quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Maria Amália Vaz de Carvalho (A preceptora)

Chamava-se Martha de Vasconcellos.

Era alta, loura, delicada como uma figura de keepsake (recordação).

Uma fisionomia suave e infantil que captava pelo seu encanto inconsciente.

À primeira vista, nas soirées semanais do comendador Gonçalves, vestida de branco, com um simples veludo negro nos seus cabelos crespos de um louro fulvo e ardente, parecia uma criança despreocupada e frívola.

Não o era.

Quem a conhecesse de perto sabia que ela tinha a seriedade precoce dos que já padeceram muito.

Nenhuma sentimentalidade falsa no seu olhar azul, meigo e pensativo. Nenhuma ideia errada, nenhuma quimera juvenil na sua cabecinha de uma lucidez singular.

Sabia conservar-se na sombra, sem deixar de ser digna; tinha a consciência da mesquinhez do seu destino, sem ter nunca aprendido a ser humilde.

Pouco falavam com ela, e, no entanto, parecia não dar pelo desdém quase brutal de toda aquela gente que a cercava.

Tinha um modo dócil e meio risonho de sentar-se ao piano, e tocava uma noite inteira valsas, contradanças, lanceiros, que outras dançavam, na expansão da sua alegria burguesa.

Nunca lhe perguntavam se estava cansada, nunca lhe davam a menor mostra de interesse ou de simpatia.

Pagavam-lhe integral e generosamente, tinham direito aos serviços correspondentes a essa remuneração.

As suas relações paravam aqui.

Não sabiam se ela tinha uma alma, se essa alma se iria azedando a pouco e pouco ao contato daquela indiferença cruel; não sabiam do seu passado senão que era honesto e puro, nunca pensavam no seu futuro senão vendo-a eternamente curvada ao peso do mesmo destino ingrato.

Martha era mestra de duas filhas do comendador, duas rapariguinhas de treze a quinze anos, muito presumidas da sua riqueza, muito vaidosas do seu luxo, das carruagens em que andavam, dos vestidos de seda que vestiam, das festas com que os pais alteravam de vez em quando a chata monotonia do seu viver de negociantes retirados.

O comendador tinha um filho muito mais velho do que as irmãs, que se educara na Alemanha; e que depois de viajar pela Europa inteira, havia regressado enfim à casa paterna, onde, aqui para nós, se enfastiava poderosamente.

O comendador queria dar também às filhas uma educação brilhante, uma educação que correspondesse às dimensões da sua burra, eis porque, depois de as tirar do convento, onde tinham estado até àquela idade, escolhera para professora Martha de Vasconcellos.

De resto as ideias do comendador e da mulher sobre a educação de suas filhas, não eram das mais engenhosas e atiladas.

A pobre gente — neste caso, pobre significa riquíssima — a pobre gente não era obrigada a ter um ideal muito levantado.

Sabiam que a filha do barão de tal tocava piano, e queriam que suas filhas soubessem tocar muito melhor.

Tinham ouvido louvar os desenhos da menina Fulana e juraram aos seus deuses que as suas meninas lhe haviam de levar a palma.

Não tinham ideias absolutas, tinham simplesmente ideias relativas.

Excitar a admiração parecia-lhes uma coisa relés e insignificante; o que eles queriam era excitar a inveja.

As pequenas compreendiam isto maravilhosamente.

Em vendo uma amiga da infância, uma conhecida qualquer com um vestido mais bonito ou com uma prenda intelectual mais preciosa, tinham ataques de desespero surdo.

Ralava-as uma vaga inveja de todos os esplendores sociais.

Andavam à busca de gente a quem pudessem ofuscar.

Eram simplesmente ridículas!

Às vezes entravam no quarto de Martha e diziam-lhe num transporte de cólera:

— Quero saber alemão. A Mariquinhas sabe alemão, enquanto eu não sei.

— Quero aprender a bordar de matiz, a Julia fez um quadro que eu não sei fazer.

Era assim que iam progredindo no estudo.

Marta conformava-se docilmente às aspirações das discípulas: ensinava-lhes tudo o que sabia, mas o que ela de todo não pudera, era inocular-lhes a vida interior que animava e coordenava todos os seus conhecimentos adquiridos ou intuitivos.

Dizia-se que Marta conhecera melhores dias, afirmava-se mesmo que não fora para servir de mestra a burguesinhas pretensiosas que seu pai, um pai extremoso, lhe adornara o espirito de todos os primores de uma educação excepcional.

Conhecia as línguas modernas, mas não como as conhecem as meninas que por aí conversam com os diplomatas, resumindo nisso todas as suas ambições de estudo.

Penetrara no espírito delas, compreendera o gênio especial de cada uma, sabia de cor e escolhia principalmente os poetas que sintetizam uma nacionalidade ou uma civilização.

Tinham-lhe ensinado a raciocinar, a pensar, a estudar a fundo todos os problemas em que outras mulheres tocam somente ao de leve.

A curiosidade natural ao espírito feminino, essa qualidade preciosa, que, descurada, se torna quase sempre em um vício antipático, fora nela tão bem dirigida, disciplinada com tal mestria, que se tornara em fonte dos mais puros gozos do seu espírito.

Não sabia can-cans de salão, sabia o que dizem na sua muda língua os astros e as plantas; não tentara penetrar na vida intima das suas amigas, contentava-se em saber a vida intima da Criação.

Nunca lhe viera à ideia penetrar com o espírito no pélago revolto das paixões insalubres; a sua curiosidade insaciada debruçava-se da melhor vontade no pélago profundo das ondas, a quem horas e horas perguntavam pelas misteriosas riquezas do seu seio.

No meio disto, despretensiosa e simples, julgando-se a mais ignorante das criaturinhas do bom Deus, não sabendo que era artista, que era inteligente, que tinha alma capaz de entender todas as grandes coisas.

O pai, que a vinha ver muitas vezes à casa da senhora a quem na infância a confiara, disse-lhe um dia com o pejo a ruborizar-lhe as faces, com lágrimas a marejarem-lhe os olhos, que ela era uma filha natural, mas que tencionava reconhece-la, regularizar a sua posição, dar-lhe todos os direitos que ela por tantíssimos lados merecia.

A adorável criança não o percebeu.

Então — castigo terrível das suas culpas — o pai teve de explicar, de fazer compreender àqueles castos ouvidos de quinze anos uma história deplorável, a história do seu crime!

Martha escutou-o num silencio dolorido, com uma expressão de doçura triste no olhar.

Depois abraçou-o melhor ainda que nos outros dias, porque até ali só tivera muito que agradecer e dali por diante sentia vagamente que tinha muito que perdoar.

— E minha mãe? — perguntou depois com uma tremura na voz.

— Tua mãe morreu.

O pai de Martha era casado, tinha filhos, vivia para sempre longe dela nas tranquilas alegrias da família, uma família em que ela só podia ser a intrusa!

Desde esse dia Martha estudou com dobrado afinco, aprendeu com uma ânsia dolorosa, com um não sei quê de impaciência inexplicada.

