domingo, 6 de janeiro de 2013

Clássicos do Cancioneiro Popular (A Vida de Pedro Cem)


Impressa em Recife, junho de 1932
–––––––

 Vou narrar agora um fato
 Que há cinco séculos se deu,
 De um grande capitalista
 Do continente europeu,
 Fortuna que como aquela,
 Ainda não apareceu.

 Pedro Cem, era o mais rico,
 Que nasceu em Portugal,
 Sua fama enchia o mundo
 Seu nome anda em geral,
 Não casou-se com rainha
 Por não ter sangue real.

 Em prédios, dinheiro e bens
 Era o mais rico que havia,
 Nunca deveu a ninguém
 Todo mundo lhe devia,
 Balanço em sua fortuna
 Querendo dar não podia.

 Em cada rua ele tinha
 Cem casas para alugar,
 Tinha cem botes no porto
 E cem navios no mar,
 Cem lanchas e cem barcaças,
 Tudo isto a navegar.

 Tinha cem fábricas de vinho
 E cem alfaiatarias,
 Cem depósitos de fazendas
 Cem moinhos e cem padarias
 E tinha dentro do mar,
 Cem currais de pescarias.

 Em cada país do mundo
 Possuía cem sobrados,
 Em cada banco ele tinha
 Cem contos depositados,
 Ocupava mensalmente
 Dezesseis mil empregados.

 Diz a história aonde eu li
 O todo desse passado,
 Que Pedro Cem nunca deu
 Uma esmola a um desgraçado.
 Não olhava para um pobre,
 Nem falava com criado.

 Uma noite teve um sonho
 Um rapaz o avisava
 Que aquele orgulho dele
 Era quem o castigava
 Aquela grande fortuna
 Assim como veio voltava.

 Ele acordou agitado
 Pelo sonho que tinha tido,
 Que rapaz seria aquele?
 Que lhe tinha aparecido
 Depois pensou, ora! Sonho,
 É devaneio do sentido.

 Um dia, no meio da praça
 Ele a uma moça encontrou,
 Essa vinha quase nua,
 Aos seus pés se ajoelhou
 Dizendo: senhor? Olhai!
 O estado em que estou.

 Ele torceu para um lado
 E disse: minha senhora?
 Olhe a sua posição!...
 E veja o que fez agora
 Reconheça o seu lugar,
 Levante-se e vá embora

 Oh! Senhor! Por esse sol
 Que de tão alto flutua,
 Lembrai-vos que tenho fome
 Estou aqui quase nua,
 Sou obrigada a passar,
 Nesse estado em plena rua.
 Ele repleto de orgulho
 Nem deu ouvido, saiu,
 A pobre ergueu-se chorando
 Chegou adiante caiu,
 Vinha passando uma dama
 Que com o manto a cobriu.

 Era a marquesa de Évora
 Uma alma lapidada,
 Tirando o seu rico manto
 Cobriu essa desgraçada,
 Ali conheceu que a pobre
 Foi pela fome postrada.

 Levante-se minha filha
 E pegou-lhe pela mão,
 Dizendo a criada a ela:
 Vá ali comprar um pão
 Que a essa pobre infeliz,
 Falta alimentação.

 Entregando-lhe uma bolsa
 Com quarenta e dois mil réis,
 Apenas tirou dali
 Um diploma e uns papéis
 Não consentindo que a moça
 Se ajoelhasse aos seus pés.

 E com aquela quantia
 Ela comprou um tear,
 Tinha mais duas irmãs
 Foram as três trabalhar
 Dali em diante mais nunca,
 Faltou-lhe com que passar.

 Vamos agora tratar
 Pedro Cem como ficou,
 E o nervoso que sentiu
 Uma noite que sonhou
 Que um homem lhe apareceu
 E disse olhe bem quem eu sou,

 Que tens feito do dinheiro 
 Que tomaste emprestado?
 Meu senhor mandou saber
 Em que o tens empregado?
 E por qual razão cumpriu
 As ordens que ele tem dado?

 Ele perguntou no sonho
 Mas que dinheiro eu tomei,
 Até aos próprios monarcas
 Dinheiro muito emprestei,
 O vulto zombando dele
 Disse: quem tu és eu sei.

 Que capital tinhas tu
 Quando chegaste ao mundo?
 Chegaste nu e descalço
 Como o bicho mais imundo
 Hoje queres ser tão nobre,
 Sendo um simples vagabundo.

 E metendo a mão no bolso
 Tirou dele uma mochila,
 Dizendo é esta a fortuna
 Que tu hás de possuí-la,
 Farás dela profissão,
 Pedindo de vila em vila.

 Pedro Cem sonhando disse:
 Ave agoureira te some
 Tua presença me perturba
 Tua frase me consome
 De qual mundo tu vieste?
 Diz-me por favor teu nome.

 Meu nome, disse-lhe o vulto
 És indigno de saber,
 Meu grande superior
 Proibiu-me de dizer.
 Apenas faço o serviço,
 Que ele me manda fazer.

 Despertando Pedro Cem
 Daquilo contrariado
 Ter dois sonhos quase iguais
 Ficou impressionado,
 Resolveu contrafazer,
 E ficar reconcentrado.

 Pensou em tirar por ano
 Daquela grande riqueza
 Sessenta contos de réis
 E dar de esmola à pobreza
 Depois refletindo, disse:
 Não me dá maior fraqueza

 Porque ainda mesmo Deus
 Querendo me castigar,
 Não afundará num dia
 Meus cem navios no mar,
 As cem fazendas de gado,
 Custarão a se acabar.

 As cem fábricas de tecidos
 Que tenho funcionando,
 Os parreirais de uvas
 Que estão todos safrejando,
 Cem botes que tenho no porto
 Todo dia trabalhando.

 Cem armazéns de fazendas
 As cem alfaiatarias,
 As cem fundições de ferro
 Cem currais de pescarias
 As cem casas alugadas,
 Cem moinhos, cem padarias.

