sábado, 11 de fevereiro de 2012

Moacyr Scliar (A Colina dos Suspiros)


Com um texto bem-humorado, em A Colina dos Suspiros, de 1999, o autor brinca com a paixão dos brasileiros pelo futebol: se eu morrer na sexta-feira quero ser enterrado no sábado, na hora do jogo. Esse amor pelo clube que está presente nas grandes cidades com os seus jogadores famosos mobiliza também o coração dos torcedores dos times das pequenas cidades, distantes e humildes.

Até a presença do cartola, figura tão criticada no meio futebolístico, se faz representar na cidade de Pau Seco: o fazendeiro da região praticamente sustenta time, e nenhuma decisão é tomada sem o seu consentimento.

A ironia do texto cativa o leitor atento, e a venda do estádio do Pau Seco para a construção de um cemitério verticalizado, ponto turístico da cidade, recebe do autor tratamento primoroso. A escolha do nome "Pirâmide do Repouso Eterno", eufemismo para cemitério, seduz os habitantes da cidade, pois atenderia à vaidade humana na hierarquização dos sepultamento: grande jogada de marketing da personagem, lance do mais fino humor de Scliar.

Enredo

Futebol, intriga, paixão e mistério são os ingredientes desta história. A história é verídica. Nos anos 70, o Esporte Clube Cruzeiro, de Porto Alegre, vendeu seu estádio e o lugar se tornou um cemitério (João XXIII). Entre os torcedores do time figura o escritor gaúcho Moacyr Scliar, que inspirado no episódio escreveu um romance divertido. Justamente sobre uma equipe decadente cujo campo vai abrigar a Pirâmide do Eterno Repouso. Entre os tipos pitorescos que recheiam a trama, o mais estranho é Rubinho, craque com potencial de gênio, atormentado por assombrações.

A ascendência russa e a cultura judaica são decisivas na obra de Moacir Scliar, assim como os conhecimentos, experiências e vivência de médico sanitarista. Admiração confessa pelos escritores Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Franz Kafka e, na música, por Mozart, Philip Glass e Chico Buarque. Futebol é o tema de A colina dos suspiros, do gaúcho Moacyr Scliar, e a pequena cidade de Pau Seco é o cenário.

Da realidade à ficção, o autor apresenta neste romance a pequena cidade de Pau Seco, com dois clubes de futebol que se digladiam há muito tempo. Futebol em Pau Seco é o que move ou paralisa a cidade. O estádio fica junto do cemitério.

Ali, o Pau Seco Futebol Clube, à beira da falência, cede seu estádio para a construção de um cemitério. A salvação está em Rubinho, um dos trabalhadores da obra, que se revela um extraordinário jogador.

Rubinho, a possível salvação dos paussequenses, é o jogador-revelação da cidade, que sofre uma humilhação pública, pois tem medo de marcar gol em frente ao túmulo do falecido ídolo Bugio. Desaparece, e só tem um desejo - vingança. Trata-se de um momento decisivo em sua vida. Com humor e sutileza, questões éticas, políticas, sociais, familiares, amorosas, o bem e o mal são discutidos.

O cemitério volta a ser estádio. Aí aparece de tudo: coronel todo-poderoso com seus mandos e desmandos, pobre que sai do anonimato para a riqueza sem preparo, maracutaias e espertezas. Esta narrativa terá surpreendentes desdobramentos e também por isso, fascina o público jovem ou, melhor, de qualquer idade. Com humor e sutileza, Moacyr Scliar discute questões éticas, políticas, sociais, familiares, amorosas, o bem e o mal. Com humor leve, essa saborosa crônica cativa pelo ótimo texto, só interrompido pelas risadas que desperta.

Fonte:
Passeiweb

Dalva Agne Lynch/SP (Terra)


Terra
sustento a ponte
unindo opostos.
Sustento a morada
o abrigo
contra o vento
e o tormento.
Recebo a semente
germino
dou a luz a flores e frutos
germino
dou a luz ervas daninhas.
Sou alimento
e veneno.
Terra
contenho ouro e prata
lava e ácido.
Sustento e recebo
sufoco e mato.

Sou útero
e
sou cova.

Fonte:
Jacqueline Aisenman. Revista Varal do Brasil: Literário, sem frescuras. Edição Especial: Nosso Planeta Terra. Genebra: abril de 2011.

Guerra Junqueiro (Os Pequenos no Bosque)


Iam um dia três pequenos para a escola, e disseram uns aos outros que não havia nada no mundo mais aborrecido que estudar: «Vamos para o bosque que encontraremos lá toda a espécie de lindos animais, que não fazem outra coisa senão brincar, e nós brincaremos com eles».

Foram logo, e passaram sem fazer caso ao pé da ativa formiga, e da abelha diligente. Mas o besoiro, que eles convidaram a vir patuscar, disse-lhes:

– Brincar? Preciso construir com estas ervas uma ponte nova, porque a outra já não está segura.

– Eu, disse o rato, tenho que fazer as minhas provisões para o Inverno.

– Eu, disse dali a pomba, tenho muitas coisas que levar para o meu ninho.

– Eu, disse a lebre, gostava bem de me ir divertir com vocês, mas ainda hoje não lavei o meu focinho. Antes de fazer qualquer outra coisa tenho de tratar da minha toilette.

– E tu, lindo regato, disseram os pequenos desertores, que passas o tempo a saltar e a tagarelar, também não brincas conosco?

Estes pequenos são tolos, disse o regato. Ora essa! Vocês então imaginam que eu não tenho nada que fazer? De noite ou de dia, não descanso nem um momento. Tenho que dar de beber aos homens e aos animais, às colinas, aos vaies, aos campos e aos jardins. Tenho que apagar os incêndios, tenho que fazer mover as forjas, os moinhos, as serralharias, etc. Nem hoje acabaria, se lhes quisesse contar o que tenho que fazer. Não posso perder um instante. Adeus, adeus. Estou com muita pressa.

Os pequenos, desconcertados, puseram-se a olhar para o ar, e viram um pintassilgo em cima de um ramo.

– Olha! tu, que não tens nada que fazer, anda daí brincar conosco?

– Nada que fazer? vocês estão a mangar comigo, disse o pintassilgo. Todo o dia tenho que apanhar moscas para comer. Tenho, além disso, que tomar parte no concerto dos passarinhos, tenho que alegrar o operário com o meu chilreio, e tenho que adormecer as crianças com uma outra cantiga, que à noite e de madrugada celebra a bondade do Criador. Ide-vos, preguiçosos, ide cumprir o vosso dever, e não voltem a incomodar os habitantes das florestas, que cada um tem a sua tarefa a desempenhar.

Os pequenos aproveitaram a lição e compreenderam que o prazer e o descanso são a recompensa do trabalho.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - IV – Um soco histórico


Nisto o pássaro Roca principiou a descer, sempre descrevendo círculos em espiral. O burro ia-se tornando cada vez mais visível e a pontada no coração de dona Benta cada vez mais forte. O barão preparou-se. Examinou a arma e carregou-a bem carregada. Pedrinho não podia compreender como um caçador daqueles, o mais célebre de todos, ainda usava espingarda de pederneira, em vez das modernas espingardas de fogo central. Explicação muito simples: o senhor de Munchausen era do tempo das espingardas de pederneira e portanto não podia conhecer as de fogo central.

— Veja, vovó — disse o menino mostrando-lhe a espingarda do Barão. — Chama-se espingarda de pederneira porque tem esta pedra de isqueiro aqui junto ao ouvido. O gatilho dá na pedra e tira uma faísca, e a faísca lá vai incendiar a pólvora. Interessante, não?

Dona Benta nem ouviu. Estava de olho mas era no pássaro Roca.

— Uma vez — disse o senhor de Munchausen — perdi a pederneira desta mesma espingarda numa das minhas excursões, e justamente quando um veado ia passando. Pensam que me atrapalhei?

Fiz pontaria e, há! dei um formidável soco no olho. Saiu uma faísca ainda melhor que as da pederneira — e matei o veado!

Emília, assim que ouviu aquilo, ficou ansiosa por ver o barão repetir a façanha e, sem que ninguém percebesse, deu jeito de sacar fora a pederneira da espingarda — e escondeu-a. Queria ver se ele tirava mesmo fogo dos olhos ou era peta.

O pássaro Roca ia continuando a descer.

— Atire, barão! — berrou Emília.

— É cedo, bonequinha! O cabresto ainda não está bem visível. Tenho de cortar o cabresto com uma bala no momento em que o pássaro estiver voando sobre o mar. Se não o burro cai em terra e acontece como o sapo que foi à festa do céu — esborracha-se!...

A gigantesca ave desceu mais e mais. O cabresto tornou-se por fim bem visível.

— É hora! — disse o barão erguendo a arma à cara. Fez a pontaria e — blef! — o gatilho deu em seco.

— Com seiscentos milhões de trabucos! — praguejou ele. – Onde teria ido parar a pederneira desta arma?

— Soque o olho! — berrou Emília.

— Sim, é o que há a fazer. Mas como a pontaria tem de ser muito bem feita, vou segurar a espingarda com ambas as mãos e você, Pedrinho, prega o soco. Vamos, não tenha dó!...

Todos ficaram em suspenso, sentindo que algo de muito importante ia acontecer. Tal qual no circo de cavalinhos, quando a música pára. Era um momento notável da vida de Pedrinho. Ia dar um soco histórico no olho do mais célebre caçador do mundo! E tinha de fazer serviço muito bem feito para não estragar o capítulo.

— Soco inglês! — gritou Emília.

O menino tirou o paletó, arregaçou a manga da camisa, girou três vezes no ar o punho cerrado e por fim — bam! deu tal murro que quase arranca o olho do barão fora da órbita. Mas valeu! Saiu uma faísca linda, que penetrou feito um corisquinho dentro do ouvido da arma e inflamou a pólvora. Bum! Um tiro reboou, daqueles que levam segundos ecoando por montes e vales. E certíssimo !... A bala deu bem no cabresto, cortando-o como se fosse navalha. O burro imediatamente começou a cair com velocidade crescente, até que, tchibum! — mergulhou no oceano.

— Afundou para sempre, o coitado! — exclamou Narizinho.

— Não tenha medo. Ele bóia já — disse o barão.

De fato. Segundos depois aparecia à tona d’água uma aflitíssima cabeça de burro, a berrar:

— Socorro! Acudam-me que não sei nadar!...

— E esta agora! — exclamou o menino. — Querem ver que o nosso burro escapa do pássaro Roca para morrer afogado estupidamente, como um carneiro?

— Vamos salvá-lo, Pedrinho! — disse o barão despindo o casaco e sacando as botas. — Será um crime deixarmos morrer um burro que fala.

