sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Eça de Queirós (A Ladainha da Dor)

Ao Sr. A. A. Teixeira de Vasconcelos

O pintor Lyser voltou da Boêmia com a sua doidice elegíaca. Pedi-lhe o retrato de Paganini como tu querias, mas ele disse-me em segredo que fora o Diabo que lhe guiara a mão naqueles traços, e que ia conservar uma lembrança do Diabo, seu velho amigo. Tem esse cartão numa pasta entre um desenho do velho Cláudio Loreno e um retrato de Dante.

Ontem, ao cair da tarde, estávamos ambos sentados junto da janela. O ar entrava todo emaranhado nos cordões verdes das trepadeiras; nós estávamos calados e abandonados à doçura divina das coisas.

O pobre Lyser, com os seus grandes cabelos caídos, tomou o retrato de Paganini e desenhou em volta toda a sorte de entrelaçamentos de folhagens, de penumbras delicadas, de dissipações de nuvens: e entre aquelas eflorescências escreveu os nomes de Dante, de Hamlet, de Romeu e de Sancho Pança, dizendo com a sua voz dolente: – Paganini tinha alguma coisa de todos estes homens. - E derramou-se em palavras sobre o espírito do músico onde havia materialismos de rei bárbaro e doçuras de apóstolos.

Depois, no cimo do cartão, desenhou a figura de Ofélia levada pela corrente, e um morcego; com as asas dobradas, e olhando tristemente, de entre as canas debruçadas sobre o rio, o corpo branco sumir-se levado serenamente como no seu elemento, e os grandes cabelos louros emaranhados nos musgos da água: e por baixo escreveu: Duvida Ofélia do meu amor, da verdade luminosa das estrelas, dos coloridos das folhas, da luz branca e séria do sol. E depois, com a voz séria: - Paganini sobretudo era um morcego. 

É assim aquele pobre Lyser com a sua triste loucura. Sabes que lhe morreu a irmã? No dia do enterro, Lyser acompanhou o corpo com a sua rabeca debaixo do braço e fustigando com o arco as ervas molhadas. O dia estava nublado. - Minha pobre irmã – disse ele - que nem pode levar presa no seu lindo vestido uma réstia de sol. - Sabes a religião que Lyser tem pelo sol. Passa dias inteiros deitado entre as frescuras dos caminhos, sob a grande luz sonora do sol. Nessa noite em que a irmã foi enterrada, ele foi sentar-se junto da cova tocando as velhas árias de Lully, e de vez em quando compunha as dobras de um xale que tinha lançado sobre a sepultura. Assim esteve perdido numa saudade mais doce que a lua, e mais profunda que a noite. Como o céu estava nublado, ele dizia, de vez em quando à cova: - Não tenhas pena, cá fora nem estrelas há.

Foram-no buscar de madrugada, e ele vinha lento, dependurando-se do fato do coveiro como uma criança, para ouvir os uivos dos cães e o chiar dos carros. Dias depois voltou ao cemitério e o coveiro não o deixou entrar o pobre Lyser ficou junto das grades com os olhos cheios de lágrimas. - uma coisa de pressa que tenho a dizer a minha irmã - dizia ele com a voz passada de suplicações. O coveiro estava dentro falando com uma mulher de cabelos cor de vinho; e como a quisesse prender num abraço bárbaro e rijo, a rapariga, ao fugir-lhe, caiu sobre uma sepultura toda coberta de violetas; o coveiro ergueu-a, sacudiu-lhe a terra dos vestidos, e deu com o pé rude na terra da sepultura resmungando: - Malditos tropeços!

O músico Berlioz ao voltar das bandas moles da Itália e das ilhas da Grécia de lívidos escarpamentos sem serenidades idílicas e sem mirtos - recebeu nas ruínas das Sorveiras, junto de Nizza, onde trabalhava na sua sinfonia de "Harold" toda cheia de mar, esta carta vinda de França.

Por fim, veio abrir a grade enferrujado ao pobre Lyser e com uma grande voz: – Vá, que já não são horas de entrar sem licença. - Lyser sumiu-se entre os ciprestes, debruçou-se sobre a cova e escreveu na brancura da pedra: Luísa, se lá em cima encontrares a estrela Vésper, pergunta-lhe de que tintas se faz o cor-de-rosa da tarde e os reflexos de roxo-pálido; preciso sabê-lo: ontem dei o teu xale branco a uma pobre: dize-me se queres que te traga alguns dos teus vestidos: olha, se passares de noite por estas alamedas não te aproximes da casa do coveiro, vive lá uma má mulher. 

Dias depois chamou-me e disse-me - Sabe? começo a acreditar que minha irmã morreu. Por isso, peço-lhe uma coisa, que quando tiver alguma camélia não a esmague, talvez seja feita do seio, da pobre rapariga. - E afastou-se, arrastando os seus sapatos como se estivessem pesados de água: mas de repente voltando-se e com a voz cheia de suplicações: - Nem as violetas, talvez sejam feitas dos olhos dela. - Então tomou-me pela manga e levou-me para entre árvores onde havia o sol, o coro das colmeias, os cheiros de feno e os coloridos frescos dos frutos: ele ia com a face toda tomada pela cor quente e fecunda da vida: - Não sabe? - dizia-me o pobre Lyser com a sua voz lenta e doce como um escorrer de mel: - não sabe? Muita rapariga que dizia as cantigas das eiras e dançava debaixo dos plátanos morre nos frios de Fevereiro. Há-de ter visto, por esse tempo, os pobres namorados que andam chorando sobre ás covas com às cabelos caldos. Então aqueles corpos das raparigas desfazem-se. Alguém que sabe e que vê aproveita aquelas formas e aqueles coloridos; da pele do seio, fazem-se pétalas de camélia, dos olhos tristes fazem-se violetas, da cor dos lábios fazem-se Os rainúnculos, dos hálitos perdidos fazem-se os cheiros bons, e do olhar, da meiguice, do desejo delas faz-se a Primavera, o doce ar das madrugadas de Maio. De modo que de noite as flores que estão nos vasos na sombra das alcovas conversam das suas existências passadas; falam das danças ruidosas à guitarra; daquela manhã em que a ponta do seio veio espreitar pela abertura do vestido os olhos do namorado; daquela tarde em que a face se vestiu de cor-de-rosa para receber a visita de um bigode louro; daquela noite em que as pálpebras castas acudiram aos olhos, que estavam perdidos e quase a dizer sim; e se uma noite espreitar as flores que estão nos castos paraísos das alcovas, há-de vê-las sair dos vasos, entrelaçarem as formas e os coloridos e fazerem na sombra a vaga semelhança de um corpo feminino.

É assim o pintor Lyser. Fez-se noite naquela alma, e, por isso, ela tem todas as qualidades da noite, o sombrio, o vago, o negro, o azul, o lânguido, o estrelado. 

Agora deseja morrer e ser enterrado numa paisagem casta, assoalhada, murmurosa,. para se julgar protegido e coberto pela alma errante do seu amigo Gáudio Loreno.

Quando a luz do sol se retira, prende-se, como um manto de seda que se arrasta entre ervas secas e ramagens, ao dorso de uma onda, ao cimo ruidoso de uma árvore, à proa de uma barca de pesca; assim aquele espírito ao retirar-se daquele corpo se prende ainda a tudo o que na vida é superior, e elevado, e meigo, ao amor, à melancolia, à compaixão, à arte.

