866 — 1921, Curitiba/PR

D. Juan

Sensível, como quem podia ser, apenas
Mais vão do que uma sombra um gesto perpassou,
E logo desse herói, revoltas as melenas,
Brilhava o estranho olhar, que tanto ambicionou...

Era uma confusão. Pálidas e morenas,
Cada qual, cada qual, como Deus a formou,
Não foi uma, nem dez, porém foram centenas
As mulheres por quem D. Juan desesperou...

Todas, todas que viu, ele mordeu de beijos,
Enraiveceu de amor, poluiu de desejos,
Tomado de furor, doido d'embriaguez...

Um delírio! Porém, D. Juan era um artista
E portanto cruel, nervoso, pessimista,
E de resto, o infeliz nunca se satisfez!
= = = = = = 

Trova Hispânica de
PATRÍCIA PEREZ NERICE
Chile

Tu rostro cada mañana,
tu sonrisa y tu mirada,
me hacen sentir soberana
siendo por ti apasionada.
= = = = = = 

Poema de 
DILMA DAMASCENO
Caicó/RN

Relembrando a minha origem (I)

Amo a vida genuína
(ornada de singeleza)!...
Idolatro a Natureza!...
A floração, me fascina!

Exulto, sobremaneira,
com o cantar que encerra
meu querido “Pé de Serra”!...
Sou Cabocla Brasileira,
aguerrida descendente
da Região do Nordeste…
portanto, “Cabra da Peste”...

Ademais, sou renitente,
Potiguar e Sertaneja
(do Sertão do Seridó)…
e natural de Caicó
(onde a brisa é benfazeja…
e o povo é bom, e gentil),
Cidade de clima quente
(terra do sol reluzente),
que acende o céu do Brasil!
= = = = = = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

- Peço a mão de sua filha...
e aí para, ante a visão:
Tá o sogro... de sapatilha
e a sogra... que sapatão!
= = = = = = 

Soneto de 
JOSÉ D'ABREU ALBANO 
Fortaleza/CE 1882-1923

Soneto da Dor

Mata-me, puro Amor, mas docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

A velhice se avizinha, 
porém não me assusta não. 
– Eu sei que no fim da linha 
Deus me espera na estação!
= = = = = = 

Poema de
JOVINO PEREIRA DA LUZ
Pão de Açucar/AL 1855 – 1908

O São Francisco a sonhar

Era noite! O São Francisco,
Dormindo e manso a sonhar,
Entre os beijos d’uma brisa,
Ao sorriso d’um luar!
As estrelas lhe sorriam,
Os aromas o envolviam!
E eu dizia, então:
“Como é belo quando dorme
O gigante rio enorme
Nestas plagas do sertão!”
................

Era belo ver-se o rio
Venturoso assim dormir,
Entre flores trescalando,
Entre belas a sorrir!
Oh! Lembro-me dessa cena,
Grandiosa e tão serena
Como um riso p’raisal!
Cena tocante e sublime
Que um poeta não exprime
E só diz: - “Não tinha igual!”
= = = = = = 

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Se tu não tens água e pão,
te expões ao mundo voraz...
Migra em busca de outro chão,
sê pois, migrante da paz!
= = = = = = 

Hino de 
Salto do Lontra/PR

Foi chegando o Bandeirante
Seu semelhante a irradiar
A esperança d'alma nobre
Na grandeza do lugar

Mais que a terra tão selvagem
Foi valente o sonhador
Fez brotar da terra bruta
O feijão, a paz e o amor.

(Refrão)
Salto do Lontra és coração do sudoeste
A Senhora Aparecida é quem vigia seu andar
Pelos caminhos da bonança que fizeste
Salto do Lontra és esperança, és Paraná (bis)

O Iguaçu vai junto ao Lontra
Procurando enriquecer
As colinas montanhosas
Onde o sol te viu nascer

De Caxias foi a Salto
Onde a beleza foi morar
No coração do sudoeste
Fiz meu canto, fiz meu lar.
= = = = = = 

Trova Humorística de 
IVAN RIBEIRO DA CONCEIÇÃO
São João do Meriti/RJ

Vai nascer. Meu Deus, compadre,
chame o médico, ligeiro!
- Não, - diz o pai - chame o padre:
nós vamos casar primeiro!
= = = = = = 

Sonetilho de 
OLIVALDO JUNIOR
Mogi-Guaçu/SP

Um poeta se despede

Com a mão na consciência,
um poeta sempre pede
um pouquinho de ciência,
claridade que nos mede.