Entraram os dois pelo mar a dentro, nadando a largas braçadas em direção do náufrago.

— Segurem-no pelo rabo e puxem! — berrava Emília da praia. — Mas não puxem fora de conta que podem arrancar o rabo!...

Assim fizeram os salvadores. Um agarrou o burro pelo rabo e o outro pela orelha, e o vieram puxando para terra. Estava salvo o precioso burro falante, único exemplar conhecido, mas em que estado!... Ou por medo ou por ter passado tanto tempo no ar quase enforcado pelo cabresto, ou por ter bebido água demais, o caso era que nem falar podia. Apenas suspirava uns suspiros de cortar o coração de todos.

— Água! — gritou dona Benta. — Dêem-lhe água!

Emília, muito lampeira, pegou logo uma concha marinha das que abundavam por ali, encheu-a d’água do mar e despejou-a na boca do burro.

— Que burrice, Emília! — gritou Narizinho tornando-lhe a concha. — Pois não vê que ele está morrendo de tanta água do mar que bebeu? Água quer dizer água doce, boba...

— Pelo de cão se cura com a mordedura do próprio cão — respondeu a boneca, trocando as bolas dum dito que tia Nastácia usava muito.

E não é que deu certo? Aquela água da concha enjoou de tal maneira o burro que ele começou a vomitar todo o oceano que havia engolido. Melhorou imediatamente e sentou-se na areia com as patas da frente espichadas, tal qual as esfinges do Egito.

— Está melhorzinho? — veio perguntar dona Benta, passando lhe a mão pela cara.

— Um pouco melhor, obrigado! — foi a resposta do delicadíssimo burro, que ainda por cima lhe agradeceu com os olhos — uns olhos muitos brancos, ansiados pelas agonias da morte.
––––––––––––––
Continua… O Pó de Pirlimpimpim – V – Fim do Visconde de Sabugosa

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

André Luiz Fernandes/RO (Velas Soltas)

Fonte:

http://poesiadonorte.blogspot.com/

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 477)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Um lenço acena do cais
em gestos leves, tristonhos,
trazendo a dor dos meus ais,
nas lembranças dos meus sonhos.
–SÔNIA SOBREIRA/RJ–

Uma Trova Potiguar


Tristeza no peito sinto,
em ver que a mãe terra come,
o próprio filho faminto,
que a mesma matou de fome.
–LUIZ DUTRA BORGES/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Em passos e contrapassos,
ao som de acordes tristonhos,
sempre foges dos meus braços
no bailado dos meus sonhos...
–VASQUES FILHO/PI–

Uma Trova Premiada


2008 - ATRN-Natal/RN
Tema: IDADE - Venc.


Quem planta o amor tem na Paz
de uma velhice serena,
prazer de olhar para traz
e dizer: - "Valeu a Pena"!
–WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ/PR–

Simplesmente Poesia

Rasgos
–CLEVANE PESSOA/RN–


Às vezes somos motivados por um nada
aparente
noutras, agimos por todos os motivos
- novos e antigos...
Em certas ocasiões, estamos compromissados
aos amigos
mas noutras, o que fazemos, de fato,
é para atingir os inimigos...
Mágoas, dissabores, sendo omisso ou valente,
o ser humano vai esboçando seu próprio retrato
quando age de uma forma ou de outra forma
quando se revolta ou quando se conforma
quando obtém fracassos ou se enche de glória...
E é em cada rasgo de personalidade
que nós diferenciamos dos demais
para escrever a nossa própria história
atracando ou nos afastando
de nosso próprio cais...

Estrofe do Dia

Num instinto perverso e sem pensar
ofendi ao meu próximo um certo dia,
critiquei um pedinte que pedia
tudo eu tinha e não quis lhe ajudar,
fui a missa só pra me confessar
disse o padre com toda paciência:
reze um mês sem parar por penitencia
que melhora esse instinto de animal;
todo homem possui um tribunal
pra julgar sua própria consciência.
–BIU SALVINO/PB–

Soneto do Dia

100 % Cristão
–FRANCISCO MACEDO/RN–


Eu sou cem por cento cristão, tenho fé,
um pobre infiel, seguidor consciente,
que busca Jesus, o caminho da gente,
mas, creio sem ver, pois não sou São Tomé.

O Cristo Jesus, cujo nome é Javé,
morreu numa cruz, mesmo sendo inocente,
Caminho de paz e de amor para o crente
É o bom Salvador que nasceu de José.

Recolho a verdade no seu Evangelho
o livro sagrado jamais fica velho
em cada uma folha, uma grande lição.

Jesus ressurreto, meu mestre, meu guia,
saúdo, Senhor, com a minha poesia,
e grato serei se alcançar salvação!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

J. G. de Araújo Jorge (Entrevista Comigo Mesmo)


- Que Pensa da arte?

Insopitável necessidade de emergir. Todos nós que vivemos soterrados em tantos "eus", sentimos ânsias de ar, de sol, de revelação, de comunicação. A arte ajuda o homem a se aceitar, a compreender o mundo que o cerca, a se aproximar de Deus. A alma humana, como as baleias, vive mas precisa vir à tona para respirar.

- E do poeta ?

É um tradutor de realidades subjetivas. Um transfigurador. Um mergulhador dos mares do espírito. É através de mensagem, que o homem comum consegue atingir "o outro lado" das coisas! Seu trabalho enriquece a todos. Já o poeta é um prestidigitador - faz mágicas com a Vida - transforma água em vinho, para a embriagues da beleza.
Mas há o reverso da medalha: quantos poetas tenho encontrado que apenas não fazem versos!

-E da poesia ?

É a ciência do coração. Os poetas são os sábios do sentimento. E quantas coisas revelam sem se aperceberem de suas descobertas.
Tenho dito muitas vezes: são seres que pensam, sentindo ou, pensam, porque sentem. Constróem seu mundo com emoções.
Quando pretendem filosofar, falam de amor. E falar de amor já é fazer poesia.
A poesia é criada pelo pensamento, mas seu material é o sentimento. Cobaias de si mesmos, os poetas, em experiências e pesquisas constantes, revelam a vida, são apenas homens que nasceram poetas.

- Então, o poeta não é um ser diferente?

É um ser diferente num homem comum. Sou um homem comum, apenas dispondo de recursos para realizar uma tarefa que não está ao alcance de todos. O poeta é como um alpinista, que já nascesse trazendo em si mesmo os instrumentos e apetrechos para poder realizar escaladas.
Sou um homem comum que anda na rua, canta no banheiro, vai ao futebol, toma porre , diz palavrão, faz versos para ela; que ama, briga, sonha, desespera, como qualquer um. Há um velho adágio latino: "primeiro viver, depois filosofar".
Bem se poderia parafrasear: primeiro viver, depois poetar.

- E por que acha que faz poesia?

Talvez porque a única coisa que sei, e sei mal, sou eu mesmo. Se ninguém gostasse de minha poesia ainda assim a faria. Pois nasci para isso. Não é tanto que eu goste de minha poesia, mas porque preciso dela, o que talvez venha a ser a mesma coisa.

Mas, o fato é que, sem minha poesia., ficaria doente, como um índio confinado numa cela, sem sua selva, seus rios, seus pássaros, sua liberdade. Me encontro nela como peixe no mar. Ela me dá a impressão de que não é só do meu espírito, mas do corpo também. Eu a sinto, quase fisicamente.
Os artistas são como as cigarras: estas, morrem de tanto cantar; nós, se não contarmos, morreremos.

- É fácil ou difícil fazer versos?

Fácil, ou impossível. Impossível, no sentido de ser.
Você pode se tornar um pianista, nunca um "virtuoso". Você pode aprender a fazer versos, nunca a ser poeta. Poesia não é só construção. Se não, poderíamos abrir uma escola para poetas, como há uma escola de Engenharia ou de Direito. E é preciso que se diga isto, quando há uns poetas por aí negando-se a si mesmos.

Quanto a mim, já respondi:
Eu faço versos assim,
como quem respira ou canta
a poesia nasce em mim,
como do chão nasce a planta.

- Gosta do que faz?

É como se me perguntasse se gosto de rir, ou de chorar. Gosto de cantar, de mataborrar minha alegria ou minha dor em versos. Poderia até responder numa quadrinha:
Eu faço versos assim
como quem ri, ou quem chora,
e ao arrancá-los de mim
fico nú e vou-me embora. .

- Que acha de sua obra?

Seria difícil responder, de dentro dela, onde me encontro.Faltam-me isenção e perspectiva. Mas sou um velho fazedor de versos, que em suas releituras muita vez não se reconhece em sua própria obra.
Somos tantos afinal, em nós mesmos, em mortes e renascimentos que nos acabam e nos multiplicam. Mas seria um pai desnaturado se não gostasse do que nasce de mim, com todas as qualidades e defeitos que são os meus.

- Julga-se um poeta moderno?

Um poeta moderno é o que se comunica com o seu tempo, e lhe traduz as esperanças, anseios, desesperos. Se os moços lêem os meus versos e os sabem de cor, e os escrevem em seus cadernos, e compram meus livros, então não sou apenas um poeta moderno, de hoje, mas um contemporâneo do futuro, porque já estou me dirigindo ao amanhã.

- Que acha do amor, como tema poético?

O mais importante. Veio explorado, mas inesgotável, só os verdadeiros poetas conseguem, encontrar-lhe novos "filões". Confessei em "Eterno Motivo": Não me envergonho nunca de falar de amor. E repeti, em "O Poder da Flor".

Acima de tudo cantarei o amor.
O de Cristo e Confúcio, o de Romeu e D. Juan,
o de Che Guevara,
acima de todo cantarei o amor.

- Então, o amor é o grande tema ?

Sim, o amor, a vida. Está no meu "Cantiga do Só" poesia sem vida, é como flor de papel, de matéria-plástica. Falta-lhe seiva, viço, perfume. Não será mel nem fruto. Não conhecerá pássaros nem abelhas. É uma imitação triste.

E a poesia tem que ser múltipla pelas próprias contingências da vida. Sem falar de minha poesia social e política (sou talvez o único poeta brasileiro com livros de poesia política: "Estrela da Terra", "Mensagem", a segunda parte de "O Poder da Flor), minha obra lírica evoluiu, como é natural, a cada livro. Hoje, nos meus últimos livros, meu lirismo é um canto dramático, em que o lírico é mais um fio melódico, à distância.

- Há lugar para a poesia em nossos tempos?