Quando cheguei do Báltico soube que Paganini se retirara de França: tive a respeito dele grandes conversações com o rabequista Sica, que pensa em fazer para o Verão unia peregrinação pela Síria.

Estávamos horas debaixo das tílias, falando do quimérico espírito de Paganini, até que as estrelas apareciam, contemplativas e augustas. Sica contou-me toda a legenda idílica e bárbara de Paganinh os seus amores em Verona, aquela cantora empoada, de mãos macias e sentimentos velados e grandes sedas, e aquele abade de fivelas luzentes, com quem ela ia debaixo dos veludos silenciosos, num entrelaçamento de braços, em doce e azulada viagem pelo país de Citera. Depois contou-me toda a sua trabalhosa odisseia das prisões e dos degredos: aquelas noites em que ele, poderoso e solitário, entrava na confidência dos negros soluços do mar: noites dolorosas das lágrimas, em que aquele trágico homem estava, enroscado nas palhas do seu cárcere, vendo ao longe o mar Mediterrâneo amolecido por aquela moleza que escorre dos astros, e da voluptuosidade da noite desconhecida e fecunda.

Dizia-me Sica que Paganini lhe contava, que sempre às horas escuras via as fivelas do abade luzirem na noite e dizia Paganini: - Às vezes o remorso é bondoso, encarna-se em coisas que têm uma vida, uma carnação, um sangue, uma moleza, que se podem abrandar, a quem se pode suplicar; mas aquelas fivelas metálicas, inertes, rígidas, eram um remorso frio, surdo, inflexível, faziam-me subir ao rosto o suor do antigo Josafá.

Dizia também Paganini, que uma das suas grandes torturas no cárcere fora assistir pela visão à decomposição fria do corpo da pobre cantora Marietta.

Ele via aquele corpo sem óleos, nem sacramentos, debaixo das terras limosas e das crescências túmidas de seiva, esverdear-se entre as ossadas.

Via de noite perto de si aquela terrível decomposição das carnes, aquelas brancuras inertes, aquelas moles curvas sugadas pela terra.. Via, aterrado, os cardos, as papoulas, as gramíneas, os ciprestes serenos comerem a sua bem-amada fria, muda, esverdeada e inchada!

Então ali tomou o ódio da Natureza: ele atravessava sempre as frescas fecundidades, as searas, todas as verdes formas da vida., os campos e as granjas, com um horror judaico e místico. Só perdoava ao mar: e às vezes, depois, na Dinamarca, ia para junto das águas do mar do Norte, tocar na rabeca as velhas cantigas escandinavas e as baladas rúnicas; e desejava muitas vezes que depois de morto o seu corpo pudesse nadar durante a Eternidade nos verdes embalos da água.

Foram terríveis todos aqueles anos de prisão.

O rabequista Sica contou-me depois todas as viagens de Paganini com os estudantes da nova Alemanha, indo pelos burgos, pelos povoados, pelas cabanas de lareiras sonolentas, cantando às estrelas e dizendo, na sua rabeca, sob a lucidez do céu do Norte, as velhas baladas da Turíngia.

Contou-me o amor da duquesa de Weimar por Paganini; e como uma noite de concerto em duas cordas da rabeca ele disse o diálogo misterioso de duas vozes que se falavam debaixo do arvoredo, depois entre as sedas de cortinas ao fresco ar de um balcão, e depois ainda na terra debaixo das raízes dos ciprestes, e, por flui, indefinidas, ténues, luminosas, entre o encruzamento sagrado dos raios dos astros.

Era uma alusão desconhecida que encheu de lágrimas a duquesa de Weimar.

Aquele homem ultimamente tinha o peito cheio de mortos. Dele retirara-se o elemento humano; já não tinha a compaixão, o riso, o amor, a indignação, a paternidade, a emoção.

Lento, com os seus cabelos caídos, lívido, com as terríveis rugas da face semelhantes aos de uma rabeca, com as mãos transparentes, cheias de agilidade, e de deslocações com os seus grandes casacos escuros de pregas hieráticas, atravessava os povoados, os silêncios, as cenas resplandecentes, poderoso e solitário, procurando aos pés, sempre, uma cova onde não se esfolhassem árvores, onde não nascessem ervas, sem saber que na noite, na umidade, nas choças, nas pedreiras, nas estradas, nas costas, há uma raça que sofre, e que há beiços lívidos da fome, e que há febres silenciosas, e amores desertos, e suores de angústia, e apodrecimentos de honras, e uivos de almas aflitas, e lentos e frios esvaecimentos de pudores e de belezas.

Sica contou-me também o grande poder musical de Paganini e a sua atitude nos concertos cheia de abaixamentos e servilidades; e contou-me também, meu amigo, aquela noite gloriosa e flamejante em que se tocava a tua sinfonia de Romeu e Julieta, e cm que ele veio, entre os aplausos e as vozes de coroação, ajoelhar e beijar-te as mãos, dizendo com os olhos cheios de água - Tu serás Beethoven! 

Ultimamente, como sabes, tinha uma doença de garganta que o emudeceu; trazia então um livro branco em que escrevia o que pensava nas conversações da noite; aquela doença não o vergou mais; ele tinha já o silêncio estoicismo da alma, e refugiou-se na mudez estoicismo do corpo.

Passava então com o rabequista Sica horas inteiras tocando rabeca ou guitarra. Ultimamente preocupava-o muito o ter de deixar a sua rabeca só, depois de morrer; e escrevia no seu livro: Quando eu estiver para morrer pensar que a hei-de deixar aqui, entre estas mulheres de aço, estes jornalistas lívidos e os agiotas calvos, no meio desta multidão esfomeada de materialidades! que se há-de encher de pó a um canto, ela, cheia de alma e de legenda!

No entanto ele acreditava que no dia em que morresse a sua rabeca havia de estalar e os pedaços apodrecidos na terra ir-se-iam confundir com o corpo dele nos átomos das árvores, ou das estrelas, ou das águas; e escrevia então: Que felicidade poder ter a mesma folhagem, dar a mesma luz, lançar a mesma espuma.

Ultimamente, porém, olhava para a rabeca com um ar triste e descrente; às vezes tomava a guitarra e ia tocar nela para junto da rabeca, com um gesto de carícias brandas, com um lento correr de dedos como se estivesse vestindo as cordas com a harmonia viva que tirava da alma; ele queria pôr todos os seus interiores divinos naquele gemer de guitarra, para fazer morrer de ciúmes a sua velha rabeca abandonada.

Por esse tempo, um dia que ele estava com Sica, escreveu assim: Já me não fio na minha rabeca; acredito que ela não há-de lamentai a minha morte; não morre, não! Há-de dar-se ao primeiro que a tomar nos braços; há-de dar-se com sufocações lascivas, e dizer-lhe os mesmos segredos místicos, voluptuosos e iluminados que me dizia a mim: que importa à rabeca que o pobre músico apodreça debaixo da terra? Ele escrevia isto com os olhos molhados de água.