Sentia que havia de ter muito que sofrer, muito que lutar.

Tratou de robustecer a alma e de dilatar o espírito.

Era uma espécie de iniciação heroica.

O pai de Martha morreu.

Um dia, ao acabar de jantar, caiu para o lado inesperadamente, fulminado pela ruptura de um aneurisma.

A morte surpreendera-o. Não tinha tido tempo de fazer nada em favor da sua desvalida Martha.

Oito dias depois, entrava esta, vestida de luto, muito pálida, mas com uma expressão estranha de firmeza no olhar, em casa do comendador Gonçalves.

Julião, o filho do comendador, tinha 23 anos quando Martha foi para casa do pai. Ao princípio pouco reparou nela. Imaginava-a uma mestra como as outras, o mesmo livro tirado a centenas de exemplares. Reconheceu somente que era um pouco mais bonita que a generalidade das suas colegas.

Um dia, porém, que ele lia Goethe no original, e que uma frase obscura do poeta o fazia parar na leitura um tanto impacientado e confuso, lembrou-se — acaso ou pressentimento — de recorrer à mestra de alemão de suas irmãs.

Entrou na sala de estudo, com um certo desdém a transparecer-lhe na fisionomia.

Pode ser-se educado na Alemanha e não compreender o Fausto: o que era, no entanto, absolutamente impossível, na opinião do moço, era não ter nunca estado na Alemanha e conhecer Goethe como um poeta nosso compatriota.

Martha conhecia-o.

Pegou no livro que Julião lhe estendia, deitou um relance de olhos para o verso de que se tratava, e depois, com um sorriso não isento de certa malícia inocente, explicou a Julião a ideia do poeta.

Havia tanta clareza nas suas palavras, uma tão superior intuição artística nos seus rápidos e despretensiosos comentários, que o moço olhou para ela deveras espantado.

Pareceu-lhe que a via pela primeira vez.

Não lhe disse, porém; pelo contrário, sentiu uma espécie de surda irritação ao perceber a sua inferioridade intelectual perante aquela criança tão simples, e que todos olhavam com tamanho desdém.

Martha percebeu porventura a impressão que despertara; o caso é que a malícia que lhe chispava no olhar acentuou-se com um indeciso cambiante de ironia.

«A pequena creio que se atreve a fazer escárnio de mim», pensou Julião, saindo da sala, onde a juvenil preceptora ficou com as discípulas.

Desde esse dia Julião e Martha observaram-se mutuamente com mais atenção.

Ele achava-a graciosa, simpática e boa sobretudo, tinha muita pena dela, ao vê-la desdenhada por tanta gente que lhe era inferior na inteligência, na coragem, na distinção, em tudo que pôde tornar adorável uma mulher.

Martha sentia-se silenciosamente compreendida, e agradecia àquele moço esbelto e pensativo as delicadezas mudas com que a compensava do desamor de todos os mais.

Tocou então para ele as mais doces e sentidas músicas que sabia; os apaixonados noturnos de Chopin, as queixosas melodias de Schubert, as sonatas mais belas desse sublime surdo chamado Beethoven.

Conversavam um com o outro através da música, sem nunca se falarem de outro modo senão nas coisas mais banais da vida de todos os dias.

Á tarde, depois de jantar, enquanto o comendador ressonava a sua sesta sobre a prosa elegante do Diário de Notícias, enquanto a comendadora meditava o rol daquele dia, digerindo um bom jantar, e um ataque de fúria contra as suas criadas presentes e futuras, enquanto as meninas debruçadas á janela, trocavam substanciosos comentários acerca de um alferes que morava no prédio fronteiro, e de uma menina muito namoradeira que morava no prédio do lado, Martha, sentada ao piano, desfiava sozinha o longo rosário das suas saudades.

Julião ouvia-a, fingindo ler um jornal ou um livro, e a apaixonada artista bem compreendia que uma alma a estava escutando, e que essas límpidas notas que ela arrancava ao piano iam vibrar divinamente em um coração que a entendia.

Tudo os separava na terra: o orgulho feroz de uma família de parvenus (ociosos), o santo orgulho dela, não menos implacável, porém muito mais nobre, os preconceitos, o dinheiro, quase que a honra; mas, que importava?

Podiam entender-se e amar-se através disso tudo.

E Martha, empalidecida pelas comoções que lhe agitavam a sua alma de artista, com uma expressão sofredora e apaixonada nos seus belos olhos de um azul escuro, contava a meia voz naquela linguagem inefável as suas dores, as suas humilhações, as suas lembranças, todas as alegrias que tivera, tudo que ela havia esperado na terra e que um dia se lhe havia desfeito nas mãos, deixando-lhe apenas uma imensa, uma desoladora, uma eterna saudade!

Às vezes o piano chorava com uma desesperação tão inconsolável e tão profunda, que Julião tinha desejos de erguer-se da cadeira em que estava, de protestar contra os enérgicos lamentos que traduziam a dor insanável de um destino, e de gritar:

— Aqui me tem, pronto a lutar peito a peito contra o seu infortúnio, e a vencê-lo.

Mas não se atrevia!

Que diriam todos, que diria seu pai, que diria a própria Martha?

Quem lhe dava a ele direitos de interpretar daquele modo a sublime execução dessa artista ignorada?

Quem pudera afirmar-lhe que era pessoal essa dor misteriosa que tinha soluços tão doces, queixas tão resignadas e tão mansas, lamentações de tão inefável ternura?

Um dia Julião quis sondar o coração tão calado da pobre mestra. Procurou fazer-lhe umas perguntas que não fossem por demais indiscretas.

Martha desatou a rir.

É verdade que no meio da sua cristalina risada os olhos se lhe afogaram em lágrimas; mas nesse instante Julião sentia-se tão envergonhado da curiosidade que revelara, que se não atreveu a olhar para a sua interlocutora.

O comendador Gonçalves era ambicioso.

Pudera!

Ou não fosse ele comendador.

Estava riquíssimo, mas queria que os filhos fossem ainda mais ricos do que ele.

Para isso andara a mourejar a vida inteira, por isso se sustentara de pão negro e de bacalhau durante os anos mais florescentes da mocidade!

O seu mais íntimo amigo, possuidor de um baronato, de avultada riqueza e de uma filha única tão prendada como ele desejava as suas, falou-lhe um dia disfarçadamente, com certa lábia, a respeito de Julião.

A meio entendedor, meia palavra basta; daí a quatro meses o comendador dava uma pequena soirée intima, em que a menina Adriana, filha do sr. Barão de X, e chegada havia dias do Sacré Coeur, era apresentada ao seu futuro noivo, o Sr. Julião Gonçalves.

Estavam só pessoas de família em casa do comendador.

Ele, a mulher, as duas filhas, o filho e Martha. Enquanto ao barão, viera simplesmente acompanhado pela filha.

Adriana era... o que dali a alguns anos haviam de ser as futuras cunhadas.

Tinha a mais umas tinturas de coqueteria parisiense, coqueteria mal ensaiada, mais colegial do que mundana.