Em todos os tempos. E quanto mais árido o chão, mais sede de beleza sentirão os homens. Nas bicas, nos cantis, nas mãos, no coração, nas pedras, a poesia é água fresca sem a qual a vida morre. Por isso já escrevi: Alegria / é apanhar no chão,/ a água da minha poesia / a correr, / e dar a quem tem sede no coração / para beber.
Isto me dá a sensação também da constante utilidade da minha poesia, pois percebo que muitos precisam dela, como de um pedaço de pão, ou de um gole d'água.
A poesia é, além do mais, companhia e confidente. E quanta solidão anda por aí desarvorada, sem uma porta que se abra, um coração que a receba !

- Que acha da criação?

Não sei defini-Ia.
Sei que após ela, nos sentimos leves e felizes, como devem se sentir as mulheres após a maternidade, as crianças depois das aulas, a terra depois da chuva. Proust a definiu: decolar. . .

- Há inspiração?

Sim, é um toque de Deus no artista. Uma espécie de "mediunidade". Um transe, um "estado de graça" tão natural, como a manifestação do amor. O poeta não é apenas "o arquiteto, o engenheiro, o construtor, o operário" como diz Vinícius, mas o próprio morador do edifício, e sem sua presença, a sua construção é menos que uma ruína, será um edifício vazio, sem alma, sem sentido. Com o pensamento, o homem faz prosa, faz Filosofia, Direito, Teatro, Romance. Sem o sentimento, não há poesia, ou o que há de poesia, será àquela vaga emoção que o pensamento conseguiu perturbar ou despertar. Alguns, raros, poetas, pensando, se emocionam. O processo da criação poética é, entretanto, outro; sem trocadilho, inverso: porque se emocionam, os poetas pensam, e então criam.

E o ato de criar verdadeiro é imprevisível. O poeta, não diz: bem, vou fazer um poema. O poema é que vem, e diz: estou aqui, escreve-me. Tentei explicar todo um livro, "Harpa Submersa": sua linguagem escorreu como lava de vulcão, fixando todas as emoções e angústias interiores. Cristalizou-se muitas vezes, como os minerais que constroem ângulos e arestas sem conhecer as leis das cristalografia.

Assim é a poesia.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Assis Brasil (Beira Rio Beira Vida)


Beira rio beira vida é o primeiro livro da série intitulada "Tetralogia piauiense", projeto literário do escritor piauiense Assis Brasil. As obras são ambientadas na cidade de Parnaíba, no período da primeira metade do século XX.

A obra põe em evidência os moradores e trabalhadores do cais: canoeiros, embarcadiços, estivadores, prostitutas, enfim o lumpemproletariado na hostil submissão à deidade-mercadoria. No livro, a prostituição marca gerações de mulheres, que, sufocadas pelo sistema, concebem-na como sina, uma maldição para a qual restava apenas a subserviência.

Para o entendimento da obra, começaremos com uma rápida reflexão sobre o título: Beira Rio (o porto, o contínuo movimento do rio que traz e leva esperanças, marinheiros, desilusões); Beira Vida (a marginalização social).

Essa marginalização é o tema predominante. A pobreza, o preconceito e a falta de oportunidades acabam por balizar o destino das personagens. Isto fica bem evidenciado em:

(...) Nunca conheci outra vida, tudo foi se ajeitando normalmente, acontecendo, acontecendo.
Tudo parecia natural para mim, não era de pensar muito.(...)


Em Beira rio beira vida, lancinantes reminiscências atravessam a trama, memórias vão grassando formas estéticas aos episódios, cuja narração remete à agitada rotina do cais de Parnaíba. A vida ribeirinha mobilizada pelas embarcações matiza gerações de marinheiros, canoeiros, barqueiros, taifeiros, enfim de todos os que têm suas trajetórias proliferadas em meio à agitação das águas, dos passos, dos gritos. Meretrizes se arranjavam pelas proximidades, dada a concentração da população masculina.

A ênfase da narração recai sobre a temática da prostituição em dois enfoques, especialmente: um exógeno, que fica a cargo do narrador impessoal de primeira instância; e outro endógeno, sob o comando da personagem Luíza, que vai tecendo a narrativa segundo a fruição de suas memórias.

Como veremos mais adiante, Luíza advém de uma tradição de mulheres do cais estigmatizadas pela prática do “comércio da carne”.

Adentrou o universo da prostituição como quem cumpre uma sina – a vida da avó, da mãe, uma maldição que se repetia nela. Cremilda, sua mãe, ouviu de uma antepassada que uma mulher havia sido presa, acusada de assassinar o amante, um rapaz rico por quem se apaixonara. Inconformada por pagar por um crime que não cometera, gritava e maldizia a tudo e a todos ao longo das noites na cela, submersa em uma revolta implacável. Ao dar a luz, amaldiçoou a filha e toda a sua descendência: “teria uma filha que pegaria barriga de marinheiro, e a filha de sua filha pegaria barriga de marinheiro”.

Embora o autor permita à personagem Luíza os discursos memorialísticos dos quais brotam a narrativa, a vida social do cais é a base espacial sob a qual o enredo é engendrado: “A sineta dos navios-gaiola, o apito mais grosso de uma barca, o grito dos canoeiros, o barulho seco do arroz e feijão pisados no cais, pareciam varrer com a brisa a calçada escura, cheia de lembranças”.

Uma vez que não apresenta ordem cronológica dos fatos, o romance se apóia no tempo da memória para dar coerência à narrativa, ou seja, apóia-se na maneira que o narrador relembra o próprio passado de uma maneira específica, com recortes específicos, num período de tempo específico. Nesse caso, o tempo da memória citado quer dizer um tempo sem qualquer coerência externa à mente do narrador. A beleza reside justamente nas características particulares do ato de lembrar, praticado no romance por Luíza: falhas, idas e vindas no tempo, a escolha de determinadas emoções e sensações. Utilizando como recurso estilístico a repetição constante de falas e ações, o autor consegue enfatizar a mesmice dos dias e a estagnação das personagens. As horas passam devagar e se tornam um fardo para aqueles que não têm rumo certo ou esperança de transformação. As mulheres do cais, especialmente, percebem o tempo de forma diversa. Para elas, os dias não são determinados pelo calendário, mas sim pela presença dos homens nas suas camas: Os homens deixaram a casa um a um – foram desaparecendo em silêncio. Contava a passagem dos anos pela freqüência deles. A figura masculina vem ressaltar a situação de dependência em que elas se encontram e a falta de controle sobre seus próprios destinos. Os retratos dos ‘clientes’ nas paredes de Cremilda são a prova de que também na realidade ficcional, as personagens só conhecem o tempo da memória e vivem das glórias da juventude e dos feitos de outrora.

Se o tempo pesa e seus efeitos não podem ser ignorados, o espaço não é diferente. A cidade de Parnaíba, especialmente o cais, exerce forte atração sobre os habitantes, não permitindo que se afastem dali sem que haja uma punição.

Isso acontece porque também o espaço conserva sua memória, aprisionando seus filhos eternamente nas mesmas posições da escala social: Você ficaria sempre com a marca do cais e ia acabar mesmo era amigada com um deles, Mundoca. Diante da inconstância do meio de vida do cais, o lugar de origem torna-se sinônimo de conhecimento e segurança, a única coisa realmente concreta na vida dessas pessoas: esperava sentada no cais, com a paciência e a certeza de tantos anos. Certeza de que só o cais existia realmente. E as coisas lhe aconteciam a partir dali e só tinham significação se começassem no cais.

Beira Rio Beira Vida é resultado de uma percepção muito particular da miséria e da prostituição. Uma vez que todo o romance é construído pelas lembranças de Luíza, parece coerente fazer uma análise do texto a partir dos fatos mais marcantes da sua narração, significativos não somente na vida da personagem, mas na fundamentação da denúncia social contemplada por suas lembranças, escolhidas de forma a ressaltar a situação de miséria em que ela se encontra, assim como os legitimadores dessa miséria (o que ela algumas vezes chama de sina, mas que em outras ocasiões ela identifica como a ação de pessoas de um meio social mais elevado). Essas lembranças fundamentam a realidade injusta denunciada através do romance.

Partindo desses episódios, também se identificam outros, pertencentes ao cotidiano da cidade, que oferecem informações importantes para a compreensão do contexto social em que ela está inserida. Dessa forma, evidencia-se com maior clareza a trajetória de Luíza e a formação da sua visão de mundo. Consideram-se, então, três momentos fundamentais das suas memórias.

O primeiro deles descreve o nascimento da sina do cais, ou seja, a maldição que teria dado origem ao meio de vida das prostitutas de Parnaíba. O caso, contado a Luíza por Cremilda, diz que um dia, a mais bela e bem sucedida prostitua do cais se envolveu com um rapaz de família abastada e conhecida.

Apaixonado, ele anunciou o casamento para a família e, depois de ser perseguido pela cidade e deserdado, acabou assassinado por um marinheiro “amigado” com a tal mulher do cais. Acusada de participação no crime, ela foi para a cadeia e, mais tarde, descobriu-se que estava grávida. Passava as noites a perturbar a cidade com seus gritos de revolta, levando as damas da sociedade de Parnaíba a defenderem sua internação na Santa Casa até o nascimento da criança. Porém, o padre não aconselhou a transferência, alegando apenas que seria um “mau exemplo”. Motivo de vergonha para toda a comunidade, ela permaneceu presa:

A mulher passou os nove meses de gravidez gritando e chorando de noite, para que toda a cidade ouvisse. E quando a filha nasceu ainda chorava e gritava, blasfemando. Passou a maldizer o futuro da menina, que ela era culpada, haveria de penar, penar e pegaria barriga de marinheiro, e teria uma filha que pegaria barriga de marinheiro, e a filha de sua filha pegaria barriga de marinheiro.

A sina do cais é, portanto, uma conseqüência da omissão da igreja, da língua ferina e preconceituosa da cidade e da transgressão de um jovem que ousou unir as duas pontas de uma sociedade desigual, provocando o surgimento de uma maldição que há anos condena as mulheres nascidas na beira do rio. Nesse contexto, existe um elemento fantástico para justificar um abuso real – a força das palavras, proferidas durante um sofrimento intenso, é tamanha que atravessa os anos a produzir novas vítimas.

O que Cremilda conta nada mais é que um mito, o relato de um acontecimento primordial que condicionou a existência das outras prostitutas a partir de então.

A explicação mitológica para a vida miserável que levam as prostitutas é a sina do cais; ela determina toda a realidade e faz com que essas mulheres creiam na incapacidade de escrever a própria história. Toda vez que uma delas engravida de um marinheiro, é como se repetisse um ritual que remonta àquela praga, o erro original. Suspende-se a passagem do tempo e por um instante, volta-se àquele momento inicial, no qual mais um destino é marcado para sempre. As vidas se repetem indefinidamente, condenadas a esse ciclo de infelicidade, mas compreende-se o porquê e se aceita o fado.