Ultimamente o músico Sica necessitou ir à costa normanda, porque tinha lá seu pai, velho marinheiro, morrendo junto das águas; e quando voltou coberto de lutos e soluços, disseram-lhe que Paganini tinha partido para o Sul e o sr. Georges Harrys todo corado de saúde para as bandas do Hanover. Adeus, não te demores em Nizza, acaba depressa a tua sinfonia do Harold e recomenda-me ao nosso velho amigo - o Mar.

Tempo depois o homem que tinha mandado esta carta recebeu outra de Berlioz.

Estou ainda todo frio das visões desta noite. Sabes que moro nas Sorveiras, que são umas ruínas junto do mar, pedras bem conhecidas por toda a populaça do ar: abrigam-se ali, como numa pousada, os viajantes sombrios da atmosfera, que são as chuvas esguedelhadas, os ventos uivadores, os granizos que escarnecem, as moles brumas e os nevoeiros. Em redor estão espalhados os casebres dos pescadores todos conchegados como as ovelhas quando anda temporal no monte; a costa é terrível e no entanto às vezes o mar tem serenidades só semelhantes ao calmo olhar de um idiota.

Este povo trigueiro de pescadores sai logo de madrugada para os embalos da água nas suas lanchas esguias, carunchosas, todas cheias de legenda e do cheiro das pescas: logo na alvorada se sente em baixo, junto da voz da maresia, aquelas cantigas fortes de deitar redes, robustas como calabres, e sãs como o sol. É uma bela vida! Durante o Verão, nas sestas silenciosas do mar todos andam na pesca, os velhos, as crianças rotas, resplandecentes e sujas, e as mães de forte seio essas belas mulheres da costa da Itália que eram tão desejadas pelos marinheiros gregos e fenícios, duros e. calvos, que tinham visto Mileto e Abido e Corinto.

Agora que o Outono começa, esta pobre gente deixa as redes rasgarem-se ao vento, e vai para o interior dos povoados juntar-se nos campos à pobre gente curvada que lavra e que semeia.

Ontem fui, numa barca de pescador, até ao ponto em que o Var deságua. Sabes que é neste tempo que as pombas emigram para o Sul; reúnem-se em bandos gemedores e vão por cima do Mediterrâneo fazendo nódoas brancas pelo ar azulado. Quando voltei, o Sol descia: o barco vinha levado de um modo silencioso e casto pelos serenos embalos ondulosos. o mar tinha uma serenidade olímpica.

Eu tinha-me abandonado às molezas da tarde, e todo estirado à popa via o céu cobrir-se de uma cor rosada, como de um rubor de castidade. As estrelas começavam a aparecer; donde vinham elas? E donde é que vem a noite de tão longe que vem suada de luz? Eu via-as tremer e pensava que elas deviam ter frio e medo, lá em cima, nas solidões, sem deuses. Àquelas horas também aparecem as ondinas na água; quem sabe se as estrelas são mulheres de um elemento desconhecido, que vêm de noite em sereias sagradas celebrando um rito elegíaco? Quem sabe se são árvores agitadas por um vento, que deixam cair estes negros frutos, a melancolia, o amor, a sensualidade?

Depois ri-me destas imaginações; mas no meio do Mediterrâneo, ao anoitecer, num barco de pesca, vendo ao longe as linhas moles da costa de Itália, e sobre os montes os fogos dos pastores, não podia ver as estrelas como nas verdades e nos positivismos modernos e esqueci Arago, Berthelot e o velho Laplace.

E depois pensava como desejava morrer, que era nos braços da bem-amada; sol da minha natureza, sem dores mordentes, sem febres silenciosas, e ir assim entre as fulgurações do desejo e os deslumbramentos da alma e os beijos vermelhos e transfiguradores e os entrelaçamentos divinos sob o seu olhar santo, ir num lento desmaio da carne para a frialdade da terra e ali sentir-me lentamente dissipar pelas umidades fecundas, pelas seivas brancas, pelas espumas das nascentes, pelas raízes das florescências!

Ora quando assim vínhamos, vi na linha escura e áspera da costa uma massa sonora de arvoredo e por entre a sombra uma luz elegíaca.

- Que luz é aquela, meu velho? - disse eu da popa.

O pescador suspendeu as rijas ondulações dos remos, que ficaram direitos, escorrendo, todos esverdeados dos musgos da água.

- Aquela luz, senhor, é da casa das Serenas; a estas horas está ali abandonado um pobre homem que morreu lá ontem. Tinha chegado aqui há pouco, e era mais amarelo que a cera. do altar; até na costa diziam os velhos que ele se vendera ao Diabo; Deus me perdoe por falar assim nisto, de noite, em cima das águas. Ah! senhor, diziam que tocava na sua rabeca maldita que nem o Céu... Chamavam-lhe Paganini.

E o pescador meteu os remos na água, cantando com um embalo da voz:

Altra volta gieri bele
Blanch'e rossa com'un fiore
Ma ora nó. Non san piu biele
Consumatc dal'amore.

E depois voltando-se e com a voz ensurdecida pelo clamor das marés:

– E os padres agora não lhe querem cantar as suas ladainhas e enterrá-lo em terra santa. Se fosse meu parente e tal sucedesse ia para o fundo do mar: debaixo da água anda muito corpo de patrões e pilotos: eles não morreram, não; andam ainda vivos; e quando um pobre homem que tem mulher e filhos deita as suas redes, em dia de vento, quando o peixe anda arredio, eles costumam afugentar a pescaria com ramos de coral para as bandas da rede!... - O pescador falava assim lentamente com a voz pesada da religião das legendas.

Eu levava os olhos rasos de água e pensava que nunca tinha ouvido tocar o triste Paganini: sempre que ele deu os seus concertos, não sei que frias necessidades me prendiam longe da França.

Entrei nas Sorveiras com o peito cheio de friezas e de mortalidades. Quis trabalhar mas sentia-me dissolvido na pesada materialidade das coisas. 

Tomaram-me uns moles cansaços e fiquei sem pensamento, sem desejos, inerte e silencioso como um pombal donde fugiram todas as pombas. Sentia apenas o miar dos gatos lascivos e os uivas dos cães que andam de noite na praia esfomeados. O mar estava pesado de gemidos sob a noite lenta e mística.

Ora quando assim estava ouvi distante, como vindo dos lugares hieráticos das nuvens e das vias-lácteas, o gemido de uma rabeca. - Quem é que, àquelas horas, numa costa áspera de ventos imensos, quando os pescadores dormem nas frialdades da cinza da lareira enrodilhados nos farrapos dos mantéus, tocava assim rabeca junto do mar?

Fui amedrontado ao meu antigo baldo gótico e olhei pelas transparências doentias da noite. Nada. As ondas choravam o seu choro místico e as estrelas estavam na sua imobilidade donde se exalam religiões. Cerrei as portadas e voltei com o peito sacudido por um soluço de medo para junto do braseiro: então ouvi de novo aquele som triste da rabeca estender-se lentamente pelo mar como uma névoa sonora. Fiquei todo tomado de tremores e de frios: e ouvi então distintamente com os ouvidos da carne a música de uma rabeca acompanhada surdamente pelo mar.

Ao princípio foi uma melodia de fresca serenata, que a água acompanhava com um marulho úmido e alegre: e ao mesmo tempo ao longe havia o gemer rítmico do vento.

