segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Dicas de Escrita (Como Escrever um Roteiro) – 3

FORMATANDO O ROTEIRO

1
Faça uma capa para o seu roteiro. 

Insira o título em caixa alta bem no centro da página e pule uma linha. Em seguida, escreva “um roteiro de”. Pule mais uma linha e escreva o seu nome. Insira as suas informações de contato, como o seu e-mail e o seu telefone, na margem inferior esquerda.

Caso o roteiro seja baseado em outro filme ou em alguma outra história, inclua “Baseado na história de” e o nome dos autores originais na capa.

DICA DA ESPECIALISTA
Tente usar um programa de escrita de roteiros para facilitar a formatação do seu texto. Melessa Sargent, Presidente da Screenwriters Network, diz: "Um software de escrita ajuda muito, especialmente se você nunca trabalhou com esse gênero antes. Recomendamos o Final Draft porque é um programa sempre atualizado e com ótimo atendimento ao usuário. A equipe responsável pelo Final Draft também é muito respeitada na indústria. "

2
Escreva o roteiro em Courier 12. 

As fontes padrão para roteiros são as variações da família Courier, que deixam o texto bem mais fácil de ler. Coloque a fonte em 12 pontos. O tamanho é considerado padrão pela indústria cinematográfica e é o mais usado por outros roteiristas.

Vá com calma na hora de usar elementos como negrito ou sublinhado para não distrair o leitor.

Dica: os softwares de edição de roteiros, como o Celtx, o Final Draft e o WriterDuet, formatam o texto automaticamente, de forma que você não precisa se preocupar em mudar nada.

3
Insira um cabeçalho sempre que mudar de cenário. 

Os cabeçalhos devem ficar alinhados à esquerda, a 4 cm da margem. O texto deve ser escrito em caixa alta para ficar bem visível. Escreva INT. ou EXT. para que o leitor saiba se a cena se passa em um espaço interno ou externo. Em seguida, insira o nome do local e a hora do dia em que a cena está se desenrolando.

Um cabeçalho deve ficar mais ou menos assim: INT. SALA DE AULA - DIA.

Os cabeçalhos devem ocupar apenas uma linha.

Caso queira especificar um cômodo dentro de uma locação, escreva o cabeçalho da seguinte forma: INT. CASA DE JOÃO - COZINHA - DIA.

4
Escreva blocos de texto descrevendo o cenário e as ações dos personagens. 

Os blocos de texto devem ficar alinhados à esquerda e ser redigidos em frases simples que descrevam as ações dos personagens e deem uma boa ideia do que está acontecendo. Mantenha o texto curto e direto para não assustar o leitor.

Evite dizer o que os personagens estão pensando. No geral, o roteirista não deve incluir no texto nada que não possa ser mostrado na tela. Logo, em vez de dizer: “João pensa em puxar a alavanca, mas não tem certeza de que deveria”, escreva algo como: “A mão de João treme perto da alavanca. Ele range os dentes e franze o cenho. ”

Ao apresentar um personagem pela primeira vez, escreva o nome dele em caixa alta. Das próximas vezes que mencioná-lo, escreva normalmente.

5
Centralize os nomes e as falas dos personagens. 

Quando um personagem for começar a falar, ajuste a margem para 10 cm com relação ao lado esquerdo da página. Insira o nome do personagem em caixa alta para que o leitor e o ator consigam identificar facilmente a fala. Ao escrever o diálogo, centralize-o a 7 cm da margem esquerda.

Para explicitar como um personagem está se sentindo, insira uma rubrica entre parênteses logo após o nome do personagem. Diga, por exemplo, que ele está (animado) ou (tenso). A rubrica deve ficar a 8 cm da margem esquerda da página.
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continua…

Fonte: https://pt.wikihow.com/Escrever-um-Roteiro

Aparecido Raimundo de Souza (Vidas líquidas)

Nota do Blog: as palavras com asteriscos, o significado se encontra no vocabulário ao final do texto.
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NA SALA, uma tela de Tarsila do Amaral e Anita Malfatti vestiam com um colorido inimaginável a parede central do ambiente. O resto, se agrupava de mobiliários comuns. Num desvão afastado, um aparelho de televisão e DVD. No vídeo o pequeno Eros assistia “Percy Jacson e o ladrão de raios”, com Sean Bean no papel de Zeus, o deus mais poderoso de toda a mitologia grega. Ao lado de Eros, Sofia, a pequena cunhã (*), com um copo de refrigerante na mão e, entre os dois, uma bacia de pipocas recém-saída do micro-ondas. 

No ar parado, uma bulha (*) vinda de fora, de longe, do distante imensurável, entrava pelas janelas. Atrapalhava o silêncio juntamente com um pitium (*) produzido pela fumaça dos cigarros tragados pelos pais das crianças que conversavam aconchegados num canapé azul claro. Maria Gorda, a velha preta cheia de “atarefas” na cozinha, parecia ter saído de uma sapituca (*) recente, tamanha a pachorra que lhe corroía a carcaça estropiada. 