 E as centenas de contos
 Nos bancos depositados,
 E tudo isso em poder
 De homens acreditados
 Ainda Deus querendo isso
 Seus planos eram errados

 Pedro Cem naquela hora
 Estava impressionado,
 Quando aproximou-se dele
 O seu primeiro criado,
 E disse: aí tem um homem,
 Diz vos trazer um recado.

 Mande que entre a pessoa
 Ele ao criado ordenou:
 Era um marinheiro velho
 Chegando ali o saudou,
 Que novas traz, meu amigo?
 Pedro Cem lhe perguntou.

 Disse o velho marinheiro:
 Venho-vos participar,
 Que dez navios dos vossos
 Ontem afundaram no mar
 Morreram as tripulações
 Só eu me pude salvar.

 Que navios foram esses?
 Perguntou-lhe Pedro Cem,
 Respondeu o marinheiro:
 Foi Tejo e Jerusalém
 E Douro e Penafiel
 Os outros eu não sei bem.

 Aquela inda estava ali
 Outro portador bateu
 O empregado das vacas
 Contou o que sucedeu;
 Incendiaram os cercados
 E todo o gado morreu.

 Pedro Cem nada dizia
 Ficando silencioso,
 Apenas disse: na terra
 Não há homem venturoso
 Quem se julgar mais feliz
 É pior que cão leproso.

 Chegou outro portador
 O empregado da vinha,
 Disse o depósito estourou
 Vazou o vinho que tinha
 Pedro Cem disse: meu Deus!...
 Que sorte triste esta minha.

 Saiu aquele entrou outro
 Era um cônsul norueguês,
 Disse nos mares do norte
 Andava um pirata inglês,
 Noventa navios vossos
 Tomou ele de uma vez.

 Meu Deus!... Meu Deus!... que fiz eu
 Exclamava Pedro Cem
 Não há homem nesse mundo
 que possa dizer vou bem,
 quando menos ele espera
 A negra desgraça vem.

 Dos cem navios que tinha
 Alguns foram afundados,
 E outros pelos piratas
 Nos mares foram tomados
 Acrescentou a pessoa:
 Vinham todos carregados.

 Ali mesmo veio o mestre
 Da barca Flor do Mundo
 Esse fitou Pedro Cem
 Com um silêncio profundo
 Depois disse: senhor marquês?!
 Dez barcaças foram ao fundo

 Quatros vinham carregadas
 Com bacalhau e azeite,
 Duas vinham da Suécia
 Com queijo, manteiga e leite,
 De todas as mercadorias
 Não tem uma que se aproveite.

 Quatro das dez que afundaram
 Traziam pérola e metal,
 Só da ilha da Madeira
 Vinham um milhão de coral
 Topázio, rubi, brilhante,
 Ouro, esmeralda e cristal.

 Pedro Cem baixou a vista
 Nada pôde refletir
 Exclamou que faço eu?
 Devo deixar de existir,
 Mas matando-me não vejo,
 Isso até onde pode ir.

 Chegou o moço do campo
 Tremendo e muito assustado
 E disse: senhor marquês
 Venho aqui horrorizado,
 Deu murrinha nas ovelhas
 E mal triste em todo gado.

 Naquele momento entrou
 Um rapaz auxiliar,
 Esse puxando um papel
 Disse: venho procurar,
 Tudo quanto se perdeu
 Na barca Ares do Mar.

 Pedro Cem perguntou quanto
 Tirou o moço uns papéis.
 Que se lia entre brilhantes
 Pulseiras, colares, anéis,
 Um milhão e quatrocentos
 E vinte contos de réis.

 Entrou outro auxiliar
 Disse eu quero pagamento,
 Por tudo que se perdeu
 No navio Chave do Vento
 Que vinha da América do Norte
 Com grande carregamento

 Chegou um tabelião
 Dá licença senhor Marquês?
 Venho lhe participar
 Que o grande banco francês,
 Dois alemães, três suíços
 Quebraram todos de vez

 Lá se foi minha fortuna
 Exclama Pedro Cem,
 Ontem fui milionário
 Hoje não tenho um vintém
 Só mesmo na campa fria,
 Eu hoje estaria bem.

 Dando balanço nos bens
 Quis até desesperar.
 Tudo quanto possuía
 Não dava para pagar
 Nem pela décima parte
 Os prejuízos do mar.

 Exclamava: oh! Pedro Cem
 Que será de ti agora!
 No pouco que me restava
 A justiça fez penhora,
 Pedro Cem de agora em diante
 Vai errar de mundo afora.

 Carpir esta sorte dura
 que a desventura me deu,
 Talvez muitas vezes vendo
 Aquilo que já foi meu,
 Em lugar que não se saiba
 Quem neste mundo fui eu.

 Ali no terraço mesmo
 Forrando o chão se deitou,
 As onze e meia da noite
 O sonho conciliou
 No sono sonhando viu
 O rapaz que lhe falou.

 Aquele perguntou, Pedro
 Como te foste de empresa,
 Já estás conhecendo agora
 Quanto é grande a natureza?
 Conheceste que teu orgulho
 Foi quem te fez a surpresa?

 Metendo a mão na algibeira
 Dali um quadro tirou.
 Onde havia dois retratos
 Que a Pedro Cem os mostrou
 Conheces esses retratos
 O rapaz lhe perguntou.

 Via-se naquele quadro
 Uma dama bem vestida
 Pedro Cem disse por sonho:
 Essa é minha conhecida
 A outra uma moça pobre
 Com fome no chão caída.

 Perguntava-lhe o rapaz:
 Quem é esta conhecida
 É a marquesa de Évora
 E esta que está caída?
 Essa? É uma miserável,
 Dessa classe desvalida.

 O rapaz puxa outro quadro
 Verde cor de esperança,
 Onde via-se uma monarca
 Suspendendo uma balança
 Estava pesando nela
 Caridade e esperança.

 Mostrou-lhe mais quatros quadros
 Que Pedro Cem conheceu,
 Tinha a Marquesa de Évora
 Quando a bolsa a pobre deu
 Que estirou a mão dizendo:
 Toma este dinheiro que é teu.

