sexta-feira, 17 de maio de 2024

Recordando Velhas Canções (Carinhoso)


Compositores: João de Barro / Pixxinguinha

Meu coração, não sei por quê
Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim foges de mim

Ah, se tu soubesses
Como sou tão carinhoso
E o muito, muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim

Vem, vem, vem, vem
Vem sentir o calor dos lábios meus
À procura dos teus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim então serei feliz
Bem feliz
Meu coração
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A Doçura e a Saudade na Melodia de 'Carinhoso'
A música 'Carinhoso', composta por Pixinguinha, um dos maiores compositores da música brasileira, é um clássico do choro e da música popular brasileira. A letra, escrita por João de Barro, o Braguinha, expressa um sentimento de amor e saudade, características marcantes da obra de Pixinguinha. A canção foi composta em 1917, mas só ganhou letra em 1937, tornando-se um dos sambas mais conhecidos e interpretados do Brasil.

A letra de 'Carinhoso' fala de um amor não correspondido, onde o eu lírico expressa sua alegria e emoção ao ver a pessoa amada, mesmo que esta não retribua seus sentimentos. A expressão 'meu coração não sei por quê, bate feliz quando te vê' revela a natureza involuntária e intensa do amor, que faz o coração reagir apenas com a visão da pessoa desejada. A repetição do 'vem' no final da música é um convite apaixonado, um clamor para que o amor seja correspondido e para que a paixão que consome o coração do eu lírico seja finalmente saciada.

A música 'Carinhoso' é um retrato da alma brasileira, com sua melodia que mistura tristeza e alegria, e sua letra que fala de amor de forma simples, mas profunda. Pixinguinha, com sua habilidade ímpar de compositor, criou uma obra que atravessa gerações, tocando o coração de quem a ouve. A canção é um hino ao amor e à delicadeza dos sentimentos, e permanece como uma das mais belas páginas da música popular brasileira.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Vanice Zimerman (Tela de versos) 35

 

Humberto de Campos (O furto)

(Conto Amazônico)

A floresta imensa, de árvores augustas e seculares, chegava até à margem do rio quando os primeiros colonizadores, fazendo ressoar o machado nos troncos enormes, ergueram aí a primeira barraca de seringueiro. E pouco a pouco, investindo contra a selva soturna e impenetrável, foi o homem avançando contra a muralha verde, até fixar naquelas brenhas o marco da primeira cidade.

Agora, não era mais o casebre isolado. Alinhados à beira do rio largo e profundo, as casas de negócios e de moradia, comprimidas entre a floresta e a água, eram como ovelhas escuras de um pequeno rebanho, trazidas a beber na torrente por uma legião de gigantes desgrenhados. E entre essas casas, humilde no meio das mais humildes, estava a do Zeferino, caboclo de trabalho, que passara seis meses na pesca do pirarucu e outros seis no alto sertão, na faina dos castanhais.

A cidade pequena ressonava, quieta, naquela noite sem lua, quando o caboclo, descalço, torcendo as mãos vigorosas e ásperas, apareceu à porta escura do casebre. Era um homem baixo, grosso, de tez cobreada cabelos lisos e bigode ralo, tipo inconfundível do índio domesticado. Os olhos, vivos e pequenos, luziam-lhe nas órbitas como vagalumes escondidos nas folhas. Vestia camisa grosseira, de algodão, encardida pelo tempo, a qual lhe descia, até, quase, ao joelho, cobrindo, em parte, a ceroula do mesmo pano. Diante dele, o rio, silencioso, multiplicava-se em claridades, refletindo a abóbada inteira em cada escama do dorso. E, em cima, na altura, O espaço picado de estrelas era uma enorme orgia de luz, como se os anjos tivessem acendido naquela hora, num impiedoso desafio à sua miséria, as mais remotas lâmpadas do firmamento. Na margem, beirando o mistério das águas, velavam, como ciclopes, com o seu olho fixo, os lampiões da iluminação pública. Enfileirados ao longo da primeira rua do lugar, as suas gotas de luz, tristes, mortiças, imóveis, faziam pensar em pequenos astros cristalizados na terra, ou em grandes lágrimas de titãs tombadas soturnamente do céu.

Na quietude daquela hora de assombros, afugentando ou convocando os demônios da treva, coaxavam os sapos, martelando, monótonos, na bigorna do silêncio. Nas moitas úmidas, de onde partiam, confundindo-se tantas vozes anônimas, os pirilampos eram como as centelhas dessa oficina monstruosa, onde os batráquios batiam, talvez, a couraça de ouro do sol.