Não se iguala nem se descreve o desdém com que ela cumprimentou Martha. Era uma vingança retrospectiva do que as suas próprias mestras lhe haviam feito passar.

Nos olhos azuis de Martha passou um relâmpago de cólera fugitiva, mas não disse nada. O que havia ela de dizer àquela gente, que a considerava um traste... bem pago?

Adriana, a quem cabiam as honras da noite, sentou-se ao piano e tocou.

Tocou as músicas de Martha, com a agilidade e com o brio de uma pianista experimentada.

Depois, levantando-se no meio de palmas e de bravos, indicou à mestra o lugar que deixara numa espécie de altivo desafio.

É que uma das irmãs de Julião lhe dissera num risinho de malícia, que o irmão gostava muito de ouvir Martha.

A moça levantou-se com um gesto automático, sentou-se ao piano e sem mesmo olhar para as músicas dispersas principiou a tocar.

Foi um adeus soluçante, cheio de lágrimas, onde a espaços passavam como brisas refrigerantes, umas vozes indizivelmente carinhosas!

Foi uma história muito triste, que ainda ninguém tinha ouvido até ali, a história de um coração despedaçado!

Como ela lhe havia querido, ao seu belo sonho desfeito, e com que dilacerante agonia lhe dizia para sempre adeus!

Na sala havia um silêncio angustioso e profundo.

O silêncio inconsciente que inspiram as grandes comoções.

Desde esse dia nunca mais ninguém ouviu a querida voz de Martha, aquela voz que tinha por interpretes os mais sublimes artistas do mundo.

Ela continua a dar lições às filhas do comendador, e há no seu sorriso uma expressão divinamente dolorida, quando fala com Adriana, a feliz esposa de Julião.

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.

Como Escrever Ficção Científica – parte 4, final

I – Escrevendo a história

1) Use o modelo da “jornada do herói” para contar a história. 

A jornada do herói é uma ferramenta muito comum na literatura e nos roteiros. Nela, o personagem principal passa por um turbilhão emocional na trama: ele começa com a vida normal e confortável, mas algo ou alguém o tira da zona de conforto. Ao longo do enredo, ele chega ao fundo do poço, mas acaba se redimindo e salvando o dia. 

Passe pelas 12 etapas da jornada com o protagonista.

1. Mundo Comum
Aqui vemos o homem que se tornará o herói em seu ambiente normal, onde há um problema implorando por solução.

2. O Chamado da Aventura
Algo muda tão drasticamente que chama o herói à ação. Ele sente a necessidade de tornar-se algo mais do que um homem comum.

3. Reticência do Herói ou Recusa do Chamado
O herói não quer ser um herói, não quer a responsabilidade, ele tem medo do que está por vir.

4. Encontro com o mentor ou Ajuda Sobrenatural
O herói encontra alguém para ajudá-lo em sua transformação de homem comum a herói. Ele é seu mentor, o homem sábio que ensina mais ao homem sobre si mesmo do que ele jamais soube.

5. Cruzamento do Primeiro Portal
O herói aceita que ele deve deixar seu mundo comum para trás, que ele deve entrar em um novo mundo e tornar-se um novo ser.

6. Provações, aliados e inimigos ou A Barriga da Baleia
O herói agora está a sua altura, lutando com seus inimigos, sendo testado fisicamente, emocionalmente e espiritualmente.

7. Aproximação
O herói ainda é um soldado e luta por seus princípios. Ele reúne aliados e se prepara para a batalha final, a batalha que vai mudar tudo. O herói descobre que não pode salvar o mundo sozinho.

8. Provação difícil ou traumática
O meio da história se dá quando o herói deve enfrentar seu maior medo, muitas vezes a morte, e aprender que da morte surge uma nova vida.

9. Recompensa
O herói, tendo enfrentado a morte, tornou-se mais do que apenas um homem, ele é capaz de lutar contra o mal como nunca antes e é recompensado, muitas vezes, por divinização. (o elixir).

10. O Caminho de Volta
Tendo alcançado seu objetivo, o de ter salvo o seu povo, o herói não vê necessidade de voltar à vida normal e à dor. Mas algo está ameaçando a recompensa que o herói recebeu. Algo ameaça tomar de volta tudo o que criou a paz, normalmente uma força maior do que se pode esperar.
As necessidades do herói o ajudam a voltar para casa. Ele precisa encontrar seu caminho de volta. Muitas vezes, uma cena de perseguição está envolvida.

11. Ressurreição do Herói
O clímax final da história é quando o herói é testado pela última vez, diferente de qualquer outra luta que ele teve antes, que o empurra a seus limites e faz com que ele use todo o conhecimento que ganhou ao longo dos anos. O herói é, finalmente, transformado.

12. Regresso com o Elixir
A jornada do herói está feita, ele pode, finalmente, viver feliz sabendo que o mundo está seguro. Ele volta para casa com o “elixir”, e o usa para ajudar todos no mundo comum.

Leia mais sobre os 12 passos da jornada do herói aqui: https://migreseunegocio.com.br/jornada-do-heroi/

A jornada do herói não é tão fechada e rígida, mas ajuda a guiar a escrita de autores inexperientes.

A jornada também ajuda na escrita de obras mais longas, como romances ou roteiros.

2) Monte a estrutura do enredo para saber o que escrever. 

Comece com um resumo da história em um parágrafo, usando cada frase para explicar as partes mais importantes da trama. Depois, detalhe cada uma dessas frases para pensar em mais informações relevantes para a obra.

3) Escreva na primeira ou na terceira pessoa. 

Determine se você quer escrever do ponto de vida do personagem ou que o leitor tenha várias perspectivas diferentes. Se escolher a primeira pessoa (frases que comecem com “Eu”), lembre-se de que vai ficar restrito à forma de o personagem principal pensar e ver as coisas. Na terceira (“Eles”), há um narrador que conta a história.

O ponto de vista na terceira pessoa permite ao autor usar um narrador, mas o leitor só tem acesso aos pensamentos e sentimentos do protagonista.

O ponto de vista na terceira pessoa onisciente também usa um narrador, mas o autor pode alternar entre os personagens da história. Embora seja possível usar a segunda pessoa (“Tu” ou “Você”), na qual o leitor é o protagonista, essa estratégia não é tão comum.

4) Escolha um tom ideal para o texto. 

A voz do autor é que torna o texto único e o diferencia de tantos outros parecidos. Use as suas experiências e linguagem próprias para dar forma à história e tornar a leitura mais interessante. Isso tudo depende do ponto de vista usado.

Veja alguns exemplos de tons: sarcástico, entusiasmado, indiferente, misterioso, amargo, sombrio, áspero, arrogante, pessimista etc.

O tom também pode ser formal ou informal. Dá para adaptar esse tom de acordo com o ponto de vista do texto. Por exemplo: você pode usar mais gírias e expressões informais se escrever na primeira pessoa.

5) Escreva diálogos convincentes. 

Leve em consideração a criação, os estudos, a idade e a profissão dos personagens quando eles falarem. Não use os diálogos de forma inverossímil.

Torne cada personagem diferente na hora de falar, ou o leitor não vai conseguir distingui-lo.

