segunda-feira, 12 de abril de 2010

Nachman Falbel (O Teatro Idiche)


Trazido para a América por imigrantes da Alemanha e da Europa Oriental, o teatro ídiche brilhou durante anos nos palcos de Nova York, ajudando os judeus a manter viva a lembrança de sua terra natal. Não conseguiu, no entanto, sobreviver à destruição dos judeus pelos nazistas, nem à assimilação no Novo Mundo.

Em meados da Idade Média, mímicos, dançarinos, cantores e trovadores judeus andavam de aldeia em aldeia, divertindo o povo. Esta tradição se manteve até o século XVI, quando o teatro ídiche começou a assumir a forma e o estilo que o celebrizaram durante décadas, até produzir grandes sucessos na Broadway.

Os primeiros espetáculos eram tradicionalmente realizados durante a comemoração de Purim (1) e tornaram-se conhecidos como Purimshpiel - ou Peças de Purim. Danças, acrobacia, muita música e palhaços compunham a tônica central destas apresentações, que eram quase sempre improvisadas. Os papéis femininos eram representados por homens vestidos de mulheres pois, segundo os costumes da época, estas não podiam apresentar-se ou cantar em público. Os homens, por sua vez, poderiam fantasiar-se de mulheres apenas durante os Purimshpiel. Outra característica das apresentações no século XVI era o fato de serem totalmente amadoras.

O teatro ídiche nos seus primórdios não era muito bem visto pelos grandes intelectuais judeus da época, que tinham o costume de escrever suas obras no idioma de sua terra natal – polonês, alemão ou russo. Para eles, o ídiche era um dialeto popular sem muito peso cultural e literário.

A partir de 1800, no entanto, e por influência do Iluminismo, surgiu um movimento de jovens que percebeu que o ídiche era o melhor caminho para se comunicar com a grande maioria do povo judeu, pois este era o idioma no qual as massas falavam. Assim, em 1876, Avraham Goldfadn escreveu a primeira peça profissional em ídiche. Além de ser o autor do texto, foi o responsável pela direção, produção, divulgação e cenários do espetáculo. Ex-professor e jornalista, era também um poeta e cantor que viajava pelas aldeias levando sua arte.

A obra beirava a comédia e não tinha muita profundidade, razões pelas quais foi criticada pelo famoso escritor ídiche I.L. Peretz e também por não abordar aspectos importantes da vida judaica. O autor reagiu aos comentários dizendo que o povo não estava interessado em nada além de canções, brincadeiras e beijos. No entanto, todas as histórias tinham uma moral e ele tinha um costume que deixou como herança para o teatro ídiche: explicar a moral da história, depois que as cortinas baixavam. Suas últimas peças incluíram temas heróicos da história judaica.

Seguindo a tradição dos antigos trovadores, Goldfadn também levava seus espetáculos pelas aldeias judaicas da Europa, contando suas histórias e fazendo o povo rir e, às vezes, até chorar. Seguindo seu exemplo, vários outros grupos teatrais surgiram e se multiplicaram, muitos nascendo das suas próprias divisões internas. Estudiosos do tema relatam que, em 1905, cerca de dez grupos profissionais - muitos formados por famílias inteiras - e centenas de atores faziam suas apresentações na Europa Oriental.

Fazer teatro, no entanto, nem sempre foi um negócio muito fácil e lucrativo. Assim, quando um espetáculo transformava-se em sucesso, os salários eram pagos em dia e os atores principais passavam a ser disputados pelas diferentes companhias. Quando o fracasso era muito grande, ninguém recebia. Além de Goldfadn, outro nome marcou o palco ídiche no século 19: Joseph Judah Lerner, que fez da Rússia o berço de seu trabalho. O anti-semitismo e as leis anti-semitas de 1883, no entanto, proibiram a exibição dos espetáculos, que passaram a ser denominados de “Teatro Alemão”. Precisavam de autorizações especiais que as autoridades dificilmente concediam. Assim, no final do século XIX e início do XX, centenas de escritores e atores resolveram tentar a sorte na Inglaterra e nos Estados Unidos.

A significativa população judaica da Nova York de então, somada à onda de artistas que imigrou para a América, tornou a cidade um centro de dramaturgia ídiche na virada do século. Historiadores afirmam que, entre 1881 e 1903, cerca de 1 milhão 300 mil judeus que falavam ídiche chegaram a Nova York. O público comparecia aos teatros e aplaudia com o mesmo entusiasmo comédias ou melodramas. O som do idioma da terra natal de quem deixara seu país seja pela discriminação racial ou pela falta de perspectiva econômica constituía um grande atrativo levando centenas de pessoas às casas de espetáculos no Lower East Side, Bronx e Brooklyn.

Durante 50 anos, cerca de doze teatros mantiveram em cartaz permanentemente espetáculos em ídiche. Havia uma grande concorrência entre as casas para atrair públicos maiores. As peças tinham uma certa regularidade de estilo: atores declamando em voz alta, gestos e expressões exagerados e atrizes com gestos dramáticos afetados. A grande diferença entre um espetáculo e outro estava na estrela principal, que acabou se tornando o trunfo de cada uma das companhias.

Início de uma era
Boris Tomashevsky chegou a Nova York no início de 1880, vindo da Ucrânia, juntamente com outros atores. Dono de uma bela voz, ganhava a vida cantando na sinagoga da rua Henry, e também vendendo cigarros em uma loja. Foram estes atores que apresentaram a primeira peça em ídiche nos Estados Unidos. De autoria de Goldfadn, “Koldunye” ou “A Bruxa” foi apresentado em um teatro da Rua 4, em Manhattan.

Tomashevsky tinha então 13 anos e se tornou produtor e diretor da companhia, apesar de sua pouca idade, e passou a viajar pelos Estados Unidos apresentando inúmeras peças e onde quer que se apresentassem entretinham um público formado por operários judeus imigrantes. Deu preferência aos trabalhos de Goldfadn, entre os quais “Shmendrich e o Fanático” ou “Os Dois Kuni-Lemls” (“Os Tolos”), responsável pela introdução do personagem Shmendrich, cujo nome acabou fazendo parte do léxico americano como sinônimo para desastrado.

Em 1887, a companhia de Tomashevsky encenou “Baltimore”. Na platéia, uma espectadora especial, que posteriormente se tornou um dos grandes nomes da dramaturgia ídiche nos Estados Unidos, Bessie Baumfeld-Kaufman, encantou-se pela protagonista da história, uma jovem donzela. Ao dirigir-se aos camarins para conhecer a atriz, descobriu surpreendida que esta era Thomashevsky. Algum tempo depois, Bessie fugiu de casa para juntar-se à companhia e, em 1891, casou-se com o ator, e passou a substituí-lo nos papéis femininos que este costumava representar.

Embora os Tomashevsky não fossem a única companhia importante de teatro ídiche, eram os empresários mais famosos. Encenaram vários espetáculos, entre os quais as versões judaicas de “A Cabana do Pai Tomás”; “Fausto”, de Goethe, e “Parsifal”, de Wagner. Boris foi a estrela de uma adaptação de “Hamlet”, de Shakesperare, chamada “Der Yeshiva Bokher” (“O Estudante da Ieshivá”) e Bessie foi a estrela de “Salomé”, de Oscar Wilde.

Outro nome que marcou época foi Jacob Gordin, que procurou escrever peças e encenar espetáculos que contivessem elementos mais realistas. Os autores foram estimulados a encarar o teatro ídiche como um negócio, incentivados também pelo surgimento de um público mais exigente. Autores como David Pinski, Leon Kobrin e Peretz Hirscheim escreveram obras que lidavam com problemas sociais sérios.

O repertório da companhia de Gordin incluía a livre adaptação de obras clássicas européias, que levaram à apresentação de O Rei Lear Judeu, em 1892. O rei foi interpretado por Jacob P. Adler, fundador do grupo de atores que falavam ídiche e inglês e era integrado por sua esposa Sara, e Celia, Julia, Stella e Luther Adler.

Sholem Asch e Sholem Aleichem exploravam temas e personagens do folclore judaico com humor e sensibilidade; e H. Leivick - pseudônimo de Levick Halpern, produziu dramas sociais envolvendo tanto operários judeus quanto os de outra classe social. Como exemplo deste período está “O Golem”, publicado em 1921, e “Milagre do Gueto de Varsóvia”, encenado em 1945.

Maurice Schwartz fundou o Teatro de Arte Ídiche em 1918, que se tornou um centro de treinamento para toda uma geração de atores. Entre seus parceiros estão Rudolph Schildkraut, Jacob Ben-Ami e Muni Weisenfreund, que se tornou posteriormente conhecido no mundo do cinema como Paul Muni.

Na Europa, também, o teatro ídiche passava por mudanças, que se refletiram no surgimento e sucesso do Grupo de Vilna, em 1916, que encenava espetáculos de maior qualidade literária e exigia dos atores um idioma mais apurado, além de melhor desempenho da companhia como um todo, ao invés de centralização em um único protagonista. A montagem de “O Dibuk”, de Anski, em 1920, garantiu a aceitação do grupo em meio ao público.

Ao longo dos anos, o teatro ídiche nos Estados Unidos passou a trazer para o palco também o conflito entre os países de origem dos imigrantes e seus filhos nascidos na nova pátria; ou então as tensões entre os ortodoxos e os judeus do Iluminisno da Europa e da América, ajudando os imigrantes que falavam ídiche a lidar com as contradições de acordo com sua própria perspectiva.

De certa forma, o teatro ídiche ajudou a construir a ponte entre o shtetl (2) e a América e brilhou durante algumas décadas. Não foi, no entanto, capaz de sobreviver à destruição do idioma e da cultura ídiche pelos nazistas, na Alemanha e na Europa Oriental, enquanto os descendentes dos imigrantes assimilavam-se cada vez mais na América. Assim, na segunda metade do século XX, era incerto o futuro das poucas companhias que ainda funcionavam em Nova York, Londres, Bucareste, Buenos Aires e Varsóvia. O desaparecimento gradativo das platéias levou à redução do número de espetáculos, que passaram a ser substituídos por peças que refletiam, cada vez mais, o dia-a-dia, ou seja, os dilemas e desafios da sociedade americana contemporânea.

O Teatro Ídiche no Brasil

Seguindo as tradições culturais européias, os judeus que imigraram ao Brasil, mantiveram formas de atividade cultural onde o teatro teve um lugar privilegiado nas comunidades em formação, no início de nosso século.

Quando examinamos os livros de atas das primeiras instituições judaicas em São Paulo em outras cidades, salta à vista a importância que as representações teatrais tiveram entre os imigrantes que formavam grupos e sociedades filo-dramáticas, para encenarem peças dos clássicos da língua ídiche.

Também a imprensa judaica das primeiras décadas de nosso tempo revela, pelos anúncios, a riqueza da atividade teatral entre os judeus em nosso país que nos anos 20, e mesmo antes, quando se deu a visita de Peretz Hirschbein, o grande dramaturgo e escritor judeu, os círculos dramáticos esforçavam-se em contatar e trazer do exterior trupes e artistas de renome mundial ao Brasil. Estes últimos vinham da Europa, dos Estados Unidos e, muitas vezes a caminho da Argentina, que constituía um centro de atração maior naqueles tempos, para fazerem suas paradas nas grandes cidades brasileiras e representarem peças do repertório teatral judaico.

Alguns dentre esses atores chegaram a se radicar entre nós e passaram a atuar junto àqueles amadores que se estabeleceram aqui, com o próprio fluir da imigração. Outros permaneciam temporariamente, exercendo sua atividade profissional contratadas pelas instituições culturais que ambicionavam preparar seus quadros e grupos na arte teatral.

Assim, já nos anos vinte, viriam ao Rio de Janeiro Mark Orenstein, Jacob Parnes, que se radicou entre nós, e, posteriormente, receberíamos o famoso Jacob Rotbaum e ainda Zigmund Turkov e outros. A crítica teatral também acabaria por surgir e se manifestar, tal como ocorreu nos anos 20, quando Jacob Nachbin redigiu o “Dos Ídiche Vochenblat”.

O Brasil também foi motivo de inspiração para novos autores dramáticos que, impressionados por certas temáticas locais, puderam expressá-las em suas obras.