A noite corria, assim, profunda e calma, suando orvalho pelos poros da terra, na dor ignorada do seu parto, quando a figura do caboclo se desenhou, como uma grande mancha cinzenta, na mancha escura da porta. Desenrolava-se no seu espírito, naquele momento, uma das grandes tragédias da consciência. É que, dentro, na casa modesta, no refúgio doloroso da sua miséria, agonizava o seu filho pequeno, o qual ia morrer, talvez, com sacrifício da sua alma inocente, no horror da escuridão!

Ao regressar do trabalho nos castanhais, onde passara quatro meses, encontrara-o só, entregue aos vizinhos. A mãe, a Rosa, sua companheira de cinco anos, tinha-o abandonado na sua ausência, fugindo para Breves com um turco, negociante de "regatão". Informado de tudo, pensara em sair em perseguição da adúltera, e matá-la, e ao amante. O menino já estava, porém, com a maleita impiedosa, e como não tivesse quem dele tomasse conta, ficara ao seu lado, tratando-o na enfermidade com desvelos de mãe.

O dinheiro trazido do trabalho na castanha tinha-se-lhe ido, todo, nos remédios para o pequeno. Não podendo afastar-se dele para ir à pesca, ou a qualquer outro meio de vida, não tivera um níquel, sequer, na véspera, para comprar uma vela ou um pouco de querosene. E agora, dentro, no quarto, a candeia que lhe iluminava a agonia começava a esmorecer, como um símbolo mesmo daquela vida periclitante, e, em pouco, a Morte entraria, de certo, ali, arrebatando aquele pedaço do seu coração!

No seu pavor, adivinhando o rio e olhando o céu, o caboclo via, já, o seu filho estendendo os bracinhos mirrados, estertorando no escuro, e confundindo, de olhos entreabertos, as trevas passageiras da noite com as trevas eternas do túmulo. Duas vezes chegou à porta e duas vezes entrou, de novo, impelido por um triste pressentimento. Da última vez, encontrou, já, o quarto afogado em escuridão. A lamparina, sem querosene, apagara-se. Tateando nas paredes familiares, fora até à rede onde estava o doentinho apalpando-lhe o corpinho magro, quase um esqueleto, pondo toda a delicadeza nas mãos pesadas. O menino queimava, de febre. Um grunhido estertorante subia-lhe do peito ansiado. A respiração era agitada, pela boca escaldante, que, ao tato, verificara que estava aberta.

- João?... Joãozinho?... meu filho?... - chamou, adoçando a voz.

O mesmo grunhido angustiado, surdo, foi a resposta. O caboclo chegou-lhe a coberta remendada para o peito magro, beijou-o num grande carinho, e saiu, de novo. À porta, estacou, outra vez. Que fazer àquela hora, entre o esquecimento de Deus e o sono dos homens? Onde conseguir, em hora tão avançada, uma vela ou um pouco de azeite, com que alumiasse a agonia daquele inocente, se ninguém o atenderia noite tão alta, e não havia na casa, para bater a uma venda, a moeda mais miserável?

O primeiro galo cantara, longe, perto do rio. Outro respondera mais próximo. A quietude era tamanha que se lhes ouvia o bater pesado das asas. Menos numerosos, os sapos. se acomodavam.

A alma em desespero, o caboclo passeava os olhos pela mudez misteriosa das coisas, interrogando o céu e a noite sobre o destino do seu filho e o remédio do seu sofrimento, quando teve aquela ideia, que os demônios apiedados lhe sopraram. Reentrando no casebre, tomou da lamparina vazia, apalpou ainda uma vez o esqueleto ardente do filho, e desceu à rua, rumo do rio. Ao longe, um lampião, perdido na noite, chorava, triste, o seu pranto de claridade solitária. Encaminhou-se para ele. Ao chegar-lhe junto, mediu a altura do poste esguio, e, tomando nos dentes a lamparina de folha, começou a subi-lo. Ao alto, segurando-se com as pernas, retirou o bocal do candeeiro, e principiava a passar para a sua candeia algumas gotas de querosene, quando ouviu um grito, a dois passos.

- Ladrão!... - bradaram.

Era o fiscal, o rondante (vigia) da iluminação. Atirando-se do poste, o caboclo confessou o seu crime, e pediu misericórdia.

- É para o meu filho!... - gemeu.

- Marche! Vamos!... foi a resposta do guarda, que, impelindo-o para a frente com um repelão, se mostrou inexorável.

- Eu vou, - replicou o desgraçado; - mas pelo amor de Deus, deixe-me ir em casa primeiro, acender a lamparina junto ao meu filho!... Deixe!... tenha piedade!...

- Marche!... - bradou-lhe, imperioso, com outro safanão, o homem da ronda.

Cabeça baixa, o desespero na alma, com uma vontade doida de romper em soluços, o caboclo pôs-se a caminho da cadeia, custodiado pelo guarda. A situação em que fora preso, amesquinhava-o, enfraquecia-o, acovardava-o. Sentia vergonha e raiva, arrependimento e indignação.