Evite os clichês, como “Você está pensando o mesmo que eu?” ou “Eu estou com um mau pressentimento”.

Preste atenção à forma de as pessoas falarem na vida real para ter uma ideia. Se necessário, peça permissão e grave algumas conversas para ter uma base de estudos mais concreta.

6) Dê um ritmo adequado à história. 

Divida a trama em três atos: no primeiro, o protagonista embarca na aventura; no segundo, surge o conflito; no terceiro, vem a resolução. Você pode acelerar ou retardar esse ritmo com capítulos mais longos ou curtos, detalhes e subtramas.

Use expressões detalhadas, mas não exagere nas explicações (para não entediar o leitor).

Varie no comprimento das frases dos diálogos. É mais fácil ler frases curtas. As mais longas, como esta, só deixam a leitura mais lenta e afetam a assimilação do enredo.

7) Escreva até sentir que a história está completa. 

Os livros de ficção científica costumam ter cerca de 100 mil palavras, mas isso não é uma regra. Determine se você tratou de todos os pontos importantes e de forma detalhada. Se sim, pronto!

Peça para as pessoas lerem o seu texto e darem opiniões sobre a sua escrita. Elas podem notar algumas coisas que passaram despercebidas por você.

8) Revise a primeira versão depois de lê-la com atenção. 

Dê um tempo de algumas semanas ou até um mês do texto para espairecer. Depois, crie um novo documento no processador de textos e anote o que você ou as outras pessoas pensaram durante a leitura — e que precisa ser alterado.

Faça várias revisões até sentir que terminou a história.

Busque um editor ou copywriter que possa editar e revisar o seu texto.
= = = = = = = = = 

DICAS

Depois de terminar, você pode publicar a história independentemente ou enviá-la a editoras profissionais.

Não tenha medo de escrever coisas que podem nunca acontecer. A ciência é a base do texto, mas a ficção também é importante.

AVISOS

Não copie as ideias de outros autores diretamente. Sempre faça algumas alterações e adaptações.

Não desista de escrever a história só por causa de um bloqueio criativo. Tenha paciência.

Referências
1. https://medium.com/@chewnami/5-tips-for-writing-science-fiction-storiesa499307a9612
2. https://medium.com/@chewnami/5-tips-for-writing-science-fiction-storiesa499307a9612
3. https://www.standoutbooks.com/3-golden-rules-writing-science-fiction-book/
4. https://www.standoutbooks.com/3-golden-rules-writing-science-fiction-book/
5. https://medium.com/@chewnami/5-tips-for-writing-science-fiction-storiesa499307a9612
6. https://www.nownovel.com/blog/elements-setting/
7. https://www.nownovel.com/blog/elements-setting/
8. https://www.nownovel.com/blog/elements-setting/
9. https://www.roleplayingtips.com/rptn/rpt170-creating-sci-fi-setting-depth-5-tipscreating-sci-fi-locations/
10. https://www.nownovel.com/blog/elements-setting/
11. https://screencraft.org/2017/08/31/7-tips-creating-memorable-characters-aaronsorkin/
12. https://thestorydepartment.com/compelling-antagonists/
13. http://scifiaddicts.com/science-fiction-writing-character-building/
14. https://screencraft.org/2017/08/31/7-tips-creating-memorable-characters-aaronsorkin/
15. https://writersedit.com/fiction-writing/effective-ways-make-more-memorablecharacters/
16. http://www.tlu.ee/~rajaleid/montaazh/Hero's%20Journey%20Arch.pdf
17. https://www.nownovel.com/blog/understanding-snowflake-method/
18. https://writingcooperative.com/choosing-your-point-of-view-d9d278c633ad
19. https://www.wheaton.edu/academics/services/writing-center/writingresources/style-diction-tone-and-voice/
20. https://ellenbrockediting.com/2014/07/04/novel-boot-camp-lecture-4-writingbelievable-dialogue/
21. https://www.nownovel.com/blog/pacing-in-writing-5-tips/
22. http://blog.bookbaby.com/2015/01/how-to-know-when-youre-done-writing-yournovel/
23. https://thewritepractice.com/how-to-revise-a-story/?hvid=4tvwmm

Fonte: Wikihow
https://pt.wikihow.com/Escrever-Fic%C3%A7%C3%A3o-Cient%C3%ADfica#Refer.C3.AAncias

Aparecido Raimundo de Souza (Pepino e chuva de arroz)

NO INTERIOR da loja vazia, o casal de funcionários tenta matar o tempo. O rapaz lê um gibi do Fantasma e o casamento dele com a linda e esfuziante Diana, na lendária “Caverna da Caveira.” A moça folheia uma Marie Claire dos idos de quando a modelo Kylie Bax (da Marilyn) ainda se constituía na sensação do momento e Marilene Felinto atravessava a caatinga e entrevistava a escritora Rachel de Queiróz. Vez em quando, crava os desconfortos de não ter nada a fazer, num painel gigantesco onde uma onça pintada na vedação provisória em frente de uma futura loja em construção se desbotou e deixou de ser um chamarisco (chamariz) para os que vem e vão. O rapaz parece absorto na história em quadrinhos. Nem pisca. A moça segue com a revista nas mãos. Seu rosto é vazio e cheio de tediosa melancolia. 

Para variar, espia demoradamente para o relógio de pulso e para um outro pregado na parede logo acima das vitrinas. As horas parecem paradas no espaço. O calor é sufocante. O ventilador de teto não dá vazão, ao contrário, faz um barulho estranho e ensurdecedor. Vento que é bom, para refrescar o ambiente, deixa a desejar. O rapaz larga a revista e some atrás de um biombo azul marinho, onde há um reservado longe das vistas do público. Prepara um café. Vira, de vez, o copo de plástico minúsculo e se queda numa fisionomia de poucos amigos. “Maldita garrafa térmica” – pensa –, enquanto se livra do copinho que atira ao cesto –, “não serve nem para manter uma bebida em temperatura agradável.” 

Volta para seu posto. Reassume a cadeira e continua a leitura de onde interrompeu. A moça, igualmente larga a revista. Nada que prenda a sua atenção. Levanta, vai também até o reservado. Pega um copo de água e emborca num gole só. Quando volta –, dá de frente com um senhor entrando na loja, atarracada a uma criança de colo nos braços. Caminha até ele, solícita, como uma boa atendente deve ser. As mãos cruzadas às costas, um sorriso forçado nos lábios carnudos. “Meu Deus, ainda bem que apareceu alguém.”
— Pois não? Em que posso ajuda-lo?
— Em nada. Estou só dando uma olhadinha. Obrigado! 
— Fique à vontade.

O cidadão não demora mais que cinco minutos. Sai, em seguida, não sem antes fazer um aceno de cabeça à jovem. Ela então o segue até a porta. Olha demoradamente para o saguão. Um número infindável de pessoas caminha, de um lado para outro. A praça onde está montado um parquinho, tem crianças de todas as idades saindo pelo ladrão. Ao contrário do seu comércio. Desolado e vazio. O rapaz larga o gibi. Resolve fazer companhia à amiga de infortúnio. Se posta ao lado dela. Fala:
— Já pensou se metade desse povo resolvesse entrar aqui?
Risos:
— Venderíamos bem.
— A comissão seria gorda.