Se pudesse, ah, se pudesse, a gosto de escolher, sem embaraços e estorvos, fugiria para sua camarinha (*) nos fundos da casa e deixaria que a alma despenhasse (*) à fortuna de uma vereda intransponível, onde a vida se acalmaria junto com o seu destino fatigado e hostil. Mas o jantar dos patrões seria servido dentro em pouco e ela não poderia imprimir delongas às panelas que fumegavam nas seis bocas do fogão último tipo. 

De frente para a tevê, as crianças seguiam às voltas com o filme, a trama cataléptica (*) no seu enredo. Na varanda, marido e mulher absorviam, à relho (*) solto, um papo sem fundamento, desfraldado de qualquer tipo de emoção maior, tanto que as palavras, soltas ao acaso, davam loopings fantásticos em meio às fumaças que subiam como fantasmas assustados se mutilando em direção aos espaços de um teto carecente de uma limpeza mais aprofundada.

Em meio destas massas tóxicas, olhares inócuos se misturavam enraizados num brilhar sem cor, enquanto o tempo vagabundeava à mercê do acaso, sem o azorrague (*) de qualquer coisa sólida que pudesse ser absolvido como normal. E o tempo passava invariável. O filme das crianças corria pouco passos de alcançar o final. Na varanda mais uma rodada de cigarros era acesa. Maria Gorda acabara de preparar a mesa e, agora, só faltava convocar o povo para que tomasse “acento” nela, cada um na sua respectiva cadeira.  

Meia hora à frente, todos acomodados ao móvel vestido em rigor apessoado para a derradeira refeição do dia, congregavam num encontro que não transmitia emoção, ao contrário, pesava. Os pirralhos não entravam numa avença (*) conciliatória. Eros não gostara nem um pouco da história, sendo contraditado veementemente por Sofia, que amava de paixão a velha mitologia. Seu Machado, cabeça do casal, pedira silêncio observando que na hora da modulação dos talheres não se devia discutir picuinhas. 

Maria Gorda num canto, afastada, solitária na sua dissimilitude (*) seguia atenta. Qualquer chamado se faria presente antes que dona Giselda piscasse os olhos debaixo das lentes fundo de garrafa. A doméstica não homologava dar de bandeja seus direitos, nem ser chamada a atenção. Tantos anos naquela residência e a sua vidinha medíocre e inócua continuava aborrecida, sem graça, sem açúcar, sem sal, literalmente insossa. 

De igual modo, sem os festejos das cores, sem o cheiro saboroso de possíveis melhoras. Mesmo norte, sem perspectivas de um amanhã de felicidade. Para ela, o tempo parara numa determinada intermitência. E não seguira em frente, apesar das promessas que fazia com assiduidade a ponto de latejar os joelhos nas missas dominicais, à Nossa Senhora e das velas que acendia para seu anjo de guarda. Entrelaçados num amplexo sem calor, sem energia, sem efervescência, seguiam Eros, Sofia, dona Giselda e seu Machado. 

O tempo, inexorável, em caminho idêntico, seguia estagnado. Acorrentado, vegetava sem amanhã, se amofinava, sem agora, se esfacelava querendo se perder de vista. Se destravar do hoje. O tempo pleiteava voar para outros horizontes. Volutear aproveitando a magia inebriante da cálida noite que se agigantava, que se avolumava além das portas de acesso à rica mansão. Um peso morto, de braços dados à uma desesperança infortunosa estancava tudo. 

Talvez, também, seguramente por conta disto, o amor na sua melhor força de expressão não se fizesse bonançoso, impedindo que tudo e mais um pouco, naquela dinastia, se moldasse feliz, bonito, irrefragável (*) e indubitavelmente real. Talvez, por estas escarpaduras (*), mesmo sentido e direção, aquela pobre família rica não se via, nem se sentia, nem se coadunava imensamente realizada dentro da própria realidade em que viviam. Ou melhor dito: em que VEGETAVAM.
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* VOCABULÁRIO:
- Avença. Acordo, pacto, convenção realizada num negócio 
- Azorrague. Cipó para punição ou flagelo.
- Bulha. Ruído ou gritaria, alarido ou confusão.
- Camarinha. O quarto de dormir. 
- Cataléptica. Aquele que sofre de catalepsia, ou que vive em estado mórbido.
- Cunhã. Mulher jovem, menina ou moça na flor da idade.
- Despenhasse. Pessoa que se precipitou ou caiu de grande altura.
- Dissimilitude. Desigualdade ou diferença. 
- Escarpaduras. Corte ou inclinação de um terreno. 
- Irrefragável. Tudo aquilo que não pode ser contestado.
- Pitium. Parasita de plantas aquáticas. Sinaliza também qualquer coisa que produza odores desagradáveis.
- Relho. Chicote para açoite ou instrumento com a finalidade de castigar alguém.
- Sapituca. Pessoa ligeiramente embriagada, tonta ou desfalecida.

Fonte:
Texto e vocabulário enviados pelo autor.

domingo, 22 de outubro de 2023

Paulo Leminski em versos inversos – 003

 

Mensagem na garrafa – 16 -

Saúl Dias
Vila do Conde/Portugal (1902 - 1983)

A MINHA HORA

Que horas são? O meu relógio está parado,
Há quanto tempo!...
Que pena o meu relógio estar parado
E eu não poder marcar esta hora extraordinária!