Então durante uns momentos eu ouvi unia música estranha da rabeca, acompanhada pelo mar, onde havia gemidos, dilacerações. e vozes pesadas de lágrimas, e melodias trágicas com dores da Natureza, e sempre por entre os sons alegres e meigos uma tristeza surda e lenta corria como a água corre lodosa entre os juncos, os canaviais e as eflorescências.

Havia vozes de rabeca aflitas e bárbaras: e às vezes dois mugidos sinistros do mar pareciam presos por uma melodia da rabeca, delgada, ténue, clara, como um fio de som. Eu não te sei dizer o que era aquela música sobrenatural, elegíaca, selvagem, trágica, suave, e escarnecedora.

Por fim de repente toda aquela orquestra poderosa se calou, como um bando de abutres e aves de noite gritando aflitas, com trágicas palpitações de asas, que vêm pousar num silêncio, sobre um rochedo das águas. Então senti, de entre aquela amontoação apocalíptica de harmonias, desprender-se solitária a voz da rabeca, e vir de leve tocar junto do meu balcão com meiguice, com moleza, com dissipação de lágrimas - as variações do Carnaval de Veneza.

Ninguém me pode tirar do coração que foi a alma de Paganini que deixou o seu corpo na natureza solitária das Serenas, e veio dizer o adeus da música ao seu velho amigo.

Adeus, meu meigo artista: sofre e transfigura-te pela dor: eu aqui estou cheio de saudade da nossa doce França, junto das águas tristes do Mediterrâneo.

Creio que depois da noite de ontem, nunca mais terei o riso sonoro e são. Adeus: dei os teus recados ao Mar, que te manda como voz de saudação o terrível temporal que agora vai na costa.
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O homem a quem esta carta foi escrita era um meigo artista, um pintor como Lantara, e assim descuidado, vivendo na boemia errante das misérias, das jovialidades e das Primaveras: mas a alma não se maculou com os contatos do corpo: no meio daquelas loucuras esteve sempre como uma pomba adormecida. 

Aquele pobre rapaz vivia numa trapeira, onde trabalhava sem sol, naquelas alturas silenciosas e castas onde vivem e crescem as flores do bem: depois enlouqueceu e foi recolhido a um hospital: e ali era sagradamente velado por uma enfermeira doce, delicada e branca como uma Virgem de ouro fino de uru livro de legendas: o pintor, que, como o seu amigo Lyser, ainda depois de doido desenhava, pediu um dia à enfermeira a sua touca engomada e lisa, e com um lápis desenhou ali, como um agradecimento de alma, toda a sorte de delicadas imaginações - asas abertas, coroas de folhagens, atidas que vinham beijar um pé branco, coroações de caridades. Uma noite a enfermeira ouviu um gemido, e veio encontrar o pobre pintor com as mãos postas diante de um retábulo alumiado; a doce rapariga cuidou no seu coração que ele se encomendava à Virgem; escutou: o pobre rapaz doido estava rezando ao seu velho amigo Cláudio Loreno; quando sentiu a enfermeira, voltou-se, e disse-lhe quase a chorar: - Deixo o meu corpo aos rios, às árvores, às abelhas, aos montes, às searas, a toda a Mãe-Natureza. Depois curvou-se, beijou a orla do vestido da enfermeira e ficou-se enroscado no chão, nas últimas frialdades. A enfermeira pousou a luz do retábulo junto do corpo, tirou a toalha da Virgem e estendeu-a sobre a face pálida do triste, transfigurada nas últimas formosuras. Ao outro dia de madrugada, quatro homens que riam das farsas da taberna, e cantavam más cantigas, levaram aquele branco corpo à vala dos pobres.

Fonte:
Eça de Queirós. Prosas bárbaras.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

XIV Concurso de Trovas da UBT-Maranguape/CE/2018 (Prazo: 31 março 2018)

Prazo: Até 31.03.2018 (recebidas)

Promoção: UBT-Maranguape, ACLA (Academia de Ciências, Letras e Artes de Columinjuba), Delegacia do CRC-CE de Maranguape, Cascatinha Clube de Serra, Programa Brasil Trovador – Rádio Maranguape FM 106, [www.maranguapefm.com.br]

REGULAMENTO

1. Modalidade e temas – Trovas em português. 

O tema deve constar claramente na trova – Trova inédita.

1.1. Nacional/Internacional

Tema: Senhor (lírica/filosófica) – [referindo-se a Deus] 
Duas trovas 
Veteranos e Novos Trovadores.

1.2.Estadual [inclusive para trovadores de Maranguape] 

Tema: Senhor (lírica/filosófica) – [referindo-se a Deus] 
Duas trovas 

1.3. Municipal [exclusivo para trovadores de Maranguape, estudantes e acadêmicos da ACLA e membros da UBT-Maranguape]

Tema: Gratidão (lírica/filosófica) 
Duas trovas inéditas.

OBS: a) Máximo de duas trovas por tema para cada concorrente, enviadas por um dos sistemas: i) sistema de envelopes ou; ii) por e-mail.

b) Pelo sistema de envelopes deverá constar no envelope pequeno (branco), acima o tema e o âmbito. Abaixo da trova digitada ou datilografada, a categoria para Novo Trovador. 

Enviar para:
XIV Concurso de Trovas - UBT-Maranguape
A/C Francisco Lopes
Rua Major Agostinho, 558 – Centro
CEP: 61940-090 – MARANGUAPE/CE

Remetente: Luiz Otávio
O mesmo endereço acima

c) Por e-mail: 

Enviar para o fiel depositário – 
Gutemberg Liberato: ubt.ceara@gmail.com 

As trovas recebidas por e-mail serão copiadas para o coordenador, sem o nome e o endereço do concorrente.

d) Sistema de e-mail: o tema, as trovas, a categoria Novo trovador e o âmbito pela qual concorre o trovador, nome e endereço completo deverão constar no corpo do e-mail.

e) Novo Trovador é aquele trovador que não obteve até a divulgação deste regulamento 03 (três) classificações em concursos de trovas oficiais da UBT em nível nacional.

f) O simples envio das trovas autoriza a publicação das trovas classificadas e não eliminadas. O não cumprimento de quaisquer dos itens acima descritos implicará na desclassificação automática da trova.

3) Prazo: Até 31.03.2018 (recebidas pelo e-mail ou pelo correio).

4) CLASSIFICAÇÕES: 
3 vencedores, menções honrosas,3 menções especiais, 3 destaques para cada um dos temas, veteranos e novos. 

Nos âmbitos estadual e municipal haverá classificação por grupos: 
a) Estudantes; 
b) Professores e funcionários de escolas; 
c) Membros da ACLA e UBT-Maranguape.

5) PRÊMIOS: 
Troféu para o 1º lugar em cada categoria e temas. 
Diplomas aos 12 classificados de cada tema/categoria. 
Os diplomas serão enviados por e-mail.

6) PREMIAÇÃO: 
Prevista para ocorrer na celebração de aniversário da ACLA, dia 27.05.2018 (a confirmar).

Maranguape, CE, 11 de novembro de 2017

Fco. Lopes (Dedé Lopes) - Pres. UBT-MARANGUAPE / Secretário da ACLA e Coordenador do Concurso.