Pela cidade adormecida os galos amiudavam. Os sapos calavam-se. As estrelas, piscavam menos. Uma brisa fresca, embalando os ramos, trazia o cheiro da floresta... A chave da cadeia estalou, seca, na fechadura, e rolou, lá dentro, um corpo, impelido por um empurrão.

Já ao entardecer, quase noite, soltaram-no, de ordem do delegado. O caboclo correu à casa, para ver o seu filho.

Pelo punho da rede, tomando conta do cadáver, e entrando-lhe pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos, desciam em fileira, em longos rosários fervilhantes, as primeiras formigas…

Fonte: Humberto de Campos. O monstro e outros contos. Publicado originalmente em 1932. Disponível em Domínio Público  

Vereda da Poesia = 8 =


UMA TROVA

Maria Helena Uruhahy Campos Fonseca
Angra dos Reis/RJ

Eu juro, falo a verdade,
em noite morna, altaneira,
eu me escondo da saudade
no livro de cabeceira.
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UM SONETO

Auta de Souza
Macaíba/RN, 1876 – 1901, Natal/RN

PÁGINA TRISTE

Há muita dor por este mundo afora,
Muita lágrima à toa derramada;
Muito pranto de mãe angustiada
Que vem saudar o despontar da aurora!

Alma inocente só de amor cercada
A criancinha a soluçar descora,
Talvez no berço onde o menino chora
Também, ó Dor, tu queiras, desolada,

Erguer um trono, procurar guarida...
Foge do berço! não magoes a vida
Desta ave implume, lirial botão...

Queres um ninho, um carinhoso abrigo?
Pois bem! procura-o neste seio amigo,
Dentro em minh'alma, aqui no coração!
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UMA QUADRA

Antonio Aleixo
(António Fernandes Aleixo)
Vila Real de Santo António/Portugal, 1899 — 1949, Loulé/França

Da guerra os grandes culpados,
Que espalham a dor na terra,
São os menos acusados
Como culpados da guerra.
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UMA POESIA

Carolina Ramos
Santos/SP

SE ELA CHEGAR...

Se ela chegar... eu rogarei baixinho;
- Não te aproximes! Vai! Esquece-o... Parte!
Que ele nem te pressinta!... O seu carinho
é meu... só meu... quem ama não reporte!

Nosso amor é sereno. Tão sereno,
que nem teme rivais! Se sou amada,
amo, também! Afeto puro e pleno,
que o entardecer transforma em alvorada!

Implorarei em prantos; - Não o leves!
Deixa-o comigo... Vês? Inda é tão cedo!
Nossas horas de amor foram tão breves,
tão breves quanto foi nosso segredo!

Mostrarei o teu rosto, belo e calmo,
tal como o vejo agora, meu querido...
Provarei que és feliz e, palmo a palmo,
defenderei teu corpo adormecido.

Tuas mãos - lhe direi - guardam carícias
somente minhas, apesar de o mundo
bafejá-las de intrigas e malícias!
Vai! - pedirei! E com fervor profundo,

esmolarei, ainda, uma migalha,
uma fração de tempo! E, suplicante,
meu coração, beijando-lhe a mortalha,
há de rogar-lhe nesse cruel instante:

- Bem sabes... tanta gente, em vão te espera
e tresloucada, às vezes, te procura!
Vai buscar essa gente sem quimera!
Deixa em paz nosso ninho de ternura!

Esquece que existimos. E, algum dia,
já velhinhos, já trôpegos, cansados,
de tua porta, iremos à porfia,
para beijar-te os mãos, sempre abraçados!

Se ela chegar... e se me ouvir paciente,
ela, que alma não tem, terá piedade,
levará minha angústia, tão somente,
sem acender o círio da saudade!

Contudo, ela chegou! Levou-te, amigo,
alheia ao meu clamor desesperado!
Nem quis a vida que deixou comigo,
cuja metade eu lhe teria dado!

Restou somente a solidão enorme...
O frio intenso... esse terrível frio
que enregela de dor um inconforme,
um pobre e triste coração vazio!…
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UM TRIVERSO TRAVESSO 

A. A. de Assis
Maringá/PR

Ah, havia o espaço
e no espaço havia ação.
Apertem os cintos.
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UM POEMA

Daniel Maurício
Curitiba/PR

O céu de tão azul
Estava um tipo Mário Quintana
E até a minh'alma mundana
Ganhou uma veste celeste
Mesmo sem saber que era prece
Ver o voar da Tesourinha
Que cortava o céu
E costurava sem linha
Um manto azul,
De um toque quase sagrado
Para aqueles que foram perdoados
E nem perguntaram o porquê.