Hora em que o sonho ascende, lento, muito lento,
Hora som de violino a expirar... 
Hora vária,
Hora sombra alongada de convento…

Hora feita de nostalgia
Dos degredados...
Hora dos abandonados
E dos que o tédio abate sem cessar...
Hora dos que nunca tiveram alegria,
Hora dos que cismam noite e dia,
Hora dos que morrem sem amar…

Hora em que os doentes de corpo e alma,
Pedem ao Senhor para os sarar...
Hora de febre e de calma,
Hora em que morre o sol e nasce o luar...
Hora em que os pinheiros pela encosta acima,
São monges a rezar…

Hora irmã da caridade
Que dá remédio aos que o não têm...
Hora saudade...
Hora dos Pedro Sem...
Hora dos que choram por não ter vivido,
Hora dos que vivem a chorar alguém…

Hora dos que têm um sonho águia mas... ai!
Águia sem asas para voar...
Hora dos que não têm mãe nem pai
E dos que não têm um berço pra embalar...
Hora dos que passam por este mundo,
De olhos fechados, a sonhar…

Hora de sonhos... A minha hora
- Estertores de sol, vagidos de luar -
Mas... ai! A lua lá vem agora...
- Senhora lua, minha senhora,
Mais um minuto para a minha hora,
Mais um minuto para sonhar…

Contos do Paraná ("´Seu` Andrézinho", por Thiago Brandão Neto)


A pedido de um amigo que estava com um pé no altar, o genial D. Francisco Manuel de Mello, escritor português do século XVII, escreveu a saborosa "Carta de Guia de Casados", contendo ensinamentos ainda hoje bastante úteis para casados, noivos, viúvos e quetais.

Um exemplo: Dom Francisco chama de "casamento da morte" a união de uma moça com um velho. E explica: "os velhos casados com moças apressam a morte, ora pelas desconfianças, ora pelas demasias".

Pois não era outra coisa o que se dizia do "seu" Andrézinho às vésperas do casamento com Maria, lá em Várzea, lugarejo perdido no interior do Município de Bocaiúva do Sul, a meio caminho de Campinhos e da antiga Colônia Marques de Abrantes. Moça bonita, de cabelo preto e pele rosada, Maria sequer completara 18 anos. Já o "seu" Andrézinho... remanescente dos primeiros poloneses assentados na Colônia, viúvo, estava a caminho dos 83 anos. Homem miúdo de corpo, até que estava razoavelmente conservado para a idade, mas 83 anos são 83 anos. Já ia para uns 30 anos que enviuvara, mas o homem só embestou de casar de novo fazia alguns meses, logo depois da morte do filho único, solteirão. 

"Preciso alguém para me cuidar na velhice", dizia. Daí... Por que com uma moça tão jovem, em vez de alguma das viúvas das redondezas, era a pergunta que ninguém ousou perguntar e ele jamais precisou responder. Mas não tinha casa na comunidade em que não se cochichasse a mesma coisa: "esse não tá casando, tá, sim, é comprando uma petíça nova".

Sucede que "seu" Andrézinho tinha uma chácara de oito alqueires bem montadinha, carroção, parelha de mula, três cavalos, algumas vacas, criação de porco e galinha, plantava dois quartos de milho, um de feijão...

Naquelas bandas, até que era um bom patrimônio. Já a moça Maria, de riqueza só tinha a família: pai, mãe e uma penca de irmãos. Quando "seu" Andrézinho fez o pedido, a mãe da Maria chorou pelos cantos uns três dias; já o pai, esse - como se diz hoje em dia: deu o maior apoio. Parece que até a Maria se encantou com a ideia do casamento.

De cara, ganhou enxoval e sapato de sola de couro - coisa que ela nunca calçaria na vida. E de mais a mais, o velho não haveria de durar por muito tempo... Só o padre Antonio, que visitava o patrimônio duas ou três vezes por ano, se recusava a realizar o casamento. - "Isso é absurdo, é pecado!!" - vociferou quando foi procurado pelo Andrézinho. 

Acabou convencido pelo próprio noivo: - "Se o senhor não casar, a gente se ajunta do mesmo jeito, o que é pecado maior".

A igrejinha de madeira de Ouro Fino nunca vira tanta gente como no dia do casamento. Parecia que estava todo mundo ali para tirar a teima, ou para o churrasco de gordo que viria depois. "Seu” Andrézinho fez questão de esperar a noiva no altar - coisa que não se usava por aquelas bandas — e instruiu Maria para entrar na igreja andando devagarinho, mesmo que música não tivesse. Quando Maria assomou na porta da Igreja, o rosto do velho polonês ficou mais vermelho que de costume. Então ele se curvou pouco para a frente, levou as mãos no peito, curvou mais ainda e, se esborrachou no chão.

"Seu" Andrézinho estava morto! Ataque cardíaco fulminante. Nem desconfiança nem demasia. O pobre homem morreu de ansiedade, sequer pôde desfrutar da noiva.

Pior, é que casamento não houve. E sem casamento, a Maria que não pôde desfrutar o património do Andrézinho. Sem herdeiros aqui, e sem que ninguém conseguisse localizar um parente dele no Polônia, a chácara do Andrézinho acabou passando tempo depois, para as mãos do governo.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 8

 

ADEUS!