Entre ele, devemos lembrar a figura de Leib Malach, que viveu e percorreu as comunidades judaico-brasileiras, retratando seus dramas e expressando os problemas do imigrante que chegava para se radicar em um novo país e meio social.
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(1) Purim =Em Purim se celebra a milagrosa salvação dos judeus da Pérsia, que lá foram exilados após a destruição do Primeiro Templo. O nome da festa advém da palavra persa "pur", que significa "sorte". A Meguilat Esther o livro que relata com detalhes a história de Purim explica: "Por isso, àqueles dias chamam Purim (sortes)" por causa da sorte que Haman havia lançado, determinando o dia em que os judeus seriam aniquilados". As celebrações referentes a Purim se iniciam no Shabat que antecede a festa: no sábado de manhã, a leitura da Torá na sinagoga deve incluir a porção Zachor (Êxodo 17:8-16). Este trecho lembra o ataque do povo de Amalek contra Israel pouco após sua libertação do Egito. Essa leitura está relacionada à data festiva, pois o grande vilão de Purim, o malévolo primeiro-ministro Haman, descendia de Amalek. A Torá nos manda recitar essa passagem para recordar e estar sempre atentos aos planos malignos dos inimigos do povo de Israel." Pois Haman, inimigo de todos os judeus, não se satisfaria com nada menos do que a destruição física de todo o povo judeu" (Esther 9:24).

(2) Shtetl =é a denominação iídiche para "cidadezinha". Chamavam-se "shtetl" as povoações ou bairros de cidades com uma população predominantemente judaica, principalmente na Europa oriental, como por exemplo na Polônia, Rússia ou Bielorrússia, antes da Segunda Guerra Mundial. Os primeiros Shtetlech apareceram no século XII, quando judeus fugindo das perseguições da Europa Central e Ocidental receberam a permissão de colonizar o território pertencendo a Dinastia Piast na Polônia.



Fontes:
– revista Menorá , ano IX, n.32 ,abril de 2001, p.66.
– A Festa de Purim. Revista Morashá. Edição 39 - Dezembro de 2002.
– Shtetl. http://pt.wikipedia.org/

domingo, 11 de abril de 2010

Trova 139 - Antonio Manuel Abreu Sardenberg (São Fidélis/RJ)

Constelação de Trovas


Mesmo soltas e espalhadas,
as pétalas são formosas;
porém somente abraçadas
é que elas se tornam rosas!
A. A. de Assis – Maringá

As almas de muita gente
São como rio profundo:
- A face tão transparente,
E quanto lodo no fundo!...
Belmiro Braga

Promessas! Ah, quem me dera,
um dia, alguma alcançar!...
E, ao final de tanta espera,
ver que valeu esperar!...
Cyrléa Neves – Nova Friburgo

Aquela rede que um dia
foi nosso ninho perfeito
hoje balança vazia
na varanda do meu peito.
Cyrléa Neves – Nova Friburgo

No grande páreo da vida,
o amor luta contra o ódio.
Não permita que a corrida
finde sem o amor no pódio.
Miguel Russowsky – Joaçaba

Repare que nossa alma
rende-se sempre bem mais
por um olhar que se espalma
que por ouvir tristes ais.
Amilton Monteiro – SJ dos Campos

Transformou nosso destino
uma pequena criança,
pois junto a Jesus menino
nasceu no mundo a esperança!
Jeanette De Cnop - Maringá

Amanhece... e eu me agasalho
na mais fria solidão,
porque o sol enxuga o orvalho,
mas minhas lágrimas... não!
Edmar Japiassú Maia – Rio de Janeiro

Meu carnaval mais risonho
foi aquele em que eu vesti
as fantasias de um sonho
que até hoje não vivi!
Elisabeth Souza Cruz – N. Friburgo

Mamãe fazia a polenta,
papai pitava um cigarro.
– Hoje a saudade é que esquenta
o velho fogão de barro!...
José Ouverney – Pindamonhangaba

A minha roça eu troquei
pelas luzes da cidade.
Nesse dia eu comecei
meu plantio de saudade!
Arlindo Tadeu Hagen – Juiz de Fora

Tenha isto como norma,
que aprendi com meus avós:
“Os amigos são a forma
com que Deus cuida de nós!”
Amilton Maciel Monteiro - S.J.dos Campos

As mães são divinas plantas
que deram flores, sementes...
Para Deus são todas santas,
com milagres diferentes!
Maria Nascimento – Rio de Janeiro

Vou dormir porque preciso
com você, mamãe, sonhar,
e sonolenta analiso:
não vou querer acordar!
Vânia Souza Ennes – Curitiba

Deus, em toda a sua glória,
com tanta grandeza e brilho,
pra completar sua história,
quis ter mãe e quis ser filho!
Gislaine Canales – B. Camboriú

Liberto a paixão contida,
seco as lágrimas do pranto...
e canto... à beira da vida
o meu canto ao desencanto...
Maria Lua – Nova Friburgo

Nos momentos de tristeza
o silêncio é tão intenso
que a solidão, com certeza,
escuta tudo o que eu penso...
Izo Goldman – São Paulo

Fico em teus braços...Depois,
Rogo a Deus, mais uma vez,
Que o segredo de nós dois
Fique só entre nós três.
Cezário Brandi Filho

Na Vila Rica de então,
Quis o destino imprevisto,
Que um pobre artista sem mão
Esculpisse as mãos de Cristo.
Dormevilly Nóbrega

Planta um beijo em meu jardim,
meu amor, quando te fores,
que ao ver teu beijo florir
murcharão as outras flores!
Pedro Emílio – São Fidélis
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Fonte:
Colaboração de Antonio Manuel Abreu Sardenberg

Urda Alice Klueger (Rosina x Pedro)


Rosina foi a própria imagem da desolação nas semanas que se seguiram. Deus do céu, como tivera a coragem? Virgem Santíssima, como pudera pecar assim, esquecer-se das promessas sempre renovadas de virtude que por anos e anos fizera nas tardes da capelinha? Oh! Como enfrentar de novo a serenidade e a pureza de Nossa Senhora, ela que se deixara contaminar pela impureza, ela que tudo jogara fora por um momento de loucura? Sim, pois estava convencida de que jogara fora inclusive o almejado noivo, aquele homem bonito que chegara a falar em casar-se com ela, aquele homem que, pela primeira vez na sua vida que já era de solteirona, chegava e falava-lhe em casamento. Meu Deus, meu Deus, como voltar atrás? O seu noivo chegara e se fora; não iria mais ele querer casar-se com moça assim fácil, moça desonrada, moça que se entregava no meio do mato ao primeiro que aparecia. Haveria algum meio de ele saber que ela não era a mulher fácil que parecia, que se ela se entregara fora porque já não resistia, fora porque já não sabia viver sem ele? Amargas lágrimas chorava ela agora, escondida no mato, naquele lugar do seu pecado, enquanto a família a imaginava a rezar na capela, já que lá não tinha mais a coragem de ir e enfrentar a Virgem Santíssima. Depois de uns dias, assustou-a uma nova imagem: e se viesse a ter um filho? Parada no mato, hirta e branca, as rosas sumidas de vez das faces, Rosina quase enlouqueceu com a idéia. Meu Deus, se o pecado tivesse lhe deixado um filho? Que seria da sua vida? Oh! Se o pai a descobrisse desonrada e grávida o que aconteceria? Talvez até o pai morresse de desgosto, talvez também a mãe morresse, mas antes eles a expulsariam de casa, colocá-la-iam na rua, todo o mundo saberia do seu pecado — como quase não enlouquecer com a idéia? Amargas lágrimas chorava Rosina. E lágrimas de dor vinham junto e misturava tudo, pois, mais que o terror pelo pecado, mais que o medo do pecado, o que lhe doía era a perda de Pedro, do noivo que, afinal, lhe aparecera. E o que doía mais não era a perda que ela julgava irremediável, mas a saudade que sabia que ficaria para toda a vida.

— Oh! Mãe Santíssima! — rezava ela nessas horas. — Que eu possa vê-lo de novo quando passar, nem que seja de longe!

Inexperiente Rosina, quanto sofrimento à toa! Como passaria ele de longe depois de ter provado o sorriso de ouvi-la delirar incoerentemente sob o seu peso? Nada ela sabia dessas coisas, tinha a alma virgem, pensara sempre num noivo como numa solução social, como alguém a quem servir e para quem trabalhar, alguém a quem dar filhos, sem se deter muito nas minúcias de como seria o gerar desses desejados filhos que ela criaria com desvelo. Nunca imaginara as sensações pecaminosas que Pedro de Souza viera lhe trazer e que estavam a voltar a cada instante e que a horrorizavam, principalmente a daquele desmaio de ventura ocorrido no momento do pecado e que ela não podia esquecer. Inexperiente Rosina, italiana e católica, quanto sofrimento à toa!

***
Pelo resto dos seus dias, Pedro de Souza não mais esqueceria aquele desmaio de prazer de Rosina Viviani sob o seu peso no leito rústico da floresta que envolvia o lugar chamado Rodeio, lá na serra-abaixo, na terra dos italianos.

Foi-se ele embora, naquele dia, tão cheio de excitação quanto quando chegara, apesar da doçura daquele êxtase que o lavara como uma chuva de verão lava uma planta ressequida e empoeirada. Foi-se embora excitado e, na sua cabeça e no seu coração, agora, Rosina imperava absoluta, com suas rosas nas faces e sua harmonia de delírio, e ele sentia-se esfomeado e sedento dela muito mais do que se sentira antes. Voltou ao Planalto como se vagasse dentro de um sonho e a mãe viu-o chegar assim e entendeu que o tempo chegara, o de dividir a casa com outra mulher, mas nada disse. Esperou que ele falasse, mas os dias passavam sem que ele nada dissesse.

Pedro esteve com sua índia, sua Maria, não dissemos antes que ela se chamava assim. Ela ainda era pouco mais que uma menina, teria dezoito anos, talvez dezenove ou vinte, e continuava mansa e terna sob o seu corpo, e ele viu quanto era morno o prazer que sentia com ela, quanto era morno perto da sensação de poder e de absoluto que houvera com Rosina.

Pedro de Souza partiu a cavalo e chegou ao lugar chamado Rodeio alguns dias depois. Ansiava rever Rosina como nunca ansiara nada na vida, e foi direto ao sítio onde ela morava. Chegou de tarde, quando estavam todos na roça, e para a roça tocou o cavalo bonito, malhado, e apeou-se junto ao velho italiano Viviani, tirando o chapelão com todo o respeito.

— Boas tardes! Como vão todos por aqui?

Giuseppe Viviani já o conhecia, tinha até uma certa cisma com ele por causa de Rosina, mas achava-o simpático, apesar das suas desconfianças.

— Boa tarde. Vamos trabalhando.

Chapéu na mão, Pedro aproximou-se mais. Via Rosina, pouco adiante, pálida como uma morta, fazendo de conta que trabalhava.

— Eu vim para tratar de um assunto com o senhor.

O velho Viviani ainda demorou uns momentos antes de parar de trabalhar e apoiar-se na enxada.

— É assunto de negócio? — cada qual falava a sua língua, mas conseguiam entender-se.

— Não, não é negócio. Vim lhe falar de casamento. Queria lhe pedir para casar-me com a sua filha Rosa.

Por aquela não esperava o velho italiano! Aprumou-se com tal rapidez que a enxada caiu e ele nem se lembrou de ajuntá-la.

— O senhor disse... — ele deixou a frase no ar. Talvez não tivesse entendido direito, o outro falava português, talvez tivesse dito outra coisa que ele confundira.

— Eu quero casar com a sua filha Rosina. Casar, entende?

Giuseppe Viviani ficou um bom minuto olhando fixo, através do corpo de Pedro. Achou de novo a palavra.

— E o senhor é católico, católico praticante?

Católico Pedro era, fora batizado, fizera a primeira comunhão, mas para ser praticante faltava muito. Não titubeou, porém, em responder:

— Sim, senhor, sou católico praticante. — E tirou do peito do futuro sogro uma preocupação grande. Para ninguém Giuseppe nunca dissera, mas sempre temera que algum homem luterano se interessasse por Rosina. Não deu o suspiro de alívio que queria, mas continuou a olhar fixamente através de Pedro, até, de repente, reagir.

— Rosina! — gritou. — Vem aqui!

Ela se aproximou, os olhos vesgos abaixados e escondidos, e Pedro de Souza, como sempre que a via, fremiu de excitação e de desejo.

— Este homem aqui quer casar-se contigo. O que tu dizes?