Já sem pouso, em paciência,
um poeta sempre cede
quando a vida, efervescência,
só borbulha e retrocede.

Com as linhas mal traçadas,
um poeta se despede,
despe o corpo de alvoradas!...

Deixa versos sem amadas
e uma mãe que lhe concede
muitas lágrimas roladas.
= = = = = = 

Trova de
ALOÍSIO ALVES DA COSTA
Umari/CE (1935 – 2010) Fortaleza/CE

Feliz é quem, pela vida,
envelhecendo sem fugas,
alegre e de fronte erguida,
zomba do espelho e das rugas.
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

As rãs e o Sol

Querendo o Sol casar-se,
As rãs, quando o souberam,
A Júpiter fizeram
Humilde petição,
Dizendo: «Não consintas,
Ó Júpiter sagrado,
Que mude o Sol de estado,
Que tenha geração;
Porque se ele sozinho,
Com seu calor intenso
Nos faz um dano imenso
Na cálida estação;
Em tendo esposa e prole,
Seus novos sucessores,
Com férvidos calores
O mundo abrasarão:
Secando-se as lagoas,
As fontes e as correntes,
Os nossos descendentes
A vida acabarão!»
Ouvindo Jove as preces,
Negou consentimento
Do Sol ao casamento,
Às rãs em atenção.

Aquele que previne
Que o mal se reproduza,
Prudente evita e escusa
De horrores profusão.

Estante de livros (Cidades Mortas, Urupês e Ideias de Jeca Tatu, de Monteiro Lobato)


As obras de Monteiro Lobato oferecem uma rica análise da sociedade brasileira, abordando questões sociais, culturais e existenciais. Através de personagens memoráveis e narrativas envolventes, Lobato provoca reflexões críticas sobre a identidade nacional, a vida rural e a necessidade de mudança. Seu estilo direto e sua capacidade de evocar emoções tornam suas obras atemporais, ressoando com leitores contemporâneos e inspirando uma conscientização social que ainda é relevante hoje.

1. Urupês

"Urupês" é uma coleção de contos que retrata a vida rural no interior de São Paulo, focando especialmente na figura do "Jeca Tatu", um tipo de homem do campo que simboliza a preguiça e a falta de ambição. O livro é uma crítica social à vida no campo, onde Lobato expõe as condições de vida dos agricultores, a cultura popular e as tradições locais.

Os contos apresentam personagens variados, como o próprio Jeca Tatu, que vive em um ambiente de miséria e conformismo, e outros que representam a luta pela sobrevivência e a busca por melhorias. Lobato utiliza a linguagem coloquial e expressões regionais, dando vida à cultura e ao modo de vida do interior. Através das histórias, ele aborda temas como a saúde, a educação e a necessidade de uma reforma agrária.

"Urupês" é uma obra fundamental na literatura brasileira, pois oferece um retrato crítico e realista da vida rural. Lobato não apenas descreve a realidade do campo, mas também provoca reflexões sobre a identidade nacional e as mazelas sociais. O personagem Jeca Tatu, que se tornou ícone da literatura, representa a figura do homem simples que, embora tenha um potencial enorme, é sufocado pela pobreza e pela falta de oportunidades.

Lobato critica a romantização do ruralismo, mostrando que a vida no campo é repleta de dificuldades e desafios. Através de uma prosa direta e incisiva, ele denuncia a inação e a apatia que permeiam a vida dos personagens, sugerindo que a mudança é necessária e possível. O autor também enfatiza a importância da educação e da conscientização social como ferramentas para transformar a realidade.