“Espera, eu voltarei.” Ele dizia
(Quanto era triste o seu olhar tão doce!)
Chorosa e terna a fala lhe tremia
Como se a corda de algum’harpa fosse.

E ela, a pálida noiva estremecida,
Fitou no amado os grandes olhos seus,
E murmurou, baixinho e comovida,
Quase a chorar e muito a medo: Adeus!
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À MEMÓRIA DE UMA AVE

Quando morre uma criança,
Diz-se que o pálido anjinho
Voou como uma esperança.
Foi para o céu direitinho.

Mas nossa mente se cansa
A voar de ninho em ninho,
Interrogando a lembrança,
Quando morre um passarinho.

Só eu, se alguém diz que a vida
De uma avezinha querida
Se extingue como um clarão.

Ponho-me a rir, pois, divina!
Ouço cantar, em surdina,
Tu’alma em meu coração.
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AO MEU BOM ANJO

Dizem que a vida não é mais que um sonho,
Meu Deus, quero sonhar!
Empresta-me, anjo bom, as tuas asas,
Guarda no seio a minha fronte em brasas,
Ensina-me a rezar!

Vamos, vamos, além... foge comigo!
Procuremos bem longe um doce abrigo,
Na pátria dos arcanjos...
A vida é sonho e como um sonho passa...
Pois bem! vamos viver no céu da graça,
Meu Deus, como dois anjos!

Quero fugir do mundo tenebroso,
Labirinto de dores...
Mensageiro divino, vem comigo,
Quero sonhar, viver, sorrir contigo,
No Éden há só flores!

Minh’alma, casta rola abandonada,
Desfalece sozinha pela estrada,
Não pode mais voar...
Empresta-lhe, anjo bom, as tuas asas:
Sinto estalar-me o coração em brasas,
Cansado de chorar.

Assim voando pelo espaço em fora
E vendo-te a meu lado a toda hora,
Quero — fugindo deste mundo agreste,
Unida ao seio teu,
Embalada por ti, anjo celeste!
Buscar meu ninho pelo azul do céu!
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CHORANDO

Fazia noite... A tristeza
Tudo envolvia em seu véu;
Soluçava a Natureza,
Caía orvalho do céu.

E naquela noite assim,
Tão tenebrosa e tão fria!
A minha mãe se partia
Para o céu azul sem fim.

Falou-me a chorar: filhinha,
O vício do mundo aterra...
Tu’alma reúne à minha,
Fujamos ambas da terra.

Beijou-me... e, qual sonho doce,
Sua vida evaporou-se.
............................

Ó mãe! por que me deixaste
No mundo sem teu amor?
Sou como o lírio sem haste
Murchando triste inda em flor.

Podias ter-me levado
Ao céu contigo, divina...
Iria em teu seio amado:
Eu era tão pequenina!

Fiquei sozinha e perdida,
Ó mãe! no mundo de abrolhos...
Na noite de minha vida
Derrama a luz de teus olhos!

Quanta tristeza se encerra
Do mundo no escuro véu!
Não quero morar na terra;
Contigo leva-me ao céu!
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CONTRASTES

Existe tanta dor desconhecida
Ferindo as almas pelo mundo em fora,
Tanto amargor de espírito que chora
Em cansaços nas lutas pela vida;

E há também os reflexos da aurora
De ventura, que torna a alma florida,
A alegria fulgente e estremecida,
Aureolada de luz confortadora.

Há, porém, tanta dor em demasia,
Sobrepujando instantes de alegria,
Tal desalento e tantas desventuras,

Que o coração dormente, a pleno gozo,
Deve fugir das horas de repouso,
Minorando as alheias amarguras.
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CORES

Enquanto a gente é criança
Tem no seio um doce ninho
Onde vive um passarinho
Formoso como a Esperança.

E ele canta noite e dia
Porque se chama: Alegria.

Depois... vai-se a Primavera...
É o tempo em que a gente cresce...
O riso se muda em prece,
A alma não canta: espera!

E ao ninho do Coração
Desce outra ave: a Ilusão.

Mas esta, como a Alegria,
Nos foge... E fica deserto
O coração, na agonia
Do inverno que já vem perto.

Nas ruínas da Mocidade
É quando pousa a saudade…
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DE LONGE

Para os teus anos, formosa,
Onde não vão meus desejos?
Mas, longe de ti, saudosa,
Só posso enviar-te beijos.

Seria, porém, com pressa,
Cheia de muito receio,
Que eu faria esta remessa
De beijos pelo correio.

E, então, pelo espaço alado
Eu vou soltá-los em bando,
Como um batalhão dourado
De passarinhos voando.

Podem, assim, os amores
Levar-te n’asa dispersos:
Minh’alma desfeita em flores
E o meu coração em versos.

Fonte: Auta de Souza. Poemas. Publicado postumamente em 1932. Disponível em Domínio Público.

Humberto de Campos (Bebida para viúvo)

Se foi esse o desgosto que matou Dona Benvinda, ninguém sabe: o que é fato, é que o sr. Atanásio tinha uma predileção especial pelas bebidas, a ponto de passar semanas inteiras emendando as carraspanas.

