terça-feira, 8 de abril de 2025

Vereda da Poesia = 239


Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

NAUFRÁGIO

Neste oceano da vida, tumultuoso,
lancei, cheio de sonhos, um barquinho.
E ele flutuou e deslizou airoso,
vencendo os empecilhos do caminho!

Nos momentos difíceis, sem repouso,
depressa ia ampara-lo o meu carinho
e ansiosa eu via, com secreto gozo,
meus sonhos desafiando o torvelinho!

E chegaste! E de pedra era tua alma!
De papel, o barquinho... e tenso e mudo,
ficaste, quando o mar perdeu a calma!

Contra o recife, o barco soçobrou!
E os sonhos, sem guarida, ao fim de tudo,
um a um, impiedoso, o mar levou!
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Você diz que me quer bem
mas ontem não riu pra mim,
deixe desse fingimento,
quem ama não faz assim.
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Soneto de
VINICIUS DE MORAES
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980

Soneto de Criação

Deus te fez numa forma pequenina
De uma argila bem doce e bem morena
Deu-te uns olhos minúsculos de china
Que parecem ter sempre um olhar de pena.

Banhou-te o corpo numa fonte fina
Entre os rubores de uma aurora amena
E por criar-te assim, leve e pequena
Soprou-te uma alma calma, cálida e divina.

Tão formosa te fez, tão soberana
Que dar-te aos anjos por irmã queria
Mas ao plasmar-te a carne predileta

Deus, comovido, te criara humana
E para tua justa moradia
Atirou-te nos braços do poeta.
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Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

ESTER

Vem! no teu peito cálido e brilhante
O nardo oriental melhor transpira!
Enrola-te na longa cachemira,
Como as judias moles do Levante,

Alva a clâmide aos ventos - roçagante...
Túmido o lábio, onde o saltério gira...
Ó musa de Israel! pega da lira...
Canta os martírios de teu povo errante!

Mas não... brisa da pátria além revoa,
E ao delamber-lhe o braço de alabastro,
Falou-lhe de partir... e parte... e voa. . .

Qual nas algas marinhas desce um astro...
Linda Ester! teu perfil se esvai... s'escoa...
Só me resta um perfume... um canto... um rastro...
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Soneto de
MARTINS FONTES
Santos/SP, 1884 – 1937

Incontentado

Quando em teus braços, meu amor, te beijo,
se me torno, de súbito, tristonho,
é porque às vezes, com temor, prevejo
que esta alegria pode ser um sonho.

Olho os meus olhos nos teus olhos... Ponho,
trêmulo, as mãos nas tuas mãos... E vejo
que és tu mesma, que és tu! E ainda suponho
Ser enganado pelo meu desejo.

Quanto mais, desvairado de ansiedade,
do teu corpo, meu corpo se avizinha,
mais de ti, junto a ti, sinto saudade...

- E o meu suplício atroz não se adivinha,
quando, beijando-te, o pavor me invade
de que em meus braços tu não sejas minha!
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Haicai do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

No botão da flor,
depois da explosão da rosa,
os lábios do amor! 
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Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Olha Daisy: quando eu morrer tu hás-de...
(Fernando Pessoa/Alvaro de Campos "Cem Sonetos Portugueses", p. 82)

Olha, Daisy: quando eu morrer tu pensas
Que fui ali, à esquina, ver tabaco
Que me escapei do lar, sem dar cavaco
Mas que voltarei já, sem mais detenças.

Vendo bem, não são muitas as diferenças
Entre a morte e uma queda num buraco
Da rua em que rasgamos o casaco
E o corpo sofre mais outras ofensas.

Insulta-me: "És canalha e mentiroso!!!
Seu traidor!!! És um traste e cão raivoso!!!
Até que enfim, me vi livre de ti!"