Luís Murat (Poemas Escolhidos)

PENAS PERDIDAS

Perguntas por que meus versos
Choram, em vez de sorrir...
É que eles são universos
Que estão quase a se extinguir.

Tristes deles, minha filha,
Tristes deles, minha irmã,
Raro é aquele que brilha,
Quando desponta a manhã.

São pequeninos fragmentos,
Pedaços da minha cruz,
Errando ao sabor dos ventos,
Como planetas sem luz.

As lágrimas que vieram
Umedecer este chão,
Num coração estiveram
Que já foi meu coração.

Pobre estrela desgarrada
Foi essa estrela de amor,
Hoje de todo apagada
No seu fumeiro de dor.

Irrompa, embora, no Oriente,
Qualquer aurora, qualquer,
Quem tem o Ocaso, somente,
Não vê a aurora nascer.

Houve uma dama formosa
Que meu coração colheu,
Como se colhe uma rosa
Mal o dia amanheceu.

Que quadra feliz foi essa!
Que meninice ideal!
O sonho que assim começa,
Quase sempre acaba mal!...

Um dia, a dama querida
Para outro país partiu...
Não cicatriza a ferida
Que uma ingratidão abriu.

Ela sumiu-se entre os astros,
Sem que a pudesse alcançar...
Quem é que, andando de rastros,
Pode um pássaro apanhar?
...................................................

O que hoje faço, portanto,
É fazer o que não fiz:
Enxugar, a furto, o pranto,
E fingir que sou feliz.

EM MEIO DO CAMINHO

Quando à varanda de ouro e nácar da poesia
Chega o fantasma negro e triste de meu verso,
Que nos olhos, outrora, a dúvida trazia,
Como as ruínas de ignoto e lúgubre universo,
Paira, branca, no azul, a sua imagem fria.

Minha estrofe soluça, a lágrima murmura,
Timidamente ao meu ouvido um ai queixoso,
Deixando atrás de si aberta a sepultura,
Onde - coveiro mau - vou enterrar o gozo
Da primeira saudade e da última ventura.

A demência, enroscada aos meus cabelos, ruge,
Desatrelando os seus mastins e as suas fúrias.
Arreminado o vento, entre os parcéis estruge:
E eu venço a preamar de todas as injúrias,
Apesar de seu lodo e da sua babuje.

Porão escuro e vil, de mortos carregado,
Vai minh’alma sulcando oceano fora. Rudo,
Rebenta o temporal às nuvens agarrado.
Debalde ao mar o horror dos meus nervos sacudo,
Debalde ao céu num ai subo aterrorizado!

Onde estais, onde estais, quimeras fugitivas?
Onde estais, onde estais, fugitivos amores?
Vejo-vos, sem clamor, nas sombras redivivas
Que vêm em procissão regar as minhas dores
- Desbotadas cecéns, pálidas sempre-vivas!

A antífona queixosa onde até hoje mora,
Como em cárcere de ouro, um astro prisioneiro,
Minha pobre e infeliz alma de poeta, agora,
Ao ouvir da saudade o verso derradeiro,
Com o verso delira e com o verso chora.

Olgas e torrentões trajaram-se de luto;
Secou-se o rio, a voz das árvores calou-se.
Um rumor tumular erriça o monte abrupto...
E o fruto, a sazonar no coração, mais doce
Que o mel, por que ficou tão amargo esse fruto?...

O que se vê na terra, e se entrevê no espaço
É uma projeção do que se passa n’alma.
Ah! tivesse-a ao meu seio, ah! tivesse-a ao meu braço,
Que voltaria a luz resplandecente e calma
À estrofe, onde ainda escuto o ruído de seu passo.

Seu nome tem a cor de um céu triste e remoto:
Tem nas letras azuis um arco-íris aberto;
Quando o ouço pronunciar, em cada letra noto
Um rio que parece entrar por um deserto,
Buscando a esfera ideal de algum país ignoto.

Seu nome, sua voz, tudo me encanta o ouvido,
E, em ídolos, consagra a ânsia desse transporte,
A luz dessa visão, o eco desse gemido...
E quando julgo entrar os penetrais da morte.
Eis-me à roda fatal, de novo, restituído!

E a isso chamam viver! Que suprema ironia!
Dorme a estrela no céu, como qualquer carcaça
No fundo de uma vala ou de uma galeria
De mortos, onde o mocho um epitáfio traça,
Quando num crânio pousa ou sobre um sonho pia!...

A luz de que nos serve? O sol que nos aquece,
De que nos serve o sol, se andamos solitários.
Sem teu bordão, ó fé, sem teu Calvário, ó prece?
A religião da infância, o incenso dos santuários,
Bem depressa se esvai, bem depressa se esquece!...

IRONIA DO CORAÇÃO

Como estavas formosa entre o mar e a minh’alma!
Ias partir... no céu vinha rompendo a aurora.
Eu te pedia - luz, tu me pedias - calma;
Eu te dizia: - “Crê”; tu me dizias: - “Chora!”

Beijei-te as mãos, beijei-te os pequeninos pés,
Como os lábios de um padre um assoalho sagrado.
Longe, ouvia-se ainda, entre os caramanchéis,
A melodiosa voz do luar apaixonado.

“É a voz do nosso amor, nos esponsais das flores.
Não chores mais, acalma a tua ansiedade.
Assim, como hei de eu dar trégua às minhas dores,
E recalcar no peito esta amarga saudade?”

Partiste... Sobre mim cerrou-se a escuridão.
E eu não ouso subir aos meus sonhos agora,
Porque, irônico e mau, me grita o coração,
Quando não creio: “crê!”, quando não choro: “chora!”

Fonte:
MURAT, Luís. Poesias escolhidas. Rio de Janeiro/RJ: J. Ribeiro dos Santos, 1917.

Luís Murat (1861 – 1929)

Luís Murat, (Luís Morton Barreto Murat), jornalista, poeta, filósofo e político, nasceu em Itaguaí, RJ, em 4 de maio de 1861, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 3 de julho de 1929.
Era filho do Dr. Tomás Norton Murat. Após concluir os estudos básicos no Imperial Colégio de Pedro II, segue para São Paulo e matricula-se no Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito, bacharelando-se em 17 de março de 1886. Sua estreia literária deu-se em São Paulo, em 1879, no Ensaio Literário, órgão do clube literário Curso Anexo, redigido por ele e outros colegas. Mudando-se para o Rio de Janeiro, abraçou o jornalismo, e seus artigos captavam as atenções gerais. Publicou seu primeiro livro de poesias, Quatro poemas, em 1885. Fundou o jornal Vida Moderna (10 julho de 1886 a 25 junho de 1887) com Artur Azevedo, no qual colaboravam Araripe Júnior, Xisto Bahia, Coelho Neto, Alcindo Guanabara, Guimarães Passos, Raul Pompeia e outros. Depois colaborou na Cidade do Rio, de José do Patrocínio, em A Rua, com Olavo Bilac e Raul Pompéia, e em outros jornais cariocas. Escrevia também sob o pseudônimo Franklin. Jornalista combativo, empenhou-se a fundo nas campanhas da Abolição e pelo advento da República.
Em janeiro de 1890, publicou o poema dramático A última noite de Tiradentes, em folhetim, na Gazeta de Notícias. Nesse ano, foi eleito deputado pelo Estado do Rio e atravessou várias legislaturas. Foi secretário geral do governo fluminense e escrivão vitalício da provedoria da então Capital Federal. Insurgiu-se contra Floriano Peixoto, recebendo ordem de prisão, mas as imunidades parlamentares o salvaram. Foi, então, para o jornal O Combate e atacou violentamente o presidente.
Na Revolta da Armada, em setembro de 1893, redigia o jornal que publicou o manifesto do Almirante Custódio José de Melo. Esteve com os revoltosos na esquadra, mas deixou-se prender quando sentiu desvirtuado o intuito da revolução. Foi julgado e absolvido por unanimidade no Paraná. Seu artigo “Um louco no cemitério”, atacando frontalmente Raul Pompeia, por seu discurso no enterro de Floriano, foi a causa imediata do suicídio do autor de O Ateneu, no dia de Natal de 1895.
Autor de poesia romântica, liga-se acidentalmente à geração parnasiana, permanecendo meio difuso e pouco claro em suas manifestações como poeta. Sofreu influências dos românticos Victor Hugo e Théophile Gautier, que se evidenciam na tendência para as imagens fulgurantes e para a exaltação verbal, e dos poetas nórdicos, ao expressar certas notas profundas, obscuridades e uma atmosfera de espiritualismo. Era um poeta culto e investigador, e fez a poesia sem parecer preocupado em filiar-se a uma escola.