O que, entretanto, ninguém pode contestar, é que ele adorava a mulher. É verdade que não a obedecia, quando ela lhe suplicava, agarrando-lhe as mãos:

— Não bebas mais, Atanásio! Tem piedade de mim! Isto me matará de vergonha!

As pessoas que ouviam isto asseguravam que Dona Benvinda morreu, mesmo, de vergonha; outras acham, porém, que foi de umas pauladas que o marido lhe aplicou, ao regressar, alta madrugada, mais bêbado do que nunca.

O sentimento de viúvo foi, entretanto, profundíssimo. Um fato o demonstra. 

Certa noite, entrou ele, com um antigo companheiro, em uma das cervejarias da Brahma, e sentou-se:

— Que tomas? - perguntou o outro.

— Nada.

— Nada? Tu não tomas nada?

— Não posso, filho! - obtemperou o Atanásio. - Eu não posso beber; tu não vês que eu estou de luto?

— Mas, isso é o de menos! - tornou o outro. Há bebidas, aqui, para pessoas de luto.

E batendo na mesa, com força:

— Cerveja preta, para um!...

Fonte: Humberto de Campos. Grãos de mostarda. Publicado originalmente em 1926. Disponível em Domínio Público. 

Antonio de Trueba (A necessidade)


I
Ainda hoje existe, junto à confluência de dois rios, um formoso castanheiro, sob cuja sombra eu me sento, sempre que por ali passo, haja ou não haja calor, e isto pela razão muito natural de que, sendo eu criança, costumávamos sentar-nos, minha mãe e eu, à sombra daquela mesma árvore, quando íamos a uma aldeiazinha, que ficava perto da nossa. À pequena distância do castanheiro veem-se ainda as ruínas de um moinho, tais quais eram nos tempos saudosos da minha infância, e a lembrança de minha mãe, do castanheiro e das ruínas, faz-me recordar de um conto que ela me contou, em uma tarde de verão, ao pé da árvore frondosa, sob cuja sombra, graças a Deus, ainda posso sentar-me.

O último moleiro, que habitou o moinho, era conhecido naquelas redondezas pelo apelido de Sêneca; e vejam lá, não vão mudar para o primeiro o acento que pus sobre o segundo “e” deste apelido, pois que o moleiro de quem estou falando, e que minha mãe conheceu e tratou, era tão modesto, que ainda hoje no céu se veria muito aflito e contrariado, se o confundissem com o filósofo cordovez.

Não tinha Sêneca pretensões a filósofo, mas era-o até sem querer, e a isto devia ele indubitavelmente o seu apelido, o qual cuja aplicação não podemos deixar de reconhecer uma filosofia muito profunda; se não, reparem os leitores, e digam-me se não é bem admirável a do povo, que, com a mudança de um simples acento, marca o abismo, que separa o filósofo da natureza do filósofo do estudo! Tinha eu que fazer, se quisesse referir os muitos rasgos de engenho e sã filosofia com que Sêneca ilustrou a sua trabalhosa e modesta vida, e portanto limitar-me-ei a referir um dos que mais cativaram minha pobre mãe, de quem herdei o gosto que tenho pelas recordações da infância.

II
Sêneca não tinha outra família senão um filho de dez anos, nem outras cavalos, senão um burro de vinte. Morreu-lhe a mulher, que era quem ficava no moinho, curando das moagens, enquanto ele andava com o burro, levando e trazendo foles por aldeias e casais, e o pobre Sêneca viu-se então em graves embaraços, porque os seus ganhos lhe não permitiam tomar uma criada, que substituísse sua mulher no moinho, nem um criado, que o substituísse a ele no transporte dos foles.

— E como te hás de tu arranjar agora? – lhe perguntavam os vizinhos, quando o viram viúvo, e sem outro auxílio mais que o do pequeno.

— Não me dá isso cuidado, – respondia Sêneca - não faltará quem me ajude.

— Isso é bom de dizer, mas quem te há de ajudar?

— Quem?... A Necessidade.

Os vizinhos punham-se a rir do bom humor de Sêneca, porém sem compreender o que ele queria dizer na sua necessidade.

Uma certa manhã aparelhou Sêneca o burrico, pôs em cima dele um saco que continha quatro alqueires de farinha, e chamando o pequeno, disse-lhe:

— Rapaz, toma o burro pela arreata, e leva-me esta carga à padaria de Somorrostro.

O pequeno desatou a chorar.

— Que é lá isso, homem? – perguntou-lhe o pai.

— Que há de ser de mim pelo caminho, se o burro cair, ou se espojar (arriar) no chão! – exclamou o rapazinho, sem cessar de chorar.

— Não te dê isso cuidado, disse Sêneca; se tal acontecer, não faltará quem te ajude a levantar o burro.

— E quem é que me há de ajudar nessas pastagens tão solitárias, que não se encontra por elas viva alma?!

— Quem? A Necessidade. Se o burro cair, ou se deitar no chão e se não puder erguer, chama pela Necessidade, e verás como logo acode em teu auxílio.

— Está bem. - disse o pequeno, limpando as lágrimas com a manga da jaqueta, e pegando na corda do burro, tomou pela margem do rio, caminho de Somorrostro, que distava uma légua do moinho.