 No quadro via-se um anjo
 Assim nos diz a história,
 Com uma flor onde se lia:
 jardim da eterna glória,
 Presenteado por Deus,
 Esta palma de vitória.

 Quem planta flores tem flores
 Quem planta espinho tem espinho
 Deus mostra ao espírito fraco
 O que nega ao mesquinho,
 A virtude é um negócio
 A boa ação um pergaminho.

 Depois que ele acordou
 Triste impressionado
 Interrogava si próprio
 Porque sou tão desgraçado
 Achou na cama a mochila,
 Com que tinha sonhado.

 Será esta a tal mochila
 Que o fantasma me mostrou;
 É esta que o homem em sonho
 Em desespero exclamou:
 Na noite em que a cruel sina,
 Por sonho me visitou.

 De tudo restava apenas
 A casa de moradia,
 Essa mesma embargaram
 Antes de findar-se o dia
 Então disse Pedro Cem
 Cumpriu-se a profecia.

 Lançando a mão na mochila
 Saiu no mundo a vagar
 Implorando a caridade
 Sem alguém nada lhe dar
 Por uma cinco ou seis vezes
 Tentou se suicidar.

 Ele dizia nas portas:
 Uma esmola a Pedro Cem
 Que já foi capitalista
 Ontem tem, hoje não tem
 A quem já neguei esmola
 Hoje a mim nega também.

 Foi ele cair com fome
 Em casa daquela moça,
 Quando foi a porta dele
 Com fome, frio e sem força,
 Que ele não quis olhá-la
 A marquesa deu-lhe a bolsa.

 A criada o viu cair
 Exclamou: minha senhora!...
 Ande ver um miserável,
 Que caiu de fome agora,
 Onde? Perguntou a moça
 Ana disse: Ali fora.

 A moça disse à criada:
 Que trouxesse leite e pão
 Aproximando-se dele
 Disse: o que tens meu irmão
 Bateste em todas as portas
 Não encontraste cristão.

 Senhora! Se vós soubesseis
 Quem é esse desgraçado
 Não me abririas a porta
 Nem me davas esse bocado
 Respondeu ela: conheço
 Mas eu esqueço o passado.

 Me recordo que a marquesa
 Fez minha felicidade,
 Viu-me caída com fome
 Teve de mim piedade,
 Deu-me com que comprar pão
 E esta propriedade.

 Pedro Cem se levantou
 Disse obrigado e saiu
 Andando duzentos passos
 Tombou por terra, caiu
 E umas frases tocantes,
 Em alta voz proferiu:

 "Vai unir-se à terra fria
 O que não soube viver
 Soube ganhar a fortuna
 Mas não na soube perder
 Se tenho estudado a vida
 Tinha aprendido a morrer.

 Foi como a corrente d’água
 Que pela serra desceu,
 Chegou o verão a secou
 Ela desapareceu,
 Ficando só os escombros
 Por onde a água correu.

 Eu tive tanta fortuna
 Não socorria ninguém,
 A todos que me pediram
 Eu nunca dei um vintém,
 Hoje preciso pedir,
 Não há quem me dê também.

 Não desespero, pois sei
 Que grandes crimes hoje espio,
 Nasci em berços dourados
 Dormi em colchão macio
 Hoje morro como os brutos
 Neste chão sujo e frio.

 Foram as últimas palavras
 Que ali pronunciou,
 Margarida, aquela moça
 Que a marquesa embrulhou
 Botou-lhe a vela na mão,
 Ele ali mesmo expirou.

 A justiça examinando
 Os bolsos de Pedro Cem,
 Encontrou uma mochila
 E dentro dela um vintém
 E um letreiro que dizia:
 Ontem teve e hoje não tem.

Fonte:
Cascudo, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Rio de Janeiro, Ediouro, sd. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Mitos e Lendas (Lenda do Flamboyant)


No silêncio da floresta ouvia-se uma voz chorando, amargurada. 

Era uma árvore que chorava a tristeza de não ter flores.

Tupã ouviu-a e, condoído daquela angustia, resolveu mudar a sorte da pobre árvore. E sentenciou:

— Que os raios de fogo do sol ardente transformem os verdes ramos em milhares de flores rubras! 

E imediatamente tal aconteceu. 

A galharia das grandes árvores da floresta afastou-se e o sol, incidindo sobre a árvore que chorava, realizou o milagre: a copa verde do flamboyant transformou-se num lindo ramalhete de flores vermelhas, fulgurantes.

Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Luis Fernando Veríssimo (Pechada)


O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de "Gaúcho". Porque era gaúcho, recém-chegado do Rio Grande do Sul, com um sotaque carregado. 

– Aí, Gaúcho!

– Fala, Gaúcho! 

Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada região tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam português. Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que num país do tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações?

– Mas o Gaúcho fala "tu"! – disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato.

– E fala certo - disse a professora. – Pode-se dizer "tu" e pode-se dizer "você". Os dois estão certos. Os dois são português.

O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara.

Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera.

– O pai atravessou a sinaleira e pechou.

– O que?

– O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.

A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara uma sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado. Com pedaços de sinaleira sendo retirados do seu corpo.

– O que foi que ele disse, tia? – quis saber o gordo Jorge.

– Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.

– E o que é isso?

– Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.

– Nós vinha...

– Nós vínhamos.

– Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada noutro auto.

A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo, procurava uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo Jorge rindo daquele jeito.

"Sinaleira", obviamente, era sinal, semáforo. "Auto" era automóvel, carro. Mas "pechar" o que era? Bater, claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra? Só muitos dias depois a professora descobriu que "pechar" vinha do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar para convencer o gordo Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já ganhara outro apelido: Pechada.

– Aí, Pechada!

– Fala, Pechada!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

sábado, 5 de janeiro de 2013

Trova Ecológica 86 - Wagner Marques Lopes (MG)


José Francisco Cagliari (O Desabafo de um Lápis Preto)


– Olá, meu nome é John Faber; sou filho de dona Madeira e do senhor Grafite. O nome estrangeiro não é mania de grandeza não. Aliás, grandeza é o que eu não tenho. Além de ser magrinho, eu sou daquele tipo que ao nascer começa a ficar pequeno, ao invés de crescer.