Recordando Velhas Canções (O Bêbado e a equilibrista)


Compositores: João Bosco e Aldir Blanc

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
A Lua, tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens
Lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco louco!
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil

Meu Brasil que sonha
Com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora a nossa Pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar
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A Arte de Elis Regina em 'O bêbado e a equilibrista': Um Hino de Esperança e Resistência
A canção 'O bêbado e a equilibrista', interpretada pela icônica Elis Regina, é uma obra que transcende a música para se tornar um símbolo de resistência e esperança em um período conturbado da história do Brasil. Composta por Aldir Blanc e João Bosco durante a ditadura militar, a música se tornou conhecida como o 'hino da anistia', clamando pelo retorno dos exilados políticos e pela liberdade de expressão.

A letra é rica em metáforas e imagens poéticas que evocam a melancolia e a luta do povo brasileiro. A figura do bêbado, que remete ao icônico personagem Carlitos de Charlie Chaplin, simboliza a tristeza e a irreverência do povo. A 'Lua, tal qual a dona do bordel', pode ser interpretada como uma crítica à exploração e à corrupção, enquanto as 'nuvens no mata-borrão do céu' sugerem a censura e a repressão que manchavam o país.

A esperança, personificada na 'equilibrista', é o fio condutor da canção. Mesmo diante das adversidades e do 'azar', ela dança na 'corda bamba de sombrinha', representando a delicadeza e a coragem necessárias para seguir adiante. A música termina com um lembrete de que, apesar dos riscos, 'o show de todo artista tem que continuar', uma mensagem de persistência e continuidade da luta pela liberdade. Elis Regina, com sua interpretação emocionante, eternizou essa canção como um marco da resistência cultural brasileira.
https://www.letras.mus.br/elis-regina/45679/

quarta-feira, 15 de maio de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 28

 

Contos das Mil e Uma Noites (Farruz e sua esposa)

Conta-se que certo rei estava sentado um dia no terraço de seu palácio quando viu, no terraço da casa oposta, uma mulher cuja beleza não tinha igual entre as mulheres. O rei perguntou:

“A quem pertence essa casa?” Responderam-lhe: “A teu servidor Farruz, e essa mulher é a sua esposa.”

O rei desceu do terraço, embriagado por uma súbita paixão. Chamou Farruz e disse-lhe: “Pega esta carta e vai entregá-la em tal cidade e volta com a resposta.”

Farruz pegou a carta e, de volta a casa, colocou-a sob o travesseiro. Pela manhã, despediu-se da mulher e dirigiu-se para a cidade, sem suspeitar das intenções do rei. 

Assim que o viu partir, o rei disfarçou-se e foi bater na porta da casa de Farruz. A mulher abriu-lhe. 

“Vim visitar-te”, disse o rei. 

Ela sorriu e respondeu: 
“Refugio-me em Alá desta visita. Pois não vejo nela nada de bom.” 

Retrucou o rei: “Sou o amo de teu marido. Parece que não me conheces.” 

Respondeu ela com determinação: “Com certeza conheço-te. És o soberano de meu marido e meu soberano também. Também entendi a tua manobra, e sei o que queres de mim. E para te provar que compreendo o que te traz, vou recitar para ti estes versos do poeta”:

Não trilharei o caminho da fonte
se outros podem colar os lábios na rocha úmida.
Jogarei fora as melhores carnes,
se for dado às moscas partilhá-las comigo.

Depois de recitar os versos, a esposa de Farruz acrescentou:

“E tu, ó rei, beberás da fonte onde outros pousaram os lábios antes de ti?”

O rei escutou-a com estupefação, voltou as costas sem dizer uma palavra e fugiu daquela casa com tamanha precipitação que deixou uma de suas sandálias no chão atrás de si. 

Ora, Farruz deu-se conta no meio do caminho que esquecera a carta do rei sob o travesseiro, e voltou para apanhá-la. Vendo a sandália do rei, compreendeu por que tinha sido enviado a cidade tão longínqua, apanhou a carta em silêncio e saiu sem deixar a esposa perceber a sua volta. Após cumprir a missão, apresentou-se ao rei, que o recompensou com cem dinares. Farruz levou os cem dinares ao mercado dos joalheiros, comprou magníficos ornamentos que ofereceu à mulher, dizendo: “Estes são uma lembrança da viagem. Pega-os e tudo que te pertence e volta para a casa de teus pais.” 

“Assim farei,” disse a mulher sem nada perguntar ou comentar. Adornou-se com as joias, apanhou seus pertences e foi para a casa dos pais. Quando um mês se passou sem que Farruz procurasse a mulher, o irmão desta visitou-o e disse-lhe: “Se não queres revelar o motivo de tua cólera contra tua esposa e o abandono em que a deixas, terás que te explicar diante do rei.” 

O marido concordou, e foram juntos à presença do rei.