— Ora, ora, ora! Sempre este Sêneca tem coisas!... – diziam os vizinhos, ao verem o rapazinho com o burro atrás de si. Com que então a Necessidade, com cujo auxílio contava Sêneca, para levar e trazer os foles, era essa pobre criança?!... E o pequeno, quem é que o há de ajudar?

III
Seguia o filho de Sêneca com o seu burro no cabresto ao longo dos carvalhais, que sombreiam as margens do rio que corre pelo vale profundo, que separa Somorrostro de Galdámez e Sopuerta quando, ao chegar a um pequeno areal muito suave, fez o burro esta reflexão:

— Ai! que bela cama para eu descansar um pouco!... e então, se eu pudesse soltar esta maldita carga, que me vai amolando as costelas!

E de repente, antes que o pequeno olhasse para trás, estirou-se ao comprido no meio do chão.

— Ai! minha mãe!... – exclamou o rapazinho aterrado; porque convém saber que na Espanha, e com especialidade na Biscaia, não só aos pequenos como também aos grandes, o primeiro auxílio que lhes ocorre invocar nas maiores aflições, é sempre o de sua mãe, ainda mesmo que já a tenham no céu.

E pegando numa vergasta começou a açoitar o burro sem dor nem piedade, porém o animal, por mais esforços que fazia para se levantar, não o podia conseguir.

Estava já o pequeno quase a chorar, quando se lembrou do conselho, que o pai lhe havia dado e, em vez de dar largas ao pranto, começou a gritar:

— Necessidade! Necessidade! Faz-me o favor de vir aqui ajudar-me a erguer este burro?!

O pequeno olhava para todos os lados, a ver se aparecia a Necessidade, mas não via ninguém. Já cansado de chamar e de esperar pela Necessidade, desatou o arrocho*, que prendia o saco ao aparelho do burro, e aliviou-o da carga. Em seguida deu-lhe uma vergastada e o animal ergueu-se de um salto.

Então o pequeno tomou o burro pelo cabresto, levou-o para junto de uma ribanceira, e rolando o saco até lá, pôde, a muito custo, colocá-lo em cima do animal; apertou-o bem com o arrocho, montou sobre a carga, atirou uma pancada ao burro, e prosseguiu no seu caminho, mais alegre que umas páscoas.

Passada uma hora chegava o rapaz ao moinho, cantando e fazendo trotar o seu ginete.

— Olá, pequeno, - disse-lhe o pai, apenas o avistou - como foi a tua viagem?

— Muito mal, meu pai.

— Então o que te aconteceu, homem?

— Deitou-se o burro no caminho, e, por mais pancadas que lhe dei, não foi capaz de se levantar.

— E então o que fizeste?

— Desprendi a carga, levei o burro para o pé de uma ribanceira, fui rolando o saco até lá...

— Bem, bem, já percebo. Quer isso dizer que chamaste pela Necessidade, não é assim?

— Chamei, chamei. Fartei-me até de chamar, mas não apareceu...

— Rapaz, disse Sêneca, vê como tu te enganas. Quem te levantou e carregou o burro não foi senão a Necessidade.

Tinha razão Sêneca, e também eu a tenho para dizer aqui que a necessidade presta tanto auxílio e tamanhos benefícios ao homem, que não sei como ainda lhe não deram a cruz de beneficência.
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* VOCABULÁRIO
Arrocho = pedaço de pau curto e torto com que se apertam e torcem as cordas para amarrar fardos, cargas etc.

Fonte:
Antonio de Trueba. Contos escolhidos. Publicados postumamente originalmente em 1927. Disponível em Domínio Público.  

Dicas de Escrita (Como Escrever um Roteiro) – 2

FAZENDO UM ESBOÇO

1
Anote as suas ideias em cartõezinhos. 

Escreva todos os acontecimentos a história em cartões individuais. Assim, você poderá reorganizá-los facilmente para descobrir o que funciona e o que não. Escreva todas as ideias que tiver, até mesmo as ruins. Você nunca sabe o que vai ficar melhor na versão final.

Você também pode anotar as ideias em um documento do Word ou instalar um software de edição de roteiros, como o WriterDuet ou o Final Draft, se não quiser usar cartões.

2
Coloque os acontecimentos na ordem que eles vão ficar. 

Após anotar todas as suas ideias em cartõezinhos, distribua-as sobre a mesa ou o chão e coloque os acontecimentos em ordem cronológica dentro da história. Fique atento ao encadeamento da trama para ver se ela está fazendo sentido. Caso algum acontecimento pareça fora do lugar, separe os cartões referentes a ele e veja se consegue encaixá-los em outra parte da história.

Coloque os acontecimentos futuros no começo da trama para fazer um filme complexo e cheio de reviravoltas, como A origem.

DICA DA ESPECIALISTA MELESSA SARGENT
Melessa Sargent é Presidente da Scriptwriters Network, uma organização sem fins lucrativos que reúne profissionais de entretenimento que ensinam sobre a arte e o negócio de escrever scripts para TV e novas mídias. A organização oferece um programa educacional amplo, desenvolvendo acesso e oportunidades através de alianças com profissionais da indústria e incentivando melhorias no ramo da escrita na indústria do entretenimento.
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"Como esboço, comece resumindo a trama do show ou filme, depois escreva uma descrição de cada ato. Finalmente, detalhe cada cena. "

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Pergunte-se sobre a importância de cada cena. 