Sou negro, mas não sofro com problemas de preconceito racial ou, pelo menos, não sofria até pouco tempo.

Meu avô sempre me contava suas histórias. Ele nascera e já começara a trabalhar num escritório. Lá ele fazia de tudo: escrevia cartas, fazia anotações, desenhos, contas. O que não fazia era assinar cheques; não tinha autoridade para isso. O pior, segundo ele, era trabalhar tanto e, quase sempre, a senhorita borracha desfazer tudo. Meu pobre avô se cansou e morreu. Depois de muitos “desapontamentos”, não aguentou e sucumbiu vítima de uma gilete. Ele, que sempre esteve com os papéis, acabou embrulhado no lixo. A senhorita borracha também faleceu, vítima do “desgaste” e do stress.

Eu, como sou novo ainda, não tenho emprego, mas creio que as coisas ainda vão piorar. Meu pai foi despedido. É que o chefe contratou uma lapiseira, e agora nós somos considerados obsoletos. Minha mãe está perdendo o lugar para o plástico. Minha irmã, a caneta, está passando muito mal. A tinta acabou e não há ninguém para doar para ela. Assim, a nossa geração está sendo “apagada” do mapa. E pensar que se não fossem meus ancestrais, Castro Alves não seria ninguém. É, a vida está dura. Bem que meu avô dizia: “ser um lápis é um risco”.

Fonte:
I Concurso Literário/ Associação Paulista do Ministério Público. 1.ed. Sao Paulo: Edições APMP, 2010. p.49

Patativa do Assaré (A Seca e o Inverno)


Na seca inclemente no nosso Nordeste
O sol é mais quente e o céu, mais azul
E o povo se achando sem chão e sem veste
Viaja à procura das terras do Sul 
Porém quando chove tudo é riso e festa
O campo e a floresta prometem fartura
Escutam-se as notas alegres e graves
Dos cantos das aves louvando a natura
Alegre esvoaça e gargalha o jacu
Apita a nambu e geme a juriti
E a brisa farfalha por entre os verdores
Beijando os primores do meu Cariri

De noite notamos as graças eternas
Nas lindas lanternas de mil vaga-lumes
Na copa da mata os ramos embalam
E as flores exalam suaves perfumes
Se o dia desponta vem nova alegria
A gente aprecia o mais lindo compasso
Além do balido das lindas ovelhas
Enxames de abelhas zumbindo no espaço
E o forte caboclo da sua palhoça
No rumo da roça de marcha apressada
Vai cheio de vida sorrindo e contente
Lançar a semente na terra molhada
Das mãos deste bravo caboclo roceiro
Fiel prazenteiro modesto e feliz
É que o ouro branco sai para o processo
Fazer o progresso do nosso país

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Ives Gandra (Maior Diário Publicado em Forma de Soneto)


texto de Fátima Pires
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Ives Gandra da Silva Martins escreveu 365 sonetos, um por dia durante o ano de 2010

O advogado Ives Gandra da Silva Martins, da cidade de São Paulo – SP, é o novo recordista do RankBrasil. Durante o ano de 2010, ele escreveu um diário em forma de soneto, totalizando 365 composições poéticas.

Produzidos de 1º de janeiro a 31 de dezembro, os sonetos possuem métrica perfeita, seguindo a tradição das composições italianas (Petrarca) ou inglesas (shakespearianos).

O diário foi publicado no decorrer do ano passado, pela editora Pax&Spes, em quatro volumes, todos ilustrados, nas versões impressa e eletrônica, com o título ‘Diário em Sonetos – 365 dias, um soneto por dia’.

Segundo Ives Gandra, as composições foram inspiradas a partir de uma agenda para 2010, presenteada pela ex-diretora geral das Organizações Globo, Marluce Dias e seu marido Eurico.

“Prometi para eles que, pela beleza da agenda, escreveria um soneto por dia e assim realizei”, conta. Ives Martins explica que, como relata em alguns sonetos, nem sempre foi fácil encontrar um tema para cada dia.

“De rigor, o livro é um diário normal sobre os acontecimentos pessoais, profissionais, culturais, políticos e de exercício da cidadania: foi uma experiência curiosa, que se faz uma única vez na vida”, enfatiza.

Carreira profissional

 O recordista é professor emérito de várias universidades de São Paulo e professor honorário de universidades da Argentina, Peru, Romênia e Portugal.

Ele pertence a 31 Academias Jurídicas, Filosóficas, Culturais, Históricas no Brasil e Portugal, e possui 31 títulos acadêmicos universitários no Brasil, Argentina, Peru, Portugal e Romênia.

Tem estudos nestas áreas publicados em 21 países: Alemanha, Angola, Argentina, Bahamas, Bélgica, Brasil, Bulgária, Cabo Verde, Canadá, Espanha, Estados Unidos, Holanda, Inglaterra, Japão, México, Peru, Portugal, Romênia, Rússia, Taiwan e França.

Ives Martins é membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e da Academia Brasileira de Filosofia. Também é membro da Academia Paulista de Letras, a qual presidiu nos anos de 2005 e 2006.

Outras publicações

Ives compôs seu primeiro soneto aos 13 anos, em 1948. No ano de 1956, aos 21, escreveu o primeiro livro de poesias, intitulado ‘Pelos caminhos do silêncio’.

Em 1965, com o poeta Domingos Carvalho da Silva, Ives Martins dividiu o prêmio dos Jogos Florais Brasil – Portugal. Seu poema ‘Marabá’, classificado pelos julgadores como épico, foi publicado no livro ‘Tempo de Lendas’.

Também fazem parte de suas publicações diversos livros de poesia, o romance ‘Um advogado em Brasília’ e a peça teatral ‘O caçador caçado’. Seus poemas vão além da língua portuguesa: foram traduzidos para o romeno e editado pela Ed. Akadamus-Budapeste (Poeme).