Como, como chorar de emoção frente à formidável presença da autoridade que era o pai. Ela se conteve e não chorou, mas queria morrer de alegria. Arriscou um olhar para Pedro, e como ele achou lindos os enviesados olhos dela!

— Que tu dizes?

Oh! Como achar a voz, assim de repente?

— Sim, pai.

— Sim o quê?

Eu também quero.

O pai avaliou as rosas que começavam a se acender nas faces de Rosina, antes de gritar de novo, chamando a mulher.

— Vem cá, mulher! Vem até aqui. A tua filha vai se casar.

E a mãe de Rosina também veio e soube, e depois todos voltaram ao trabalho, e Pedro pegou na enxada e ajudou até que o crepúsculo caísse. Foi assim que Pedro de Souza e Rosina Viviani tornaram-se noivos.

Casaram-se quase duas semanas depois, quando o padre veio de Blumenau para rezar missa em Rodeio. O sogro arranjou para que Pedro ficasse hospedado em sítio vizinho, já que não podia admitir que um noivo dormisse sob o mesmo teto que a sua filha antes do casamento. Pedro vinha todas as manhãs e trabalhava nas roças, e às vezes conseguia surrupiar um momento de intimidade com a vigiada noiva Rosina e roubava-lhe um beijo apressado e cheio de promessas, que o deixava quase maluco. Era ele um homem já maduro, já com trinta e sete anos, não tinha mais a paciência de esperar como os jovens têm. Mas esperou e casou, e sua noite de núpcias foi no quarto de Rosina, apenas uma parede de madeira a separá-los dos velhos Viviani, e como se contiveram para não deixar escapar os suspiros e os ais! Intensa noite de prazer, parecia ainda mais intensa com aquele gosto de proibido, com aquele gosto de vigilância, ai! Deus do céu, que coisa louca que foi!

Viajaram no dia seguinte para o Planalto. Pedro colocara a sua Rosina montada no cavalo malhado e lindo; ia ele a pé, puxando pelo cabresto uma mula que arranjara, em cima da qual estava amontoado o enxoval dela. Não andaram muito naquele dia, porém. Na verdade, andaram apenas o suficiente para se afastarem de Rodeio e dos moradores que ficavam próximos do caminho. No primeiro eito da mata fechada que apareceu, amarrou Pedro o cavalo e a mula a uma árvore afastada e improvisou um leito primitivo e rústico no meio das folhagens da mata e para lá arrastou uma envergonhada Rosina, que ainda não conseguia dissociar a idéia do que estava acontecendo com a idéia do pecado, mas que, afinal, teve a liberdade de soltar os suspiros e os ais, e que delirou uma melodia toda nova que ecoou pela Floresta Atlântica como o mais mavioso dos cânticos.

Fonte:
CARDOZO, Flávio José (org.) Este Amor Catarina. Florianópolis: UFSC, 1996.

Urda Alice Klueger (1952)


(Blumenau, 16 de fevereiro de 1952) é uma escritora e historiadora brasileira.

Começou seus estudos na sua cidade natal, na Escola São José. Cursou o ginásio e o científico no Colégio Pedro II, também em Blumenau. Mais tarde, iniciou o curso de Economia (UNIPLAC), que não chegou a completar, na cidade de Lages. Finalmente, licenciou-se e especializou-se em História, pela FURB, em Blumenau.

Lecionou como professora de História no ensino fundamental, em escola pública, nos anos de 2001 e 2002, e ensino médio em 2003.

Atualmente, realiza pesquisa sobre os sambaquianos, antigos moradores de Santa Catarina, entre seis mil e dois mil anos atrás. A pesquisa iniciou-se em 1997 e resultou no livro O povo das conchas. Ela já gerou uma trabalho de conclusão de curso, uma monografia de especialização, e está gerando um romance-histórico, e uma dissertação de Mestrado.

É membro da Academia Catarinense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, da União Brasileira de Escritores e da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil.

Participou de várias antologias, foi colaboradora de várias revistas e jornais. Publicou cento e cinqüenta crônicas no jornal A Notícia, de Joinville, aproximadamente cento e trinta no jornal Expresso das Nove, de Açores, Portugal e também foi cronista do jornal Diário Catarinense, de Florianópolis.

Seu primeiro grande sucesso foi "Verde Vale", que conta uma saga dos primeiros colonizadores de Santa Catarina. Outros trabalhos seus são "As brumas dançam sobre o Espelho do Rio" (hino à natureza, à liberdade e ao amor), "No Tempo das Tangerinas" (conta a vida dos colonizadores do Vale do Itajaí, durante a Segunda Guerra e como a vida resiste às angústias, "A guerra nunca acabava, mas o tempo das tangerinas voltava sempre."), "Vem, Vamos Remar" (sobre as enchentes de Blumenau), "Te Levanta e Voa" (sobre jovens a procura de seu destino), "Cruzeiros do Sul", "Recordações de Amar em Cuba II", "A Vitória de Vitória" (infanto-juvenil) e "Entre Condores e Lhamas".

Urda escreve, com linguagem simples e objetiva, obras consistentes e seu texto tem sabor de poesia.

Fontes:
Escritores do Sul. http://www.escritoresdosul.com.br/
http://pt.shvoong.com/books/biography/1660807-urda-alice-klueger-vida-obra/

Urda Alice Klueger (A escritora em Xeque)


Data e local de nascimento:
Blumenau/SC, em 16.02.1952 – numa madrugada de Carnaval.

Como você se define?
Como uma cidadã da América dita Latina. Já não consigo pensar a vida em termos locais ou nacionais. A América é uma grande unidade que está dentro de mim.

Qual o seu próprio livro preferido?
“Cruzeiros do Sul” e “Sambaqui” – ambos romances-históricos.

Você é uma leitora voraz desde criança pequena. Comente um pouco da sua infância e de como começou o seu amor pela leitura.
Eu tive aquela tradicional infância de quem se criou antes da geladeira e da televisão. Meus pais, ambos, eram os primeiros de cada família a terem saído da agricultura, e até hoje sei um bocado a respeito, aprendido na nossa horta, pomar, galinheiro, jardim. Antes de ir para a escola, eu passava todo o tempo possível imaginando histórias. Quando fui para a escola e fui alfabetizada, continuei a imaginá-las, mas passei a lê-las, também. Ainda não parei.

Já li a respeito do medo que você tinha na época da ditadura, bem como as dificuldades de manifestação na sua época de juventude. Fale um pouco sobre isso.
Eu me auto-classifico como fazendo parte da geração do medo. Fui da turma que se criou tendo um medo danado de dar opinião política, de “achar” alguma coisa – e sumir, ser torturada, talvez nunca voltar. É bem difícil a gente vencer tais coisas. Hoje milito em Movimentos Sociais e enfrento bastante situações de perigo, como confrontos com a polícia (noutro dia, numa ocupação do MST em Papanduva/SC, tivemos que enfrentar até o exército brasileiro, hehe!) ou com idéias de outros – e o medo permanece. O que aprendi é que a gente tem que encarar o medo e fazer o que acha que está certo, senão a vida não vale a pena.

Você é de uma família de direita e conservadora. Como eles reagiram quando, digamos assim, você foi para o outro lado?
Minha mãe também foi mudando, conforme as coisas no mundo foram mudando. Meu pai faleceu muito cedo, não chegou a ver tais coisas. Penso que minhas irmãs, até hoje, não se conformam muito com a minha mudança.

Já tendo trabalhado na Telesc, na Caixa, entre outros, em seus períodos de lutas, você acredita que é possível um escritor ter um emprego muito diferente da sua área de atuação (geralmente por questões financeiras, já que é difícil ganhar dinheiro com literatura) e ainda assim ser feliz?
Sou a própria. Abrindo cadernetas de poupança na Caixa Econômica Federal conheci tanta gente e tantas histórias de tanta gente que pude compor um livro como “Cruzeiros do Sul”, por exemplo. Talvez não tivesse aprendido tanto sobre gentes se não tivesse trabalhado lá.

Você sempre acreditou em sua vocação para os livros? Aliás, você acredita em vocação, talento, dom, estas coisas? E para escrever?
Acreditar eu acreditava, desde criança – mas acreditava numa coisa muito menor. Eu sonhava que escreveria um livro que teria 1.000 exemplares e que seria lido em Blumenau. Esta coisa de ser lida em três continentes (às vezes quatro, quando me traduzem para o árabe) nunca tinha passado pela minha cabeça até começar a acontecer. Vocação, talento, dom – é uma discussão braba, pois tem muita gente que discorda completamente. Mas eu acredito que existe. Lá pelos três anos de idade a minha vida já era uma vida de imaginar histórias – e ainda o é! Na adolescência descobri que queria ser arqueóloga – acabei historiadora, envolvida com arqueologia. Como explicar tais gostos tão poderosos?

Quando você decidiu escrever o primeiro livro?
Um pouco depois dos vinte anos. Achei que era tempo de levar a sério aquilo que fazia sem parar. Então sentei, e em pouco mais de um ano escrevi “Verde Vale”.

Você tem rotina para escrever?
Algumas. Gosto muito de escrever em campings. Ou em lugares com natureza. Tenho um lap-top só para tais ocasiões. Também não sei escrever nada tendo tomado algum álcool. Escrevo melhor à noite do que de manhã.

Quais as suas influências literárias?
Muitíssimas! Todas as leituras, tudo na vida, todas as viagens... A vida e a arte são coisas intrinsicamente enoveladas.

Pode citar pelo menos 1 ou 2 livros marcantes na sua vida e dizer o por quê?
“Os frutos da terra”, de Knut Hamsun. “O tempo e o vento”, de Érico Veríssimo. “Os pastores da noite”, de Jorge Amado. Por que? Porque são livros que me falaram profundamente à alma.

Você se considera uma escritora blumenauense, catarinense, brasileira ou sem rótulos?
Eu me considero uma escritora.

Já tendo conhecidos diversos lugares no Brasil e no mundo, você nunca pensou em construir sua vida longe de Blumenau?
Já pensei muito, sim. Antigamente, tal lugar seria Salvador, que eu acho um dos melhores lugares do mundo. Hoje, além de Salvador, penso muito, também, em Cusco e em Quito.

E os hippies em Blumenau nos anos 70? Eles verdadeiramente lhe fascinavam?
Quanto aos hippies - que dizer mais forte que o encanto que eles tinham e deixaram? Minha vida ainda hoje é encantada por aquele tempo, por aqueles acontecimentos. Eu acho que eles não me fascinavam, eles me fascinam até hoje!

Quando se fala em Blumenau, a primeira coisa que muitas pessoas associam é a Oktoberfest. O que você recomenda em sua cidade além desta festa? E em literatura? Quais os escritores da cidade que você gosta?
Complicou. Na verdade, para mim, quando se fala em Blumenau, a primeira coisa que penso não é a Oktoberfest, mas os desalojados das suas casas e terrenos pela Tragédia das Águas de novembro de 2008. Até hoje não se fez uma casinha que fosse para eles, que continuam vivendo da pior forma possível, em abrigos coletivos, apesar das imensas quantidades de dinheiro que vieram para esta cidade para que tal fosse feito. Não é nada fácil viver aqui. Sobre escritores, eu gosto muito do Viegas Fernandes da Costa, do Maicon Tenfen, da Taninha Rodrigues...

E os escritores do sul. Quais os seus preferidos?
Sem dúvida, cá no sul, a grande estrela, para mim, é Érico Veríssimo. Faz pouco tempo que cheguei a ir passar uns dias em Cruz Alta/RS, só para ver de verdade a terra dele, os campos dele. Tenho uma série de crônicas intituladas “Os campos de Érico Veríssimo”. Penso que um dia elas comporão um livro.

O que é ser uma "romancista histórica", como já vi você se auto-denominar?
É não conseguir trabalhar com a ficção sem um fundo histórico. Na verdade, penso que a grande maioria dos escritores vive dando testemunho da História, testemunho do seu tempo. Ouvi Salim Miguel, faz algum tempo, dizer que não gosta de romances-históricos, quando acabava de lançar um fascinante romance-histórico chamado “Nur na escuridão”! (livro que a gente não deve deixar de ler)

Fale um pouco dos aspectos germânicos e da miscigenação em seus livros.
Um dia, mais de 30 anos atrás, eu escrevi dois livros sobre alemães e seus descendentes. Um sobre a imigração para o Vale do Itajaí (Verde Vale) e outro sobre os descendentes daqueles (No tempo das tangerinas) vivendo o período da segunda guerra mundial – e adquiri o rótulo de escritora que fala sobre alemão. Depois disso já escrevi mais 18 livros sobre os mais variados assuntos, mas não tem o que me faça perder aquele rótulo antigo. Não sou absolutamente germânica – sou uma brasileira de muitas origens (em mim se misturam, no mínimo, seis etnias) – e acho que é este fato de ser tão mestiça que me leva a falar, de vez em quando, nas miscigenações.