A sociedade retratada no romance se assemelha às arcaicas, nesse aspecto da busca por imagens mitológicas para justificar a realidade. A crença na reprodução eterna dos eventos e nos desígnios de uma entidade superior também é um indício dessa aproximação. Todavia, na comunidade piauiense não há uma renovação do tempo, no sentido de purificação dos pecados, ou uma reverência sagrada ao passado. Há apenas uma repetição de arquétipos, uma incapacidade de escrever histórias particulares gerada pela pobreza e injustiça do meio social em que se encontram.

É importante ressaltar que, apesar de acreditarem num destino já traçado, as personagens ainda esboçam uma certa reação contra a realidade indesejada. Porém, sabem de antemão que se trata de uma tentativa vã, principalmente se essa reação é intermediada pela figura masculina. É o que acontece com Cremilda, na ocasião da perda de seu armazém, o qual havia obtido através de um ‘casamento de interesses’. Depois de anos de trabalho e dedicação, só lhe resta resignar-se diante do fracasso: “A gargalhada da mãe, a sua ironia – ‘mas de que adiantou tamanho sacrifício se eu sei, sempre soube, que um dia ia perder tudo? Mas foi divertido – no começo foi ainda mais divertido, eu ganhava dinheiro, era uma mulher de negócio, cheguei até mesmo a esquecer quem era, quem um dia voltaria a ser’”.

A impossibilidade de vitória diante desse fado é a fonte de sentimentos de vingança e revolta. A sina é imposta pela reprodução sexual, transformando a maternidade num momento de conflito - enquanto a filha se ressente da falta de escolha, a mãe se vinga da gravidez indesejada sobre a própria cria, transmitindo o fardo pesado da vida do cais: Minha mãe nunca me perdoou. A vingança foi ver a minha vida repetindo a sua, toda noite, todo dia, até o fim. Ela teve culpa, mas, não sei porque, nunca se julgou culpada. Quem sabe o que não sofreu da própria mãe? A prostituição se torna um veículo de expressão da revolta. O dinheiro e os presentes que recebem são uma maneira de retirar algo de uma sociedade que lhes nega uma vida mais digna. Para tanto, utilizam o próprio corpo: era um gosto esquisito de vingança, tinha que se vingar do mundo, ou mais particularmente deles, dos desgraçados. Estranho que fosse uma vingança na própria carne, na própria alma. Todavia, com a passagem dos anos e a chegada da velhice, a inutilidade dessas batalhas vai ficando cada vez mais evidente. Diante das forças invisíveis que manipulam o cotidiano e da convicção de que nada pode ser feito contra elas, surge uma aceitação que não é fruto da passividade, mas da desesperança: Quantas vezes não lhe contara aquelas revoltas que se foram aplacando, dando lugar àquela paciência de gente sem destino, sem sorte”.

Arraigada profundamente no imaginário dessas mulheres e determinando crenças e escolhas, a sina se faz presente de inúmeras formas no dia a dia do cais. Ela condiciona, por exemplo, a escolha dos nomes das meninas nascidas ali. Como numa transferência simbólica de cargos e fados, as filhas recebem os nomes das avós, prolongando indefinidamente a ação da praga rogada há tantos anos. Na tentativa de interromper o ciclo de sofrimento e desgraça, Luíza chama a filha de Mundoca, ao invés de Cremilda, como seria o habitual: Tudo teria um fim com Mundoca, aquela dinastia do cais. Aquele destino do cais.

Entretanto, é preciso mais do que um nome para se escapar dessa estranha dinastia, é preciso afastar-se da sua presença maléfica. O convívio diário com a exploração sexual acaba proporcionando um ‘aprendizado’ da sina, uma familiaridade que aproxima a mulher de seu destino e impede que a maldição do rio se dissipe no tempo: Sem querer se vigiavam – a conversa com os marinheiros, as histórias, feias e bonitas, mais feias do que bonitas, aprendiam nomes, aprendiam novas posições no ofício, discutiam, se admiravam tanto da esperteza de cada uma – concorrentes no mesmo jogo, lutavam rivais e com fúria.

Essa realidade cruel da prostituição é o tema anunciado pelas epígrafes do romance. São duas frases que sintetizam o cotidiano das prostitutas não somente de Parnaíba, mas de qualquer outro lugar. A primeira, retirada de um texto de Cornélio Penna, sugere tanto uma dissimulação quanto um engano: VIA MÁSCARAS, ONDE ERA NECESSÁRIO, PREMENTE, VER ROSTOS. Dissimular é uma atitude comum às prostitutas, as quais necessitam ‘usar máscaras’ e representar personagens, num processo de anulação da individualidade que as transformam em estereótipos e deturpam a auto-imagem, como sugere outro momento do texto:

“Como seria realmente? O espelho do guarda-roupa lhe puxava a testa para cima, ou o queixo de lado – a boca debruada ou os lábios apertados.
Botava os dentes para fora, fazia caretas, a sua imagem tomava novas formas, ‘é o diabo que está dentro da gente’.

Ao olhar-se como uma ‘mascarada’, a prostituta permite ao homem usá-la e, assim, ele também passa a enxergá-la não como ser humano, mas como máscara que encobre o rosto real da miséria e da humilhação. O homem se engana, assim como o resto da comunidade, porque não considera o indivíduo, mas o objeto, o jogo egoísta do prazer; enganam-se todos porque desumanizam essas mulheres simplesmente para aceitarem com mais facilidade suas desgraças.

Já a segunda epígrafe é uma passagem do próprio romance, a qual se refere ao envelhecimento de Cremilda e à sua ‘substituição’ nos negócios por Luíza: A REDE BRANCA DE VARANDA BORDADA ERA DELA AGORA, ROBE FLORIDO, O LEQUE PERFUMADO – NOVA RAINHA NO TRONO. Através da descrição dos itens de sedução e beleza utilizados na prostituição e que são repassados para Luíza, a frase destaca justamente a ‘transmissão’ da praga do cais com a chegada das novas gerações, as quais retomam as atividades das mães num ciclo interminável. Nota-se, então, que as epígrafes de Beira Rio Beira Vida sustentam a hipótese levantada neste estudo sobre a presença de um mito no comando da vida dessas mulheres. O jogo das máscaras é ilusório, assim como é a origem mitológica da sina, a qual explica um problema social através do sobrenatural. O posto de “nova rainha do trono” e os objetos marcam um rito de passagem, e rituais são necessários na restauração do tempo ab origine do mito, concretizando a transmissão da maldição rogada naquela época.

Com características também similares a um ritual de passagem, a primeira menstruação de Luíza é outro momento fundamental das suas lembranças, o qual define seu lugar no mundo. Apesar da convivência com a prostituição desde a infância, a primeira menstruação é a porta de entrada para essa vida de exploração e humilhação. Diante da metamorfose da filha, a mãe é categórica: - Agora você pode ter homem, besta. E até que pode ajudar sua velha mãe. A menina, por sua vez, reconhece na menstruação a prova física da condenação, o anúncio de uma existência desgraçada:

Cansei de ver os panos dela, a vida que ela levava, aqueles homens – juntava tudo que via com o tipo de vida que ela tinha. E de repente me via suja como ela. Juro, Mundoca, que pensei que só mulher da iguala de minha mãe tinha aquilo, que era como uma sina ou um castigo, uma espécie de marca. E eu fora atingida, minha vida seria igual à dela, quer quisesse ou não.

A primeira menstruação não consolida somente a crença num destino repetitivo e imutável, ela também abre caminho para outras experiências importantes em sua vida, como a primeira relação sexual, ocorrida com um marinheiro quando tinha apenas quinze anos: Quantas vezes teria de esperar pela sua volta? Nuno lhe foi a chave de todo aquele mundo que povoava a cabeça de sua mãe. Abriu o caminho, bem sabia, para mais uma mulher do cais – um filho na barriga, a saudade prendendo os passos. Apesar de ser um agente da sina, o primeiro homem de Luíza se torna referência de porto-seguro, uma espécie de ‘paraíso perdido’, o passado idealizado ou um futuro não-realizado: Nuno não necessitou do retrato na parede, ficou além de todos os outros que se repetiam com suas palavras, suas promessas, seus passos no cais (...) Nuno fora a única projeção nítida, mesmo sem retrato para a volta ao passado. Ele remete a um tempo em que ainda era possível sonhar com um futuro diferente, quando ainda havia esperança. Assis Brasil recorre então à imagem do fruto proibido para simbolizar que Nuno, seu navio e a promessa de uma vida melhor não estão ao alcance de Luíza: Ao morder a maçã identificou o cheiro do navio – o desejo de comer a fruta vermelha marcou seu tormento durante a gravidez de Mundoca. O cheiro e a lembrança de Nuno. Para essas mulheres do cais, a possibilidade do amor é instável como as cheias do rio. Ao contrário do que se poderia pensar, a incerteza não é um tempero para a rotina monótona, mas sim fonte de angústia e desesperança. O grande tormento é saberem que não possuem paragem certa: Deixou que ela ajeitasse o camarote, como se fosse seu ou dos dois o pequenino aposento – se aliviava da casa escura, do cheiro ruim – ah, se aquilo, aquele sonho estivesse em terra firme e não fosse embora. Ah, se tudo não passasse.

O resultado dessa experiência sexual é a primeira e única filha, que vem completar mais um ciclo da maldição do cais. Curiosamente, a mesma gravidez que anuncia o fado é via de liberdade e afirmação da identidade: Jogou tudo na cara dela, tudinho, mais com um sentimento de vingança. Era a sua maneira de se sentir um pouco livre (...) a barriga grande lhe dava uma certa importância, um misto de vaidade e confiança. A mãe nem podia compreender, apenas aceitava a sina, o fato como o complemento de seu destino desgraçado.

Pressentindo que não há mais salvação pessoal, Luíza passa a acreditar que pode contribuir para a libertação de Mundoca. Ao relembrar seu passado de sofrimento, ela tenta mostrar o caminho que a filha deve tomar para que escape à maldição. A grande vitória de Luíza reside no fato da vida de Mundoca não repetir a sua: Mundoca quebrara a tradição das filhas das mulheres do cais. Não explorava os homens, não se impressionava com as embarcações do rio. Nota-se então uma ruptura com o mito ou, pelo menos, uma possibilidade de ruptura.

O trecho sugere que:

a) Assis Brasil, intencionalmente, não desenvolveu a personagem por acreditar que, dessa forma, ressaltaria a sua inutilidade e insignificância na escala social de miséria ali retratada; ou
b) a personagem não ganha mais espaço porque não representa nada de especial na trama, é “apenas um elo quebrado”.