O rei transferiu-os ao cádi que estava sentado a seu lado. O cunhado disse: “Que Alá assista o nosso senhor cádi! Eis a minha queixa: eu e minha família possuíamos um lindo jardim, protegido por altos muros, cuidado e plantado de flores aromáticas e de árvores frutíferas. Entregamo-lo a este homem. E ele, depois de colher as flores e comer as frutas, e depois de demolir os muros e abandonar o jardim aos quatro ventos, quer romper o contrato e devolver-nos o jardim no estado em que o pôs. Tal é nossa queixa, ó nosso senhor cádi.”

O cádi perguntou a Farruz: “Que tens a dizer, ó jovem” 

Farruz respondeu: “Devolvo-lhes o jardim com vontade e sem vontade! O motivo desta restituição é que, um dia, entrei no jardim e vi nele as pegadas de um leão. Tive medo de que, um dia, ele acabe por me devorar”.

O rei prestava atenção sem o deixar perceber.

Ao ouvir as palavras de Farruz, compreendeu-lhes o sentido e o alcance e interveio, dizendo a seu servidor: “Ó Farruz, acalma teu coração e apazigua tuas dúvidas. Pois, pela verdade e pela santidade do islã, é o jardim mais bem defendido que encontrei em toda minha vida. Suas muralhas o protegem contra qualquer assalto. E suas flores são as mais belas que já vi.” 

Farruz compreendeu e fez a paz com a mulher e amou-a. Nem o cádi nem as demais pessoas presentes compreenderam de que se tratava. Pela forma alegórica dada ao pensamento de cada um, o segredo ficou limitado ao rei, a Farruz e ao irmão da esposa.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Vereda da Poesia = 7 =


Uma Trova

NEI GARCEZ
(Curitiba/PR)

Entre o sonho e a verdade
vai vivendo, em seu juízo,
toda a nossa humanidade
seu inferno ou paraíso.
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Um Soneto

CARLOS NEJAR
(Luís Carlos Verzoni Nejar)
(Porto Alegre/RS)

Poemas e Sapatos

Nada tenho de meu, nem os sapatos
que vão acompanhar este defunto.
Nem tampouco montanhas e regatos
que habitaram o verso, nem o indulto

pode valer-me, o soldo, mero extrato
de contas. Nada tenho, nem o intuito
consome esta vontade ou desacato.
Desapareça o nome, seu reduto

de carne e bronze, a fome incorporada
e mais desapareça onde fecundos
são dias e são deuses nesta amada.

Não foram nunca meus — sonhos e fatos.
Nada tenho. Poemas e sapatos
irão reconhecer-me noutro mundo.
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Um Quadrão à Antiga

LOURIVAL BATISTA
(Itapetim/PE)

O Cantador repentista, 
Em todo ponto de vista, 
Precisa ser um artista 
De fina imaginação, 
Para dar capricho à arte, 
E ter nome em toda parte, 
Honrando o grande estandarte 
Dos oito pés de Quadrão!
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Um Poema

CELSO BRASIL
(Curitiba/PR)

Tu, eu e a poesia

Te amo com toda energia,
Te quero bem perto de mim,
Mas também tem a Poesia!
Eu Quero as duas, enfim!!!

Te peço... não tenhas ciúme!
Sem ela não posso te amar!
Da minha montanha, ela é o cume,
Do cume, amor te quero gritar!

Abro os braços à magia,
Entre eles, sempre estarás.
Mas se não abraço a Poesia,
A ti... como me declarar?

Poesia, minha eterna amante.
Tu, minha eterna paixão.
A Poesia me leva adiante!
E tu! levo em meu coração.

Se me deixares amá-la,
Para ti também existirei.
Mas se me apartares dela,
Sem versos, então, morrerei.

Ficarás chorando no báratro,
Quando eu tiver que me ir.
Consolar-te até o reencontro,
Sei que a Poesia há de ir.

Tu e a poesia, então, juntas
Viverão a me relembrar.
De vez em quando unidas,
Ambas se porão a chorar.

Nesse momento, querida,
Certamente, ali estarei.
Tu e a Poesia formam minha vida!
E, assim, nunca mais morrerei.
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Uma Quadra

AGOSTINHO DA SILVA
(George Agostinho Baptista da Silva)
(Porto, 1906 – 1994, Lisboa)

Não corro como corria
nem salto como saltava
mas vejo mais do que via
e  sonho mais que sonhava
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Uma Glosa

FRANCISCO JOSÉ PESSOA
(Fortaleza/CE, 1949 – 2020)

Mote:
O meu verso tem o cheiro 
Da poeira do sertão.
(Manoel Dantas)

Glosa:
Nasce o sol, outra manhã 
Se espreguiça, é novo dia 
E a morte, má, se anuncia 
No canto da acauã 
Ave de agouro, malsã, 
Que canta nossa desgraça 
Sobrevoando a carcaça 
Do boi que ontem era são 
Hoje inerte jaz no chão 
No pé do seco imbuzeiro 
O meu verso tem o cheiro 
Da poeira do sertão.