E não indo a saudade à tua porta
Quando a minha lembrança for já morta
Não vale a pena, então, ver que eu morri...
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Poema de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

CAMÕES, I

Tu quem és? Sou o século que passa.
Quem somos nós? A multidão fremente.
Que cantamos? A glória resplendente.
De quem? De quem mais soube a força e a graça.

Que cantou ele? A vossa mesma raça.
De que modo? Na lira alta e potente.
A quem amou? A sua forte gente.
Que lhe deram? Penúria, ermo, desgraça.

Nobremente sofreu? Como homem forte.
Esta imensa oblação?... É-lhe devida.
Paga?... Paga-lhe toda a adversa sorte.

Chama-se a isto? A glória apetecida.
Nós, que o cantamos?... Volvereis à morte.
Ele, que é morto?... Vive a eterna vida.
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Poemeto de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

A madrugada jaz fria
no concreto da cidade
e teu corpo incendiado
aquece os lençóis vazios.
A flor grita, em euforia
nos canteiros agitados;
muda, sente calafrios,
chamas da maturidade.
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Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

CURVA DO CAMINHO

Eis-me chegando à curva do caminho,
onde vejo os escombros do passado:
a casa em que nasci, cresci, malgrado
o quarto de dormir em desalinho.

Não me faltou, porém, muito carinho
vivendo no Sertão injustiçado,
onde o “mandante” sempre desalmado
faz o povo sofrer, no Pelourinho...

No entanto, a vida é bela e deslumbrante,
mesmo que a estrada se apresente escura
sempre brilha uma luz ao viajante...

... E quando eu me tornar uma saudade,
minha alma esquecerá a desventura
para cantar, em verso, a Eternidade!
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Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/ Portugal

O GATO BERNARDO

O gato Bernardo
mia, mia sem parar.
Quer apanhar uma estrela,
mas não sabe como a ela chegar.

Faz contas e mais contas,
calcula distâncias em vão.
Não sabe como chegar ao céu:
se a pé ou de avião.

Recomendei-lhe um foguetão
ou uma nave espacial.
O gato Bernardo está confuso
pois escolher não sabe qual!

A força da gravidade
está a deixá-lo preocupado.
Diz que já não tem idade
para andar pendurado.

Talvez peça a uma empresa
para lhe trazer o seu desejo.
Vai deixá-la no seu quarto
e com ela será um festejo.

A estrelinha vai-lhe contar
histórias para adormecer.
Serão os melhores amigos
até o Sol nascer!
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Poema de
SILMAR BOHRER
Caçador/SC

C A N T I L E N A S

Na rude sina de escrever
não tenho o brilho de versejar,
sem o estro como me atrever
a alguma rima iluminar.

Lendo Confúcio e os sonetos
de Bilac reverberando,
nos parnasianos, nos analetos
a rabiscar vou bem lutando.

São cantigas mãos-atadas,
sem vigor e sem brilho, dezenas
de estrofes versalhadas,

São cores sem nenhum matiz,
tantos versos cantilenas
e garatujas do bardo aprendiz.
= = = = = = = = =  

Poeminha de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Chocados os ovos,
há o choque
dos seres novos.
E a vida prossegue.
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Soneto de
JÉRSON BRITO
Porto Velho/ RO

AGONIA

Nos lençóis inda sinto o perfume
Desse amor indomado, atrevido.
Perco o sono, em saudade embebido,
Tu partiste, emergi em negrume.

Por espinhos agudos cingido
Não mais tenho o mirífico lume,
A lamúria o viver se resume
Com tristura esta cama divido.

Presa fácil de infinda agonia
Tua ausência pranteio, definho,
Perambulo em vereda sombria.