Analisados a partir do ponto de vista do presente estudo, nenhum dos dois pontos procedem. Se por um lado, concorda-se com a intenção do escritor em deixar a personagem Mundoca fora do centro das atenções, por outro se acredita que seus motivos são outros: ela não seria a imagem do fracasso, mas da esperança; ela representa sim algo muito especial na trama, a promessa de libertação. Enquanto Fausto Cunha enfatiza o pessimismo da realidade retratada na obra (o que não deixa de ser um fato), propõe-se aqui que a mensagem é, na verdade, otimista e vislumbra uma forma de reação.

O limbo criador em que Mundoca se encontra é repleto de possibilidades e o seu comportamento, contrário ao das mulheres do cais, aponta para uma quebra da cadeia de miséria e estagnação, a tal praga que na trama simboliza a dura realidade sócio-econômica, assunto que será tratado ao final, junto com a mensagem de transformação contida nos quatro romances da Tetralogia Piauiense.

Dona de uma personalidade peculiar, Mundoca não reclama, sonha ou faz projetos. Parece ter nascido naturalmente desinteressada pelas coisas do cais e da vida como um todo. Não brinca com a boneca Ceci, testemunha silenciosa do sofrimento da mãe e da avó: ao desprezar o brinquedo, a menina despreza todo o passado de prostituição que ele presenciou. Também não deveria ter uma filha, o que Luíza considera essencial para acabar de vez com a sina do rio, nem a máinfluência de suas atividades noturnas: De uma coisa eu procurei livrar você, Mundoca: do meu barulho com os homens, para que não tivesse vergonha diante de sua mãe. A vaidade, que lhe apareceu ainda na infância despertando o desejo de ganhar dinheiro e, conseqüentemente, a busca por ele a qualquer custo, não se manifesta em Mundoca: Você não tem vaidade nem nada. A mulher só tem vaidade quando tem homem em casa. Todas essas qualidades apontam claramente: para se fugir de uma vida desgraçada, deve-se fugir dos homens. Em diversas ocasiões, Luíza associa momentos de felicidade ao fato de não depender de favores ou humilhações, especialmente provenientes deles. Ser livre significa estar livre das obrigações com os homens, do passado que condena e determina todos os seus passos: Correu para o cais, certa da morte de Jessé, o único que quisera mudar sua vida. Mas a transformação teria que partir dela, de uma delas, como acontecia agora com Mundoca – distante, o rio, os marinheiros, as fardas, as embarcações, não seriam mais um passado.

A liberdade completa, entretanto, só pode ser alcançada através da própria morte. O que não quer dizer o fim definitivo da maldição, apenas o término de um ciclo pessoal de sofrimento para o renascimento de outros.

Em Beira Rio Beira Vida, a morte é uma via para a repetição dos mesmos erros. A vida continua a se renovar, mas não se purifica: o passado não é esquecido e as falhas acumulam-se sobre as próximas gerações. Por isso, a morte de Cremilda é considerada o terceiro momento fundamental das lembranças de Luíza. Com a partida da mãe, finda-se um ciclo de miséria para o início de outro: Luíza é a próxima na fila do destino e deverá passar por tudo aquilo pelo qual Cremilda passou. Outras questões também podem ser abordadas a partir dessa morte, como a velhice e a exclusão social, situações muito próximas que requerem um olhar mais atento.

Cremilda morreu sozinha, bêbada, numa noite de Natal. Foi enterrada com o dinheiro doado por um cliente de Luíza, ao qual esta retribuiu “com a consciência de um negociante”. Sepultada sem a presença do padre, pelas mãos de estranhos, foi reconhecida e lamentada por poucos. Passado o funeral, as marcas da sua presença são sistematicamente eliminadas. A figura velha e rabugenta já não é mais um incômodo e a casa até parece maior. É tempo de Luíza retomar o trabalho com novo fôlego:

Pôde arrumar a casa à vontade, abriu as janelas, vasculhou o telhado, as paredes. Limpou tudo, Mundoca ajudando. Ajeitou os poucos móveis. – Eles não devem saber que ela morreu aqui. Desencardiu o piso – debaixo da rede dela, o cuspe empretecera as tábuas. Jogou creolina pelos cantos para afastar o cheiro de sujo – seria bom pintar as portas.

Cremilda foi ‘despachada’ exatamente da mesma forma que havia feito com a própria mãe – primeiro a faxina, depois a volta ao trabalho. O comportamento diante da morte se repete, caracterizando mais um ritual que assegura (inconscientemente, é bom lembrar) a permanência da praga: tanto na vida, quanto na morte, as prostitutas são semelhantes entre si e o aprendizado desses costumes permanece indefinidamente. Se essas condições de morte são próprias do meio de vida do cais, as emoções experimentadas na hora da perda se revelam mais ordinárias, como a empatia. O defunto é a imagem refletida daquele que o observa, o futuro mais do que certo:

Mas muitos chegam por puro egoísmo, como numa corrida para ver quem vive mais – o enterro dos parentes e dos amigos vai soando como estranhas vitórias. ‘Hoje enterrei mais um’ – quantos não dizem isso com satisfação bem no fundo. Eu mesmo senti uma coisa estranha quando enterrei minha mãe – a gente mistura compaixão com alívio, sei lá.

Todas as características apontadas até aqui demonstram que o momento da morte não difere muito da vida retratada no romance. Vive-se e morre-se sozinho, esquecido. A imagem derradeira é suja e vergonhosa. A miséria elimina as pessoas bem antes da hora marcada e aqueles que ficam têm urgência em apagar seus vestígios.

A morte é, pois, um agente a serviço da sina: leva a mãe, para que a filha assuma seu posto; e leva o homem, para que ele não a retire do cais. Antes da partida de Cremilda explicitar o fim que lhe aguardava, a morte de Jessé significou o enterro definitivo da esperança de felicidade. Amigo de infância, Jessé era órfão de pai e mãe quando foi acolhido por Cremilda no armazém. Desde pequeno, se mostrava inconformado com a pobreza e batalhava muito por uma vida diferente.

Conseguiu realizar por um tempo o sonho de trabalhar nas embarcações, navegando pelos rios e visitando outras cidades. Porém, morreu queimado num acidente quando voltava para visitar Parnaíba e Luíza. Seu principal erro foi pensar que poderia mudar seus destinos: Jessé bom, queria remediar tudo, remediar o destino, coitado, como se tivesse poder para tanto. Mesmo não tendo nascido ali, Jessé já estava marcado pelo cais, assim como Luíza. Homens como ele não ficavam ricos; mulheres iguais a ela nunca se casavam: A morte de Jessé, para que ela não virasse uma senhora casada (...) A morte, para que Jessé não a tornasse respeitável. A morte aparece, então, para atestar a impossibilidade de transformação e colocar todos nos seus devidos lugares, assegurando a presença da sina.

Ao fim da existência, os pecados cometidos em vida não são redimidos e o ‘defunto antepassado’ carrega consigo as suas agruras:

Você deve perguntar, Mundoca, por que nunca vou ao cemitério rezar pela alma de Jessé. Não, nunca vou mesmo, e digo a minha razão: é porque ela está lá também, bem perto dele. Está lá, como se ainda tomasse conta do pobre, como se perseguisse ele no tempo do armazém (...) Por isso não vou ao cemitério. Não é desprezo, não. É pra lá que vou algum dia, mas aí já é diferente. Depois vai você, Mundoca, e tudo está terminado.

A atitude no pós-morte não se modifica: Luíza ainda culpa a mãe pela vida que teve, por isso evita ficar perto dela. O que não configura uma vontade de encobrir a morte, uma vez que ela se mostra consciente da própria finitude. As ações e pensamentos são formados racionalmente, inclusive a expectativa de libertação da sina através da morte de Mundoca. Percebe-se pelo comportamento diante da morte que, em Beira Rio Beira Vida, ela não é temida, mas vista apenas como o componente natural de um quadro de renovação constante: é necessário que se morra para que outros assumam seu lugar na linha de pobreza. Esse tipo de morte não causa grandes comoções ou conflitos internos. Também não levanta uma preocupação com a alma ou questionamentos sobre o além-túmulo. Na verdade, o envelhecer nesse mundo se mostra um processo muito mais dramático que o morrer.

Antes de ser o prenúncio da morte física, a velhice determina a hora em que o homem deve se afastar do trabalho, o que na maioria das vezes significa transformar-se em um ser inútil e descartável para a sociedade. A velha prostituta precisa lidar não somente com a perda do vigor e da beleza (o que, diante das condições precárias em que vive, acontece prematuramente), mas também com o seu sustento, uma vez que se encontra numa situação de total abandono em relação às políticas sociais. Dessa forma, ela testemunha o corpo que lhe sustentou por tantos anos, envelhecer e condenar sua existência: o que minha mãe queria era uma vida segura para ela, tão medrosa com aqueles olhos murchando ante a velhice. Sabia que muito cedo os homens iam sumir da vida dela. O meretrício revela ainda uma triste dinâmica da relação mãe e filha – aquela a quem se deveria amar incondicionalmente, é também sua maior rival na luta pela sobrevivência: Compreendera tanto, a mãe se desesperando, de olhos tristes para ela que ainda sorria jovem.

O confronto entre Cremilda e sua deterioração, presenciado (e esperado) por Luíza, inspira um pensamento revelador:

Ia se vingando, tudo tinha que ser tomado, arrebatado, enquanto as forças estavam vivas e a consciência não atrapalhava. Mas a velhice é bem uma doença, Mundoca. Satisfeitos os primeiros desejos, amortecidos os primeiros ímpetos, o desencanto vem para completar a história. Isso não falha, como um desígnio. Se você me perguntasse, Mundoca, que história é essa, eu podia dizer que é a história de todo ente vivo. Podia até ajuntar que ricos e pobres seguem a mesma história. Se a gente adivinhasse o que é ficar velho, o que é chegar ao fim, não sei não.

Durante a narrativa, Luíza menciona diversas vezes a situação de abandono do cais velho, o qual deve ser substituído por outro em construção. Esse painel de fundo reafirma o caráter transitório das coisas - o local vai sendo esquecido, abandonado, consumido pelos anos, juntamente com seus habitantes e suas lembranças.