Recordando Velhas Canções (O bom rapaz)


Compositor: Geraldo Nunes

Parece que eu sabia
Que hoje era o dia
De tudo terminar
Pois logo notei
Quando telefonei
Pelo seu jeito de falar

Eu nunca pensei
Quem eu tanto amei
Fosse assim me desprezar
Mas o mundo é grande
Vou nem sei pra onde
Alguém há de me amar

Já que terminamos
Só resta agora
O adeus final
Pá pará pará paraaá
Te amar demais
Ser um bom rapaz
Foi o meu mal
Pá pará pará paráá
Te amar demais
Ser um bom rapaz
Foi o meu mal

Parece que eu sabia
Que hoje era o dia
De tudo terminar
Pois logo notei
Quando telefonei
Pelo seu jeito de falar

Eu nunca pensei
Quem eu tanto amei
Fosse assim me desprezar
Mas o mundo é grande
Vou nem sei pra onde
Alguém há de me amar

Já que terminamos
Só resta agora
O adeus final
Pá pará pará papáá
Te amar demais
Ser um bom rapaz
Foi o meu mal
Pá pará pará paráá
Te amar demais
Ser um bom rapaz
Foi o meu mal
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Dor e a Reflexão em 'O Bom Rapaz' de Wanderley Cardoso
A música 'O Bom Rapaz', interpretada por Wanderley Cardoso, um ícone da Jovem Guarda no Brasil, retrata a história de um amor que chega ao fim, deixando reflexões sobre a própria conduta do narrador na relação. A letra começa com uma premonição do fim, evidenciada pela mudança no comportamento da amada ao telefone, um detalhe que imediatamente sinaliza que algo não está bem.

O refrão da música, 'Te amar demais, ser um bom rapaz, foi o meu mal', sugere uma reflexão crítica sobre a ideia de que amar intensamente e ser uma pessoa boa podem ter sido contraproducentes para o narrador. Essa ideia pode ser interpretada como uma crítica às expectativas sociais sobre comportamento em relacionamentos, onde frequentemente se espera que a bondade e o amor incondicional sejam recompensados com reciprocidade e felicidade.

Além disso, a música toca em temas universais como a rejeição e a busca por novos começos. O narrador, apesar da dor, reconhece que o mundo é grande e mantém a esperança de encontrar amor novamente. Essa resiliência e aceitação do fim de um ciclo são emocionalmente poderosas e ressoam com muitos ouvintes que já passaram por experiências semelhantes de término de relacionamentos.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Varal de Trovas n. 600

 

Mensagem na Garrafa = 121 =

Lóla Prata
Bragança Paulista/SP

PLENITUDE

O anjo-menina pulou de nuvem em nuvem e apresentou-se para o plantão do serviço noturno. O santo encarregado designou-a a proteger várias pessoas, à quais fora ligada por humanos afetos familiares. A primeira que constava era o nome de sua mãe terrena. O anjo-menina saltitou em êxtase de cristalina alegria! Ora, cuidar da mãe temporal seria um acréscimo de graça à abundância de paz e luz que gozava desde a vinda para a eternidade...

Como todo anjo, era ligeirinha, voava, no sentido literal. Num milésimo de segundo desceu e reviu a mãe biológica descansando na cama: linda velhinha com cabelos despenteados, mas no semblante, os mesmos traços meigos.

O anjinho abraçou-a repetidas vezes enquanto a mulher sorria como se captasse os fluidos amorosos. Com certeza, sentia-lhe a presença, pois percorria com o olhar o ambiente semiescuro, tentando localizar a fonte de tal sensação. Seria a invisível presença da filhinha que partira há tanto tempo?

As duas deixavam-se penetrar de santo amor!

A pequena mensageira divina acomodou-se ao lado da anciã, acariciando-lhe os cabelos até ela adormecer, embalada pela repetição das Ave-Marias do rosário. Cumprida a missão, alçou voo, alegremente, em busca dos outros da relação do trabalho noturno.

Possuía a felicidade em plenitude!