2. Cidades Mortas

"Cidades Mortas" é uma coletânea de contos que explora temas de decadência, abandono e a memória de lugares outrora vibrantes. Lobato utiliza a metáfora das cidades mortas para refletir sobre a vida urbana e as transformações que ocorrem ao longo do tempo. Os contos apresentam paisagens desoladas, ruínas e personagens que vivem à sombra do passado, criando uma atmosfera de nostalgia e melancolia.

A narrativa enfatiza a relação entre o homem e o espaço, mostrando como as cidades, que foram uma vez centros de vida, se tornam lugares esquecidos e sem vida. Lobato utiliza descrições vívidas para evocar a sensação de desolação e perda, enquanto seus personagens se confrontam com suas próprias histórias e as memórias que carregam.

"Cidades Mortas" é uma reflexão profunda sobre a passagem do tempo e a efemeridade da vida. Através de suas descrições poéticas e detalhadas, Lobato provoca uma análise sobre a urbanização e a alienação que acompanha o crescimento das cidades. Ele questiona o que acontece com os espaços que foram habitados e como a história de um lugar pode desaparecer.

A obra também toca em questões existenciais, levando o leitor a refletir sobre a própria mortalidade e a inevitabilidade da mudança. Lobato utiliza a cidade como um personagem em si, mostrando como o ambiente pode influenciar e refletir as emoções e as experiências dos indivíduos. A nostalgia permeia os contos, transformando as cidades em símbolos de uma era perdida e despertando a consciência do leitor sobre a importância de preservar a memória.

3. Ideias de Jeca Tatu

"Ideias de Jeca Tatu" é uma obra que reúne ensaios e reflexões de Monteiro Lobato sobre a vida rural e a figura do Jeca Tatu. O livro explora a mentalidade do homem do campo, suas crenças, superstições e a relação com a natureza. Lobato utiliza o personagem Jeca Tatu como uma representação do povo simples, mas também como um veículo para criticar a falta de progresso e a resistência à mudança.

A obra discute temas como a educação, a saúde, a agricultura e a necessidade de modernização no campo. Lobato defende a ideia de que o progresso só é possível através da conscientização e do esforço coletivo, e que o povo rural deve ser despertado para sua própria condição e potencial. A narrativa é permeada por um tom de otimismo, sugerindo que a mudança é viável se houver vontade e dedicação.

"Ideias de Jeca Tatu" é uma obra que vai além da crítica social; é uma convocação à ação. Lobato acredita na capacidade do povo rural de se transformar e se modernizar, mas enfatiza que isso requer educação e um novo olhar sobre suas tradições e modos de vida. O autor utiliza a figura do Jeca Tatu para desafiar o leitor a refletir sobre preconceitos e estereótipos associados à vida no campo.

A prosa de Lobato é acessível e envolvente, misturando humor e ironia com um profundo senso de responsabilidade social. Ele consegue transmitir suas ideias de forma clara, utilizando a simplicidade do personagem Jeca Tatu como um espelho das questões mais complexas que afetam a sociedade. A obra é uma crítica à apatia e à falta de iniciativa, mas também uma celebração do potencial humano para mudar e evoluir.

Fonte: José Feldman. Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Recordando Velhas Canções (Leva meu samba)


(samba, 1941) 

Compositores: Ataulfo Alves

Leva meu samba
Meu  mensageiro
Este  recado
Para  o  meu  amor  primeiro
Vai  dizer  que  ela  é 
A   razão  dos  meus  ais
Não,  não  posso  mais

Eu que pensava  
que  podia  te  esquecer
Mas  qual  o que  
aumentou  o  meu  sofrer
Falou  mais  alto  
no  meu  peito  uma  saudade
E  para  o  caso  
não  há  força  de  vontade
Aquele  samba  
foi  pra ver  se  comovia  
o teu  coração
Onde  eu dizia   
Vim  buscar  o  meu  perdão

A Saudade e o Perdão em 'Leva Meu Samba'
A música 'Leva Meu Samba' é uma expressão profunda de saudade e arrependimento. A letra revela um eu lírico que envia seu samba como mensageiro para seu amor primeiro, na esperança de reconquistar o coração perdido. A escolha do samba como veículo de comunicação não é aleatória; o gênero musical, com suas raízes profundas na cultura brasileira, carrega consigo uma carga emocional e histórica que amplifica a mensagem de saudade e desejo de reconciliação.