Se tivesse outra vez o carinho
A sorrir de prazer voltaria,
Não me deixes penar mais sozinho.
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Poetrix de
TÂNIA SOUZA
Mato Grosso do Sul

VITRINE

Confeitos coloridos!
Nos olhos do menino
A fome chora.
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Poema de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/SP

SILÊNCIO

Existem  dias que  prefiro o silêncio,
um silêncio brando, suave, que me transporta
ao profundo útero da alma.
Feto sem luz, ali me recolho à espera de renascimento.
Choro um choro sufocado, que o silêncio silencia.
A  gestação  prossegue recriando minha alma
e  reencontro a vida que  a mim proponho.
 É no fundo do silêncio que me reconstruo
e  me apodero de novos sonhos.
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Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

AO SOM DA MINHA LIRA

Se me deixas à deriva, sou navio
resistente a solidão das calmarias.
quando as nuvens que me vêm, ficam sombrias,
fantasias iluminam meu vazio.

Abstrai-me o abandono que me inspira
a içar  as minhas velas renitentes,
movimento-me ao som da minha lira,
mesmo quando o meu silêncio é  permanente.

Se me deixas  à deriva, não me deixas,
pois a tua companhia é  tão  minha,
e até  mesmo sem saber se tu te  queixas, 

teu sorriso me acompanha na viagem
que jamais será  mais triste ou mais sozinha, 
porque teu amor faz  parte da  paisagem.
= = = = = = = = =  

Poema de
J. G. DE ARAÚJO JORGE
Tarauacá/AC (1914 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

ALVORADA ETERNA

Quando formos os dois já bem velhinhos,
já bem cansados, trôpegos, vencidos,
um ao outro apoiados, nos caminhos,
depois de tantos sonhos percorridos...

Quando formos os dois já bem velhinhos
a lembrar tempos idos e vividos,
sem mais nada colher, nem mesmo espinhos
nos gestos desfolhados e pendidos...

Quando formos só os dois, já bem velhinhos,
lá onde findam todos os caminhos
e onde a saudade, o chão, de folhas junca...

Olha amor, os meus olhos, bem no fundo,
e hás de ver que este amor em que me inundo
é uma alvorada que não morre nunca!
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Poema de
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

AMAR-TE EM POESIA!

Face a detalhes adversos
E a entraves do dia a dia,
Preciso apelar pros versos
E assim te amar em poesia!

Meus versos são lenitivos
À falta de teu calor,
Mantêm instintos ativos
Por conta de nosso amor.

Amar-te em poesia, sim;
Abrir para ti meu peito!
Trazer tua imagem pra mim
E envolvê-la do meu jeito!

Musa és de meus poemas
Instados pela distância.
De ti, vêm todos os temas
E paixão em abundância.

Os doces versos saindo,
Dão-me vida afortunada.
Amar-te em poesia é lindo,
Antes isso do que nada!
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Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

MEDO DE AMAR

Amor, meu grande amor, bem que eu queria
saber coisas de amor que não entendo.
Tuas respostas sempre têm o adendo
oculto e dúbio... cheias de magia...

Olho-te, o teu mistério não desvendo,
o teu olhar confunde a analogia;
e nada do que sinto é mais horrendo
que o desespero de perder-te um dia...

E um medo bem maior que te perder
vêm dos teus olhos e do teu poder
que deixam meus desejos tão incertos...

Quem sabe teus mistérios e segredos
estejam protelando estes meus medos
para que os teus não sejam descobertos!...
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Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

EPIGRAMA N. 2

És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.
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Aparecido Raimundo de Souza (Segredos ocultos)

NA CAMA DO HOSPITAL, dona Pureza do Amor Perfeito, a mulher quase a se apagar levada pelos braços frios da morte, sussurra para seu marido Pedro Antônio, companheiro de mais de trinta anos de convivência, (que aliás, num gesto de profundo pesar e lástima segura fortemente a mão gelada e sem pulso de sua consorte), um pedido de última hora, e o faz como um clamor meio estranho e inusitado para aquele momento:

— Antônio... meu grande e único amor... preciso lhe fazer uma confissão... pelo amor de Deus, não me odeie por isso...