Soneto destaque
 Dos 365 sonetos que agora fazem parte do RankBrasil, o recordista Ives Martins escolhe um para destaque:

EU INFANTE

Meu ano acaba, volto a ser menino,
 Encantos descobrindo pela lua,
 Meus papagaios lúdicos empino
 Enquanto elevo aos céus minh’alma nua.

Retorno no rever de meu destino,
 Ao moleque que andava pela rua,
 Sonhando sonhos mil, em desatino,
 Sem nunca perceber que a vida é crua.

Meu passado repasso num instante
 E meu presente engolfo no futuro,
 Que se torna de mais em mais incerto,

Mas que não tira o brilho de eu infante,
 Que fazia ser claro o que era escuro
 E plantava jardins pelo deserto.

SP., 16/12/2010.

Fonte:
http://reinodosconcursos.com/?page_id=117

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 775)


Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional  

Despido, ao lado da cama, 
me peguei a me indagar, 
tendo nas mãos o pijama: 
- devo vestir ou guardar? 
–Amilton Maciel/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Está cegando Renato 
pois, um objeto qualquer 
só conhece pelo tato 
principalmente mulher. 
–Renato Caldas/RN– 

Uma Trova Premiada  

2011   -   Nova Friburgo/RJ 
Tema   -   BANDA   -   1º Lugar 

Tocou tuba a vida inteira 
na banda; e era tão viciado, 
que nos braços da enfermeira 
morreu feliz... Entubado. 
–Maurício Cavalheiro/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Quando conto uma piada, 
não há riso que resista, 
porque a sogra, coitada, 
é sempre a protagonista. 
–Jorge Murad/RJ– 

U m a P o e s i a  

A tal morte eu nem conheço, 
deve ser uma bandida... 
Leva o moço, leva o velho, 
com ela não tem saída... 
Morrer é a última coisa 
que eu quero fazer na vida... 
–Milton Souza/RS– 

Soneto do Dia  

O POBRE
–Francisco Macedo/RN– 

Vida de pobre é um mutirão de dor, 
uma loucura e grande confusão, 
quando tem carne nunca tem feijão, 
se tem feijão, de carne nem a cor. 

Compra uma “muda” de roupa todo ano 
e no sapato, tome meia-sola! 
No celular faz pose de gabola, 
mas pra ligar, está sem vez no plano... 

No “lotação” precisa paciência, 
arroto choco e tome flatulência, 
e, mesmo assim, com jeito vai levando... 

Sendo enxerido, segura a aparência, 
pose de rico, mas rei da inadimplência 
e vai em frente, as dores disfarçando.

Nilto Maciel (Da Bola de Meia ao Rádio)


As casas me pareciam enormes, tetos muito altos, chão de tijolo. Quando chovia ou o sol esquentava demais, brincávamos de bola na sala ou nos quartos. Os chutes desajeitados levavam a bola para o forro de pano. E nem adiantava cutucá-lo com vara. Nunca mais a veríamos. A não ser quando algum pedreiro ou pintor fosse trabalhar, levasse escada e atendesse nossos rogos. Ou quando papai resolvesse trocar o forro. Mesmo assim, as bolas estariam endurecidas, mofadas, rasgadas.

Mamãe tinha horror a bolas. Menos aquelas das cartilhas. Mas como viver sempre estudando? Se tirávamos notas baixas, três dias sem bola e sem bila. Ou três dias lendo bulas. No quintal não havia lugar para jogos e brincadeiras. Somente árvores, plantas e animais domésticos.  O gato caçava borboletas, ratos e passarinhos, a correr e saltar entre as bananeiras. Sumia, voltava, miava, brincava, desaparecia de novo ou para sempre. Até aparecer outro e ser adotado por nós. Um deles, Mimi, viveu muitos anos. Preto, olhos verdes, sapeca. Arranhava as bananeiras, dormia debaixo das árvores, escondia-se atrás das moitas, perdia-se por dias e dias, reaparecia a miar, faminto. Os porcos roncavam no meio da lama. As lagartas infestavam a horta. 

Poucos meninos conheciam bolas de couro. Em compensação, todos tinham “bolas-de-meia” ou “bolas-de-pano”. Meia usada, furada, imprestável para o uso apropriado. O recheio podia ser de algodão, pano ou papel. Essas bolas não serviam para jogos em chão de terra. E menos ainda em dias de chuva. Jogava-se nas calçadas. Quando não o futebol, os simples chutes de um lado para outro. As paredes serviam de anteparo e ao mesmo tempo de linhas de gol. Às vezes dois jogadores de cada lado. Um chute para cada “time”. Vencia quem fizesse primeiro determinado número de gols. Ao vencedor cabia, como “castigo”, jogar, em seguida, com outro “time” ou jogador. Eu conseguia ser um dos melhores nos chutes e nas defesas. Saltava, quase voava, em busca da bola. Os outros me elogiavam. E eu me enchia de amor-próprio. Sim, quando me tornasse rapaz, iria jogar no Fortaleza. Por muito tempo sonhei ser goleiro profissional. O sonho, no entanto, cedo se desfez, e de forma melancólica. Convidado para treinar num time de futebol de salão, logo no primeiro jogo perdemos por larga margem de gols. Um fracasso! Chamaram-me de frangueiro, e nunca mais me convidaram a entrar no pequeno estádio. Frustrado com o meu futebol, deixei o campo e me postei na plateia. De ator passei a espectador. Dediquei-me a recortar fotos de jogadores e times dos jornais e das revistas, principalmente O Cruzeiro. Recortava as "figuras” e colava num caderno velho. Dos futebolistas passei a atrizes de cinema, animais, carros, aviões, cidades.