Você acha que pra se tornar um grande escritor é necessário trabalho duro, como um "operário da escrita" ou é uma questão de mero talento?
Acho que há que haver as duas coisas. E muita leitura, muita mesmo – pelo menos uns 2.000 livros, quando me perguntam a quantidade. Tem escritor que nunca leu nada, escreve qualquer coisa meio intragável, e depois culpa o mundo pela sua falta de sucesso.

Dois mil livros? Se uma pessoa ler 1 livro por semana ininterruptamente (48 por ano) levará em média então 42 anos para ser um escritor? Isso é possível?
Eu considero nesses 2.000 livros a começar por aqueles livrinhos que a sua mãe leu para você lá n infância (eles são um bocado importantes!). Depois, provavelmente você leu livros dos quais não se deu conta, como um livro inteirinho de bulas de remédio, por exemplo. No meu caso, no comprido período que abrange o final da infância/adolescência/começo da vida adulta, lia algo como um livro por dia - era rata de biblioteca mesmo. Depois, as leituras começam a ficar mais profundas, e a gente demora mais - mas aí já tem um bocado de livro lido na reserva. Para você ter uma idéia, o meu sonho de criança era completar 12 anos, para poder ser sócia da biblioteca pública daqui de Blumenau - pois antes dos 12 anos já lera tudo o que havia na minha casa, na minha escola, nos meus parentes, nos meus vizinhos, e isto incluía as enciclopédias Barsa e Dela Larousse inteiras. Eu digo 2.000, mas isto é um número aleatório, só para dar um corte naquela gente que chega dizendo que quer ser escritor, e a gente pergunta: "E costumas ler?" e a pessoa, cheia de empáfia, declara: "Claro! Já li 12 livros!" - comprendes, não?

Você acha que publicar livros no Brasil é fácil ou difícil?
Para mim, sempre foi fácil.

O que você acha das publicações virtuais? Para vão os livros com inovações como o Kindle?
Ih, eu ainda nem conheço o Kindle – mas imagino o que seja. Acho é que sempre terá que haver um livro (de papel ou de outro jeito) que a gente poderá levar para a cama, para a praia, para a rede... Ler direito na telinha do computador é bastante cansativo.

Hoje você já consegue viver da literatura?
Nem pensar. Vivo do meu salário de aposentada, e de outros trabalhos.

Você gosta mais de escrever crônicas, romances, ensaios, artigos históricos?
O romance-histórico e a crônica, nesta ordem.

Você já escreveu para o Jornal Diário Catarinense. Por que você saiu? É verdade que aconteceu uma briga?
Briga das feias – e que me fez o maior bem. Quando o editor chefe do jornal me contatou para escrever para eles, eu já disse a ele que não daria certo, pois tínhamos pensamentos opostos, eu e o jornal, mas ele disse que o meu pensamento seria respeitado. Então passei a escrever para eles, algo como 80 semanas, penso, e me respeitaram durante tal tempo. Mas há um assunto que os donos do jornal não suportam: que se defenda a Palestina. E foi por aí a coisa: numa das minhas defesas da Palestina, o bicho pegou. A briga foi tão feia, na época, que envolveu gente de 12 países. Claro que fui demitida – mas saí de um pequeno universo de 30.000 leitores para um outro universo que envolve três continentes, às vezes quatro. Foi muito bom.

Quando você se formou? Conte um pouco sobre a sua escolha na faculdade.
Lá na época certa, na juventude, andei fazendo Economia, mas não cheguei a me formar. O sonho era ser arqueóloga, e quando não se pode ser arqueóloga, o caminha seguinte é ser historiadora. Esperei um bocado para tanto, no entanto. Fui fazer minha faculdade de História às vésperas da aposentadoria, quando decidi que era tempo de ser feliz!

O que você vê de mais negativo e positivo nas universidades brasileiras hoje, seja numa faculdade de História ou qualquer outra?
Vejo muito ranço, um ranço danado. Há uma ou outra que escapa daquela coisa de ser mera reprodutora da sociedade vigente e fazer o jogo do Capital e dos poderes estabelecidos – mas a maioria se ajoelha diante dos velhos preconceitos da sociedade e das regras do deus Capital com a maior subserviência. Felizmente, há as exceções.

Você acredita que um escritor precisa de algum diploma em alguma área determinada?
Um escritor precisa ler muito – e escrever.

Como surgiu a editora na sua vida?
Medo de não ter o que fazer quando me aposentasse. Não queria me aposentar e ficar vendo a sessão da tarde.

Como deve proceder quem tem interesse em publicar pela sua editora?
Procurar a Sandrinha no hemisferiosul@san.psi.br e encaminhar para ela um original impresso, para ser passado para o conselho editorial. Só vale romance, conto e cônica. A Hemisfério Sul não publica livros técnicos, poesia, auto-ajuda, etc.

Defina algumas palavras:
Amor – Boooommmm!!!
Sexo – Booommm!!!
Liberdade – Melhor ainda!
Religião – Procuro respeitar todas
Deus – Sou agnóstica
Inteligência – conseguir enxergar adiante do que diz a televisão normal e a revista Veja.
Burrice – das piores: acreditar na revista Veja, por exemplo.
Prosperidade – Estar em harmonia consigo próprio, com o mundo, com a natureza – e com as outras pessoas capaz de estarem assim.
Vida – É muito curta.
Morte – Que pena – poderia demorar mais um pouco.

Qual o sentido da vida pra você?
Vou citar o Che: “Se és capaz de indignar-te diante de qualquer injustiça , esteja onde estiveres, então somos companheiros”.

Como gostaria de morrer?
Gostaria de poder viver uns 800 anos, para dar conta de fazer todas as coisas que queria, principalmente escrever. E morrer rapidinho, sem sofrimento, assim dum infarto, como a minha tia Frieda.

Quais teus sonhos?
Algum dia escrever muito bem. Algum dia ver o mundo sem guerras, sem fome, sem injustiças.

Já usou drogas, inclusive bebidas?
Muito, mas muito mesmo cuba-libre. Só que parei, faz uns dez anos.

Gostaria de deixar alguma mensagem?
Que deixemos de olhar para os nossos próprios umbigos. Que nos inteiremos que estamos cercados por um mundo onde há bilhões de pessoas com fome de comida e de justiça, e de tantas guerras horripilantes, quase sempre criadas pelo deus Capital.

Fonte:
http://www.escritoresdosul.com.br/

Livro "Bar do Escritor"



Após muito esforço de todos – principalmente de Giovani Iemini e Cristiano Deveras, os organizadores da antologia – está disponível para o público o livro “Bar do Escritor”, editado pela LGE.

O livro conta com a participação de 38 autores dos mais diversos estados do país e, como não podia deixar de ser, dos mais diversos estilos literários, fazendo jus ao subtítulo: “Anarquia Brasileira de Letras”.

Com 271 páginas, entre contos, crônicas e poesias dos mais variados universos da literatura brasileira, o “Bar do Escritor” compõem uma representação consistente do panorama literário nacional, apresentando textos que passam pelo realismo, pelo naturalismo, romantismo, modernismo, pós-modernismo… Até mesmo entre os gêneros literários percebe-se a mistura entre sonetos, hai kais, microcontos, contos, crônicas, etc.

O livro foi publicado em formato “pocket” (10,5 x 17,5 cm), visando atingir um preço de venda que fosse literal e literariamente acessível. Deve-se destacar também a iniciativa, exposta na última página do livro, de estímulo à doação do exemplar após a leitura. Mesmo que o livro tenha um custo baixo para os padrões nacionais, apenas R$10,00, o incentivo à leitura é algo que sempre gera frutos e que deve ser posto em prática por todos que se preocupam com os rumos da literatura nacional.

Organização: Giovani Iemini
Autores: Alan Nery, Anderson H, Ângela Gomes, Ângela Oiticica, Carlos Cruz, Cristiano Deveras, Edson Feuser, Eduardo Perrone, Elô Barreto, Emerson Wiskow, Filipe Celeti, Flá Perez, Giovani Iemini, Glauber Vieira Ferreira, Ivo Venarusso, Ükma, Larissa Marques, Lena Casas Novas, Leonardo Spoke, Lilly Falcão, Magmah, Maria Ligia Ueno, Matheus Costa, Me Morte, Muryel de Zoppa, Pablo Treuffar, Paulinho Di Andrade, Renato Saldanha Lima, Rita Medusa, RM Sant´Ana, Robertón Hefler, Rodrigo Domit, Ruy Villani, Sabrina Costa, Sandra Santos, Vinícius Paioli, Wilson Roberto C. Almeida e Zulmar Lopes.

Fonte:
http://bardoescritor.wordpress.com/tag/pablo-treuffar/

Lecy Pereira (Infinitivos)



Você me amar, perguntar.

Até o limite do assombro, responder.

Desaparecer, algo inimaginável. Ele, ela, eles, elas, nós, vós.

Há uma cidade correndo inteira por cabos telefônicos em postes. Correm as vozes num fluxo verbal congestionante.

Esperar que ela me entendesse quando atendesse a chamada. Ontem foi difícil, talvez não menos que agora. Aquelas fotografias congelaram um beijo que recebi numa festa tecno, dizer numa "rave". Esse é o terrível terreno da subjetividade. Suposições. Que último romance Dulcinéia ler? Que último filme assistir? Há de ser a adaptação de "Ensaio sobre a cegueira" por Walter Sales Jr. ou "Meu nome não é Johny". Que música ouvir ou quadro a reparar: cena rural, soberbia urbana, abstrações, viagens oníricas? Há na rua da selva, onde os homens não têm nome, mas números, um leopardo a nos espreitar com seu olhar agridoce numa busca elegante, imponente, por presas que afiem mais suas presas que dariam curiosos souvenires pendurados no pescoço da modelo desfilando a moda praia na passarela anoréxica.

Amar sob o filtro das luzes desse teatro de arena. Que entrem os leões! Espere, há um erro de texto. Que entrem as ninfas! Ele vive num rio de incertezas urbanas a questão em sua mente é por que alguém procura alguém para ser senhor ou senhora. A perpétua cumplicidade de um cão e seu dono feito um par de olhos cegados sendo guiado por outro par de olhos sãos. Ele tem dúvidas de amor na sórdida mitologia contemporânea. A estranha necessidade da certeza.

Se ela não amar, desaparecer.

Culpar eles que mais sabem impedir a consumação de um amor. Eles que povoam a noite de assombro. Eles que não suportam ver amar ao sabor das ondas calmas. Eles da turma dos filhos de Caim, esses que vivem a vagar sem um riso no rosto e não suportam o triunfo das belas artes.

Você me amar, ela perguntar.

Iludir, indefinir, ele responder, amar o fluir, o amanhecer. Só a essência permanecer, entender?

Será que algum dia eu caber em sua beleza, ela perguntar.

Você caber em meu fazer, ele responder.

Tudo afirmar. Medo de ver o tempo correr. Cada dia ela passar ao som do reggae, do samba, da bossa nova.

Quem eu amar, muito querer me fazer sofrer, ferir, ignorar, humilhar, ele dizer. Parecer que amar se sustentar de antônimos.

A gente se encontrar numa danceteria, ela falar, muito dançar, muito girar, globo, câmera lenta. Nossa história de desenredo começar. Beijar, beijar, lembrar disso?

Isso. Hoje só lembrar, fotos, filmes, objetos, uma lua logo ali, o sol ao sabor do ventar do nosso amor de férias.

Você me amar de verdade, ela perguntar.

Sim, sim, sim, te amar, até aprender a deixar de ser, ele responder.
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Sobre o autor
Lecy Pereira Sousa
Nascido em Almenara - MG, 39, Auxiliar de Biblioteca, alterna moradias em Belo Horizonte e Contagem. Participou da fundação da Academia Contagense de Letras - ACL. Escreve contos, crônicas, poemas e outros rascunhos no meio da noite. É entusiasta dos blogs, mas não dispensa um caderno e uma caneta.
Escreve para o site Gosto de Ler, participa do projeto "A tela e o texto" idealizado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Participa do Projeto Pão e Poesia, idealizado pelo poeta Diovvani Mendonça. Um dos seus vários endereços na Internet é www.lecypereira.blogspot.com. Publicou em 2008 o livro de poemas "Primeirapessoaplural" pelo selo Arvore dos Poemas.
Uma de suas frases prediletas é : "segure a onda!"