Pedro Antônio, o rosto frio, os olhos distantes, a voz embargada procura acalmá-la e, nesse tom, aconselha:

— Não, minha princesa amada. Não há nada para confessar. Está tudo bem, tudo em paz. Olhe a sua volta. Aqui estão nossos seis filhos, suas noras e genros, seus netos e netas. Como pode ver, toda a nossa família se fez reunida para seu último adeus... 

Dona Pureza do Amor Perfeito, todavia, insiste:

— Amor, amor da minha vida, eu sei que estão todos aqui. Eu os vejo. Capturo cada rosto, sinto cair sobre as minhas faces as lágrimas de nossos filhos... percebo a agonia das netas Glorinha, Silvinha e Clarissa, bem ainda dos meninos Flavinho e Adalgiso, como você disse, nossas netas e netos.  Da mesma forma, também me invade a alma o padecimento dos demais consanguíneos que viveram ao nosso lado e fizeram a alegria contagiante da nossa honrada casa.  

A moribunda faz uma trégua, para tomar fôlego, e usando as suas forças derradeiras, insiste no tal desabafo:

— Pedro Antônio, preciso dizer o que está entalado. Não partirei sem antes lhe fazer um relato que considero importante. Me ouça...

Por conta desse tal entrave, segue a enfraquecida batendo na tecla com perseverança. Dona Pureza do Amor Perfeito, realmente, se vê às garras do precipício. 

A voz quase imperceptível, volta a protestar deixando qualquer outra coisa de lado, no esquecimento. Pedro Antônio, por seu turno, persevera para que ela se mantenha calada, compenetrada, os pensamentos voltados para os aconchegos daquele momento sem volta: 

— Não se esforce – diz ele. – Feche os olhos e curta esses minutos fascinantes. Olhe que felicidade... toda a nossa família está aqui... os amigos, vizinhos, o que mais deseja, meu amor?

Dona Pureza do Amor Perfeito, parece agarrada aos poucos minutos que lhe sopram pelas narinas. Num esforço sobre-humano tenta, num fio de voz desesperado se fazer ouvir. O som sai moído e ofegante:

— Meu príncipe, não quero partir com a consciência pesada... preciso falar... confessar um deslize... meu amor, me perdoa... chegue o ouvido mais perto... eu... eu... fui infiel a você...

Pedro Antônio teve vontade de pular na garganta de sua cônjuge, mas se conteve. Toda a família reunida, vizinhos e amigos... se partisse para a ignorância, nenhum dos que ali se achavam, o perdoaria. Finge um espanto, longe de ser real. Escarnece, mascarando uma estuporação:

— É mesmo, minha fofa? Com quem?

— Interessa agora?

— Claro que não, minha garota. Só para saber... mera curiosidade.

— Ok! Eu falo. Foi com o...   foi com o Fausto, nosso genro, esposo de nossa filha Margarida...

Pedro Antônio se mostra sereno, tranquilo e dono da situação. Por dentro, o sangue ferve de puro ódio. Sua vontade maior..., cortar a jugular da sem vergonha com uma faca bem afiada:

— Fique tranquila, minha linda e adorada esposa dona Pureza do Amor Perfeito. Eu sabia de tudo. E não se desespere. Aliás, eu sempre desconfiei dele com você, desde o início – falou também aos cochichos. Esquece. Já passou. Vá, porém, com as amarguras dos meus desencantos e repouse a sua traição nos cafundós do capiroto...

— Meu príncipe, como é que é? De quem? Repete... do ca... do ca...  o quê?  — Me diga, amor, você sabia? Fala sério? Você?! ... 

Ela faz um esforço ainda maior para conseguir chegar ao fim do que pretendia deixar esclarecido e ter a convicção se em verdade, o marido estava ou não brincando... 

— Todo esse tempo e você?  Meu Deus!

— Sim minha querida mulherzinha safada. Eu tinha pleno conhecimento – repete o cônjuge tartamudeando. 