No colégio dos padres salesianos havia um “muro” a separar os alunos internos dos externos. Aqueles vinham de outras cidades, sobretudo de Fortaleza. De famílias ricas. Nós, os da cidade, éramos quase todos pobres, filhos de comerciantes locais, como eu e meu irmão Edinardo, de funcionários públicos, etc. Nunca os dois lados se misturavam. Brincavam em pátios separados. Até na igreja, construção contígua ao colégio, a separação se manifestava. Os bancos destinados aos internos se situavam na parte mais próxima do altar. Apesar disso, fomos convidados a participar das brincadeiras e jogos de fim-de-semana no colégio. Entrávamos por um portão pequeno, que ia dar numa escolinha para crianças carentes, moradoras da periferia, como Potiú e Lages. Havia muitas mangueiras e o rio corria bem próximo a uma cerca. Os internos jogavam futebol num campo grande, com traves, rede, uniformes, chuteiras, bola de couro. Nós ficávamos ao largo, chutando uma bolinha ou outra, junto aos meninos mais pobres. A bola me pareceu excessivamente pesada. Nunca havia chutado uma bola de couro. Meus pés só conheciam as bolinhas de meia. O capim molhado e alto me feria os dedos. 

O primeiro rádio em nossa casa chegou muito tarde. Depois da Copa da Suécia. Posto sobre uma mesa na sala de estar, imperava imponente no meio da pouca mobília. Media mais de meio metro. Cheio de válvulas, esquentava feito um forno. Passou a ser meu entretenimento predileto à noite. Rodava o botão para lá e para cá, à cata de novidades, músicas, notícias e jogos de futebol. Anotava tudo: nomes dos times e jogadores do Rio, de São Paulo e da Europa. Decorava e copiava letras de músicas. Quando todos iam dormir, eu continuava a manejar os botões do rádio. Mamãe se aborrecia: fosse dormir, desligasse o aparelho. Eu abaixava o volume e aproximava da tela do alto-falante um ouvido. No entanto, as ondas iam e vinham em descompasso, e ora se tornavam inaudíveis, ora cresciam.

Fontes:
http://www.niltomaciel.net.br/node/220
Montagem da imagem com radio obtido em http://www.paulobranco.com, e a bola de meia em http://blog.cancaonova.com

Teatro de Ontem e de Hoje (Hoje É Dia de Rock)


Considerado pela crítica especializada o espetáculo mais importante de 1971, Hoje É Dia de Rock permanece em cartaz até 1973 e se torna um fenômeno de público raro na história do teatro brasileiro. Desde o processo de construção, que trabalha com a sensibilização coletiva, passando pela interpretação, que permite ao ator tocar o espectador, até a distribuição espacial do espetáculo, que invade a platéia, Hoje É Dia de Rock transforma o Teatro Ipanema em um altar de celebração.

Escrita por José Vicente, a peça conta a história de uma família do interior de Minas Gerais que vive o conflito entre a tradição e a modernidade, o ficar e o partir. O autor se utiliza da viagem como elemento preponderante para simbolizar a tensão entre o desejo de permanecer fiel às origens e o de conhecer outros lugares, em especial as grandes cidades. O protagonista é Pedro, o pai, músico e maestro de banda, que persegue um alvo místico durante todo o decorrer da peça: procura uma clave de cinco notas, ainda não descoberta. Rubens Corrêa, ator e diretor do espetáculo, identifica o teatro ritualístico como "uma ligação do inconsciente do indivíduo com o todo, com o cósmico", que faz brotar em cena a magia de cada ação do cotidiano. O crítico Yan Michalski define a linguagem do espetáculo como realismo mágico, comparando suas personagens à de Cem Anos de Solidão:

"Quando os intérpretes de Rock nos acolhem com pão, flores e fraternos sorrisos, dificilmente deixaremos de nos sentir atingidos, tão profundamente esta comunhão se acha enraizada numa situação dramática com a qual nos podemos identificar, e no olhar com o qual o autor, o diretor e os atores contemplam essa situação." A comunicação que o espetáculo estabelece com seu público leva-o a permanecer em cartaz mais de dois anos, como um fenômeno poucas vezes visto no teatro brasileiro. Segundo o crítico, "havia espectadores que iam revê-lo dezenas de vezes, como se estivessem visitando uma família pela qual se sentiam adotados, e a coleção de cartas que o grupo recebeu, autênticas declarações de amor, algumas das quais afirmando que o contato com o espetáculo havia mudado a sua vida, constitui uma documentação rara na história do nosso teatro".1 

A encenação de Hoje É Dia de Rock marca a trajetória do Teatro Ipanema não apenas pela retomada do teatro ritualístico, iniciado com Diário de um Louco, 1964, e desenvolvido em O Arquiteto e o Imperador da Assíria, 1970, mas principalmente porque sintetiza e simboliza esteticamente todo o ideário da contracultura. Nas palavras de Yan Michalski, é "um inigualável monumento teatral à mentalidade de 'paz e amor' ".2

Notas

1. MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 50.

2. MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 50.

Fonte:

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 5


Uma rica liteira esperava-me à Porta de Tung Tsen-Men, para eu atravessar Pequim até à residência militar de Camilloff. A Muralha agora, ao perto, parecia erguer-se até aos céus com o horror de uma construção bíblica: à sua base apinhava-se uma confusão de barracas, feira exótica, onde rumorejava uma multidão, e a luz de lanternas oscilantes cortava já o crepúsculo de vagas manchas cor de sangue; os toldos brancos faziam ao pé do negro muro como um bando de borboletas pousadas.

Senti-me triste; subi à liteira, cerrei as cortinas de seda escarlate todas bordadas a ouro; e cercado dos cossacos, eis-me entrando a velha Pequim, por essa porta babélica, na turba tumultuosa, entre carretas, cadeirinhas de xarão, cavaleiros mongólicos armados de flechas, bonzos de túnica alvejante marchando um a um, e longas filas de lentos dromedários balançando a sua carga em cadência...