Fonte:
Portal Gosto de Ler.

Lecy Pereira (Ser humano e poeta )



Aqui estou desarmado de maneirismos e friezas para escrever acerca do que em mim provocou a pré-leitura de “Poemas” - de Rogério Salgado - o livro que é a edição comemorativa dos trinta e cinco anos de vida poética desse Goytacazense (RJ) curtido e apurado em Belo Horizonte, mas cidadão do mundo.

Que o poeta é só mais um na calçada, isso já nos disse o operário da poesia Rogério Salgado. Essa constatação, por si, seria suficiente para nos tirar do terreno das vaidades e nos trazer às pedras - aquelas calcárias e basilares que vão surgindo no caminho de qualquer um ao longo dos anos existenciais. Por outro lado, diante das asperezas e da crueza cotidiana podemos enxergar naquela afirmação algum lamento, certa alta-compaixão e entendemos também que, sim, o poeta merece os holofotes, a projeção, a visibilidade, o respeito pela envergadura do seu trabalho (se isso ocorrer em vida) ou do seu lazer. Essa dicotomia final se deve à interpretação miserável que a palavra “trabalho” ganhou ao longo dos séculos. Trabalho é aquilo que nos escraviza e nos faz sofrer, eis a frase subliminar. O homem precisa do lazer para sentir-se feliz e descansado e para se entregar às atividades intelectuais que muito colaboram para seu crescimento mental e espiritual. Então, o poeta Vinícius de Morais vivia/vive em gozo eterno, posto que sua poesia fosse/é seu lazer.

Estaria Rogério Salgado celebrando trinta e cinco anos de trabalho ou lazer tendo atravessado os anos de chumbo que, mesmo com a dureza imposta à América do Sul avassalada pelas superpotências e pela arrogância dos generais, pareciam bem mais românticos na legitimidade dos ideais que o Século Vinte e Um? Os poetas são vistos como seres dislexos, dissimulados, irresponsáveis. Se não vivem na boemia, não são poetas e se são poetas, não merecem crédito haja vista que a poesia não rende salário mensal (no caso da maioria dos poetas). Ou a maioria dos poetas não têm noções mínimas de empreendedorismo (formação de sindicatos, casas de poetas para acolherem poetas abandonados pelo sistema, etc.) ou não têm o menor interesse de ganharem a vida com a poesia, e isso só é possível com empenho, paixão e a apresentação de um trabalho eminentemente poético ao longo dos anos. Num país gigantesco como o Brasil só é possível ser poeta, ser boêmio, ter família, ser respeitado por seus pares e ímpares e encarar tudo como um simples lazer dada diversidade social e cultural em que vivemos. Muitos jovens desistem da poesia ao descobrirem que esse “negócio” não rende salário no início de cada mês. Isso nos leva a crer que ser poeta no Brasil significa ser mágico.

O parágrafo anterior ressoa fora do contexto após a introdução, mas ele problematiza (um pouco mais) a situação do fazer cultural no país que clama por pessoas que lutem bravamente pela dignidade das artes e faça que elas cheguem aos mais simples e desprovidos de bagagem cultural. Mais difícil: faltam pessoas que, por ações coletivas, transformem as pessoas comuns em protagonistas da sua própria arte, aquela que habita em cada coração à espera de lapidação e não de lápide. Uma parcela da sociedade está sempre a esperar por heróis. Homens desprovidos de preguiça, dispostos a enfrentarem a burocracia partidária, a atraírem para si toda responsabilidade por erros e acertos e todo tipo de crítica pesada por fazer o que outros até gostariam de fazer, mas temem o erro, a crítica e o fracasso.

Rogério Salgado tem feito de sua vida uma contínua labuta em prol da poesia e daqueles que a cultivam seja em seus amplos apartamentos, casas com quintal e pés de manga ou casebres honrados nas favelas. Há também aqueles que não têm casa e vivem ao sabor da estrada. Os projetos requerem do poeta tal frieza que suscitam questionamentos acerca do lirismo de seus poemas. Só o amor a uma causa pode mover alguém em sua persistência. Aqui lembro a dedicação do acadêmico e escritor Vivaldi Moreira. A Academia Mineira de Letras deve muito ao destemor e por que não dizer à loucura daquele homem.

Simples e compacto “Poemas” é um livro que marca um tempo na existência de Rogério Salgado não pela síntese, mas por estar impregnado e imiscuído nas mudanças de tantas estações anuais. O que menos identifico nessa leitura é aquilo a que chamamos de “pretensão”. Rogério Salgado não quer nada, senão deixar o testemunho literário de um homem que vive de poesia. É conhecida sua declaração antecipada de que não deseja homenagens póstumas. Isso ele também me disse em plena Praça Sete de Setembro. O fator humano habita o tempo presente e qualquer celebração fora dele só nos remete à memória. Na maior parte do tempo celebram-se ausências passadas e futuras com o agravante do esquecimento pleno.

Logo de início “Poemas” trás “Punhal de mal” letra escrita em parceria com Eleonora Peixoto que levou o 1° Lugar no Festival de Música do SESC em 1979. Nota-se o drama, a sequência cinematográfica, um clímax que nada tem de datado.

Em seguida, numa dedicatória a Maiakovski, Rogério pinta mais uma vez o cenário da realidade e alfineta os poetas que a si dão demasiada importância na busca frenética por uma foto no jornal.

Adiante chama a atenção o sarcasmo de “País Tropical” que longe de ser erótico retrata mais a miséria imposta. O Brasil nunca foi um país miserável, mas é pródigo em atitudes que perpetuam a miséria. “Poema para meu aniversário” nos coloca diante daquela situação calcária de princípio e fim de tudo. O poeta é um aborrecido? O poeta é um revoltado? O poeta é um poço de remorsos? O poeta é um ateu? O poeta é um bicho triste que dói? Não, senhoras e senhores, antes de qualquer rótulo o poeta é um ser humano e, naturalmente, a espécie humana catalisa amor e ódio à desproporção.

Assim segue uma breve sucessão de simples poemas. Não devemos confundi-los com poemas simplistas. A dignidade é a palavra de ordem. Ora ao agrado, ora ao desagrado dos olhos leitores. Paciência. Esses são os ossos do ofício prazeroso ou não.

Afora uma incontestável carta de serviços prestados ao fazer poético, sempre revelando nomes de destaque no cenário literário e artístico, num país que ainda privilegia a corrupção e o coronelismo, chegar aos trinta e cinco anos de atividade poética sem “chutar o balde” significa o princípio da juventude para o ser humano que atende pelo nome de Rogério Salgado. “A vida poderia ser mais doce” – verso do poema O favo e a vela em parceria com sua esposa, a poetisa Virgilene Araújo, não resume a ópera do livro nem revela o quanto de formidável há no poema citado, mas nos convida a uma reflexão: o excesso de doçura amargo se torna. O pão doce perfeito leva sua pitada de sal. Tal é a função desses poemas: tempero temporal. Mas ainda não é o fim. Posto que poemaremos, poemaremos, poemaremos...

Fonte:
Portal Gosto de Ler.

sábado, 10 de abril de 2010

J. B. Donadon-Leal (Paráfrase à Mineira)


(Ao poeta Carlos Drummond de Andrade)

Quando nasci veio um anjo roxo
que de costas pra mim no cocho
revelou à minha mãe já decepcionada:
– Inculca nesse mocho aí que chora
que não se pode ser trouxa na vida
mas não adianta querer-se esperto
levando a vida nas coxas
ou se mudando pra Itabira.
Minha mãe fingiu não ouvi-lo
fingi também e mamei tudo que pude dela,
e antes que ela pudesse me dizer:
– Vai, infeliz, ser bom de bico,
rabisquei meus versos
e me fiz descontente.
O resultado dessa rejeição ao anjo
é que hoje não ceifo nem semeio,
mas cavalgo nos dorsos de Minas.
============

Fonte:
Revista Academia de Letras do Brasil/Mariana-MG // ANO I – Número I

Daltemar Cavalcanti Lima (Livro de Poesias)


ACUADO

Naquela esquina, não passo.
Alguém vai me inquirir,
Não vou responder
Tudo que sei do que fiz.

Também não. Naquela rua, não ando.
Vão me intimidar,
Não vou corresponder
Nem pra ser feliz!

Naqueles bares, não entro...
No convite à bebida,
Posso vacilar,
Tenho que segredar a razão das reações.

Minha liberdade é pequena,
Tem o tamanho de uma dívida
Cerceada pela cobrança.

Gostaria de viver escondido
Entre o colchão e a cama,
Sem respirar, com receio
Da procura que não se cansa.

Qualquer “psiu”
Me identifica.
Paro e olho instintivamente,
É a conspiração do medo.
É a vontade de fugir
Que me faz parado...

Até agora só falei de amor.
( do livo Acuado - 1979)

VIAGEM

Fiz uma terraplenagem em minha vida
e desapareceram
todas lombadas que o amor deixou.
Nos trechos sinuosos das indecisões
coloquei um sinal de perigo
às minhas pretensões.
Determinei ao meu sonho
que não ultrapassasse
a velocidade máxima da ilusão.
Na passagem de nível
construí viadutos
para evitar o choque
com a mediocridade.
Nas curvas em declive
e em aclive
não saí da mão da consciência.
Tive o cuidado
de alertar a distração dos transeuntes
que se preocupam erroneamente
com minhas despreocupações.
Nos trevos
das minhas variações mentais
semáforos
me pedem atenção
por aqueles
que apreciam meus desfeitos.
Jamais
joguei nos abismos e acostamentos
quem sempre me estendeu as mãos...
são os que nunca usaram retrovisores
para me olhar de frente!
Na vaga
do meu último estacionamento
os silvos me homenageiam,
não há multas a pagar...
Só espero o troco
dos pedágios
que paguei para viver.
( do livo Acuado - 1979)

ALVARÁ

Tenho licença
para ficar comigo,
libertar o sonho antigo
e ouvir o silêncio
(entre gritos e apelos)
do indiferente
que é a própria gente.
Com licença
para fingir sentir
a dor que não é minha,
o lamento que não é meu,
na saudade vizinha.
Dê licença
para viver criança,
ter um pouco de esperança
de meu amanhã.
( do livo Acuado - 1979)

EU - PARA MIM

Busco, fingindo fugindo,
a intimidade perdida
dos teus afagos e apegos
- minha emoção incontida.
Subo degraus movediços
da indecisão do reencontro.
Escada de teu descanso
no meu crescente cansaço.
Quero o teu amor alheio,
perdido no meu ideal
e na razão de teu anseio
de requinte social.
E esse desespero febril
traz-me uma intrepidez hostil
que nunca irá esquecer
porque - nunca haverás de saber.
( do livo Acuado - 1979)

DESVIVER

Não desvivo. É inverdade.
Apenas externo repúdio interno
pela desigualdade.
Se a fome não faz meu apetite
nem por isso se admite
que eu não queira comer.
Se meu sono quer dormir
e não consegue deitar,
creia:
não sou leito
para o seu mal-estar.
Quero mulheres
(para não falar de amor).
Quero atenções
(para não fingir carinhos).
Quero ouvir canções
nos ouvidos das flores.
Quero mais amigos
para não viver sozinho.
( do livo Acuado - 1979)

SEM COUVERT

Páginas mais acessadas
Seu garçom,
Estou subnutrido
E preciso alimentar-me de amor.
Não quero cardápio,
Pois as opções às vezes nos levam
À duvida.
Nem tudo que se escolhe
Satisfaz.
Desejo um PF
Bem temperado de carinho,
Transbordando ansiedades.
Dispenso a presença da faca e do garfo.
Prefiro a colher
Para que possa ter minha boca
Boquiaberta e sentir o paladar
Do molho excitante e ofegante.
Também não quero
Sobremesa sobre a mesa
- ela mudará a digestão do sabor -
de um provável orgasmo mexido.
Digo: um ensopado de calorias.
Seu garçom,
Fale ao dono deste restaurante
- O senhor destino –
Que não tenho dinheiro para pagar.
Afinal, amor não se paga.
Quanto à gorjeta,
Aqui está:
- Minha esperança!
======

Daltemar Cavalcanti (1934 - 1993)



Daltemar Cavalcanti Lima nasceu no dia 11 de Julho de 1934, no Rio de Janeiro, e morreu em 05 de março de 1993, em Juiz de Fora.