O eu lírico admite que subestimou a força de seus sentimentos, acreditando inicialmente que poderia esquecer seu amor. No entanto, a saudade se mostrou mais forte, revelando a profundidade de seu sofrimento. A letra destaca a luta interna entre a tentativa de seguir em frente e a realidade de um coração ainda preso ao passado. A saudade é personificada como uma força incontrolável, que fala mais alto no peito do eu lírico, evidenciando a intensidade de suas emoções.

O samba enviado como mensageiro é uma tentativa de comover o coração do amado, buscando o perdão e a reconciliação. A música termina com um apelo sincero, onde o eu lírico admite sua vulnerabilidade e o desejo de ser perdoado. A simplicidade e a sinceridade da letra, combinadas com a melodia envolvente do samba, criam uma obra que ressoa profundamente com qualquer pessoa que já tenha experimentado a dor da saudade e o desejo de reconciliação. Ataulfo Alves, com sua habilidade lírica e musical, consegue capturar a essência dessas emoções de maneira tocante e universal.
Fonte: – https://www.letras.mus.br/ataulfo-alves/221909/

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “26”

 

Humberto de Campos (Feminice)


(Sobre uma frase de Emile Faguet, 1847 – 1916)

D. Elisabeth Saldanha era apontada no Rio de janeiro como a senhora de vida mais acentuadamente elegante entre quantas, até hoje, possuiu a cidade. Honesta por educação e por temperamento, ninguém lhe apontou, jamais, um deslize, uma falha, uma simples leviandade de conduta. Em uma terra em que a maledicência enche as bochechas a cada canto da rua, ela fizera o milagre de conservar sempre limpo, sem a menor mancha do hálito da calunia, o espelho de cristal da sua reputação

Os seus hábitos mundanos não eram, entretanto, propícios à conservação desse conceito. Adorando o marido e sendo idolatrada por ele, havia uma vaidade que ela colocava acima de tudo na terra; e esta eram o teatro, os chás, os jantares, as conferências literárias, os concertos, e, sobretudo, a visita às amigas, num desperdício de tempo, de frases e de vestidos que lhe parecia verdadeiramente encantador.

Certo dia, porém, ao sair do Municipal, D. Elisabeth descuidou-se um pouco do mantô bordado de dragões de ouro e cegonhas de seda, e apanhou uma pneumonia. A ciência médica da cidade foi, toda ela, mobilizada em uma noite. E tal é o prestigio da medicina diante da morte, que, dois dias depois, o Dr. Alfredo Saldanha penetrava o portão do cemitério de São João Batista, segurando, sem tirar o lenço dos olhos, uma das alças do caixão funerário da sua querida Elisabeth.

Enquanto se dava isso aqui na terra, uma alma, imponderável como o ar e mais alva, talvez, que um floco de neve, batia, suave, à porta do Paraíso.

- Seu nome? - perguntou S. Pedro, abrindo a portinhola, encantado com tanta candura.

- Elisabeth Saldanha, meu santo.

O apostolo fitou-a com simpatia, e continuou no interrogatório:

- E que fizeste na tua vida, minha filha? – A recém-chegada franziu a testa morena e perfeita, como se consultasse a si mesma.

- Não ouviste, filha? Que é que fizeste na tua vida?

Elisabeth ia, pela primeira vez, se atrapalhando, mas, recobrando a serenidade, indagou:

- Eu?

E, com um sorriso, que lhe abotoava a boca num beijo:

- Eu fiz... muitas visitas!

São Pedro sorriu, bondoso, e a grande chave rangeu, faiscando estrelas, na enorme fechadura dourada.

Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.