Bibliografia

Quatro poemas, 1885; A última noite de Tiradentes, 1890; Ondas, 1ª. Série, 1890; Poesias, 1892; Ondas, 2ª. Série, 1895; Sara, 1902; Ondas, 3ª. Série, 1910; Poesias escolhidas, 1917; Ritmos e ideias, 1920.

Fonte:

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Poetas Africanos III

Fotos dos poetas deste número
Não foi encontrada foto de Orlando Mendes

AGOSTINHO NETO
Angola

  Com os olhos secos

Com os olhos secos
- estrelas de brilho inevitável
através do corpo através do espírito
sobre os corpos inanimados dos mortos
sobre a solidão das vontades inertes
nós voltamos

Nós estamos regressando África
e todo o mundo estará presente
no super-batuque festivo
sob as sombras do Maiombe
no carnaval grandioso
pelo Bailundo pela Lunda

Com os olhos secos
contra este medo da nossa África
que herdamos dos massacres e mentiras

Nós voltamos África
estrelas de brilho irresistível
com a palavra escrita nos olhos secos
- LIBERDADE.
____________________

ARMANDO ARTUR
Moçambique

    Pelo dever

    de resistir e caminhar
    pelos destroços da nossa utopia,
    eis-nos aqui de novo, acocorados,
    aqui onde o tempo para
    e as coisas mudam.

    E para que o nosso sonho renasça

    com a levitação do vento e do grão,
    eis-nos aqui de novo,
    passivos como os espelhos,
    no tear da nossa existência.

    Este sempre será

    O nosso amanhecer.
    E a nossa perseverança
    é como a da erva daninha
    que lentamente desponta na pedra nua."
____________________

DAVID MESTRE
Angola
  
Espera

 Existo acento de palavra, carapinha
 recordação áspera de monandengue,
 mapa de conversas na visitação da lua,
 grávida luena sentada no verso da fome.

 aqui esqueço África, permaneço
 rente ao tiroteio dialeto das mulheres
 negras, pasmadas na superfície do medo
 que bate oblíquo no quimbo quebrado.

 num gabinete da Europa, dois geógrafos
 vão assinalar a estranha posição
 dum poeta cruzado na esperança morosa
 das palavras africanas aguardarem acento.
____________________

TOMAZ VIEIRA DA CRUZ
Angola

Fruta

Quitanda de fruta verde,
dá-me um gomo de laranja
para matar a sede.

Ou, então, será melhor
dar-me um veneno qualquer
porque eu ando perturbado
e o meu sonho anda queimado
por uns olhos de mulher!

- Minha senhora, laranja,
limão, fresquinho, caju,
ananás ou abacate!...

E a quintandeira passou,
saudável, viva, graciosa,
com uma flor desfolhada
no seu sorriso escarlate.

E no ar um som de musica ficou
e um perfume de fruta
que não matou minha sede

Ó agridoce quitanda
da fruta verde!...
____________________

ORLANDO MENDES 
Moçambique

História
        
Diz a História que descendo
De celtas, mouros e visigodos.
Descendo e deles herdei todos
Os caracteres fundamentais
E talvez herdasse alguns mais
    Da mestiçagem de outras raças
    Que fizeram guerras, combatendo
    Conquistaram e perderam praças.
    Diz a História e não tenho
    Do contrario uma prova séria
    Em testamento que a revele.
    E admito pois que o tamanho,
    O rosto, o sangue, a cor da pele,
    A fria razão e o instinto,
    Adquiri em séculos de Ibéria
    Para ser o que penso e sinto
    O que mostro e o que oculto,
    Excitável carne e uma voz
    Memória de um país adulto
    Que se não cala por não trair-me
    No idioma de meus avós,
    Para ser a mão direita firme
    Que enche de palavras o papel,
    Perpétuo aprendiz que sou eu
    De velho ofício sem licença.
    Admito. E as datas festejo
    E retomo lutas que não venço
    E amo nas horas do desejo
    Com o mesmo requinte que deu
    Origem de mim à Criação
    E bebo o vinho e como o pão
    Da minha sede e da minha fome.
    Admito. E por isso, deponho.
    Contudo, nada herdei que dome
    A grandeza nova que transmito,
    Não apenas sede, fome e sonho
    De vinho, de pão ou de infinito,
    Desejo, posse e fecundidade
    Coragem forjada no segredo
    Medo que se chore ou se brade
    Guerra de amigo ou de inimigo,
    Não propriamente o enredo
    Mas esta seiva elementar
    De África nos versos que digo
    E os homens a saibam cantar.
____________________

NELSON SAUTE 
Moçambique

    A ignorância do poeta

    O poeta contempla o mar
    no agoniado tédio da tarde.
    Caminha ao som de seus passos
    ombros recurvos mãos nos bolsos
    perseguindo a sua sombra.
    O cão que lhe roça a solidão
    não tolhe o verso escrito da memória.
    Os namorados não o fitam.
    De esguelha admira a inocência
    dos gestos amorosos.
    À sombra de jacarandás
    percorre o trajeto
    sobre as folhas silenciadas.

    O poeta ignora, mas a direção
    leva-o ao coração dos homens.

Théophile Gautiér (A Cafeteira)


Vi sob sombrios véus
Onze estrelas nos céus,
A lua, o sol também,
Me reverenciando,
E silenciando,
No meu sono e além.
A visão de José

I
Ano passado. Fui convidado, junto com dois amigos de ateliê. Arrigo Cohic e Pedrino Borgnioli, para passar alguns dias numa fazenda no interior da Normandia.

O tempo, que, na nossa partida, prometia ser maravilhoso, resolveu mudar de repente, e caiu tanta chuva que os caminhos esburacados por onde andávamos eram como o leito de uma torrente.