Caminhando em direção contrária, como numa tentativa de sobreviver a essa destruição, Luíza se recorda, se segura firme nas histórias que o tempo vai levando. Lembrar é uma função social dos velhos; eles se ocupam do passado enquanto os outros se ocupam do trabalho

No romance, o passado acaba funcionando como um combustível para a sina. As pessoas que viveram em Parnaíba ou passaram pelo cais são a consciência desses lugares. Através das histórias que contam, transmitem hábitos e preconceitos com um atestado de importância adquirido naturalmente com a idade. Dessa forma, tornam familiar a praga, validam a sua existência e tudo continua à imagem e semelhança do ontem. Mexer nessa estrutura é perigoso e, geralmente, resulta em nada. O processo se revela um paradoxo para os habitantes à beira do rio: quanto mais se recordam do passado, mais se vêem presos a ele e à miséria que ele representa. A força maléfica da sina tem origem nas lembranças que persistem daquela história original, que camuflam as verdadeiras causas do problema. O recordar como mecanismo de fuga é atraente: A mãe falava, falava, como se procurasse fugir daquelas noites sem sono, que terminavam sempre iguais. Quanto mais falava do passado, mais a vida dela se extinguia. Por não haver expectativas de uma vida melhor no futuro (até mesmo porque esse futuro já chegou para os velhos), volta-se para o passado e para as possibilidades não realizadas que ele conserva.

De fato, ao dividir seu passado com Mundoca, Luíza arrisca-se a alimentar a maldição do cais. A velhice a torna propensa a esse saudosismo, à busca pela compreensão daquilo que viveu. Porém, o que deve ser ressaltado, em concordância com a tal denúncia social pretendida por Assis Brasil, é a natureza do discurso de Luíza, que questiona e tem como intenção mudar a sorte da filha.

Sentada nas pedras do rio, à beira da vida, Luíza percebe que algo pode (e deve) ser feito para acabar com tanto sofrimento. Certamente que sua reação não abrange a totalidade da problemática social que vivencia. Diante de tanta miséria, poucas coisas podem ser feitas individualmente para atenuá-la. Na verdade, o estágio de exclusão social em que se encontram esses moradores do cais os torna praticamente invisíveis para o restante da sociedade, aproximando-os de um estado de morte.

Talvez por esse motivo não existam medo ou expectativas quanto à morte, uma vez que ela está presente no cotidiano; ao contrário, anseia-se por aquilo que está distante, a fugaz sensação do ‘estar vivo’: e a vida a visitara uma vez, assim como dizem que é a morte que visita as pessoas. Essas pessoas se encontram numa imobilidade quase total na escala social. O sucesso não pode ser alcançado, mas todos correm o risco de descerem alguns degraus.

Ricos (na sua comodidade) e pobres (no seu desconhecimento) crêem que os desígnios divinos e outras forças superiores determinam essa realidade, o que torna ainda mais difícil mudá-la: Os mesmos atos, palavras – uma submissão completa. Assim, assim, nada mudava, todos sabiam e aceitavam, a vida era aquela, botar os passos no rumo e pronto. Eles nasceram na cidade para dar esmolas, elas nasceram no cais para receber.

A exploração dos mais fracos surge naturalmente nesse cenário de injustiça e estagnação. Enquanto Cremilda é usada pelos homens em troca de dinheiro, e Jessé é escravizado por ela em troca de comida, todos são consumidos pela cidade de Parnaíba: Ela lá trancada na Santa Casa, demente, comendo da mão dos outros – eu aqui, quase cega, sentada nessas pedras, comendo da esmola de um emprego. E o certo, Mundoca, é que essa cidade vai matando a gente, consumindo. Referindo-se à personagem principal de A Filha do Meio Quilo, segundo romance da Tetralogia, Luíza ressalta a situação de subjugação e dependência que todos se encontram em relação à cidade. Termo usado de forma abrangente, ‘a cidade’ como agente supremo da miséria é a falta de emprego, de casa, de saneamento; é o descaso das instituições religiosas, a maledicência da elite, a omissão dos órgãos públicos.

A sina do cais, que atinge as prostitutas da cidade, também é a sina de todos os desprovidos de Parnaíba: a carência de condições oferecidas pelo meio social. Aqueles que se encontram mais bem posicionados para enxergar a injustiça, perpetuam a crença numa vontade superior que condiciona tudo isso. A desgraça do povo vira espetáculo para aqueles distantes da sua realidade: Os curiosos mais afoitos repugnaram as cenas, voltaram pela rua do Rosário (...) de novo em suas vidas calmas, rotineiras, sem novidades, além das novidades dos filhos e da morte na velhice – o cais era para ‘aquela gente’, eles concluíam. A morte de Jessé, mais um pobre do cais, queimado sobre a embarcação, é real demais para os olhos que insistem em desviar-se da verdade: prostituta, dama, marinheiro ou prefeito, a vida é a mesma, nascer, procriar, envelhecer, morrer. Somente um detalhe os diferencia, o berço. Em Beira Rio Beira Vida, o cais não é somente o lugar da marginalização e da miséria, é o ponto de contemplação do que não se tem. O rio ou a existência passam pelo cais, sem que se possa ali viver no sentido amplo do termo. Os breves contatos da vida com o cais, representados pelas gravidezes das prostitutas, são o pequeno quinhão que recebem os que estão à beira do rio, à beira da vida, em ciclo eterno e mítico, explicável tão somente pelas forças que mantêm tudo e todos do mesmo jeito de sempre.

PERSONAGENS

Como já pudemos perceber, a personagem principal é Luíza. Filha de Cremilda (prostituta), era constantemente humilhada pela mãe. Não tendo pudor para com a sua filha, desde cedo deixa claro para Luíza que o único caminho a seguir é a prostituição. A mãe da personagem mostra-se amargurada, oportunista (em alguns momentos) e, acima de tudo, sem perspectivas. Quando esta herda do "velho Santana" um armazém, vê a chance de sair daquela vida. Acaba perdendo-o. A sociedade se fecha para Cremilda ao tentar comprar uma casa, discriminada socialmente:

- Eles disseram que meu dinheiro não dá.
- Pra quê?
- Pra comprar uma casa aqui na cidade. Sei que é mentira, eles não querem é me vender. Um ainda disse: 'Mesmo a senhora não pode se mudar pra cidade.'Foi o que um deles disse, Luíza, e os outros acharam graça.

Esse mundo sem possibilidades pode ainda ser evidenciado na forma de organização da obra: o final repete o começo, não acenando para possíveis alterações na vida daquelas personagens. Isso é ainda mais reforçado pela repetição dos ambientes e das situações no transcorrer da narrativa, mostrando um mundo monótono e fechado para as prostitutas do porto. Essa idéia é reforçada por Herculano Moraes ao ressaltar: "Os elementos do instrumental ficcionista utilizado por Assis Brasil em Beira Rio Beira Vida são quase sempre o rio, o cais, as embarcações subindo e descendo o rio, os marinheiros, a vida nos armazéns do cais."

Luiza, antes de sua degeneração, entrega-se para seu grande amor (Nuno - marinheiro). Deste relacionamento surge Mundoca. Luiza deposita suas esperanças na filha, para que esta não tenha o mesmo destino da mãe e da avó. O crítico Fausto Cunha, ao retratar Luiza, ressalta que ela "é uma espécie de barro original, a partir do qual são formados os outros personagens. Seu sonho, sua luta, é a evasão pelo amor, num meio em que o amor tem câmbio específico. Realiza-se vicariamente através da boneca Ceci ('personagem' às vezes demasiado literária em seu simbolismo ostensivo) e não percebe que de certa maneira venceu ao não conseguir passar a tocha da degradação à sua filha. Mundoca não sai do limbo criador - como se estivesse fora do foco do romancista. É apenas o elo quebrado de uma cadeia. Nela se conclui o processo através do qual uma sociedade petrificada elimina as sementes inúteis."

Na obra há uma grande distinção entre a cidade e o cais: "(...) a vida era aquela, (...). Eles nasceram na cidade para dar esmolas, elas nasceram no cais para receber.". Enquanto a cidade tende ao desenvolvimento, buscando inclusive a construção de um novo porto, o desnível social vem aumentando vertiginosamente.

O conservadorismo se faz presente na sociedade (revelada em sua hipocrisia, tentando abafar seus escândalos) e no clero (representado por padre Gonçalo), que ignora os menos favorecidos em detrimento da elite. Isto acaba provocando um desamparo e insatisfação nos primeiros, como pode ser constatado abaixo:

(...) O padre velho Gonçalo, esse nunca apareceu no cais que eu saiba. Fica lá nos batizados dos ricos, nos banquetes, nos casamentos.

Ou no enterro de Cremilda:

(...) enterro sem padre, deve ser uma das mulheres, será a Cremilda?

Mundoca mostra-se triste e introspectiva. Fala pouco, é humilhada e assediada no trabalho. O sentimento de repulsa e asco acabam por determinar seu mundo interior:

(...) Sua vida era plana, passava pelo cais de manhã e à noite, não como etapas de cada dia, mas como etapas de um caminho repetido, sem começo nem fim. Não ia nem vinha. Ia sempre para o mesmo lugar, ou vinha sempre da mesma porta.
(...)
Mundoca nunca amou.
(...)
Tinha raiva de tudo, nada era importante, nada tinha alguma significação.

Jessé representa o inconformismo com a sua condição. Criado por Cremilda desde pequeno, tem anseio de ascender economicamente. É reprimido pela mãe de Luiza quando mostra seu desejo de estudar. Chega a capturar borboletas e criar bichos (porcos e marrecos). Transforma-se em marinheiro, morrendo em um incêndio no navio-gaiola.

Toda essa dimensão é enfocada em um plano psicológico (narrado em 3a pessoa). A interiorização das personagens, revelando seus desejos simples, suas amarguras e frustrações, dá à obra uma forte dimensão dramática. A intratextualidade é outro recurso utilizado pelo autor (A Filha do Meio Quilo, Pacamão).

Predomina o discurso indireto e indireto livre. Quando o discurso direto se faz presente, são falas curtas, incisivas, secas, ríspidas ou nostálgicas, ampliando a carga de comoção do texto.

Fonte:
Procampus | Francigelda Ribeiro | Maria Janaína Foggetti (UEL) Disponível em Passeiweb

Marcelo Spalding (A Capacidade de Expressão e o Ensino de Língua Portuguesa)


Ensinar língua nativa, por exemplo português para brasileiros ou inglês para ingleses, é sempre muito difícil, pois a rigor todos os nativos de uma língua a conhecem desde os dois, três anos de idade (embora todos vivam com a sensação de falá-la erradamente, motivo pelo qual muitos não escrevem um texto por conta própria há anos).

É preciso, porém, entendermos que uma coisa é a capacidade linguística e outra, a capacidade de expressão. A capacidade de expressão é aquela que nos permite narrar fatos, defender ideias, descrever situações, responder complexas questões de concurso, falar com nossos amigos, falar em público, falar ao telefone, etc.

A capacidade linguística, por sua vez, é o conhecimento da estrutura de um idioma em especial, sua ortografia (que é apenas um dos itens do idioma), sua estrutura, seu léxico. Aqui ainda temos a capacidade de interpretação, que exige capacidade linguística, mas também um certo conhecimento de mundo.