— É verdade.
— Por que será que ninguém vem para o nosso lado?
— O produto que vendemos não faz parte daqueles considerados de primeira necessidade.
— Claro que sim.
— Faça um teste. Tente contar, no meio da multidão, quantas pessoas estão usando óculos. E quantas se cruzam mastigando um lanche.
— Vamos ver: uma, duas, três... quatro...
O tempo passa:
— Ali, aquela madame de vermelho. Cinco.
— A beldade de saia bordada. Seis.

As horas, ao contrário, parecem algemadas aos ponteiros que não deixam o tempo seguir seu curso:
— Só consegui meia dúzia.
— Conte, agora, os comilões...
— Um, dois, três, cinco, nove, doze, quinze... tem razão.
— Claro que o shopping não vive só de famintos. Observe aquela loja de calças e saias jeans. 
— Um formigueiro.
— E aquela, de calçados?
— Repleta.
— Já espiou na de eletroeletrônicos?
— Não dá nem para os vendedores respirarem.

— Consegue contar o número de cabeças nos jogos eletrônicos?
— Impossível.
— Tem gente esperando vez.
— E quanto a nós?
— Ninguém entra.
— Nem sai...  
— Engraçadinho.
— E se fizéssemos uma promoção?
— Como assim?
— Suponhamos que colocássemos nas vitrinas algo chamativo?

— Algo chamativo? Numa ótica? Só se fosse você pelada com um monte de armações penduradas no pescoço...
A jovem se irrita. Solta os cachorros: 
— Por que não chama sua mãezinha?
— Apesar dela ser bem idosa, nunca precisou dessas porcarias. Aliás, odeia qualquer tipo de armação. Quiser arranjar briga com ela é pedir para botar -, ainda que para experimentar, um óculo de sol, de descanso, ou de grau. Certamente viraria bicho. 
— Sua irmã?
— Qual é. Resolveu me ofender?

— Você começou. Pensei em algo que empanturrasse de coraçõezinhos vermelhos e pulsantes os olhos da galera. E você me vem com essa de me por exposta, e ainda por cima pelada, sem nada, na vitrine. Faça graça!
— Não precisava me levar a mal. Falei brincando. O negócio é descontrair. Cá entre nós: que iria alvoroçar com a massa circundante, não tenho a menor dúvida.
— Vamos botar você pelado. O que me diz?
— Sou muito feio...
— Aposto que abafaria. Sua feiúra ajudaria...

— Nem morto. Que tal nós?... quero dizer... cada um colocando os óculos na cara um do outro?
— Mané.
A funcionária volta, meio que furiosa, para seu lugar e se conforma em enganar o tempo “refolheando” a velha Marie Claire. Parece se interessar, por uma reportagem sobre homens grávidos. O rapaz também vem no vácuo dela. Se acomoda, amofinado. A história do Fantasma da “Caverna da Caveira” (tirando, claro, a colega pelada, exposta como veio ao mundo na vitrine), daria mais emoção e literalmente prenderia a atenção. 

Não dos possíveis clientes, obviamente, mas dele próprio. Quanto a tal questão proposta, não haveria a menor dúvida. A loja deserta de clientes viraria uma algazarra tormentosa jamais vista naquele quadrado. A ótica esquecida deixaria de ser fria como o gelo do piso e se tornaria causticante como o inferno na parte de dentro, onde a massa humana em total alvoroço, para se aproximar da peladona, não teria espaço, sequer para respirar.   

Fonte: Texto enviado pelo autor 

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Versejando 128

 

Mensagem na Garrafa – 53 -

Marcus Facciollo
São Paulo/SP

A MAIOR SOLIDÃO DO SER HUMANO

Uma pessoa pode sentir-se sozinha quando está longe de suas pessoas queridas, quando não tem (ou pensa que não tem) amigos, pessoas que a entendam, lhe deem carinho, atenção, quando termina um relacionamento afetivo, perde um ente querido... São muitas as possibilidades que trazem o sentimento de solidão.

Mas, a pior solidão que alguém pode sentir é a de não ter a si, estar distante de seu interior, de sua verdade, não saber quem é. Quando não sabemos de verdade o que somos, o que queremos, nos sentimos perdidos e sozinhos. Ora, nem nós mesmos nos conhecemos, por conseguinte, não conseguimos saber ao certo o que somos e queremos, não somos companheiros de verdade da gente. Não agimos seguindo decisões e desejos autênticos, somos levados pela opinião dos outros, pela vida ou por valores que estão dentro de nós mas que aí se instalaram vindo de fora, com nossa permissão, claro, mesmo que inconsciente, mas não representam nosso eu verdadeiro.

Alguém nesse estado pode estar rodeado de gente que a ame, dê apoio, compreensão, mas mesmo assim estará se sentindo só, muito, desesperadamente até. Uma solidão que nada que vem de fora pode aplacar de verdade se algo não for feito pela própria pessoa que se sente solitária.

É muito ruim olharmos para dentro de nós e encontrarmos ideias confusas, valores duvidosos, falta de autoconfiança criada por mensagens incorporadas vida afora e pelo não conhecimento de nossa real identidade. Se eu não sei quem sou verdadeiramente, não me conheço, não sei me ajudar, me acompanhar, me amar.

Essa profunda solidão, da ausência do eu verdadeiro, provoca imensa instabilidade e dor. Muitos distúrbios afetivos podem daí advir, como a depressão, por exemplo. Quem passa ou passou por isso sabe como é duro viver nessa condição. E às vezes nem todo o apoio externo a suaviza.

O caminho para resolver essa solidão interior é voltar-se para dentro, cada um em seu tempo, de seu jeito, às vezes procurando a orientação de alguém habilitado, e tentar resgatar seu eu autêntico, suas vontades, preceitos, qualidades e aptidões que podem estar esquecidos lá no fundo, encobertos por toneladas de elementos errôneos, pensamentos exteriores de qualidade duvidosa e mensagens negativas que se permitiu que estacionassem no íntimo do ser.

Esse trabalho de autoconhecimento e redescoberta, de resgate do eu verdadeiro, nos aproxima mais de nós mesmos, de nossa verdade. Vamos nos achando de novo, percebendo o que temos feito que está ou não de acordo com o que realmente queremos e precisamos. Esse resgate, invariavelmente, faz com que reconheçamos nossas verdadeiras qualidades, limites também (e esses concluímos se podem e devem ser superados, quando e como). Vamos limpando o interior do que não é nosso e percebendo o que de bom temos, vamos reaprendendo a nos gostar.

Assim, começamos a nos nortear novamente na existência, mais seguros, mais senhores e companheiros de nós, mais centrados, com mais autorrespeito, autovalorização. Nos amando e conhecendo mais, sabendo pelo que queremos lutar sinceramente; temos para onde olhar quando procuramos respostas e referências: dentro da gente. Somos uma grande companhia e amizade para nós mesmos, não estamos mais sós. Quando tenho a mim, sinceramente, não me sinto só nem desorientado, Posso ficar confuso às vezes, mas sei como parar, refletir e encontrar o rumo novamente.