Afundávamos na lama até os joelhos, uma camada espessa de terra gorda se grudara nas solas de nossas botas, e seu peso retardava tanto nossos passos, que só chegamos no nosso destino uma hora depois do pôr-do-sol. Estávamos exaustos; por isso, nosso anfitrião, vendo o esforço que fazíamos para reprimir os bocejos e manter os olhos abertos, tão logo acabamos de cear, nos mandou levar cada um a seu quarto. O meu era grande; senti, ao entrar, uma espécie de calafrio, pois me parecia ter entrado em um mundo novo.

De fato, tinha-se a impressão de estar na época da Regência, diante da bandeira da porta de Boucher representando as quatro estações, os móveis sobrecarregados de ornamentos rococó de muito mau gosto, e os tremós dos espelhos pesadamente esculpidos. Nada estava fora do lugar. A penteadeira, coberta de caixas de pentes, de almofadas de pó-de-arroz, parecia ter sido usada na véspera. Dois ou três vestidos furta-cor, um leque pontilhado de lantejoulas em prata cobriam o assoalho bem encerado, e, para meu grande espanto, uma tabaqueira de esmalte aberta sobre a lareira estava cheia de fumo ainda fresco.

Só notei essas coisas depois que o empregado, colocando o castiçal na mesa-de-cabeceira, me desejou um bom sono e, confesso, comecei a tremer como uma folha. Despi-me prontamente, deitei-me, e, para acabar com tais temores bobos, logo fechei os olhos, virando-me para o lado da parede.

Mas foi impossível ficar nessa posição: a cama se agitava sob meu corpo como uma onda, minhas pálpebras se retraíam violentamente. Fui obrigado a me virar e ver. O fogo que ardia lançava reflexos avermelhados no aposento, de maneira que se podia distinguir sem esforço os personagens da tapeçaria e os rostos dos retratos enfumaçados pendurados na parede. Eram os antepassados do nosso anfitrião, cavaleiros em armaduras de ferro, conselheiros de peruca e belas senhoras de rosto pintado e cabelos empoados de branco, segurando uma rosa na mão.

De repente, o fogo adquiriu um estranho grau de atividade, um clarão esbranquiçado iluminou o quarto, e vi claramente que o que eu tomara por vãs pinturas era a realidade; pois as pupilas desses seres emoldurados se moviam, cintilavam de forma singular; seus lábios se abriam e se fechavam como lábios de pessoas que falam, mas eu nada ouvia além do tique-taque do relógio e do assobio de vento de outono. Um terror incontrolável se apoderou de mim, meus cabelos se arrepiaram na testa, meus dentes se entrechocaram a ponto de quase quebrar, um suor frio inundou todo o meu corpo. O relógio bateu onze horas. A vibração da última badalada retiniu longamente, e quando cessou por completo...

Ah! não, não ouso dizer o que aconteceu, ninguém acreditaria em mim e me tomariam por louco. As velas se acenderam sozinhas; o fole, sem que nenhum ser visível lhe imprimisse movimento, pôs-se a soprar o fogo, chiando como um velho asmático, enquanto as pinças remexiam os tições e a pá revolvia as cinzas. Depois, uma cafeteira atirou-se da mesa sobre a qual estava colocada e dirigiu-se, mancando, para o fogo, onde se meteu entre os tições. Em alguns instantes, as poltronas começaram a se mover, e, agitando seus pés retorcidos de maneira surpreendente, vieram se acomodar em volta da lareira.

II

Não sabia o que pensar do que via; mas o que estava por ver era ainda mais extraordinário. Um dos retratos, o mais antigo de todos, de um gordo bochechudo de barba grisalha, parecido, a ponto de ser confundido, com a imagem que eu tinha do velho Sir John Falstaff, tirou, com uma careta, a cabeça de seu quadro, e, depois de muito esforço, tendo passado os ombros e a barriga rotunda por entre as estreitas hastes da moldura, pulou pesadamente no chão. Nem bem tomou fôlego e tirou do bolso de seu gibão uma chave de uma pequenez impressionante, soprou sobre ela, para se assegurar de que a cavidade estaria bem limpa, e a utilizou em todos os quadros, um após outro. E todas as molduras se alargaram de modo a deixar passar facilmente as figuras que continham.

Padrecos janotas; senhoras idosas, secas e amarelas; magistrados com aspecto grave, envoltos em grandes togas negras; jovens fidalgos de meias de seda, calções de lã preta, com a ponta da espada erguida; todos esses personagens apresentavam um espetáculo tão bizarro que, apesar do meu pavor, não pude deixar de rir. Esses dignos personagens se sentaram; a cafeteira pulou agilmente para a mesa. Tomaram o café em xícaras japonesas de porcelana azul e branca, que acorreram espontaneamente de cima de uma escrivaninha, cada uma delas munida de um torrão de açúcar e uma colherinha de prata. Depois de tomado o café, xícaras, cafeteira e colheres desapareceram ao mesmo tempo e começou a conversa, certamente a mais curiosa que jamais ouvi, pois nenhum desses estranhos interlocutores olhava para o outro ao falar: todos tinham os olhos fixos no relógio.

Eu mesmo não conseguia desviar o olhar do relógio e me impedir de seguir o ponteiro, que caminhava para a meia-noite a passos imperceptíveis. Enfim, soou meia-noite; uma voz cujo timbre era exatamente o do pêndulo, fez-se ouvir e disse:

— Está na hora, é preciso dançar.

Toda a assembleia levantou-se. As poltronas recuaram por si mesmas; então, cada cavalheiro tomou a mão de uma dama, e a mesma voz disse:

— Vamos, senhores da orquestra, comecem!

Esqueci de dizer que o tema da tapeçaria era um concerto italiano de um lado, e do outro uma caça ao cervo na qual vários pajens tocavam trompa. Os picadores e os músicos, que até ali não haviam feito qualquer gesto, inclinaram a cabeça em sinal de assentimento. O maestro levantou a batuta, e uma harmonia viva e dançante ergueu-se dos dois lados da sala. Dançaram primeiro o minueto. Mas as notas rápidas da partitura executada pelos músicos não combinavam com aquelas reverências graves; por isso, cada casal de dançarinos, após alguns minutos, pôs-se a fazer piruetas como um pião alemão. Os vestidos de seda das mulheres, amassados nesse turbilhão dançante, emitiam sons de natureza peculiar; dir-se-ia o barulho de asas de um voo de pombos. O vento que se engolfava por baixo os inchava prodigiosamente, de modo que pareciam sinos dobrando.

O arco dos virtuoses passava tão rápido sobre as cordas, que jorravam centelhas elétricas. Os dedos dos flautistas se erguiam e baixavam como se fossem azougues; as bochechas dos picadores estavam infladas como balões, e tudo isso formava um dilúvio de notas e trinados tão apressados e de gamas ascendentes e descendentes tão intrincadas, tão inconcebíveis, que nem os próprios demônios seriam capazes de seguir tal compasso por dois minutos. Portanto, dava dó ver todos os esforços daqueles dançarinos para acompanhar a cadência. Eles pulavam, davam cabriolas, faziam semicírculos com as pernas, realizavam jetés battus e entrechats de três pés de altura, a tal ponto que o suor, caindo-lhes da testa sobre os olhos, lhes tirava as pintas e a maquiagem. Mas seu esforço era inútil, a orquestra estava sempre três ou quatro notas a sua frente.