Em geral, treina-se nas disciplinas de Língua Portuguesa a capacidade linguística, fazendo os alunos ler, escrever, interpretar, ensinando ou relembrando convenções ortográficas, estruturas sintáticas e morfológicas, etc. Esse conhecimento é infinito, quanto mais se estuda uma língua e mais nos aprofundamos nela, mais dúvidas temos e, por vezes, mais inseguros nos sentimos (quem acha que sabe tudo de seu idioma, procure saber o que é fonologia, etmologia ou pragmática, por exemplo).

O problema é que o público leigo, que realmente acredita que não sabe sua língua nativa, usa isso como desculpa para não exercitar sua capacidade de expressão, o fazendo apenas quando é obrigado a tal, como numa entrevista de emprego. Com isso, não escrevem e até evitam falar em público para não errarem, deixando de praticiar aquilo que é o mais importante para qualquer ser-humano: a comunicação.

Para que se deve ter capacidade linguística, afinal de contas, se não for para nos expressarmos, nos comunicarmos?

Claro que algumas pessoas têm uma invejável capacidade de expressão sem necessariamente ter um grande conhecimento linguístico. Nosso ex-presidente Lula é um bom exemplo. Alguns músicas e escritores também demonstram genialidade em suas áreas, ainda que nunca tenham estudo a fundo questões de gramática. Mas parece inegável que quanto mais capacidade linguística tivermos, mais ferramenta para usarmos com nossa capacidade de expressão teremos.

E ter capacidade de expressão, repita-se, é fundamental para sermos bons profissionais, bons cidadãos, participarmos ativamente da sociedade. Ter capacidade de expressão é decisivo para convencer, explicar, contar. Ter capacidade de expressão linguística é, em última análise, o que nos diferencia dos outros tantos animais.

Fonte:
texto enviado pelo autor

Audioteca Sal e Luz (Livros para Deficientes Visuais)


A Audioteca Sal & Luz é uma instituição filantrópica, sem fins lucrativos, que produz e empresta livros falados (audiolivros) para pessoas cegas ou com deficiência visual, em todo o território nacional.

Seu acervo conta com mais de 2.700 títulos que vão desde literatura em geral, passando por textos religiosos até textos e provas corrigidas voltadas para concursos públicos em geral. São emprestados sob a forma de fita K7, CD ou MP3. São livros que alcançam cegos e deficientes visuais (inclusive os com dificuldade de visão pela idade avançada), de forma totalmente gratuita. Para ter acesso ao acervo, basta se associar na sede, situada à Rua Primeiro de Março, 125 - Centro, Rio de Janeiro. É possível também solicitar o livro pelo telefone ou escolher o título pelo site, que será enviado gratuitamente pelos Correios.

Acesse o site: http://audioteca.org.br/noticias.htm ou entre em contato pelo número (21) 2233-8007.

Fonte:
Câmara Brasileira do Livro

Felipe Daiello (Projeto Balcão da Cultura)



Iniciado em dezembro de 2011, o projeto de escritor Felipe Daiello é sucesso no GNU — Alto Petrópolis. A troca de livros, a possibilidade de empréstimo bem como a doação de obras de literatura, foi bem aceita pelos associados.

Inclusive, como modelo pioneiro, está sendo implantado na SAPT — Sociedade dos Amigos da Praia de Torres. O novo balcão da cultura deve ser inaugurado dia 18/02/2012, antes do carnaval. Para prestigiar os nossos autores, os livros fornecidos pela AGE são de autores gaúchos. Precisamos de divulgação para implantar mais balcões pelo Rio Grande. A Cultura agradece.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Guerra Junqueiro (A Igreja do Rei)


Era uma vez um rei que quis edificar uma igreja magnífica em honra da Virgem, decretando que ninguém nos seus estados pudesse contribuir para a obra, ainda mesmo com a mais pequena quantia. Quando o edifício se concluiu, enorme, soberbo, grandioso, mandou o rei gravar numa pedra de mármore uma inscrição em letras de ouro, que dizia que só ele, e mais ninguém, tinha levado a cabo aquela obra monumental. Mas na noite seguinte o Dome do rei foi apagado da inscrição, substituído pelo de uma pobre mulherzinha do povo. O rei ao outro dia tornou a mandar gravar o seu nome na inscrição, b de novo foi substituído pelo da pobre mulher; à terceira vez sucedeu o mesmo. O rei, cheio de cólera, ordenou então que lhe levassem a mulher à sua presença.

– Proibi a todos os meus vassalos, disse ele, que contribuíssem fosse com o que fosse para a edificação desta igreja; vejo que não cumpriste as minhas ordens.

– Senhor, respondeu a velhinha toda trêmula, eu respeitei as vossas ordens, apesar da mágoa que sentia por não poder oferecer o meu pequenino óbolo em honra da Virgem, mas julguei não desobedecer a vossa majestade, deixando por vezes de jantar para comprar um pouco de feno, que eu levava às escondidas aos bois que conduziam as pedras destinadas à construção da igreja.

– O teu nome é mais digno do que o meu de figurar em letras de ouro na inscrição do monumento, disse-lhe o rei.

Mas na noite seguinte uma invisível mão restabeleceu na lápide da igreja o nome do rei, que desde então lá se conserva ainda.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - III – As árvores gêmeas


Não é fácil lidar com o pó de pirlimpimpim. A gente tem de cheirá-lo na quantidade certa, nem mais, nem menos, se não vai parar para lá ou para cá do ponto que pretende alcançar. Pedrinho, sem prática ainda errou na dose, deu-lhes pó demais, de modo que foram parar numa terra muito diferente do País das Fábulas. Em vez do lindo campo de veludo verde, cortado pelo rio na beira do qual os fabulistas tinham ficado a discutir a origem das fábulas, acharam-se num verdadeiro deserto africano, com enormes rochas negras dum lado e o mar de outro. Nem floresta, nem vegetação nenhuma — além de duas árvores gêmeas a cuja sombra o burro parara. Assim que pulou em terra, Pedrinho correu os olhos em torno.

— Erramos, vovó! — disse ele. — Isto nunca foi o País das Fábulas. Está me cheirando a alguma das terras das Mil e Uma Noites.

— E agora? — perguntou a velha, já com medo. – Melhor voltarmos. Estou sentindo uma coisa esquisita no coração...

— Sim, podemos voltar — concordou o menino — mas primeiro temos de tomar fôlego e esperar que passe a sua tontura.

Dona Benta concordou e, suspirando, sentou-se numa das raízes da árvore, a abanar-se com o lenço, muito queixosa da falta de ar.


Pedrinho amarrou o burro pelo cabresto e pôs-se a examinar a paisagem.

— Que árvores tão esquisitas! — disse erguendo os olhos para cima. — Os troncos sobem em linha reta, mais grosso no alto do que embaixo!...

— E repare a copa — disse a menina também de nariz para o ar. — Não parece formada de folhas, como todas as árvores, e sim de penas, ou coisa parecida. A casca também, veja, não se parece com casca de nenhum pau conhecido. Toda escamada, como pele de jacaré.Francamente, estou desconfiada destas árvores...

Os troncos tinham as raízes de fora, quatro raízes para cada árvore, terminadas em pontas curvas, como enormes chifres de boi.

De repente a raiz onde se sentara dona Benta mexeu-se.

— Acudam! — berrou a pobre senhora dando um pulo. — A raiz mexeu!...

Aquele grito assustou as árvores gêmeas, fazendo-as se destacarem do solo, com raízes e tudo, e erguerem-se no ar, levando o pobre burro pendurado pelo cabresto.

— Misericórdia! — gritou dona Benta no auge do pavor. – Não eram árvores! Eram as pernas do pássaro Roca que confundimos com árvores! Sentei-me em cima do dedo do pássaro Roca pensando que era raiz...

Tinha sido isso mesmo. Por um desses acasos da vida, os nossos viajantes haviam parado justamente debaixo do gigantesco pássaro das Mil e Uma Noites e tomaram as suas monstruosas pernas como troncos de duas árvores gêmeas... Felizmente eles eram pequeninos demais, em comparação com o pássaro Roca. Nem foram percebidos.

Do contrário, teriam sido destruídos como se fossem pulgas. Estavam salvos, com exceção do burro falante, que lá se balançava no espaço, a espernear...

— Que pena! — exclamou dona Benta compungida. — Um burro tão boa pessoa, tão bem falante!... Tia Nastácia vai ficar inconsolável...

— Podemos salvá-lo, vovó — disse Pedrinho abrindo o mapa do Mundo das Maravilhas. — O barão de Munchausen tem um castelo aqui perto. Ele é o melhor atirador do mundo. Pode, com uma bala, cortar o cabresto do burro e salvá-lo. Resta que eu ache o barão em casa...

Pedrinho resolveu ir procurar o castelo. Tomou uma pitada do pó de pirlimpimpim e cheirou-o, depois de recomendar:

— Não me saiam deste ponto. Dou um pulo ao castelo e já volto.

— Pelo amor de Deus, Pedrinho, não nos abandone neste maldito deserto! — implorou a nervosa velha. — Melhor irmos atrás desse barão todos juntos...

Muito tarde. Pedrinho já havia cheirado o pó mágico, cujo efeito era instantâneo. Começou a virar fumaça de gente, breve desaparecendo da vista de todos. Dona Benta abanava-se, abanava-se, cada vez mais aflita. Aquilo lhe parecia o fim do mundo. Narizinho procurou consolá-la.

— Não seja tão boba, vovó! Não tenha medo, que nada adianta. Faça como eu, que estou fresca da silva. Há tanto tempo que vivo nesta vida de aventuras, que já não sei ter medo. Seja lá o que apareça, leão, cuca, saci, onça ou pássaro Roca, a gente dá um jeito e no fim sai vencendo. Para que tremer assim, justamente agora que o perigo passou?

— Não posso minha filha. Não está em mim. Quando me lembro que uma criatura pacata como eu, de mais de sessenta anos, esteve sentada no dedo do pássaro Roca, meu coração pula dentro do peito como se fosse um cabrito...

Até Emília caçoou da coitada.

— Tamanha mulher! Tremendo porque esteve sentada num pé de galinha! Pois eu até no bico desse tal pássaro era capaz de dormir um sono sossegado.

— É que você é inconsciente, Emília. Se eu fosse de pano, era provável que também não tivesse medo. Mas sou de carne...

— Isso não, vovó! — protestou a menina. — Eu também sou de carne e não tenho medo de nada.

— Você é outra inconsciente, minha filha. Tem a inconsciência natural da idade. Quando crescer há de ficar medrosa como eu.

Estavam nessa conversa, quando Emília gritou:

— Lá vem vindo Pedrinho com o barão de Munchausen!