Não me sentindo mais só, com falta de mim, posso perceber melhor a vida (e aprender melhor com a leitura que faço dela), seus acontecimentos, as pessoas a meu lado e o que têm de bom a me oferecer. Fico cada vez mais aberto e firme, melhor para viver minha relação comigo e as relações interpessoais de todos os tipos (profissionais, familiares, afetivas, etc.). Fico cada vez mais distante da solidão.
(Fonte: Portal da Psique)

Humberto de Campos (Obediência)

Mal saída do colégio, para onde entrara ainda criança, isto é, desde que o pai, o comendador Anacleto, enviuvara, foi a encantadora Maria Lúcia residir no palacete recentemente alugado pelo velho capitalista em uma das ruas menos movimentadas de Botafogo. Deslumbrada com a liberdade conquistada à força de estudo, de uma aplicação que lhe granjeara o primeiro lugar na sua turma, apenas uma coisa a desgostou: foi a recomendação que lhe fez o pai, severo e prudente:

- Olha, minha filha; esta casa é tua; governa-a como se fosses a dona. Uma coisa, apenas, eu te peço: vive isolada, sem relações de amizade, e nunca, em hipótese alguma, incomodes os vizinhos.

E beijando-lhe a testa clara. coroada por uns lindos cabelos castanhos:

- Muito juizinho, ouviu?

Duas semanas não se tinham passado sobre a libertação de Maria Lúcia, quando uma quadrilha de ladrões, vendo, uma tarde, sair as criadas, que a jovem patroa indultara naquele dia, resolveu assaltar, pulando o muro dos fundos, o palacete do comendador. Descalços, em mangas de camisa, chapéu em cima dos olhos, os miseráveis penetraram na casa e, desrespeitando a fraqueza da moça, praticaram toda a sorte de depredações, esvaziando as gavetas, arrombando os cofres de joias, carregando, enfim, com todas as coisas de valor que havia na residência do honrado capitalista.

À noite, ao abrir a porta, de regresso ao lar, o comendador teve um pressentimento triste, ao ver a casa às escuras. Abertas, porém, as lâmpadas, recuou, horrorizado, para, em seguida, precipitar-se, de compartimento em compartimento, chamando, aflito, pela menina:

- Maria Lúcia? Maria Lúcia? Onde estás, minha filha?

No último quarto da casa, esperava-o uma surpresa maior: sentada no leito, desgrenhada pálida, com as vestes em desalinho, Maria Lúcia chorava, com a cabeça nas mãos.

- Minha filha da minh'alma! - gemeu o velho, atirando-se para ela. - Que foi isso?

- Os ladrões!... - explicou a moça, num gemido.

E enxugando os olhos;

- Levaram tudo: as roupas, as joias, a louça, tudo, enfim. Depois...

- Depois?... - rugiu o velho, com os olhos esbugalhados.

- Desgraçaram-me!... - concluiu a moça, prorrompendo em soluços.

- Desgraçaram-te?... - gritou o velho, de dentes e punhos cerrados, com um rugido soturno, cavo, de fera atingida no coração.

E após um instante de silencio desesperado:

- E como foi? Amarraram-te?

- Não, senhor.

- Subjugaram-te?

- Não, senhor.

- Taparam-te a boca?

- Não, senhor.

- E por que não gritaste? - berrou o ancião, parando, de súbito, no meio do quarto.

E a moça, levantando para ele, num soluço, os lindos olhos machucados de lágrimas:

- Papai não disse que eu não incomodasse os vizinhos?

Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Disponível em Domínio Público. 

Luigi Pirandello (A luz da outra casa)

Foi numa tarde de domingo, ao voltar de um longo passeio.

Tulio Buti alugara aquele quarto havia dois meses apenas. A dona da casa, Senhora Nini, boa velhota à antiga, e a filha, solteirona, desiludida, não o viam nunca. Ele costumava sair de casa, todos os dias, de manhã cedo, e só voltava à noite, a horas mortas. Sabiam que era funcionário do Ministério de Graça e Justiça; sabiam também que era advogado. Mais nada.

O quarto, pequeno e estreito, modestamente mobiliado, não conservava nenhum vestígio seu, como se ele, de propósito, quisesse aí permanecer ignorado, como num quarto de hotel. Uma caixa de madeira para a roupa branca; um armário para os ternos; mas nas paredes, sobre os outros móveis, nada; nem um estojo, nem um livro, nem um retrato; nada, nem nunca, sobre alguma cadeira, uma peça de roupa branca esquecida, um colete, uma gravata, nada enfim que pudesse confirmar a sua existência naquela casa.

Mãe e filha temiam que ele aí não permanecesse muito tempo. Fora tão difícil alugar aquele quarto! Vieram vê-lo muitos, mas ninguém o quis. Realmente, não era muito cômodo, nem muito alegre. Tinha só uma janela, que dava para uma ruazinha estreita, privada, e da qual não recebia luz nem ar, devido à casa fronteira, que o impedia.

Mãe e filha estudavam e preparavam atenções e cuidados para prender o inquilino tão almejado: "Faremos isto... diremos isto..." — e mais isto e mais aquilo; sobretudo a filha, Clotildinha... Quantas delicadezas, quantas finezas! Tudo, porém, desinteressadamente, sem malícia, sem segundas intenções... Mas como, se ele não aparecia nunca?

Se acaso o vissem, compreenderiam logo quanto era infundado o seu receio. Aquele quartinho triste, escuro, tapado pela casa fronteira, condizia bem com o temperamento do inquilino.

Tulio Buti andava sempre sozinho, sem mesmo os dois companheiros dos solitários mais equívocos: a bengala e o cigarro. Com as mãos enterradas nos bolsos do capote de ombros encolhidos, taciturno, dir-se-ia que incubasse o ódio mais profundo contra a vida.

Na repartição não trocava nem uma palavra com os seus colegas, os quais hesitavam entre os dois apelidos que lhe enquadrassem melhor: urso ou coruja.

Ainda ninguém o vira entrar, à tarde, num café; em compensação, muitos o tinham visto evitar, às pressas, as ruas mais frequentadas e iluminadas, para mergulhar na sombra das longas alamedas, direitas e solitárias, dos arrabaldes distantes, afastando-se dos muros, toda vez que encontrava o círculo de luz que os faróis projetam sobre a calçada.

Nem um gesto involuntário, nem mesmo a mínima contração dos músculos da face, nem um movimento dos olhos ou dos lábios traíam os pensamentos em que parecia absorto, o secreto pesar em que se fechava. Mas deste secreto pesar e dos lúgubres pensamentos que se lhe aninhavam no cérebro estava toda impregnada a sua fisionomia. A devastação, que eles deviam produzir naquela alma, estava flagrante na fixidez espasmódica dos olhos claros, agudos, na lividez do rosto desfigurado, nos precoces fios grisalhos da barba crespa e desleixada.