— Meu Deus, meu amor... me perdoa? Você me perdoa?

— Está perdoada. Também tenho que lhe confessar uma ação reservada que só eu guardo dentro do coração. Você, minha doce amada, mãe de meus filhos e filhas... a senhora não está morrendo de morte natural... 

— Na... na... não...  em... enten... não enten...

Num fio de voz, o traído revela, sem piedade:

— Eu... eu... en... ve... ne... nei... você.... vá... para os quintos... 

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

segunda-feira, 31 de março de 2025

Adega de Versos 145: Mamede Gilford de Meneses

 

Renato Frata (Decisão)

Escrevi no quadro negro da tristeza que, a partir daquele instante eu seria outro: sorriria com os olhos apenas, se os lábios, emperrados na amargura, não ajudassem.

Quando a testa franze e a boca se fecha, sorrir com olhos é uma saída.

Ao fazê-lo, estarei como a mulher - qualquer mulher - que é fraca e forte e que sorri enquanto sua "alma se estorce amargurada," (Florbela Espanca) e segue altiva sobre os saltos a se dizer bela, a se mostrar e a se sentir como tal. A força que lhe dá a performance brota onde nascem os sentimentos, e se gadanha no espaço que sua coragem constrói.

Deve ela ser copiada, absorvida e usada, já que para lhe descobrir os sentimentos basta que olhemos em seus olhos. Se estiverem brilhantes como sol a iluminar densamente os pensamentos estará feliz, se não, como não existe meia–felicidade, sorrirá com eles marejados em opacidade.

Pois escrevi dessa maneira com o giz da consciência fincando uma a uma as letras na lousa e vi, depois, que deixei ali na decisão, uma confissão desenhada pela dor de um sofrimento que sempre senti, nunca o havia assumido.

Não sabia que a coragem da confissão eleva o valor do testemunho e que as palavras grafadas, geralmente, seriam um alerta só meu, feito para meu eu de olhadelas de queijo embolorado que servirão para quando, nesse quadro voltar a pousar os olhos comprovando que a decisão de não sofrer foi um dia tomada.

E por que a tomei?

Pela tristeza, por causa dela que compõe rostos tristes, macera-os, carcome-os com as carquilhas que riscam semblantes em acinzentado.

Não, não mais lamentarei o passado que é irmão da tristeza. Esse não mais me morderá por dentro, não deixará machucados ou cicatrizes, nem me arrancará tremores ou suores. Não deixarei que escarafunche o ontem ou que se alimente da própria comida. A partir dessa decisão o deixarei no pó da longa estrada a quem chamo esquecimento, para que fique largado num canto qualquer do coração. Será uma rastejante vaga que não fere a areia; antes, alisa-a para que a água da realidade passeie solta nos pensamentos a determinar o fim da tortura. E uso aqui, nesse fim de decisão, um ponto final do recomeço a determinar o espanto do lamento, o esquecimento de noites não dormidas que esgarçam quereres, impedem afazeres e infundem pesares...

Mas... sempre existirá um mas... conjunção ou restrição que vem contra o que se afirma. Tudo não passou de um conto de fadas - que trouxe a vontade do esquecimento nas mãos formatadas em pétalas, e que em gestos ondulantes se quebrou no crepúsculo da realidade.

Não se consegue espantar o lamento que o passado produz, nem transformar saudade em ténue lembrança: é como cinza que guarda a quentura, a ardência da brasa que o vento sopra ao desnudar o hoje, o que me leva a dizer que contra a tristeza, sim, se pode e se deve sorrir com os olhos, lábios e tez, dando á feição a melhor aparência.