Figura das mais queridas e populares da noite juiz-forana morreu aos 58 anos vítima de parada cardíaca.

Lima, como era chamado pelos amigos, marcou sua presença entre nomes de destaque da cultura da cidade e catalogava entre suas amizades a do Presidente Itamar Franco, que lhe tinha uma grande admiração pelo jeito simples, amoroso, amigo e leal, era conhecido como" O Poeta da Madrugada".

Seu último livro "Ainda", lançado em maio de 1992, recebeu elogios do Presidente Itamar Franco.

O poeta, que tinha a noite como testemunha de sua vida, por ironia morreu às 3 horas da manhã.

Querido por personalidades, intelectuais, artistas, empresários, e até mesmo por marginais, era um cidadão comum, sensível, de bom humor. Jamais se dispôs a tirar proveito próprio de seus relacionamentos. Seu caráter simples não lhe permitia intimidade profissional acima da afetividade amistosa da amizade.

Carioca, iniciou carreira nos anos 50, como operador de som da Rádio Metropolitana - RJ, prosseguindo como cronista de turfe de vários jornais do Rio de Janeiro e depois repórter policial.

Teve uma breve passagem pela Rede Globo com o programa "Estado do Rio na TV”. Sempre esteve envolvido nas campanhas eleitorais de Itamar Franco, associando-se mais tarde a poetas, trovadores, compositores e músicos, "para expandir meus arrependimentos através da poesia".

A famosa “mesa do espelho" no restaurante brasão, em Juiz de Fora, era o lugar preferido de seus encontros com os amigos mais próximos, invariavelmente, todos os dias.

Podemos citar entre seu círculo de amizade os poetas: Roberto Medeiros, José Antonio Jacob, Gilberto Vaz de Melo, Carlos Décio Mostaro, Messias da Rocha, Hegel Pontes, Dormevilly Nóbrega, a amiga Janete Batista, a cantora Raquel Silvestre, os compositores e poetas Roberto e Ricardo Barroso, Jorge Alves, entre outros. Uma de suas últimas declarações aos amigos foi essa: “Como nasci no Rio de Janeiro, faço questão de morrer em Juiz de Fora. "Minha maior paixão não é ser poeta, não é ser jornalista como sou. “Ela se chama Medicina, porque trabalha com o material mais caro da natureza: a vida humana”.

Fonte
http://artculturalbrasil.blogspot.com/

José Antonio Jacob (Poeta da Gema )



“Daltemar Cavalcanti Lima, carioca de nascença, poeta da gema, chegou a Juiz de Fora por volta de 1968, numa época em que a cidade preparava um dos seus tradicionais festivais de MPB. Em pouco tempo o Lima integrou-se no meio intelectual, com os poetas do NUME (Núcleo Mineiro de Escritores) tornando-se, desde então, eminente presença em todas as rodas de poesia, música e política da época. Tornou-se amigo do prefeito Itamar Franco, além de todo grupo da administração municipal. Tratava o futuro presidente da república pelo primeiro nome.

Itamar, que sempre incentivou as iniciativas culturais, tornou-se amigo do Lima e alguns afirmam que - em virtude de sua precária condição financeira - lhe foi oferecido cargo de confiança na prefeitura, ao qual o poeta rejeitou, alegando incompatibilidade no fuso horário entre seus afazeres de poeta e a nova responsabilidade que teria de assumir.

Assim, prosseguiu sua vida de boêmio e de poeta, e adotou Juiz de Fora sua cidade natal. Nunca mais viajou, tampouco arredou pé dos bares do centro da cidade, onde, na época de Itamar Franco, (um outro dia falarei sobre a Época de Ouro da cultura juiz-forana, nas administrações de Itamar) fervilhavam a cultura poética e a arte musical, a cultura popular e erudita, além de muitas conversas políticas, que para o Lima eram “pratos cheios” em suas observações de poeta nato.

Lima publicou - com tiragem pequena e selo independente - uma série de três ou quatro livros.

Nos arquivos culturais da prefeitura de Juiz de Fora nada se comenta sobre a poesia do Lima – na Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage – FUNALFA - pouco se menciona nome de outros poetas e escritores juiz-foranos, a não ser Murilo Mendes, pois que a marca Murilo Mendes aloca recursos que interessam aos que vivem profissionalmente da sua biografia. Mas outros poetas e livros existem e certamente aparecerão qualquer dia.

Uma alma fácil e dócil, jamais pronunciou palavra de mal estar ou ergueu sua voz contra o semelhante. Nenhuma manifestação crítica, maledicente ou de insinuação negativa, o Lima pronunciou em sua vida. Também não escreveu palavras ásperas e nem participou de movimento de caráter subjetivo contra outra pessoa.

Ele não comentava sua vida passada, a não ser que havia nascido no Rio de Janeiro. Nunca disse a ninguém seu ano de nascimento, nem o dia do seu aniversário, e só fui saber que tinha família no dia de sua morte, quando sua irmã Djanira veio do Rio para tomar providencias preliminares no seu velório e depois do enterro foi embora sem dar mais notícias. Foi sepultado no Cemitério Municipal de Juiz de Fora, em cova desconhecida, sem lápide, sem inscrição, com nenhuma referência ao seu nome.

Logo depois da morte do Lima o então vereador de Juiz de Fora, poeta Gilberto Vaz de Melo, apresentou projeto de Lei mudando o nome da Praça General Emílio Garrastazu Médici para "Praça Poeta Daltemar Cavalcanti Lima". O projeto não foi sancionado pelo prefeito da época . Somente depois de quase uma década, com novo prefeito, o projeto foi sancionado, pois que o Gilberto usou dispositivos legais para fazer cumprir seu projeto de Lei.

Ainda hoje, decorridos 16 anos, a praça do bairro Bom Pastor continua sendo conhecida por "Pracinha do Bom Pastor", ainda que haja no local uma acanhada plaqueta com o nome do poeta, colocada pela administração municipal.

No seu primeiro livro "Acuado", lançado em maio de 1979, o Lima imprimiu a seguinte dedicatória na página de rosto:

"Dedico este livro a JUIZ DE FORA que me recebeu e me acolheu com carinho e liberdade humana para viver como sempre quis."

O poeta não poderia imaginar o descaso das futuras administrações municipais

Em março de 1993, na véspera de sua morte, de tardinha, encontrei casualmente o Lima na galeria do Bar do Beco, em Juiz de Fora. Ele estava à mesa de um bar: cabisbaixo e com as pernas cruzadas. Bebemos alguns goles e conversamos amenidades poéticas até o anoitecer, quando ele se levantou e se despediu.

Ainda guardo na memória a imagem do Lima se afastando, caminhando - calmo e elegante - rumo ao destino da sua manhã seguinte.”

Juiz de Fora, 07 de setembro de 2009
José Antonio Jacob
(exclusivo de ArtCulturalBrasil)

Fonte:
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Stanislaw Ponte Preta (FEBEAPÁ - Festival de Besteira que Assola o País)


O cidadão Aírton Gomes de Araújo, natural de Brejo Santo, no Ceará, era preso pelo 23.º Batalhão de Caçadores, acusado de ter ofendido "um símbolo nacional", só porque disse que o pescoço do Marechal Castelo Branco parecia pescoço de tartaruga e logo depois desagravava o dito símbolo, quando declarava que não era o pescoço de S. Exa. que parecia com o da tartaruga: o da tartaruga é que parecia com o de S. Exa.
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Cerca de 51 bandeiras dos países que mantêm relação com o Brasil foram colocadas no Aeroporto de Congonhas. O Secretário de Turismo de São Paulo — Deputado Orlando Zancaner — quando inaugurou a ala das bandeiras, disse que "era para incrementar o turismo externo".
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Quando a Censura Federal proibiu em Brasília a encenação da peça Um Bonde Chamado Desejo, a atriz Maria Fernanda foi procurar o Deputado Ernani Sátiro para que o mesmo agisse em defesa da classe teatral. Lá pelas tantas, a atriz deu um grito de "viva a Democracia". O senhor Ernani Sátiro na mesma hora retrucou: "Insulto eu não tolero".
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O Diário Oficial publica "Disposições de Seguros Privados" e mete lá: "O Superintendente de Seguros Privados, no uso de suas atribuições, resolve (...), "Cláusula 2 — Outros riscos cobertos — O suicídio e tentativa de suicídio — voluntário ou involuntário".
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Em Niterói o professor Carlos Roberto Borba iniciou ação de desquite contra a professora Eneida Borba, alegando que sua esposa não lhe dá a menor atenção e recebe mal seus carinhos quando é hora de programas de Roberto Carlos na televisão. A professora vai aprender que mais vale um Carlos Roberto ao vivo que um Roberto Carlos no vídeo.
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Colhemos num coleguinha do Jornal do Brasil:
"O General José Horácio da Cunha Garcia fez uma firme apologia da Revolução e manifestou-se contrariamente às teses de pacificação, bem como condenou o abrandamento da ação revolucionária. O conferencista foi aplaudido de pé". O distraído Rosamundo leu e, na sua proverbial vaguidão, comentou: "Não seria mais distinto se aplaudissem com as mãos?".
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Enquanto o Marechal Presidente declarava que em hipótese alguma permitiria fosse alterada a ordem democrática por estudantes totalitários, insuflados por comunistas notórios, quem passasse pela Cinelândia no dia 1.º de abril depararia com o prédio da assembléia Legislativa totalmente cercado por tropas da Polícia Militar. Na certa, a separação de poderes, prevista na Constituição, passará a ser feita com cordão de isolamento e muita cacetada.
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Notícia publicada pelo jornal O Povo, de Fortaleza (CE): "O Dr. Josias Correia Barbosa, advogado e professor, esteve à beira de um IPM (Inquérito Policial Militar) por haver passado um telegrama para sua sobrinha Loberi, em Salvador, comunicando-lhe que a bicicleta e as pitombas tinham seguido. Houve diligencias pelas vizinhanças, parentes foram procurados e outras providências tomadas. Passados dois dias, soube o Dr. Josias que o despacho telegráfico não fora transmitido porque um James Bond do DCT (Departamento de Correios e Telégrafos) estranhara os termos "bicicleta", "pitombas" e "Loberi", que "deviam ser de um código secreto".
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A peça "Liberdade, Liberdade" estreou em Belo Horizonte e a Censura cortou apenas a palavra prostituta, substituindo-a pela expressão: "Mulher de vida fácil", o que, na atual conjuntura, nos parece um tanto difícil. Ninguém mais tá levando vida fácil.
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Segundo Tia Zulmira "o policial é sempre suspeito" e — por isso mesmo — a Polícia de Mato Grosso não é nem mais nem menos brilhante do que as outras polícias. Tanto assim que um delegado de lá, terminou seu relatório sobre um crime político, com estas palavras: "A vítima foi encontrada às margens do riu sucuriu, retalhada em 4 pedaços, com os membros separados do tronco, dentro de um saco de aniagem, amarrado e atado a uma pesada pedra. Ao que tudo indica, parece afastada a hipótese de suicídio".
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A mini-saia era lançada no Rio e execrada em Belo Horizonte, onde o Delegado de Costumes (inclusive costumes femininos), declarava aos jornais que prenderia o costureiro francês Pierre Cardin (bicharoca parisiense responsável pelo referido lançamento), caso aparecesse na capital mineira "para dar espetáculos obscenos, com seus vestidos decotados e saias curtas". E acrescentava furioso: "A tradição de moral e pudor dos mineiros será preservada sempre". Toda essa cocorocada iria influenciar um deputado estadual de lá — Lourival Pereira da Silva — que fez um discurso na Câmara sobre o tema "Ninguém levantará a saia da Mulher Mineira".
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Em Brasília, depois de um dos maiores movimentos do Festival de Besteira, que bagunçou a Universidade local, o Reitor Laerte Ramos — figurinha que ama tanto uma marafa que cachaça no Distrito Federal passou a se chamar "Reitor" — nomeava um professor para a cadeira de Direito Penal. O ilustre lente nomeado começou com estas palavras a sua primeira aula: "A ciência do Direito é aquela que estuda o Direito".
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A Igreja se pronunciou, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, sobre recentes publicações pretensamente científicas, "que abordam problemas relacionados ao sexo com evidente abuso". O documento não explicou se o abuso era do problema ou se o abuso era do sexo. Em compensação, nessa mesma conferência, Dom José Delgado, Arcebispo de Fortaleza, dava entrevista à Agência Meridional sobre pílulas anticoncepcionais, uma pílula formidável para fazer efeito no Festival de Besteira. Como se disse bobagem sobre o uso ou não da pílula, meus Deus!!! Dom Delgado, por exemplo, dizia: "A protelação do casamento é a única conclusão a que chego, atualmente, para a planificação da família e o controle da natalidade. E, depois disso, só existe um caminho seguro: o da continência na vida conjugal". Como vêem, o piedoso sacerdote era um bocado radical e queria acabar com a alegria do pobre. Ainda mais, falando em sexo e em continência na vida conjugal, deixou muito cocoroca achando que, dali por diante, era preciso bater continência para o sexo também.
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Fontes:
Festival de Besteira que Assola o País. RJ: Editora do Autor, 1966.
2.º Festival de Besteira que Assola o País. RJ: Editora Sabiá, 1967.
FEBEAPA 3. RJ: Editora Sabiá, 1968.