Tulio Buti não escrevia nem recebia cartas; não lia jornais; não parava nem se virava para ver o que quer que acontecesse pela rua e que atraísse a alheia curiosidade e, se alguma vez a chuva o colhia de improviso, continuava caminhando, no mesmo passo, como se nada tivesse acontecido.

Por que insistia em viver desse modo, era o que ninguém sabia... Nem ele mesmo, talvez. Vivia... Nem sequer suspeitava que fosse possível viver de modo diverso, ou então, que, vivendo-se diversamente, se poderia diminuir o peso da tristeza e do tédio.

Não tivera infância, não fora moço. As cenas selvagens a que assistira, no lar, desde os mais tenros anos, motivadas pela brutalidade e pela tirania feroz do pai, lhe haviam crestado no espírito todos os germes de vida.

Morta a mãe, vítima de atrozes sevícias do marido, a família se dispersara: uma irmã entrou para o convento, um irmão fugiu para a, América, ele também fugira e, errante, graças a incríveis sacrifícios, tinha conseguido alcançar a posição que hoje ocupava.

Agora, não sofria mais. Parecia que sofria, mas até o sentimento da dor se obliterara nele. Parecia que estava absorto sempre em pensamento, – engano - já nem sequer pensava. O espírito ficara-lhe como que suspenso numa espécie de atônita obscuridade, que só lhe permitia perceber um quê de amargo na garganta. À noite, passeando pelas ruas solitárias, contava, mentalmente, os lampiões, mais nada, ou olhava para a sua sombra ou escutava o som dos seus passos, ou alguma vez, parava diante dos jardins das vilas, a contemplar os ciprestes mudos e fechados como ele, mais noturnos do que a própria noite.

Naquele domingo, cansado do longo passeio pela rua Ápia antiga, e contra os seus hábitos, decidiu recolher-se. Era ainda cedo para a ceia. Ficaria esperando no quarto, que o dia acabasse de morrer.

Para as Nini, mãe e filha, foi uma surpresa bastante agradável. Clotildinha até bateu as mãos de contente. Quais dos muitos cuidados e atenções estudados e preparados, quais das muitas finezas e distinções particulares, dispensar-lhe em primeiro lugar? A mãe e a filha confabularam, e de repente, Clotildinha firmou um pé e bateu com a mão na testa. Ó, santo Deus, antes de tudo, a luz! Era preciso levar-lhe o lampião, o melhor, o que estava guardado de propósito, que tinha umas papoulas pintadas na porcelana, e era de globo esmerilhado. Acendeu-o, e foi bater discretamente à porta do inquilino. Tremia tanto, de emoção, que o globo, oscilando, batia no tubo, que ameaçava esfumaçar-se.

— Com licença? O lampião...

— Não, muito obrigado. — respondeu Buti, do outro lado. — Eu saio já.

A solteirona fez uma careta, e de olhos abaixados, como se o inquilino a estivesse vendo, insistiu:

— Tenho-o aqui... É para não deixá-lo no escuro...

Buti, porém, repetiu secamente:

— Não, muito obrigado.

Estava sentado no pequeno canapé, em frente à mesa, e escancarava os olhos na sombra que, pouco a pouco se ia adensando no quartinho, enquanto nos vidros da janela tristemente desmaiava o último reflexo do crepúsculo.

Quanto tempo esteve assim, inerte, com os olhos escancarados, sem pensar, sem perceber as trevas que já o tinham envolvido?

De repente, os seus olhos viram. Olhou em torno de si, espantado. O quarto se havia realmente iluminado, de improviso, como se um sopro misterioso o tivesse enchido de um brando lume discreto.

Que era? Que acontecera?

Isto: a luz da outra casa. Acendera-se, na casa fronteira, um lampião. Era o hálito de uma vida exterior que vinha desfazer as trevas, o vácuo, o deserto de sua existência...

Ficou, longo tempo, contemplando aquele clarão, como se fosse efeito de magia, e uma angústia intensa lhe apertou a garganta ao notar com que suave carícia ele se pousava sobre o seu leito, sobre a parede, e sobre as suas mãos pálidas abandonadas sobre a mesa. Surgiu-lhe no meio daquela angústia, a lembrança do seu lar destruído, da sua infância oprimida, de sua mãe, foi como se a luz de uma alvorada, de uma alvorada distante, expirasse na noite do seu espírito.

Ergueu-se, foi à janela e, furtivamente, por trás dos vidros, olhou para a casa fronteira, para a janela de onde lhe vinha aquele raio de luz.

Viu uma família pequena reunida em torno da mesa de jantar: três meninos, o pai, que estava sentado, e a mãe que, ainda de pé, os estava servindo e procurando — segundo o que ele deduzia dos movimentos — refrear a impaciência dos dois maiores, que brandiam a colher e se sacudiam na cadeira. O último esticava o pescoço, agitava a cabecinha loira: evidentemente, lhe haviam amarrado com muita força o guardanapo, mas se a mãe se apressasse em servir-lhe a sopa, ele não mais se queixaria daquele nó muito forte. Era isso mesmo. Com que voracidade começou a comer! Enfiava a colher inteira na boca... E o pai, através do fumo que se erguia do seu prato, ria. Agora, a mãe também se havia sentado ao lado deles, ali mesmo, em frente.... Tulio Buti tentou recuar, instintivamente, vendo que ela, ao sentar-se, erguera os olhos para a janela, mas lembrou-se de que, estando no escuro, não podia ser visto, e continuou a assistir a ceia daquela pequena família, esquecendo-se prontamente da sua.

Desse dia em diante, todas as tardes, saindo da repartição, ao invés de se dirigir para os seus habituais passeios solitários, enveredava pelo caminho da sua casa, esperava, todas as tardes, que as trevas do seu quarto se desfizessem, suavemente, sob a luz da outra casa, e aí ficava, atrás dos vidros, como um mendigo, a saborear, com angústia infinita, aquela doce e amorável intimidade, de que os outros gozavam e de que ele, em criança, numa ou noutra rara tarde de paz, gozara também, quando a mãe... a sua mãe... como aquela... e chorava.

Sim. A luz da outra casa operou este prodígio. A obscuridade atônita em que seu espírito permanecera suspenso durante tantos anos, se dissolveu sob o influxo daquela luz suave. Entretanto, Tulio Buti não pensou em todas as suposições estranhas que a sua atitude devia fazer nascer na dona da casa e na filha.

Por mais duas vezes, Clotildinha tentara oferecer-lhe o lampião. Tivesse, ao menos, acendido a vela! Não, nem isso. Porventura, sentia-se mal? 0usara perguntar-lhe Clotildinha, com voz meiga, na segunda vez que lhe fora bater à porta. Ele lhe havia respondido:

— Não! Estou bem assim...

Mas, santo Deus! Não precisava realmente de luz... Clotildinha espiava pelo buraco da fechadura e vira, maravilhada, no quarto do inquilino, a luz difusa da outra casa, exatamente da casa da família Masci, e o que é pior, vira ele, por trás dos vidros da janela preocupado em contemplar a casa da família Masci... E Clotildinha correra toda sobressaltada, a anunciar à mãe a grande descoberta:

— Ele está enamorado de Margarida! De Margarida Masci!