Dê uma boa olhada no esboço e faça perguntas como: “Para que serve essa cena? ” ou “Como essa cena faz a história avançar? ”. Dê uma boa olhada nas cenas individuais e veja se elas realmente tem algum propósito ou se estão lá só para encher linguiça. Remova todas as partes que parecerem inúteis.

Uma cena de um personagem fazendo compras, por exemplo, não acrescenta nada à história. Para a cena funcionar, o personagem deveria, por exemplo, encontrar alguém no mercado e conversar sobre algo relacionado ao ponto central da trama.

DICA DA ESPECIALISTA
Pense sobre quantos atos você quer incluir. Melessa Sargent, Presidente da Screenwriters Network, diz: "Um roteiro para TV deve ter cinco atos caso seja destinado a uma rede com comerciais, como Globo, Record e SBT. Um roteiro sem comerciais, como Netflix ou Amazon, deve ser dividido em três atos. Nesse caso, inclui-se um teaser, que é considerado o primeiro ato. Roteiros para longa-metragens normalmente são divididos em três atos. "

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Use pontos altos e baixos para encerrar os atos. 

Toda história deve ser separada em três atos: apresentação, confronto e resolução. A apresentação, ou o primeiro ato, começa no comecinho e termina quando o protagonista faz uma escolha que muda a vida dele para sempre. Durante o confronto, ou o segundo ato, o protagonista tenta alcançar um objetivo e entra em contato com o antagonista, o que leva ao clímax da história. A resolução, ou o terceiro ato, serve para mostrar o que aconteceu depois do clímax.

Dica: 
Os atos dos seriados televisivos costumam terminar logo antes dos comerciais. Assista a séries com roteiros parecidos com o que você está escrevendo e preste atenção no que acontece imediatamente antes dos intervalos.

Fonte: https://pt.wikihow.com/Escrever-um-Roteiro

sábado, 21 de outubro de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 13

 

Mensagem na garrafa – 15 –


Mara Melinni Garcia
Caicó/RN

O Tempo do Amor

Às vezes a resposta que eu preciso
Não vem de uma palavra, em expressão…
Mas do calmo calor do teu sorriso
Que manda embora a dor da solidão.

Se o meu gostar não encontra o jeito certo
Ou se é preciso um jeito de existir,
Que exista um jeito de estar sempre perto
E nesse jeito eu possa te sentir.

Nenhum querer possui uma medida,
Ninguém pode gostar pela metade.
Por isso, a cada sol, nascendo o orvalho,
Se vão, pelas manhãs, em cada flor,

O tempo não espera na estação
E o preço, embora pague um bom lugar,
Não traz escolha a quem, sem ter razão,
Não segue atrás do trem que viu passar…

As portas do destino guardam planos
Que as chaves certas abrem, logo à frente.
E às vezes, sem ter chave ou sofrer danos,
Há portas que se abrem, simplesmente.

Por isso, a cada sol, nascendo o orvalho,
Se vão, pelas manhãs, em cada flor,
As gotas tristes, no chorar do galho,
deixando suas lágrimas de amor.

A vida é a seiva mais pura do mundo,
é o mel que adoça o sonho de quem clama…
E o tempo, embora dure um só segundo,
se faz tempo bastante a quem se ama.

Eis sim, uma viagem passageira…
Que cumpre as curvas todas de uma estrada.
E um dia, já na curva derradeira,
Se não faltou amor… Não faltou nada!

Newton Sampaio (Carnaval de camelô)

Charleston nascera baiano e tivera no batismo um nome esquisito: José Perpétuo. Há muito, porém, que adotara aquele outro, dado pelo povo.

Charleston trazia na epiderme a cor das noites sem lua. Isto não impedia, entretanto, que soubesse ser atraente. E atraente sobretudo quando exibia, no riso cascalhante, aberto, permanente, a fila perfeita de seus dentes — uns dentes fortes, bonitos, muito alvos. Este particular é importante. Charleston não conhecia limites em sua jovialidade. 

E se Vargas Vila — diante da extraordinária heroína de uma novela sua — atendeu ao “concurso do sangue” para explicar a maravilhosa “Flor del fango”, definindo-lhe o avô como “insurreto nato” e fixando-lhe na mãe a “passividade atávica” e na raça a mescla de índio indômito com espanhol aventureiro —, se Vargas Vila acendeu na alma desta hija del pueblo o áspero fenômeno hereditário —, com muita propriedade poderia o psicólogo acusar em José Perpétuo o quinhão da ancestralidade.

Filho de uma exuberante quitandeira de São Salvador (perita em dengues de toda espécie, ao soar de qualquer zabumba, e motivo certo e famoso de muitas rixas fatais), amancebada com um guapo mulato da polícia — que nos arraias baianos sabia, como ninguém, impor a ordem aumentando a desordem —, Charleston trazia no sangue a incrível impetuosidade tropical. A ele, pouco se lhe dava existisse ou não o travo da raça — dessa raça que vivia amassando a nostalgia com lunduns desabusados e gargalhadas enormes.