Vereda da Poesia = 6 =


UM SONETO

Maria Santos Nascimento
Rio de Janeiro/RJ

Dilema

Eu que pensei ser livre como o vento,
não fraquejar em cada despedida,
aceitar meus fracassos sem lamento
e nunca me queixar das leis da vida…

Eu que pensei domar meu sentimento,
e ser, na luta, justa e destemida,
agora, com você no pensamento,
pouco importa vencer ou ser vencida…

O nosso bem-querer gera perigos,
mas, como só podemos ser amigos,
é fácil controlar as emoções…

Difícil é lutar contra a saudade
e acreditar que os elos da amizade
têm mais poder que a fúria das paixões!…
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UMA TROVA

Wandira Fagundes Queiroz 
Curitiba/PR

Quando aos luzeiros da fama
se agregam luzes do Bem,
há um brilho, a mais, que se inflama
e imortaliza também.
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UM POEMA

Rui Knopfli
(Rui Manuel Correia Knopfli)
Inhambane/Moçambique, 1932 – 1997, Lisboa/Portugal

PRINCÍPIO DO DIA

Rompe-me o sono um latir de cães
na madrugada. Acordo na antemanhã
de gritos desconexos e sacudo
de mim os restos da noite
e a cinza dos cigarros fumados
na véspera.
Digo adeus à noite sem saudade,
digo bom-dia ao novo dia.
Na mesa o retrato ganha contorno,
digo-lhe bom-dia
e sei que intimamente ele responde.

 Saio para a rua
e vou dizendo bom-dia em surdina
às coisas e pessoas por que passo.

 No escritório digo bom-dia.
Dizem-me bom-dia como quem fecha
uma janela sobre o nevoeiro,
palavras ditas com a epiderme,
som dissonante, opaco, pesado muro
entre o sentir e o falar.

 E bom dia já não é mais a ponte
que eu experimentei levantar.
Calado,
sento-me à secretária, soturno, desencantado.

 (Amanhã volto a experimentar).
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UMA QUADRA

Fernando Pessoa
(Fernando António Nogueira Pessoa)
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

Tens um livro que não lês, 
tens uma flor que desfolhas; 
Tens um coração aos pés 
e para ele não olhas.

Artur de Azevedo (Uma amiga)

Dona Ritinha Torres, a mais ingênua e a mais virtuosa das esposas, adquiriu há tempos a dolorosa certeza de que seu marido namorava escandalosamente uma senhora, vizinha deles, que exercia, ou fingia exercer, a profissão de modista.

Havia muitas manhãs que Venâncio Torres - assim se chamava o pérfido - acordava muito cedo, tomava o seu banho frio, saboreava a sua xícara de café, acendia o seu cigarro e ia ler a Gazeta de Noticias debruçado a uma das janelas da sala de visitas.

Como Dona Ritinha estranhasse o fato, porque havia já quatro anos que estava casada com Venâncio, e sempre o conhecera pouco madrugador, uma bela manhã levantou-se da cama, envolveu-se numa colcha, e foi, pé ante pé, sem ser pressentida, dar com ele a namorar a modista, que o namorava também.

A pobre senhora não disse nada; voltou para o seu quarto, deitou-se de novo, e à hora de costume simulou que só então despertava.

Tivera até aquela data, o marido na conta de um irrepreensível modelo de todas as virtudes conjugais; todavia, soube aparar o golpe: não deu a perceber o seu desgosto, não articulou uma queixa, não deixou escapar um suspiro.

Mas às dez horas, quando Venâncio Torres, perfeitamente almoçado, tomou o caminho da repartição, ela vestiu-se, saiu também, e foi bater à porta da sua melhor amiga, D. Umbelina de Melo, que se mostrou admiradíssima.

- Que é isto?! Tu aqui a estas horas! Temos novidade?

- Temos... temos uma grande novidade; meu marido engana-me!

E deixando-se cair numa cadeira, D. Ritinha prorrompeu em soluços.

- Engana-te? perguntou a outra, que empalidecera de súbito.

- E adivinha com quem?... Com aquela modista... aquela sujeita que mora defronte de nossa casa!...

- Oh, Ritinha! Isso é lá possível!...

- Não me disseram; vi, vi com estes olhos que a terra há de comer! Um namoro desbragado, escandaloso, de janela para janela!

- Olha que as aparências enganam...

- E os homens ainda mais que as aparências. – o pranto recrudescia. – E eu que tinha tanta confian... an... ça naquele ingra... a ..to!...

- Que queres tu que te faça? – perguntou D. Umbelina, quando a amiga lhe pareceu mais serenada.

- Vim consultar-te... peço-te que me aconselhes... que me digas o que devo fazer... Não tenho cabeça para tomar uma resolução qualquer!

- Disseste-lhe alguma coisa?

- A quem?

- A teu marido.

- Não; não lhe disse nada, absolutamente nada. Contive-me quanto pude. Não quis decidir coisa alguma antes de te falar, antes de ouvir a minha melhor amiga.

D. Umbelina sentou-se ao lado dela, agradeceu com um beijo prolongado e sonoro essa prova decisiva de confiança e amizade, e, tomando-lhe as mãos, assim falou:

- Ritinha, o casamento é uma cruz que é mister saber carregar. Teu marido engana-te... se é que te engana...