Poucos dias depois, uma tarde, enquanto estava a contemplar, Tulio Buti viu, com surpresa, naquela sala fronteira, onde a pequena família habitualmente — (naquela tarde faltava o pai) — se reunia ao jantar, viu entrar a velhinha, sua dona de casa e a filha, que foram acolhidas como amigas de longa data.

Num dado instante, Tulio Buti recuou, de um salto, ansioso, perturbado. A mãezinha e os três pequenos tinham erguido os olhos, na direção da sua janela. Sem dúvida, aquelas duas estavam falando dele.

E agora? Agora, talvez tudo estivesse acabado!

Na tarde seguinte, aquela mãezinha ou o marido, sabendo que no quartinho em frente havia um homem que misteriosamente os espiava na escuridão, fechariam as janelas, e assim daí por diante não lhe viria mais aquela luz de que vivia, aquela luz que era o seu gozo inocente, o seu consolo...

Mas não foi o que aconteceu.

Naquela mesma noite, assim que a luz da outra casa se apagou, e ele mergulhado na treva, depois de ter esperado ainda um pouco que a família se recolhesse, foi abrir cautelosamente a janela para renovar o ar, viu que a janela de lá estava também aberta, viu pouco depois (e, mesmo no escuro, teve um estremecimento de espanto), viu assomar àquela janela a mulher, talvez curiosa de tudo quanto lhe haviam contado dele as Nini, mãe e filha.

Aquelas duas casas muito altas, que abriam, tão perto um do outro, os olhos das suas janelas, não deixavam ver em cima a faixa clara do céu, nem embaixo a faixa escura da terra, fechada numa das extremidades por um portão, não deixavam penetrar jamais nem um raio de sol, nem um raio de lua.

Ela, portanto, não podia ter assomado à janela senão por causa dele e, naturalmente, porque percebera que ele também se achava debruçado na sua janela apagada.

Na escuridão, mal se podiam distinguir. Ele, porém, sabia desde algum tempo que ela era formosa; já lhe conhecia todo o encanto dos seus movimentos, os lampejos dos seus olhos pretos, os sorrisos dos seus lábios vermelhos...

Antes de tudo, porém, naquela primeira vez, devido à surpresa que o revolvia todo e lhe tolhia a respiração, num frêmito de inquietude, ele teve pena; foi preciso fazer um esforço violento sobre si mesmo para não recuar, para esperar que ela se retirasse antes dele.

Aquele sonho de paz, de amor, de suave e doce intimidade, que ele imaginara reinar sobre aquela pequena família e de que ele também, por reflexo, tinha até gozado, se desmanchava todo, se aquela mulher às escondidas, no escuro, vinha à janela por causa de um estranho... Mas este estranho não era ele? E antes de se retirar, antes de fechar a vidraça, ela lhe sussurrou:

— Boa-noite!

Que coisas haviam fantasiado a seu respeito as duas mulheres que o hospedavam, e que excitaram e acenderam tanto a curiosidade daquela mulher? Que atração estranha, poderosa, operava sobre ela o mistério daquela sua vida enclausurada, se desde a primeira vez ela, deixando de lado os seus filhinhos, viera a ele, como que para fazer-lhe companhia?

Sim, um em frente ao outro, ainda que ambos tivessem evitado olhar-se e tivessem quase fingido, reciprocamente, que estavam à janela sem nenhuma intenção, ambos  sim, ambos — ele estava certo disso — tinham vibrado pelo mesmo frêmito de expectativa, ignorada, espantados da atração que, tão de perto, os envolvia no escuro.

Quando, muito tarde, ele fechou a janela, teve a certeza de que na tarde seguinte, depois de apagada a luz, ela voltaria por causa dele. E foi de fato assim.

Daí por diante, Tulio Buti não esperou mais no seu quarto a luz da outra casa; ao contrário esperou com impaciência que a luz se apagasse.

A paixão do amor, ainda não experimentada, irrompeu, devoradora, tremenda, no coração daquele homem que estivera por tantos anos fora da vida, e investiu, absorveu, arrastou, como num turbilhão, aquela mulher.

No mesmo dia em que ele se retirou do quartinho da casa das Nini, explodiu como uma bomba a notícia de que a senhora do terceiro andar, ao lado, a Masci, tinha abandonado o marido e os três filhos.

Ficou vazio o quartinho que hospedara, durante quase quatro meses, ao Buti; ficou apagada, por algumas semanas, a sala da frente, onde a pequena família costumava reunir-se à hora do jantar.

Depois, acendeu-se de novo a luz sobre aquela mesa triste em torno da qual um pai apalermado pela desgraça contemplava os rostos espantados de três crianças, que não ousavam volver os olhos para a porta, por onde a mãe costumava entrar todas as noites, com a sopeira fumegante.

Aquela luz reacendida sobre a mesa triste tornou, então, a clarear suavemente o quartinho fronteiro, vazio.

Lembraram-se dela, alguns meses após a sua cruel loucura, Tulio Buti e a amante?

Uma noite as Nini, espantadas, viram aparecer diante delas, desfigurado e convulso, o seu estranho inquilino, que queria o quarto, se ainda estivesse desalugado!

Não, não para si, não para morar! Mas poder ficar aí, todas as tardes, uma hora apenas, às escondidas! Ah, por piedade, por piedade daquela pobre mãe que desejava rever, de longe, sem ser vista, os seus filhinhos! Tomariam todas as precauções necessárias, se fosse preciso, se mascarariam, aproveitariam todas as tardes o momento em que não houvesse ninguém pelas escadas; ele pagaria o dobro, o triplo pelo aluguel, só para aquele minuto breve...

— Não. As Nini não quiseram consentir. Apenas enquanto o quartinho estivesse desalugado, consentiram que algumas vezes, muito raras...— Oh, mas pelo amor de Deus! Com a condição de que ninguém os descobrisse!... Algumas raras vezes...

Na tarde seguinte, eles vieram, como dois ladrões. Entraram, quase cambaleando, no quartinho às escuras, e esperaram, e esperaram que ele alvorecesse de novo sob a luz da outra casa.

Dessa luz deviam viver eles, assim, de longe.

E a luz apareceu!

Tulio Buti, a princípio, não pôde suportá-la. Como lhe pareceu gelada agora, ríspida, cruel, espectral, criminosa! Ela, porém, com os soluços que lhe borbulhavam na garganta, teve sede daquela luz, bebeu-a de um hausto, precipitou-se para os vidros da janela, apertando o lenço contra a boca. Os seus filhinhos... os seus filhinhos... os seus filhinhos estavam lá... à mesa, inocentes...

Ele correu a ampará-la nos braços, e ambos ficaram ali, estreitamente unidos, como que pregados, espiando.

Fonte: Luigi Pirandello. A luz da outra casa: novelas escolhidas. Publicado em 1932. 
Disponível em Domínio Público