Mário Palmério (1916 – 1996)



Mário de Ascenção Palmério, professor, educador, político e romancista, nasceu em Monte Carmelo, MG, em 10 de março de 1916.

Fez seus estudos secundários no Colégio Diocesano de Uberaba e no Colégio Regina Pacis, de Araguari, licenciando-se em 1933.

Em 1935, matriculou-se na Escola Militar de Realengo, no Rio, de onde se desligou, no ano seguinte, por motivos de saúde.

Em 1936, ingressou no Banco Hipotecário e Agrícola de Minas Gerais, sendo designado para servir na sucursal de São Paulo. Lá, iniciou-se no magistério secundário, como professor de Matemática no Colégio Pan-Americano, passando a lecionar em outros estabelecimentos.

Deixa o banco e dedica-se exclusivamente ao magistério. Em 1939, matriculou-se na seção de Matemática da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, época em que passou a lecionar também no Colégio Universitário da Escola Politécnica, por nomeação do Governo daquele Estado. Tempos depois deixou São Paulo para abrir na cidade mineira de Uberaba o Liceu do Triângulo Mineiro.

Eleito deputado federal em 1950, e reeleito em 1954 e 1958, exerceu funções de destaque na Câmara dos Deputados.

Só aos 40 anos (1956) aparece seu primeiro livro, fruto de aventura intelectual cujo propósito era bem outro, isto é, a política. " ‘Vila dos confins’ nasceu relatório, cresceu crônica e acabou romance...", segundo confessa o próprio autor.

Seu espírito empreendedor levou-o a construir em Uberaba a Cidade Universitária em terreno de área superior a 300.000 metros quadrados, e o Hospital "Mário Palmério", da Associação de Combate ao Câncer do Brasil Central, maior nosocômio em todo o interior do Brasil.

Em setembro de 1962 foi nomeado pelo Presidente João Goulart para o cargo de Embaixador do Brasil junto ao Governo do Paraguai. Assumiu o posto em 10 de outubro do mesmo ano. Permaneceu nessa missão até abril de 1964; período em que marcou sua presença tanto no campo da diplomacia como no das atividades culturais naquele país.

De regresso ao Brasil isolou-se em sua fazenda São José da Cangalha — no sertão do Mato Grosso — e ali escreveu “Chapadão do Bugre”, romance para o qual vinha colhendo, desde o êxito de “Vila dos confins”, abundante material lingüístico e de costumes regionais, e que recebeu de toda crítica os mais rasgados elogios. Lançado em outubro de 1966, o romance teve inúmeras edições.

Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, na Cadeira nº 2, sucedendo a Guimarães Rosa, em 4 de abril de 1968, e recebido em 22 de novembro de 1968, pelo acadêmico Cândido Mota Filho.

Durante vários anos viajou de barco pelo rio Amazonas e seus afluentes, levantando dados sobre a realidade física, social e cultural da Região Amazônica. Em 1987, deixou de vez o Amazonas e voltou a morar em Uberaba, como Presidente das Faculdades Integradas daquela cidade. Em 1988, recebeu a medalha Santos Dumont, conferida pelo Ministério da Aeronáutica.

Mário Palmério era casado com D. Cecília Arantes Palmério. Teve dois filhos: Marcelo e Marília.

O escritor faleceu em Uberaba (MG), no dia 24 de setembro de 1996.

OBRAS:

Vila dos confins, romance (1956)
Chapadão do Bugre, romance (1965)
O morro das sete voltas, romance (inédito)
Seleta... Organização, estudo e notas de Ivan Cavalcanti Proença (1974).

Fonte:
Academia de Letras do Brasil

Mário Palmério (Chapadão do Bugre)


Quem apostou que o máximo a que se poderia chegar com o romance regionalista foi alcançado por Mário Palmério, em Vila dos Confins, um dos raros casos em nossa literatura de aprovação entusiasmada de crítica e público, felizmente perdeu.

O próprio Mário Palmério tratou de superar seu aplaudido romance de estréia com uma obra ainda mais impressionante: Chapadão do Bugre.

Com letras de fogo, Mário Palmério, nesta obra-prima de nossa literatura, forja a monumental e trágica história de um cavaleiro solitário do sertão brasileiro, que vaga por uma terra adubada com sangue, onde florescem a intolerância, a violência e a crueldade.

Como nas tragédias clássicas, o destino brinca com vidas humanas, e conflitos sucessivos jogam uns homens contra outros, num vendaval de violência e morte do qual nem os poderosos chefes políticos do lugar são protegidos. Alimentando tudo, o furioso desejo de conquista da terra e do amor.

Quem busca a aventura, a ação incessante, a resposta de homens rudes e cruéis aos desafios que a vida impõe, descobre em Chapadão do Bugre um romance insuperável.

Quem busca o estilo impecável, o domínio absoluto da linguagem mesclado ao amor à terra que descreve, encontra em Mário Palmério um autor regionalista que eleva o gênero em que é mestre à condição de epopéia.

Neste, como lembra o escritor Otávio de Faria, "a vitória do romancista é completa. Pode-se dizer que é uma das mais brilhantes a que temos assistido. Todas as altas qualidades de Vila dos Confins", reconhece o crítico, "ressurgem aqui, mas os elementos novos com que deparamos são aqueles justamente que caracterizam, acima de tudo, o grande romancista, o grande romance".

Chapadão do Bugre é um romance baseado numa história real e misteriosa ocorrida no interior de Minas Gerais no início do século, fato que não seria relevante se o povo da cidade em que tudo ocorreu, Passos, não acabasse por eleger a obra de Palmério como a mais original das versões sobre o episódio.

Como em Vila dos Confins, o escritor escolhido em 1968 para suceder João Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras, nos leva ao Brasil dominado pelo coronelismo político, reconstruindo todas as facetas desta dominação e suas conseqüências para a comunidades e os indivíduos.

Mais amadurecido no manejo da composição, atuando com desembaraço e verdade no levantamento dos tipos mais expressivos de sua galeria de personagens, Mário Palmério, como este chapadão do Bugre, confirmou sua condição de ficcionista de ato nível, de escritor capaz de transpor para a literatura a linguagem e os costumes do homem do interior.

Altamente dramático, cruel e violento, o romance prende o leitor pela sua trama, mas é o tom de conversa entre compadres que o torna inesquecível.

Talvez por isso, quando, em 1988, Walter Avancini adaptou-o para a TV, manteve-se fiel à linguagem que consagrou Mário Palmério, produzindo uma das minisséries de maior sucesso da Rede Bandeirantes.

Narrado em terceira pessoa, paralela à qual coexiste a "consciência" de Camurça, a mula de montaria que visualiza o sentido de toda a trama - inclusive sua própria morte, como ocorre com os protagonistas de O coronel e o lobisomem e Sargento Getúlio -, Chapadão do Bugre é, sob o ponto de vista da estrutura narrativa, bastante insólito, rompendo os esquemas tradicionais.

Lingüisticamente, de todas as obras da nova narrativa é, ao lado de A pedra do reino, a que menos se desvia da norma culta do português, apesar de ser forte, nos diálogos, a presença de um linguajar caboclo-sertanejo.

Texto escolhido - A CHACINA

Acostumado a levantar-se cedo e ir logo ao Forum, Seu Juca Meirinho ali chegou pouco antes das sete da manhã, malgrado o frio e a ausência do Juiz de Direito.

Sabia da reunião marcada para as oito horas entregara, na véspera, por ordem do Dr. Damasceno, a chave da porta de entrada do sobrado ao Sargento-Ordenança e desejava, agora, pôr-se à disposição do delegado militar.

Abriria o café do vão da escada e, vez ou outra, acharia desculpa para ir até o andar de cima, conforme recomendara o doutor, a fim de verificar se não tentavam fuçar pelo quartinho fechado, cheio de roupas e outras coisas particulares, além de tanto livro e papelada.

A porta estava aberta, de sentinela embalada.
Mais velho que o sobrado era o Juca Meirinho varredor e cafeteiro no antigo Fórum, e já rapazote e já taludo, quando da construção e instalação do novo o prédio acabou como por ser casa, coisa sua, e o oficial de justiça foi entrando, distraído, pensando no café do Capitão e das outras pessoas por chegar.

Alto! o cavalariano atravessou-lhe o passo.

Assustado com o berro, a feia catadura e a declarada má-inclinação da sentinela a fera estava armada de máuser, sabre e mosquetão, as cartucheiras pesadas de tanta bala mal pôde o Juca Meirinho gaguejar:

Mas eu sou o oficial de justiça... O doutor... O Doutor Juiz de Direito...

Aqui não tem juiz de direito nenhum! O Forum ’tá requisitado. Se arretire!

O jeito era afastar-se, como ordenava o soldado, e foi o que fez o Juca, sem abrir mais a boca, cruzando a Praça e indo postar-se na esquina da confeitaria. Quando aparecesse o Capitão reclamasse o café, que viessem ali chamá-lo... E, se o homem azedasse, paciência!: o volantezinho malcriado da porta do Forum, então, que ouvisse...

Erguia-se a manhã, ainda fria e nevoenta, e principiava a encher-se o Largo das Mercês. Abriam-se as portas da Confeitaria do Cucute, as das lojas e outras casas de negócio abriam-se as janelas dos sobrados que davam para a Praça.

Iam e vinham as normalistas descia dos altos o povo do comércio, subiam os que voltavam do Mercado.

Encostava-se ao ponto o primeiro carro-de-praça, quando o relógio da Matriz deu as sete horas, e começou a apitar a serraria-carpintaria do Seu Costinha da Força-de-Luz, lá no Alto da Estação.

Mais um dia! pensava o Juca Meirinho, de pé na esquina, curtindo a mágoa causada pelos gritos da sentinela. Felizmente, porém, o Governo já havia mandado chamar, com urgência, o doutor...

Seu Polinésio da Estação falara, muito em segredo, na véspera, depois que partira o Dr. Damasceno, sobre um telegrama do Dr. Tancredinho para o pai, o Coronel Americão: as coisas, na Capital, corriam bem, pois o rapaz se declarava muito satisfeito... Decerto a viagem o Dr. Damasceno Soares era para fecharem, por lá, algum acordo, acertarem tudo com o Coronel Americão, mandarem embora o Capitão Eucaristo e a soldadesca dele...

Sim concordava com Seu Polinésio da Estação o Juca Meirinho o Dr. Damasceno, pessoa tão religiosa, não podia estar apoiando, no íntimo, as barbaridades da Captura: o Dr. Jojoca, coitado criatura tão alegre, um mão-aberta, brincalhão... O inofensivo do Quincota, esse, o mal dele era somente aquela mania de futricar, meter a colherzinha-torta onde não devia...

Que limpassem a cidade do banditismo, que se pusesse um freio aos abusos do Coronel Americão Barbosa... havia mesmo necessidade de um pouco mais de energia por parte do Governo...; mas sem tanta malvadeza e violência!

Prenderem o Clodulfo era merecido: culpado de tudo, o alma-negra de Santana do Boqueirão, o espírito-mau que atuava na sombra... Sim.

