ERA UM DIA comum, desses em que o sol se esconde tímido atrás das nuvens. Eu estava em meu carro, um Air Cross prateado, indo buscar uma tia chata na rodoviária. Me via envolvido em meio de um trânsito infernal, quando tudo aconteceu. Engraçado que não houve luzes brilhantes. Nem anjos de branco tocando Roberto Carlos em harpas paraguaias. Do nada, soltei um suspiro suave, como se a própria vida, através deste gesto, se despedisse de mim. Lembro-me que, em passo seguinte, flutuei. Fui arrebatado como se meu corpo quisesse fugir evaporando de alguma forma daquele trânsito nervoso. Flagrei-me subindo lentamente para o vértice da avenida, igualmente para acima das árvores e dos prédios.
Num dado momento, olhei para baixo e vi o asfalto se afastando, ficando cada vez menor. Os carros, (alguns parados) outros continuando a sua dança, agora um pouco mais apressada, em meio ao tráfego caótico. O engraçado. A medida em que me aproximava de alguma culminância, sei lá onde, tudo abaixo de mim, se apartava. Cada um dos veículos ia ficando menor, as pessoas atravessando a rua em busca do seu próprio destino viraram pontinhos minúsculos. Em mim, não havia dor, nem ranger de dentes, nem fraqueza ou tremeliques. Apenas uma sensação tênue de liberdade plena. O espaço se agigantando, como se eu, finalmente, galgasse a imensidão escapando, sei lá por qual motivo, das amarras terrenas.
Um pouco mais encontrei outros como eu. Almas perdidas, figuras vagando de um lado e de outro, sem rumo. Algumas criaturas sorriam, outras olhavam para todos os lados, como se procurassem uma resposta plausível para algo inexplicável. Crianças de várias idades choravam, outras brincavam. Todas, porém, entrelaçadas no mesmo plano, sem tirar nem pôr, compartilhávamos as mesmas dúvidas e incertezas: afinal, uma pergunta pesada, bailava sobre as cabeças e mentes, inclusive na minha: onde eu estava? Que lugar era aquele? O que viria depois? O que seria, raios me partam, o depois? Entrementes, num mágico silêncio, surgiu uma casa antiga. Na verdade, um casarão.
Haviam várias portas e janelas fechadas. Uma delas, num dado momento, se abriu barulhenta, como se rangesse algum osso descalcificado em suas dobradiças. Além dela, surgiu uma luz. Uma claridade baça, meio descorada e ressequida O bastante para vislumbrar o que parecia ser um corredor comprido. Na verdade, isto mesmo, um corredor dilatado. Alguém sussurrou ao meu lado, que aquele acesso parecia ser a passagem para o além, com destino ao nunca mais. Para o nunca mais? Hesitei. A bem da verdade, não estava pronto, nem preparado psicologicamente para cruzar a bendita, fosse para o além, ou para outro lugar qualquer. A vida, a minha vida, ainda pulsava nas veias.
Alvoroçava lembranças, encrespava momentos vividos, pelo menos até poucos minutos atrás. Os abraços, os beijos, os momentos de risos e lágrimas dos “meus mais chegados,” pareciam, da mesma forma, e no mesmo grau revolucionarem todo meu interior e o faziam, num devaneio determinante e contundente, todavia, envencilhado numa leveza de espírito que até aquele momento eu nunca havia sentido. Veio-me, à cachola, um pensamento abestalhado. Quase desnorteado, ou melhor dito, idiota. Eu me via diante de um ingresso mal iluminado que levava a um corredor em direção ao “sei lá onde”. Do mesmo modo, como poderia deixar tudo o que havia vivido por aqui, neste plano, à mercê do nada?
Emparelhado a mim, um velhinho que lembrava meu avô João Raimundo, se aproximou. Seus olhos cansados, apesar de enfadados e descontentes, brilhavam enigmáticos. Resplandeciam com a sabedoria de quando eu o vira pela derradeira vez, isto coisa de mais de doze anos. Nesse embalo, me chegou aos ouvidos a sua voz meiga e adocicada. Foi um momento único que me inundou por dentro, quase num sopro a me destituir do som além do sagrado ato de respirar: “A morte, meu garoto, enfatizou ele, não é o fim. É apenas uma mudança de estado. O estado de “Agora” e o estado do “Depois.” Você continuará aqui, e, em seguida, viajará para onde foi direcionado a seguir caminho.”