Daí a pouco a liteira parou. O respeito Sá-Tó correu as cortinas, e vi-me num jardim, escurecido e calado, onde, por entre sicômoros seculares, quiosque alumiados brilhavam com uma luz doce, como colossais lanternas pousadas sobre a relva: e toda a sorte de águas correntes murmuravam na sombra. Sob um peristilo feito de madeiros pintados a vermelhão, aclarado por fios de lâmpadas de papel transparente, esperava-me um membrudo figurão, de bigodes brancos, apoiado a um grosso espadão. Era o general Camilloff. Ao adiantar-me para ele, eu sentia o passo inquieto das gazelas fugindo de leve sob as árvores...

O velho herói apertou-me um momento ao peito, e conduziu-me logo, segundo os usos chineses, ao banho da hospitalidade, uma vasta tina de porcelana onde entre rodelas finas de limão sobrenadavam esponjas brancas, num perfume forte de lilás...

Pouco depois a lua banhava deliciosamente os jardins: e eu, muito fresco, de gravata branca, entrava pelo braço de Camilloff no boudoir da generala. Era alta e loira; tinha os olhos verdes das sereias de Homero; no decote baixo do seu vestido de seda branca pousava uma rosa escarlate; e nos dedos, que lhe beijei, errava um aroma fino de sândalo e de chá.

Conversámos muito da Europa, do niilismo, de Zola, de Leão XIII, e da magreza de Sarah Bernhardt...

Pela galeria aberta penetrava um ar cálido que rescendia a heliotrópio. Depois ela sentou-se ao piano – e a sua voz de contralto quebrou até tarde os silêncios melancólicos da Cidade Tártara, com as picantes árias de «Madame Favart» e com as melodias afagantes do «Rei de Lahore». 

Ao outro dia cedo, encerrado com o general num dos quiosques do jardim, contei-lhe a minha lamentável história e os motivos fabulosos que me traziam a Pequim. O herói escutava, cofiando sombriamente o seu espesso bigode cossaco.

– O meu prezado hóspede sabe o chinês? – perguntou-me de repente, fixando em mim a pupila sagaz.

– Sei duas palavras importantes, general: «mandarim» e «chá».

Ele passou a sua mão de fortes cordoveias sobre a medonha cicatriz que lhe sulcava a calva:

– «Mandarim», meu amigo, não é uma palavra chinesa, e ninguém a entende na China. É o nome que no século XVI os navegadores do seu país, do seu belo país...

– Quando nós tínhamos navegadores... murmurei, suspirando.

Ele suspirou também, por polidez, e continuou:

– Que os seus navegadores deram aos funcionários chineses. Vem do seu verbo, do seu lindo verbo...

– Quando tínhamos verbos... – rosnei, no hábito instintivo de deprimir a Pátria. Ele esgazeou um momento o seu olho redondo de velho mocho – e prosseguiu paciente e grave:

– Do seu lindo verbo «mandar»... Resta-lhe portanto «chá». É um vocábulo que tem um vasto papel na vida chinesa, mas julgo-o insuficiente para servir a todas as relações sociais. O meu estimável hóspede pretende esposar uma senhora da família Ti Chin-Fu, continuar a grossa influência que exercia o Mandarim, substituir, doméstica e socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto dispõe da palavra «chá». É pouco.

Não pude negar – que era pouco. O venerando russo, franzindo o seu nariz adunco de milhafre, pôs-me ainda outras objecções que eu via erguerem-se diante do meu desejo como as muralhas mesmas de Pequim: nenhuma senhora da família Ti Chin-Fu consentiria jamais em casar com um bárbaro; e seria impossível, terrivelmente impossível que o imperador, o Filho do Sol, concedesse a um estrangeiro as honras privilegiadas de um mandarim...

– Mas porque mas recusaria? – exclamei. – Eu pertenço a uma boa família da província do Minho. Sou bacharel formado; portanto na China, como em Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte de uma repartição pública... Possuo milhões... Tenho a experiência do estilo administrativo...

O general ia-se curvando com respeito a esta abundância dos meus atributos.

– Não é – disse ele enfim – que o imperador realmente o recusasse: é que o indivíduo que lho propusesse seria imediatamente decapitado. A lei chinesa, neste ponto, é explícita e seca. 

Baixei a cabeça, acabrunhado.

– Mas, general – murmurei – eu quero livrar-me da presença odiosa do velho Ti Chin-Fu e do seu papagaio!... Se eu entregasse metade dos meus milhões ao Tesouro chinês, já que não me é dado pessoalmente aplicá-los, como mandarim, à prosperidade do Estado...? Talvez Ti Chin-Fu se calmasse...

O general pousou-me paternalmente a vasta mão sobre o ombro:

– Erro, considerável erro, mancebo! Esses milhões nunca chegariam ao Tesouro imperial. Ficariam nas algibeiras insondáveis das classes dirigentes: seriam dissipados em plantar jardins, coleccionar porcelanas, tapetar de peles os soalhos, fornecer sedas às concubinas: não aliviariam a fome de um só chinês, nem reparariam uma só pedra das estradas públicas... Iriam enriquecer a orgia asiática. A alma de Ti Chin-Fu deve conhecer bem o Império: e isso não a satisfaria.

– E se eu empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer particularmente, como filantropo, largas distribuições de arroz à populaça faminta? É uma ideia...

– Funesta – disse o general, franzindo medonhamente o sobrolho. – A corte imperial veria aí imediatamente uma ambição política, o tortuoso plano de ganhar os favores da plebe, um perigo para a Dinastia... O meu bom amigo seria decapitado... É grave...

– Maldição! – berrei. – Então para que vim eu à China?

O diplomata encolheu vagarosamente os ombros; mas logo, mostrando num sorriso astuto os seus dentes amarelos de cossaco:

– Faça uma coisa. Procure a família de Ti Chin-Fu... Eu indagarei do primeiro-ministro, Sua Excelência o Príncipe Tong, onde pára essa prole interessante... Reúna-os, atire-lhes uma ou duas dúzias de milhões... Depois prepare ao defunto funerais régios. Funerais de alto cerimonial, com um préstito de uma légua, filas de bonzos, todo um mundo de estandartes, palanquins, lanças, plumas, andores escarlates, legiões de carpideiras ululando sinistramente, etc., etc. Se depois de tudo isto a sua consciência não adormecer e o fantasma insistir...