- Engana-me!..

— Pois bem, engana-te, sim, mas... com quem? Reflete um pouco, e vê que esse ridículo namoro de janela, que o obriga a madrugar, sair dos seus hábitos, é uma fantasia passageira, um divertimento efêmero que não vale a pena tomar a sério.

— Achas então quê?...

— Filha, não há no mundo marido algum que seja absolutamente fiel. Faze como eu, que fecho os olhos às bilontrices (pilantragens) do Melo, e digo como dizia a outra: — Enquanto andar lá fora, passeie o coração à vontade, contanto que me o restitua quando se recolher ao lar doméstico.

— Filosofia no caso!

— Vejo que não sentes por teu marido o mesmo que sinto pelo meu...

A filósofa conservou-se calada alguns segundos, e, dando em D. Ritinha outro beijo, ainda mais prolongado e sonoro que o primeiro, prosseguiu assim:

— Se fizeres cenas de ciúmes a teu marido, apenas conseguirás que ele se afeiçoe deveras à tal modista; o que por enquanto não passa, felizmente, de um namoro sem consequências, poderá um dia transformar-se em paixão desordenada e furiosa!

— Mas...

— Não há mas nem meio mas! Cala-te, resigna-te, devora em silêncio tuas lágrimas, e observa. Se daqui a oito ou dez dias durar ainda esse pequeno escândalo, vem de novo ter comigo, e juntas combinaremos então o que deverás fazer.

— Aceito de bom grado os conselhos, minha boa amiga, mas não sei se terei forças para sofrear a minha indignação e os meus ciúmes.

— Faze o possível por sofreares. Lembra-te que és mãe. Quando um casal não vive na mais perfeita harmonia, a educação dos filhos torna-se extremamente difícil.

Alentada por esses conselhos amistosos e sensatos, D. Ritinha Torres despediu-se da sua melhor amiga, e foi para casa muito disposta a carregar com resignação a cruz do casamento.
***

Logo que ficou sozinha, D. Umbelina que até então a custo se contivera, teve também uma longa crise de lágrimas.

Mas, serenada que foi essa violenta exacerbação dos nervos, a moça correu ao telefone, e pediu que a comunicasse com a repartição onde Venâncio Torres era empregado.

— Alô! Alô!

— Quem fala?

— O Sr. Venâncio está?

— Está. Vou chamá-lo.

Três minutos depois D. Umbelina telefonava ao marido de D. Ritinha que precisava falar-lhe com toda urgência.

Ele correu imediatamente à casa dela, onde foi recebido com uma explosão de lágrimas e imprecações.

— Que é isto?! Que é isto?! – perguntou atônito.

— Sei tudo! – bradou ela. – Tua mulher esteve aqui e contou-me o teu namoro com a modista de defronte!

Venâncio ficou alterado.

— A idiota veio perguntar-me, a mim, que sou tua amante, o que devia fazer! Eu disse-lhe que fechasse os olhos, que se resignasse...

E agarrando-o com impetuosidade:

— Ah! Mas eu é que me não resigno, sabes? Eu não sou tua mulher, sabes? Eu amo-te, sabes?...

— Isso é uma invenção tola... Eu não namoro modistas.

— Olha, Venâncio, se continuares, tudo saberei, porque incumbi a tua própria mulher de me pôr ao fato de tudo quanto se passar! Se persistires em namorar essa costureira, darei um escândalo descomunal, tremendo, nunca visto... — Afianço-te que te arrependerás amargamente! Tu ainda não me conheces!...

Venâncio tinha lábias: desfez-se em desculpas e explicou, o melhor que pôde, as suas madrugadas.

D. Umbelina, que ardia em desejo de perdoar, aceitou a explicação. Entretanto, ameaçava-o sempre:

— Olha que se me constar que... Não te digo mais nada!...

E os dois amantes celebraram as pazes do modo mais definitivo possível.

Pouco antes da hora em que devia chegar o dono da casa com o seu coração intacto, Venâncio, que descia a escada, parou, e retrocedeu três ou quatro degraus para dizer a D. Umbelina:

– Queres saber de uma coisa? Essa história da modista é bem boa: serve perfeitamente para desviar qualquer suspeita que minha mulher possa ter da sua melhor amiga...

E desceu.
***

Oito dias depois, D. Umbelina de Melo recebia um bilhete concebido nos seguintes termos:

"Minha boa amiga. — Parece que tudo acabou, felizmente. Depois que estive contigo, nunca mais Venâncio se levantou cedo, nem foi à janela. Deus queira que isto dure! Como sou feliz!
—  Tua do coração, Ritinha Torres.”

Fonte: Artur de Azevedo. Contos efêmeros. Publicado em 1897. Disponível em Domínio Público