Fez uma pausa pequena e continuou: “Existirá, todavia, de uma forma ou outra, a sua massa corpórea em outra dimensão. E, quem sabe, talvez, o seu “eu” aparvalhado, por lá ou durante a viagem, faça com que a sua consciência pesada encontre respostas para as indagações que se formam em seus pensamentos embaralhados””. O longevo, do nada, sumiu. Escafedeu como se levado por um vendaval de magnitude branda na escala de um Richter qualquer, (não o Charles F Richter, inventor do aparelho que mede as ondas liberadas por um sismo). Esse Richter poderia ser um vulto abajoujado (abobado) e esquizofrênico, ou quem sabe até uma espécie de sombra na confusão dos meus abalos sísmicos interiores.
Voltei-me, de novo para a porta. Estava lá. Me encarando. Olhei para ela. Pareceu-me maior. Belisquei-me com força, para saber se ainda havia vida em meu “atormentamento” de alma em frangalhos. A meu lado, os que por ali me rodeavam, viraram pó. Ninguém permaneceu. Eu, aluado e leso, sozinho e desamparado, não flutuava mais, aliás, não via mais nada, além da droga da porta sisuda do corredor e da luz.
– Cadê todo mundo? – gritei e ninguém respondeu. Concentrei-me, mais uma vez, nessa admissão. Ela, de fato, não parecia tão assustadora, pelo menos nesta espiada. Talvez fosse apenas uma via de passagem para um outro começo. Assim, com um suspiro maroto, tomei coragem.
Segui adiante e atravessei. Mantive a cabeça erguida. Afastei o medo. Despedi-me do receio. “Fiquem todos em paz” – disse aos meus botões. Dito assim, ao acaso, não sei bem quem seriam, mas não importava, se aqueles ou aquelas que fosse me ouvir, ficassem, ou não, com saudade... que diferença isto faria? Precisava dizer algo, ou melhor, carecia. E disse. A morte, ou sei lá o que me trouxera até aqui. Seria apenas um capítulo a ser vencido em minha jornada. Talvez topasse, de novo, com o idoso com cara de “meu avô”. Ou não. A nossa jornada, seja ela boa ou ruim, nos lembra da preciosidade da vida em toda a sua formosura e da importância de cada momento que vivemos. Assim, sem eira nem beira, digo de peito aberto aos que ficam, que vivam intensamente abraçando ao mistério.
Ao mesmo tempo, felicitando a beleza ínfima e imensurável de tudo aquilo que nos envolveu numa camada inesgotável, que nos assediou ao “Tudo,” e ao mesmo tempo, neste final de passos incertos, certamente nos enterrará ao separado do “Nada.” Ergui a cabeça e segui em direção à luz. Capturei passos adiante, um barulho de motor conhecido. Parecia ser o do meu avião, um Bombardier Learjet 45, jatinho bimotor todo escuro como o breu, a fuselagem e as asas negras. Fazia-me recordar, sempre que o via, um corvo gigante. A aeronave parecia estar pronta para alçar voo, em algum lugar no fim do passadiço esperando apenas que eu embarcasse. Escutei os motores das turbinas mais próximos.
Realmente, em ponto de bala, me deparei, pressuroso, com meu brinquedinho de estimação. Como viera parar ali? Cadê os meus dois pilotos? Quem o trouxera do Campo de Marte? Fora do tal corredor, capturei as luzes azuis da pista por onde ele correria até o instante de fazer o 360, acelerar e decolar. Eu iria, de fato voar? Percebi, em mim mesmo, um sorriso de paz benfazeja, como se me tivesse estampado, corpo inteiro, num espelho inexistente surgido de última hora. Foi o tempo de entrar, apertar o cinto, e, no derradeiro seguinte, murmurar baixinho somente para meu coração escutar:
– Adeus, matéria que vulgarmente cognominei de VIDA.
No milésimo de segundo após dizer estas palavras, sai literalmente de dentro de mim e mergulhei na imensidão.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
Nenhum comentário:
Postar um comentário