– Então?

– Corte as goelas.

– Obrigado, general.

Uma coisa, porém, era evidente, e nela concordaram Camilloff, o respeitoso Sá-Tó e a generala: – que, para frequentar a família Ti Chin-Fu, seguir os funerais, misturar-me à vida de Pequim, eu devia desde já vestir-me como um chinês opulento, da classe letrada, para me ir habituando ao traje, às maneiras, ao cerimonial mandarim... 

A minha face amarelada, o meu longo bigode pendente favoreciam a caracterização – e quando na manhã seguinte, depois de arranjado pelos costureiros engenhosos da Rua Chá-Cua, entrei na sala forrada de seda escarlate, onde já rebrilhavam as porcelanas do almoço sobre a mesa de xarão negro, – a generala recuou como à aparição do próprio Tong-Tché, Filho do Céu!

Eu trazia uma túnica de brocado azul-escuro abotoada ao lado, com o peitilho ricamente bordado de dragões e flores de oiro: por cima um casabeque de seda de um tom azul mais claro, curto, amplo e fofo: as calças de cetim cor de avelã descobriam ricas babouches amarelas pespontadas a pérolas, e um pouco da meia picada de estrelinhas negras: e à cinta, numa linda faixa franjada de prata, tinha metido um leque de bambu, dos que têm o retrato do filósofo Lao-Tsé e são fabricados em Swa-Ton.

E, pelas misteriosas correlações com que o vestuário influencia o carácter, eu sentia já em mim ideias, instintos chineses: – o amor dos cerimoniais meticulosos, o respeito burocrático das fórmulas, uma ponta de cepticismo letrado; e também um abjecto terror do imperador, o ódio ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da tradição, o gosto das coisas açucaradas...

Alma e ventre eram já totalmente um mandarim. Não disse à generala: – Bonjour, Madame. – Dobrado ao meio, fazendo girar os punhos fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o chin-chin...

– É adorável, é precioso! – dizia ela, com o seu lindo riso, batendo as mãozinhas pálidas.

Nessa manhã, em honra da minha nova encarnação, havia um almoço chinês. Que gentis guardanapos de papel de seda escarlate, com monstros fabulosos desenhados a negro! O serviço começou por ostras de Ning-Pó. Exímias! Absorvi duas dúzias com um intenso regalo chinês. Depois vieram deliciosas febras de barbatana de tubarão, olhos de carneiro com picado de alho, um prato de nenúfares em calda de açúcar, laranjas de Cantão, e enfim o arroz sacramental, o arroz dos Avós...

Delicado repasto, regado largamente de excelente vinho de Chão-Chigne! E, por fim, com que gozo recebi a minha taça de água a ferver, onde deitei uma pitada de folhas de chá imperial, da primeira colheita de Março, colheita única, que é celebrada com um rito santo pelas mãos puras de virgens!... 

Duas cantadeiras entraram, enquanto nós fumávamos; e muito tempo, numa modulação gutural, disseram velhas cantigas dos tempos da Dinastia Ming, ao som de guitarras recobertas de peles de serpente, que dois tártaros agachados repenicavam, numa cadência melancólica e bárbara. A China tem encantos de um raro gosto...

Depois a loira generala cantou-nos, com chiste, a «Femme à Barbe»: e quando o general saiu com a sua escolta cossaca para o yamen do príncipe Tong, a informar-se da residência da família Ti Chin-Fu – eu, repleto e bem disposto, saí com Sá-Tó a ver Pequim.

A habitação de Camilloff ficava na Cidade Tártara, nos bairros militares e nobres. Há aqui uma tranquilidade austera. As ruas assemelham-se a largos caminhos de aldeia sulcados pelas rodas dos carros; e quase sempre se caminha ao comprido de um muro, donde saem ramos horizontais de sicômoros.

Por vezes uma carreta passa rapidamente, ao trote de um pónei mongol, com altas rodas cravejadas de pregos dourados; tudo nela oscila: o toldo, as cortinas pendentes de seda, os ramos de plumas aos ângulos; e dentro entrevê-se alguma linda dama chinesa, coberta de brocados claros, a cabeça toda cheia de flores, fazendo girar nos pulsos dois aros de prata, com um ar de tédio cerimonioso. Depois é alguma aristocrática cadeirinha de mandarim, que coolies vestidos de azul, de rabicho solto, vão levando a um trote arquejante para os yamen do Estado; precede-os uma criadagem maltrapilha que ergue ao alto rolos de seda com inscrições bordadas, insígnias de autoridade; e dentro o personagem bojudo, com enormes óculos redondos, folheia a sua papelada ou dormita de beiço caído...

A cada momento parávamos a olhar as lojas ricas, com as suas tabuletas verticais de letras douradas sobre fundo escarlate: os fregueses, num silêncio de igreja, subtis como sombras, vão examinando as preciosidades – porcelanas da Dinastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins, sedas, armas marchetadas, os leques maravilhosos de Swa-Ton: por vezes, uma fresca rapariga de olho oblíquo, túnica azul, e papoulas de papel nas tranças, desdobra algum raro brocado diante de um grosso chinês que o contempla beatamente, com os dedos cruzados na pança: ao fundo o mercador, aparatoso e imóvel, escreve com um pincel sobre longas tabuinhas de sândalo: e um perfume adocicado, que sai das coisas, perturba e entristece...

Eis aqui a muralha que cerca a Cidade Interdita, morada santa do imperador! Moços nobres vêm descendo do terraço de um templo onde se estiveram adestrando à frecha. Sá-Tó disse-me os seus nomes: eram da guarda selecta, que nas cerimónias escolta o guarda-sol de seda amarela, com o dragão bordado, que é o emblema sagrado do imperador. Todos eles cumprimentaram profundamente um velho que ia passando, de barbas venerandas, com o casabeque amarelo que é o privilégio do ancião; vinha falando só, e trazia na mão uma vara sobre que pousavam cotovias domesticadas... Era um príncipe do Império.
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Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com