Porém, é de se saber que seu efeito contra o ontem terá efemeridade de flor de mandacaru que se abre pomposa e maravilhada à lua, mas que desfalece rapidamente perante a inclemência do primeiro sol do amanhã.
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RENATO BENVINDO FRATA, trovador e escritor, nasceu em Bauru/SP, em 1946, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Além de atuar com contador até 1998, laborou como professor da rede pública na cadeira de História, de 1968 a 1970, atuou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Paranavaí, (hoje Unespar), atualmente aposentado. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da paranaense Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Vereda da Poesia = 238


Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

ROSA DE SANGUE

Dom sublime, a Poesia furta ao solo
as almas simples que Deus prestigia.
E transforma um pigmeu num louro Apolo,
glorificado à luz que não pedia!

Poesia é mãe que o filho abraça e ao colo
recolhe a dor que o peito lhe crucia.
Terno traço de união de polo a polo,
é sol na treva... é luar, em pleno dia!

Poesia é amar a própria angústia! É erguer
a taça da amargura e, sem morrer,
sorve-la, gota a gota, em noite incalma!

É estigma? É carisma? Glória ou cruz?
Poesia é estranha rosa, que seduz:
- Rosa de Sangue... com perfume de Alma!
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Lá no céu caiu um cravo
de tão grande desfolhou.
Quem não amou neste mundo
no outro não se salvou.
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Soneto de
VINICIUS DE MORAES
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980

SONETO DA DESESPERANÇA

De não poder viver sua esperança
Transformou-a em estátua e deu-lhe um nicho
Secreto, onde ao sabor do seu capricho
Fugisse a vê-la como uma criança.

Tão cauteloso fez-se em seus cuidados
De não mostrá-la ao mundo, que a queria
Que por zelo demais, ficaram um dia
Irremediavelmente separados.

Mas eram tais os seus ciúmes dela
Tão grande a dor de não poder vivê-la,
Que em desespero, resolveu-se: - Mato-a!

E foi assim que triste como um bicho
Uma noite subiu até o nicho
E abriu o coração diante da estátua.
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Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

BÁRBARA

Erguendo o cálix que o Xerez perfuma.
Loura a trança alastrando-lhe os joelhos,
Dentes níveos em lábios tão vermelhos,
Como boiando em purpurina escuma;

Um dorso de Valquíria... alvo de bruma,
Pequenos pés sob infantis artelhos,
Olhos vivos, tão vivos, como espelhos,
Mas como eles também sem chama alguma;

Garganta de um palor alabastrino,
Que harmonias e músicas respira...
No lábio - um beijo... no beijar - um hino;

Harpa eólia a esperar que o vento a fira,
- Um pedaço de mármore divino...
- É o retrato de Bárbara - a Hetaira. 
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Soneto de
MARTINS FONTES
Santos/SP, 1884 – 1937

Desarmonia

Certas estrelas coloridas,
estrelas duplas são chamadas,
parecem estarem confundidas,
mas resplandecem afastadas.

Assim, na terra, as nossas vidas,
nas horas mais apaixonadas,
dão a ilusão de estar unidas,
e estão, de fato, separadas.

O amor e as forças planetárias,
trocando as luzes e os abraços,
tentam fundi-las e prendê-las.

E eternamente solitárias,
dentro do tempo e dos espaços,
vivem as almas e as estrelas.
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Haicai do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Nas brisas serenas,
no sopro de um vento brando,
a voz das camenas*!
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* Camenas = musas 
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Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

NÃO DAREI UM SÓ PASSO ONDE ME PRENDA
(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos", p. 101)

Não darei um só passo onde me prenda
O espectro de um amor que já passou
E o resto de um sorriso que raiou
Que fazem com que agora eu me arrependa.

Mas este coração não tem emenda
E sonha com o que ainda não achou
E de todos os gostos que provou
Elege o teu beijar de que faz lenda.

Procuro outros caminhos onde passe
Sem ver em cada rosto a tua face
Trazendo o que a teu lado eu já vivi.

É falsa a tentativa dos meus passos
Que lembrando o calor dos teus abraços
Simplesmente me levam para ti.
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Poema de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

ALENCAR

Hão de os anos volver, — não como as neves
De alheios climas, de geladas cores;
Hão de os anos volver, mas como as flores,
Sobre o teu nome, vívidos e leves...