O relógio bateu uma hora; eles pararam. Vi algo que me escapara: uma mulher que não dançava. Estava sentada numa bergère no canto da lareira e não parecia de modo algum tomar parte no que se passava ao seu redor. Nunca, nem em sonho, algo tão perfeito se apresentara aos meus olhos; uma pele de uma brancura deslumbrante, cabelos de um louro-acinzentado, longos cílios e pupilas azuis, tão claras e tão transparentes que através delas eu via sua alma, tão distintamente quanto uma pedra no fundo de um riacho. E senti que, se algum dia me acontecesse amar alguém, seria ela. 

Precipitei-me para fora da cama, de onde até então não conseguira me mover, e me dirigi para ela, guiado por alguma coisa que agia em mim sem que eu pudesse me dar conta; e me vi junto a seus joelhos, uma das suas mãos nas minhas, conversando com ela como se a conhecesse há vinte anos. Mas, por um prodígio bem estranho, enquanto eu lhe falava, ia marcando com uma oscilação de cabeça a música que não havia cessado de tocar; e mesmo estando no cúmulo da felicidade por conversar com uma pessoa tão linda, meus pés ardiam de vontade de dançar com ela. No entanto, não ousava convidá-la. Parece que ela compreendeu o que eu queria, pois, levantando para o mostrador do relógio a mão que eu não estava segurando, disse:

— Quando o ponteiro chegar ali, veremos, meu caro Théodore.

Não sei como ocorreu, não fiquei em absoluto surpreso ao ouvir ser assim chamado pelo meu nome, e continuamos a conversar. Enfim, a hora indicada soou, a voz com timbre de prata vibrou outra vez no quarto e disse:

— Ângela, você pode dançar com o cavalheiro, se lhe der prazer, mas sabe no que isso vai resultar.

— Pouco importa — respondeu Ângela, amuada.

E passou o braço de marfim em volta do meu pescoço.

— Prestíssimo! — gritou a voz. E começamos a valsar. O seio da jovem tocava o meu peito, sua face aveludada roçava a minha e seu hálito suave flutuava diante de minha boca. Nunca na vida sentira tamanha emoção; meus nervos estremeciam como molas de aço, meu sangue corria nas artérias como torrentes de lava e ouvia meu coração bater como um relógio preso as minhas orelhas. Entretanto, esse estado não tinha nada de penoso. Eu estava inundado de uma alegria inefável e gostaria de permanecer sempre assim, e, coisa admirável, ainda que a orquestra tivesse triplicado a velocidade, não precisávamos fazer esforço algum para segui-la.

Os espectadores, maravilhados com a nossa agilidade, gritavam bravo e com toda a força batiam palmas, que não emitiam som algum. Ângela, que até então valsara com energia e precisão surpreendentes, pareceu cansar-se de repente; pesava sobre meus ombros como se as pernas lhe tivessem faltado; seus pezinhos que, um minuto antes, roçavam o chão, só lentamente dele se desprendiam, como se estivessem carregados com um peso de chumbo.

— Ângela, você está cansada — disse-lhe eu. — Vamos descansar.

— Bem que eu gostaria — respondeu ela, enxugando a testa com o lenço.

— Mas, enquanto valsávamos, todos se sentaram; só resta uma poltrona e nós somos dois.

— Que importância tem isso, meu anjo lindo? Vou colocá-la no colo.

III

Sem fazer a menor objeção, Ângela sentou-se, envolvendo-me com os braços como se fossem uma echarpe branca, escondendo a cabeça no meu peito para se aquecer um pouco, pois se tornara fria como mármore.

Não sei por quanto tempo ficamos nessa posição, pois todos os meus sentidos estavam absorvidos na contemplação dessa misteriosa e fantástica criatura. Não fazia mais qualquer ideia da hora nem do lugar; o mundo real não existia mais para mim e todos os laços que me unem a ele tinham se rompido; minha alma, liberta de sua prisão de lama, nadava no vago e no infinito; eu compreendia o que nenhum homem pode compreender, os pensamentos de Ângela se revelando a mim sem que ela precisasse falar, pois sua alma brilhava em seu corpo como uma lâmpada de alabastro e os raios que saíam de seu peito traspassavam o meu de lado a lado.

A cotovia cantou, uma claridade pálida cintilou nas cortinas. Assim que Ângela a percebeu, levantou-se precipitadamente, deu-me adeus com um gesto e, após alguns passos, soltou um grito e caiu no chão. Tomado de assombro, acorri para levantá-la... Meu sangue congela só de pensar: tudo o que encontrei foi a cafeteira quebrada em mil pedaços. Diante dessa visão, persuadido de que tinha sido o joguete de alguma ilusão diabólica, apoderou-se de mim tal pavor que desmaiei.

Quando voltei a mim, estava em minha cama, com Arrigo Cohic e Pedrino Borgnioli de pé a minha cabeceira. Assim que abri os olhos. Arrigo exclamou:

— Ah! Ainda bem! Há quase uma hora estou esfregando suas têmporas
com água de colônia. Que diabo você fez essa noite? Hoje de manhã, vendo que você não descia, entrei no seu quarto e o encontrei estirado no chão, vestido à francesa, apertando nos braços um pedaço de porcelana quebrada como se fosse uma moça bonita.

— Por Deus! É a roupa de casamento de meu avô! — disse o outro, levantando uma das abas de seda de fundo rosa com ramagens verdes. — Vejam os botões de strass e filigrana dos quais ele tanto se vangloriava. Théodore deve tê-lo achado em algum canto e o vestiu para se divertir. Mas por que você se sentiu mal? — acrescentou Borgnioli. — Isso é coisa para uma amantezinha de ombros brancos; nós a pomos para descansar, tiramos seus colares, sua echarpe, e ela tem uma bela oportunidade para se fazer de dengosa.

— Foi apenas um desfalecimento que tive; sou sujeito a isso — respondi secamente. Levantei-me, despojei-me de minha ridícula vestimenta. E depois, fomos almoçar.

Meus três amigos comeram muito e beberam mais ainda; não comi quase nada, a lembrança do que se tinha passado me causava estranhas distrações. Terminado o almoço, como chovia a cântaros, não tivemos condição de sair e cada um se ocupou como pôde. Borgnioli tamborilou marchas guerreiras nas vidraças; Arrigo e o anfitrião jogaram uma partida de damas; eu puxei do meu álbum um pedaço de pergaminho e me pus a desenhar. Os esboços quase imperceptíveis traçados por meu lápis, sem que eu sequer percebesse o que fazia, acabaram por representar com maravilhosa exatidão a cafeteira que desempenhara um papel tão importante nas cenas da noite.

— É impressionante como esse rosto se parece com a minha irmã Ângela — disse o anfitrião que, terminada a partida, me observava trabalhar por cima do meu ombro.

De fato, o que ainda há pouco me parecera uma cafeteira era com toda a certeza o perfil doce e melancólico de Ângela.

— Por todos os santos do paraíso! Ela está morta ou viva? — exclamei num tom de voz trêmulo, como se a minha vida dependesse de sua resposta.

— Ela morreu há dois anos, de pneumonia, depois de um baile.

— Que pena! — respondi dolorosamente. E, contendo uma lágrima que estava prestes a cair, recoloquei o papel no álbum. Acabava de compreender que não mais haveria para mim felicidade sobre a terra!