Todos voltaram-se e viram o vulto dos dois, lá longe. Estava o barão vestido de caçador, grandes botas, chapéu de três bicos, espingarda a tiracolo. Ao seu lado marchava Pedrinho, muito lampeiro de ver-se em tão nobre companhia. Vinha contando histórias das suas caçadas no sítio. Naquele momento o pássaro Roca reapareceu no céu, a grande altura, descrevendo círculos. Voava tão alto que nem dez tiros emendados poderiam alcançar metade do caminho.

— Temos de esperar que ele baixe — disse o barão.

— Enquanto isso o senhor dá uma prosinha com vovó, que deve estar morre não morre de medo.

— Medo de quê?

— De tudo. Vovó tem medo até de baratas. Hoje foi a primeira vez que a trouxemos ao mundo das aventuras. Mas erramos de terra e viemos parar bem embaixo do pássaro Roca. A coitada sentou-se no dedo dele e agora nem pensar nisso pode. Sente uma pontada no coração.

O senhor de Munchausen contou que construíra ali aquele castelo justamente por causa do pássaro Roca. Já havia caçado quanta fera existe, desde rinoceronte até condor, menos pássaro Roca. Por isso jurara matar aquele. Queria ter entre os troféus da sua sala de armas pelo menos uma unha daquela gigantesca ave, já que o bico, perna ou asa não cabiam lá dentro.

— Mas com essa espingarda o senhor não faz coisa nenhuma — disse o menino. — Bala, do calibre que for, é o mesmo que poeira para tamanho monstro.

— Sei disso, e por isso não atiro com chumbo ou bala. Atiro com caroço de cereja. Esses caroços germinam na carne do pássaro e vão crescendo até virarem cerejeiras. Vou assim transformando o pássaro Roca em pomar. Um dia o peso das árvores fica demais para as suas forças e ele cessa de voar. Creio que já plantei uns cem pés de cereja no lombo do pássaro Roca!

— Oh! — exclamou Pedrinho — muito melhor seria atirá-lo com semente de jequitibá.

O barão, que nunca ouvira falar em tal árvore, franziu a testa.

Pedrinho explicou:

— É uma árvore que fica enorme, da grossura da mais grossa pipa. Na minha opinião, com meia dúzia de jequitibás plantados a tiro no pássaro Roca ele perde a cisma de voar pelo resto da vida.

O senhor de Munchausen muito admirou a esperteza de Pedrinho, que ficou de lhe mandar sementes de jequitibá pelo primeiro portador. Nisto chegaram ao ponto onde dona Benta morria de medo ao lado de Narizinho e da boneca. O barão saudou-a cortesmente, à moda dos alemães.

— Obrigada por ter vindo em nosso socorro, senhor de Munchausen! — disse dona Benta, retribuindo a cortesia. — Estou aqui mais morta do que viva, de medo daquele monstro que lá está voando no céu. Imagine, barão, que estive, muito fresca da minha vida, sentada, como pata choca, no dedo dele!...

— Sossegue, minha senhora, que cá estou para defendê-la. Moro num castelo aqui perto, onde Vossa Excelência poderá repousar e acalmar os seus nervos. Já dei ordem aos meus criados para que a venham buscar na minha caleça. E esta menina? — disse mostrando Narizinho.

— Minha neta. Uma danada, senhor barão! Não tem medo de coisa nenhuma. Está aqui a rir-se da pobre vovó medrosa...

— Eu também não tenho medo de nada, senhor barão! – disse Emília com aquele seu célebre espevitamento.

— Oh — exclamou o senhor de Munchausen, pegando-a do chão. — Se não me engano, é esta a tal boneca falante que está tão famosa no reino das fadas. Não há princesa que não conte histórias dela.

Emília inchou de gosto.

A conversa correu nesse tom por alguns minutos. Por fim dona Benta abriu o cesto onde estava o mexido de galinha que trouxera.

— Aceita uma coxinha, senhor barão?

— Obrigado! Só como carne de animais ferozes.

— Um pedacinho só, prove! — insistiu dona Benta. – Este mexido foi feito com o frango mais valente do terreiro.

Tão cheiroso estava o petisco que o senhor de Munchausen perdeu a cerimônia. Sentou-se com os outros em roda do farnel e quase que sozinho deu cabo de tudo.

— Parece sonho! — pensava consigo dona Benta ao ver aquilo.

— Quando me lembro que eu, a pobre Benta Encerrabodes de Oliveira, uma coitada que nunca saiu da sua toca, está aqui, neste deserto misterioso, com o pássaro Roca a lhe voar em cima da cabeça e o mais famoso barão do mundo a comer com tanto gosto o mexido de galinha que ela mesma fez, até fico boba...
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Continua… O Pó de Pirlimpimpim – IV – Um soco histórico

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Trova Ecológica 73 - Wagner Marques Lopes (MG)

J. G. de Araújo Jorge (Com Os Moços)


Imagine-se a notícia, em manchete, no jornal sensacionalista:

"Cabeludo pulava todas as noites a janela do apartamento da namorada!"

E a história: as famílias se odiavam, não queriam o namoro. Mas eles desobedeciam os pais, e resolviam a seu modo o romance proibido. Os comentários viriam unânimes: "Transviados!"

Se transferíssemos, cena e romance, para os fins da Idade Média, para uma pequena cidade italiana no sopé dos Alpes, teríamos o drama imortal. Quem não se emocionou com o idílio de Romeu e Julieta - o amor que acabou em tragédia pela rivalidade das famílias Montecchio e Capuleto?

E embora se negue a existência real dos dois amantes shakespearianos, eles ficaram como um símbolo dos arroubos e da paixão dos jovens, reagindo, e às vezes pagando caro a incompreensão e os preconceitos levantados pelas velhas gerações.

E que me conste, nunca chamaram a Romeu e Julieta de "transviados"...

Na verdade, quando penso na juventude, lembro-me do verso de Keats:

"A thing of beauthy is a joy for ever"

Não sei quem teria inventado a frase infeliz com que se procura ferretear indistintamente os moços: "juventude transviada".

Toda juventude é naturalmente explosiva, exuberante, excessiva, apresenta transbordamentos inevitáveis. Do contrário seria madureza, velhice precoce.

Não compreendo um moço comedido, meticuloso, voltado para dentro de si mesmo. Nessa idade, o mundo exterior é todo encantos, atrações, convites. Não há trilhos, nem trilhas, ou roteiros preestabelecidos. É a época das descobertas, da aventura, da ânsia por obstáculos que sejam desafios à coragem, à audácia, à necessidade de auto-afirmação.

E é, ao mesmo tempo, uma idade dramática, fase de transição, alvorada de contradições, de conflitos, de dúvidas, quando faz falta uma luz à frente, uma mão companheira, um guia.

E eis também, de certa forma, justamente, o que não têm encontrado os jovens de nossos dias.

Posso testemunhar: convivo com eles há muitos anos. Encontro-os todos os dias como professor. Nem está tão longe o meu tempo de moço que não possa lembrá-lo, ou tenha me esquecido de seus impulsos, seus " vôos cegos ", seus desregramentos e sonhos.

Se tivesse que diferenciar a juventude de hoje da minha, diria que nós éramos mais " acadêmicos ", mais " clássicos ", posávamos mais de sérios. E, de certa forma, mais ingênuos. Que de caminhos a realidade tinha que percorrer antes de nos encontrar. Os veículos de comunicação eram poucos e tardios.

Entre nossos mundos, o historiador de amanhã colocará certamente o marco que separa dois períodos históricos.

A juventude de hoje é mais dinâmica, inquieta, politizada.

Constato isto, por exemplo, por um caderno de recordações onde recolhi impressões de meus antigos companheiros de turma no Colégio Pedro II, e pelo nosso álbum de formatura - "Adeus", - onde, sob as fotografias, aparecem os lemas de cada um: todos ingênuos, românticos, jactanciosos.

Assim éramos nós, nas atitudes e nas palavras. Absorviam-nos preocupações literárias e esportivas. Fundávamos e dirigíamos jornais, grêmios culturais, academias. Poucos de nós espiavam sobre os altos muros que nos cercavam para descortinar outros horizontes. As lutas políticas nos esperavam mais adiante, no Curso Superior, nas Faculdades, onde nos engolfaríamos em agitações nacionalistas, em campanhas democráticas contra o fascismo e a ditadura.

A juventude de hoje ( e tinha que ser assim) é atraída, desde cedo, pelos grandes problemas.
As fronteiras secaram. O homem devassa o espaço. O mundo encolheu.

A história não, vem nos livros, acontece diante de seus olhos. É testemunha dos fatos. Os povos se debatem. Sucedem-se crises e guerras. A fantástica visão dos cogumelos atômicos é uma ameaça sinistra no ar! Os moços não podem fugir às contingências de seu tempo. Seria deserção e covardia.

Sou dos que pensam que, desde o curso secundário, a juventude pode e deve tomar conhecimento da realidade que a cerca, sem prejuízo de seus estudos. É um conhecimento necessário, uma aprendizagem humana e cívica que deveria ser considerada como uma atividade extra-escolar normal.

Não concebo um moço que não seja idealista, generoso. Mocidade é sinônimo de pureza de intenções, entusiasmo, lealdade.

Sua presença na política se constitui sempre num elemento decisivo para distinguir as boas e más causas, os bons e os maus propósitos. Só os que receiam ser desmascarados em seus objetivos escusos a temem.

Por isso escrevi "Posição", um poema de "Mensagem".

Parece haver uma atitude preconcebida dos mais velhos, de gerações frustradas, contra os jovens. Esta atitude deixa à mostra um complexo de inferioridade, ou um sentimento de culpa, diante de uma mocidade que caminha por si, e vai se realizando apesar de tudo, sem orientação, ajuda, e, o que é pior, compreensão.

Uma mocidade que não vê, portanto, porque tenha que seguir os mais velhos Afinal, por quê;? Para onde? E para quê? Para que o mundo continue como está.; Então, é preferível seguir só, denunciando inclusive os culpados pela herança que terão que receber.

A verdade é que a mocidade de hoje é uma mocidade que não se envergonha de pensar por si, de sentir, de se olhar no espelho sem qualquer hipocrisia.

Afirma-se tal como é, choque a quem chocar. E daí? Não terá ela também o direito de se sentir chocada com o mundo que seus pais lhe deram?

 Compreendo os moços. Sinto que poderia ser um deles, e que, de certa forma, continuo sendo. Que alegria quando escuto dizer que sou o " poeta do povo e da mocidade"! Eles querem apenas ser. Ser como são, e melhor que nós. Confio neles. Tenho a certeza de que podemos passar-lhes o bastão sem medo. Eles encontrarão o caminho que não lhes indicamos, e reconquistarão, por nós, não para nós, o tempo e o mundo perdidos.
Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969