Tu, cearense musa, que os amores
Meigos e tristes, rústicos e breves,
Da indiana escreveste, — ora os escreves
No volume dos pátrios esplendores.

E ao tornar este sol, que te há levado,
Já não acha a tristeza. Extinto é o dia
Da nossa dor, do nosso amargo espanto.

Porque o tempo implacável e pausado,
Que o homem consumiu na terra fria,
Não consumiu o engenho, a flor, o encanto...
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Poemeto de
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo/SP

As folhagens agitadas
sentem o frescor
do crepúsculo
que vai de encontro
ao horizonte, enquanto
gaivotas repousam
no pôr do sol.
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Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

NÃO ME ESQUEÇO…

Não me esqueço dos versos comoventes
que escrevi com perene inspiração,
quando vivi nos chapadões florentes
da minha terra em meio do Sertão.

Depois, parti... Sofri dores pungentes
numa luta sem fim de solidão.
Desolado, vivi dias ingentes
e se caí, jamais fiquei no chão.

Vejo, porém, que os meus cabelos brancos
são apenas troféu para consolo
de quem viveu aos trancos e barrancos...

Desafiei a vida, estou cansado,
só resta agora um pensamento tolo;
sou poeta, sou livre e aposentado.
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Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/ Portugal

NO SILÊNCIO DE UM OLHAR

É na distância de um primeiro olhar
que se dá o primeiro beijo,
tímido, 
desajeitado,
por vezes estranho
e outras delicado,
deixando um arrepio na pele,
sem que os lábios 
se tenham verdadeiramente tocado.

Palavras ditas no silêncio,
gestos sentidos sem tocar,
um misto de sentimentos
sentidos num simples olhar. 

Sem fronteiras,
outras barreiras,
sem obstáculos a transpor.
Apenas um coração aberto,
tão cheio de amor.

Por mais breve que seja um olhar
poderá prender, 
cativar,
poderá ser, 
estar,
querer,
sonhar.

Olha-me com atenção
e, no pleno silêncio das nossas vozes,
ouve o meu coração.
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Poema de
SILMAR BOHRER
Caçador/SC

OH SORTE!

As rimas andam ausentes
nestas primícias de agosto,
estarão - será - descontentes
ou mesmo com algum desgosto ?

Não consigo os mais saborosos
dos meus versos companheiros,
por isso andam desgostosos
aqueles versinhos brejeiros.

Um versejador de pés-quebrados
não pode querer assim tantos
mais do que uns mal rimados,

Mas oh sorte, a Poesia tem benevolência
me borrifando com seus encantos
algum bálsamo pura essência.
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Poeminha de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

E agora, vovô?
– Agora,
nas mãos dos netos,
sou que nem ioiô. 
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Soneto de
JÉRSON BRITO
Porto Velho/ RO

CORAÇÃO ERRANTE
 
Reinado de infinitas amarguras
És tu, meu coração débil, sofrido.
Demais amaste e, não correspondido
Como antes não sorris, não mais fulguras.
 
Lamentas tuas tristes desventuras
No lúgubre jardim já ressequido,
Em vão buscas o aroma outrora haurido,
Nas barras da saudade te enclausuras.
 
Fizeste das lembranças o universo
Repleto de plangência, enfim, perverso
Onde há daquela luz rasto pequeno.
 