Precisavam de acabar com tanto crime, tanta jagunçada: não passava uma semana sem nova façanha da quadrilha do Cludolfo: a última Santana do Boqueirão inteirinha já sabia dela a história do José de Arimatéia em Campanário...

Passou pela esquina o Xico das Moças murchozinho, as mãos cruzadas nas costas, olhando pro chão, parecia até que falando sozinho. Oito filhas-mulheres, o azarado!

E todas solteiras ainda... Decerto nem dormir ele não podia mais, com o fechamento da Lotérica... Viver, agora, de que, o pobre do Seu Xico? Sustentar de que maneira a mulherada em casa, se a única ocupação que sabia ele desempenhar era vender bilhete e encher talão de bicho?

Chegou à esquina Seu Lamartine da Farmácia, o Brasilino da Tinturaria, o Aracífico da Gráfica. De charrete, passou o Zé da Vó, carregado de menino, vindo da chácara, com certeza.

Outro que perdera a minazinha, o Zé da Vó: o ponto mais movimentado do centro da cidade, o invejado Elefante de Ouro, com mais de vinte cambistas... Além do bicho, o víspora, e mais o buzo e o jaburu nos fundos...

Deus havia de ajudar porém suspirou o Juca Meirinho. O Dr. Damasceno acharia jeito de normalizar, na Capital, a ruim situação, deixar, pelo menos, aberto o jogo...

Ali estava ele sim, ele também, Seu Juca Meirinho do Forum com um rombo danado na feriazinha... Brincando, brincando, eram lá os seus oitenta, os seus cem-mil-réis o que rendia, em comissão, e todo mês, o talãozinho dos advogados e do pessoal aos cartórios justo o que pagava do aluguel de casa.

Os primeiros a chegar passava pouco das sete-e-meia foram o Capitão Eucaristo Rosa e o Sargento Hermenegildo. De passo descansado atravessaram pelo meio do Largo sem se deterem na esquina ou na confeitaria e entraram logo no Forum.

A notícia da reunião correra pela cidade, e começava a juntar mais gente na Praça, nas portas das casas de comércio, nas janelas. Próximos do Forum, na calçada, a porção de cavalarianos do Destacamento de Capturas, armados e municiados fartamente se via pelas cartucheiras estufadas, pendentes dos cinturões.

Demonstração de força era o comentário geral. Maneira d’o Capitão Eucaristo obrigar o Coronel Americão a ceder a tudo, sujeitar-se por completo às imposições, entregar à Captura os jagunços que faltavam. Todos já estavam a par das boas notícias mandadas ao pai pelo Dr. Tancredinho, e do telegrama, também, chamando o Juiz de Direito.

Não demoraria a ordem para que a Captura se retirasse de Santana do Boqueirão. E o Capitão Eucaristo aproveitava o pouco tempo que lhe restava: iria embora, iria, mas depois de dobrar a arrogância do Coronel Americão, deixar o chefão de Santana humilhado, desmoralizado por completo...

Cederia o Coronel? Afinaria frente ao aparato da Captura e às ameaças do Capitão? perguntavam, a si mesmos e uns aos outros, os santanhenses reunidos no Largo das Mercês, parados de curiosidade e expectativa.

Não eram ainda as oito horas quando apontaram na esquina do alto da Praça certamente que vindos da casa do Coronel Américo Barbosa, concentrados ali, primeiramente os chefes do Diretório convocados pelo Capitão Eucaristo Rosa.

Quase todos, ausente do grupo apenas Seu Valério Garcia, o Delegado Municipal. Na frente, os principais: o Coronel Americão e o Coronel Calixtrato, este de bengala e chapéu-panamá, emproadão e pedante como sempre. Atrás, os outros três: o Major Hipólito, Seu Josué Malaquias e o Coronel Ludgero Alves.

Desciam o Largo pela calçada da Força-e-Luz, atravessavam-no junto ao ponto dos carros-de-praça, passaram pelos soldados espalhados nas imediações do Forum.

Entraram no sobrado como se em um daqueles dias de eleição, na hora de encerrá-la, lavrarem as atas e combinarem o foguetório, a passeata... alguém se lembrou.

Sim, apenas os chefes do Diretório do Coronel Américo Barbosa podiam, nessas ocasiões, entrar no edifício guardado pelos jagunços de carabina: a oposição que esperasse do lado de fora, se estrebuchando de raiva, ciente já do resultado...

À porta do sobrado, a sentinela; dentro, no saguão dos cartórios e ao pé da escada, outro volante um cabo, embalado também. Ninguém mais.

Podem subir... o Cabo Zeca Branco disse. O Capitão já ’tá esperando lá em cima.

Subiram os dois lances da escadaria. No topo, à porta do salão de júri, o Sargento Hermenegildo:

Os senhores entrem... Vou avisar o Capitão Comandante... Mas, ’tá faltando um...

Seu Valério Garcia já deve de ’tar chegando o coronel Americão disse. Mandou me avisar que vinha direto pr’aqui... Ele mora logo em frente, na esquina da igreja...

Os cinco assentaram-se em torno da mesinha onde o Juiz de Direito costumava presidir às audiências e ouvir as testemunhas. O Sargento apressou-se em vir avisar o Capitão da chegada do coronel e companheiros.

O Delegado Especial Militar estava no gabinete reservado, do Doutor Juiz de Direito o Sargento Hermenegildo explicara, antes de deixar o salão.

Demorou-se, porém, muito pouco, voltando com a ordem do Capitão Eucaristo:

O Capitão Comandante quer falar primeiro com o Coronel Américo Barbosa... Em particular...

Vazio o corredor, apenas mais outra sentinela um praçazinho miúdo, preto tal qual o Sargento Hermenegildo , essa colocada junto à porta fechada do gabinete do Juiz o Coronel Américo Barbosa observou, enquanto caminhava seguido do Ordenança.

O soldadinho entreabriu a porta, esperou que o coronel entrasse, espremido, por ela, e fechou-a novamente. O Sargento voltou ao salão de júri.

Correram alguns minutos. A sentinela foi então quem veio chamar:

É para ir também o Coronel Calixtrato.

Me acompanhe! ríspido, feio, o Sargento Hermenegildo ordenou.

Lá se foi também, chapéu-panamá e bengalão nas mãos, escoltado pelo Ordenança, o Coronel Calixtrato Barbosa. A sentinela abriu-lhe meia porta repetiu a cerimônia e o Agente Executivo de Santana do Boqueirão entrou na saleta do fundo do corredor.

Nesse meio-tempo, o Coronel Ludgero Alves, incomodado com a demora do Valério Garcia já havia dado as oito horas o relógio da Matriz levantara-se e fora até a uma das janelas do sobrado para olhar o Largo.

Espiou, primeiro, para o relógio cinco minutos já de atraso! e avistou, em seguida, o Valério que cruzara o jardim, apressado, pelos lados do coreto

O Coronel Ludugero! chamou, alto, da porta do salão, o Sargento Hermenegildo, depois de receber outro recado da sentinela. Me acompanhe!

Tratados que nem menino de escola!... mal se continha, remoendo o ódio, o velho Coronel Ludugero Alves. Fazendo chamada, o atrevidaço do Capitão, e por um crioulão boçal daqueles...

Mas deixou a janela e acompanhou o Ordenança pelo corredor. Chegados à porta fechada do gabinete do Juiz de Direito, a sentinela levou a mão à maçaneta.

Foi quando o Coronel Ludgero Alves viu então: debaixo da porta, infiltrando-se pela fresta rente ao assoalho, a coisa começava a escorrer sobre as tábuas larga e grossa, e vermelha bicazinha...

Sangue! o velho, de instantâneo, tudo percebeu: o Americão, o Calixtrato!... Num arranco inesperado para trás, conseguiu esgueirar-se por entre o sargento e a sentinela, e tropegar rumo à escadaria:

’tão matando a gente! ’tão matando! o Coronel Ludgero disparou a gritar que nem um alucinado.

Mas não conseguiu alcançar nem o fim do primeiro lance da escada, lento de pernas, idoso demais para vencer os degraus estreitos e quase a pique. Alcançado pela linda pontaria do Sargento Hermenegildo, caiu por ali mesmo, picado pela rajada seca dos terríveis tiros curtos, de aço, de pistola-máuser.

Logo ao primeiro grito do Coronel Ludgero Alves, muitas portas, até então fechadas, se escancararam, ali por dentro do casarão do Forum.

Do gabinete reservado, onde haviam sido massacrados os coronéis Americão e Calixtrato, saíram três cavalarianos, mascarados de sangue, machadinha em punho um deles o Cabo Salvador, o que, trepado na cadeira colocada atrás da porta, fora incumbido de golpear, em primeiro e na cabeça, à medida que entravam os condenados ao abate, conduzidos um por um pelo Sargento Hermenegildo.

O Capitão Eucaristo Rosa, esse rompeu, carabina engatilhada, do banheiro pegado ao quarto de dormir do Juiz de Direito, na outra ponta do corredor.

Da saleta dos advogados, vizinha ao salão do júri, do cômodo ao lado da escadaria depósito da papelada velha dos cartórios das sentinas do andar de baixo, do café de Seu Juca Meirinho... de todos os cantos e desvãos saltaram os volantes da Captura, açulados mais ainda pelos tiros da pistola do Ordenança.

Encantoados no salão, restava ao Major Hipólito e ao Josué Malaquias apenas a janela aberta pelo Coronel Ludgero, na hora em que fora ele olhar as horas e a Praça, preocupado com o atraso de Seu Valério. Para ela arremeteram-se os dois.

Das sacadas dos outros sobrados da Praça, das esquinas e calçadas, viram-nos tentar a escapada... a desesperada proeza de quererem galgar o peitoril, montá-lo, atirarem-se janela abaixo. Os pobres: velhos, encarangados de juntas...

Muita gente assistiu aos dois como que a lutar um com o outro, se atrapalharem, se espremerem... enquanto, de dentro do sobradão, recomeçavam os tiros, rápidos, repetidos.

Sim, venceram o parapeito da janela, galgaram-no sim, o Josué Malaquias e o Major Hipólito: transpuseram-no, precipitaram-se daquela altura... mas alçados e empurrados, depois de fuzilados pelas costas, arrojados fora pelos soldados lá de cima, para virem espatifar-se na calçada de pedras do Largo das Mercês.

Seu Valério Garcia tudo presenciou, parado no meio do Largo, estupidificado, como que estuporado da cabeça aos pés. Somente se mexeu para cair, derrubado por um balaço vindo dos altos do Forum um coice de burro, de veloz, certeiro e rijo que o atingiu na boca do estômago, quase que no centro exato da cintura.

Ocupar toda a praça fronteira ao Forum, guarnecer os cantos do jardim, as esquinas do Largo, evacuar, limpar completamente as imediações do Forum, isso foi obra de instantes para o treinado e ágil Segundo Destacamento do Capitão Eucaristo Rosa.

Quando o oficial desceu o degrau de entrada do sobrado, acompanhado do Sargento Hermenegildo, muitos santanhenses lograram vê-lo, uns através de frestas de janelas, outros por debaixo das mesas ou amoitados atrás do balcão da Confeitaria do Cucute.

E ouvi-lo berrar para alguns volantes da Captura que se abeiravam dos corpos estendidos no paralelepípedo e lajes da calçada: Se afastem! Entrem em forma! Os parentes que tomem conta!

Muitos, muitos anos depois, e Seu Valério Garcia ainda contava, para quem quisesse ouvir, como escapara à chacina de catorze de maio, em Santana do Boqueirão:

Foi Seu Genésio, atacadista de pinga e rapadura, quem me segurou em casa, desde manhã cedo, fecha-não-fecha a compra da safra do Pinhém daquele ano. Se aproveitava, o velhaco, da minha pressa, mo’de a reunião... Me atrasou, acabou levando um vantajão no negócio, mas me salvou a vida, o Seu Genésio...

E também mostrava, para quem quisesse ver, o relógio de algibeira um patacão de ouro, pateque, redondão e grosso com a bala de carabina, de chumbo, encravada bem no centro:

Parece até milagre, mas o soldado chegou a me enfiar o pé por debaixo do pescoço... Eu ’tava de bruço’, e ele ia começando a me desvirar, no chão, a ponta de bota...

Na horinha em que o Capitão Eucaristo gritou aquela abençoada ordem!
(Chapadão do Bugre, Capítulo 40, 1965.)

Fonte:
http://www.vestibular1.com.br/