Charleston não entrava em tais cogitações. Do mundo, só lhe apetecia o lado risonho. Nem sabia que um soluço, quando escorraçado da garganta, dilui-se por inteiro em todas as células e aí fica — mínimo —, insignificante, sim, mas vivo, perigosamente vivo, até o desforço inevitável. 

Charleston, quando eu o conheci, tinha brilhado já em várias atividades honestas. Caixeiro na Bahia, porteiro de cabaré no Recife, praça de bombeiros em Minas, chofer de ônibus em Porto Alegre, ferroviário não sei onde — o negro José Perpétuo passara por tudo isso sem jamais desvirtuar o entusiasmo, sem nunca banir dos lábios aquele riso invencível.

Foi como camelô que ele aportou a Curitiba. E tais triunfos alcançou na nova carreira que, na minha opinião, Charleston nasceu pra ser camelô.

É um portento o negro!

Ninguém, como ele, sabe tanto atrair a gente, com o desembaraço de sua fala, com o acento incomparável de sua voz, a um tempo forte e melodiosa. Ninguém, como o filho da quitandeira dengosa e do mulato valente da Bahia, é capaz de atravessar a rua nos momentos de maior movimento, apregoando a liquidação final de uma casa de sedas, ou demonstrando a eficiência de tal ou qual recente produto.

Às vezes Charleston tem de fazer reclame de determinada firma comercial. Lá o vemos, então, coberto de acolchoados e cobertores, mostrando apenas os olhos muito acesos e inquietos e a dentadura soberba.

Em outras, toca o momento das Casas Pernambucanas. E o negro surge travestido de mulher (saia de chita, tamancos barulhentos, brincos bamboleantes, pulseiras ordinárias), mergulhando as fazendas em uma bacia para demonstrar, à evidência, que as cores não desbotam.

Aconteceu, um dia, o inevitável. José Perpétuo procurou o vigário da catedral.

— Seu padre. Vim fazer um negócio com o senhor.

— Qual é, meu filho?

— O reverendo sabe qual é a minha profissão?

— Sei. Por quê?

— Porque... Porque eu quero fazer propaganda dos sacramentos...

O vigário arregalou os olhos, apavorado.

— Propaganda dos sacramentos?!

Charleston ficou gozando a estupefação do outro.

— Mas isto é incrível!

— Não há nada de incrível.

E explicou:

— O que eu quero, padre Estêvão, é me casar na semana que vem. 

O vigário compreendeu a manha do preto. E voltou à pachorra anterior.

Tudo combinado, o camelô despediu-se. Na porta ainda se lembrou.

— Olha. Se a coisa for boa, vou fazer reclame dos sacramentos na rua, hein?

— !!

— Não se assuste, padre. Eu não cobro nada, não. 

Casou-se de verdade.

Meses depois, era pai. Bem me lembro, agora, com que orgulho, nas conversas do Café Colares, Charleston me contava as graças do pequerrucho.

— É um encanto, seu doutor. Acredite. É um encanto...

Veio o carnaval. A cidade acordou ao toque mágico da folia. Espraiou-se, nas ruas, o desvario coletivo.

Dias antes, passara Charleston a fazer propaganda dos produtos carnavalescos. Supus que, dentro de si, restava apenas lugar para o “Vlan” e o “Rodo”, a serpentina e o confete, tal era a compenetração sua em apontar as superioridades de uma ou outra marca.

No segundo dia, percebi que o camelô trazia os olhos fundos.

— Ressaca braba! (pensei)

O preto, porém, não mais parecia o mesmo. Perdera o entusiasmo contagiante da véspera. Quando nos cruzamos, ele vinha atravessando a multidão, em silêncio.

— O que é isso, Charleston? Cansado, já?

O preto levou um susto.

— Ah!

Empinou o busto, meio encabulado.

— Não. Qu’esperança!

E continuou o pregão gracioso:

— Foliões de todas as pátrias! O Rodo metálico apresenta-se...

No último dia, o corso atingiu o auge. A Rua Quinze era um só aglomerado de doidos. Charleston apontou na esquina, cara lambuzada, carapinha borrada de confetes, dois enormes tubos na mão.

— Foliões de todas as pátrias...

Súbito, parou, ferido de mau pressentimento.

Voltou os passos. O bonde não tardou. Estava atopetado o veículo! E o pessoal fazia uma algazarra dos demônios. Charleston foi recebido com estrépito. Caiu-lhe na cabeça uma chuva de confetes.

— Alô, negro! Negrinho do coração!...

Não respondeu. Queria só que o bonde caminhasse depressa.

Qual nada! O movimento desusado a cada instante obrigava o motorneiro a trancar a manivela...

Um popular imitou-o em falsete:

— Foliões de todas as pátrias...

Ficou tonto com as gargalhadas intempestivas. Contraiu o rosto, angustiado.

Chegou, por fim, a sua vez. Desceu.

— Arre!

Enveredou, correndo, por uma viela mal cuidada. Alcançou a moradia em quatro minutos. Estacou na porta, com o coração aos pulos.

— Maria!

A mulher, ouvindo a voz tão sua conhecida, aumentou o pranto. Charleston avançou num ímpeto. E caiu soluçando sobre o catre. 

O confete de sua carapinha começou então a sujar o rosto frio do garoto.
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Publicado originalmente Correio dos Ferroviários. Curitiba, janeiro de 1936

Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.