Entendo que vagueies sem consolo,
Seria assaz injusto se por tolo
Tivesse quem está de amor tão pleno.
= = = = = = = = =  

Poetrix de
GOULART GOMES
Salvador/BA

PESSOIX

um terço de mim delira
um terço de mim pondera
outro terço: ah! quem dera!
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Poema de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/SP

RAÍZES

Sou parte do Grande Sertão de Guimarães Rosa.
A terra me medra,
as árvores me enraízam, os pássaros me gorjeiam.
Caminho pisando folhas que me desfolham.
Sou exercida por savanas e meu cheiro é agreste.
Por isso minha alma canta,
contaminada pela Natureza que me define.
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Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

QUEM ME ALIMENTA

Quando alguém se esvai de  mim, há  alguém que  entra, 
mas minha alma se transforma em gratidão.
Nunca esqueço quem deu, ao meu, coração,
a afeição por cada irmão que nele  adentra.

Quem se alimenta do que eu amo, me alimenta, 
não  violenta meu amor com desesperos; 
o que é  sensível  não carece dos esmeros 
de quem se enfeita com a mais fútil vestimenta.

Coloquial,  o meu amor sempre evita 
erudições, porque a vil demagogia 
é  prima-irmã de qualquer vã diplomacia 

que faz do amor, a indiferença que o  habita
e o transforma num  relógio  emperrado
sobre o silêncio de um balcão... abandonado.
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Poema de
J. G. DE ARAÚJO JORGE
Tarauacá/AC (1914 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

A LUZ

Ela veio...( E a minha alma tinha a porta
aberta, e ela entrou...Casa vazia
e estranha, esta que em plena luz do dia
lembrava a tumba de uma noite morta...)

Que ela havia chegado, eu nem sabia...
Mas, pouco a pouco, e a data não importa,
minha alma, por encanto, se conforta,
e há risos pela casa...E há alegria...

Quem abrira as janelas? Quem levara
o fantasma da dor sempre ao meu lado?
Os antigos retratos, quem rasgara?

E acabei por fazer a descoberta:
- ela espantara as sombras do passado
e a luz entrara pela porta aberta!
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Poema de
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

A COR DOS OLHOS DELA

O matiz dos olhos dela é uma pintura,
Mais parece um manso lago transparente;
Onde o azul das águas traça a formosura,
Misturado ao verde do meio ambiente.
       
Em seus olhos, vejo um lago cristalino,
Sem perder o verde, réplica do céu...
Quando chove, lembra o choro repentino
Da saudade que ela tem de mim, ao léu.
            
Traz, a cor dos olhos dela, tal beleza,
Um requinte de magia sem igual;
Predomina o verde tom da Natureza,
Com o anil do céu a dar toque final.
             
Este lago azul, matiz verde ao redor,
Normalmente calmo, sofre oscilação.
Vem com seus revoltos que já sei de cor,
Presos aos ditames de seu coração.
              
Foi, a cor dos olhos dela, o atrativo
Que me pôs sob os grilhões de seu fascínio...
Que em meu peito fez lugar mais que exclusivo;
Coração meu, à mercê de seu domínio! 
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Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

ALÉM MAR

Há mesmo quem diga que o mar tem mistérios
jamais desvendados por seus navegantes; 
que a Terra, no centro dos seus hemisférios,
além de quaisquer profundezas distantes,

conserva um lugar, o maior dos impérios,
sob a proteção das carrancas gigantes,
que impedem de entrar os krakens deletérios, 
e acolhe em seu seio os marujos errantes...

O certo é que as ondas que espraiam, pacatas, 
irmãs das tormentas que afundam fragatas, 
não trazem notícias do abismo profundo...

E enquanto as procelas sacodem navios
que ainda navegam nos mares bravios
os náufragos dormem no fundo do mundo.
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Poema de
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

DESAMPARO

Digo-te que podes ficar de olhos fechados sobre o meu peito,
porque uma ondulação maternal de onda eterna
te levará na exata direção do mundo humano.

Mas no equilíbrio do silêncio,
no tempo sem cor e sem número,
pergunta a mim mesmo o lábio do meu pensamento:

quem é que me leva a mim,
que peito nutre a duração desta presença,
que música embala a minha música que te embala,
a que oceano se prende e desprende
a onda da minha vida, em que estás como rosa ou barco...?
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