sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Hinos de Cidades Brasileiras (Taubaté/SP)


letra por Péricles Nogueira Santos

Taubaté das Bandeiras - que ousaram
desbravar ínvias selvas, com glória.
Taubaté, cujos filhos não param,
sempre em marcha nas asas da História.
Taubaté das Moções, na erradia
epopeia por rios e lapas,
qual titã a fazer Geografia,
implantando fronteiras nos mapas!

A louvar-te, com ânsia,
tanjam todos os sinos...
Vens de longa distância,
vais a altos destinos.

Quando outrora o café, soberano,
todo em ouro, qual Midas, floria
alto nível o clã taubateano,
de riqueza, se alteando, atingia.
E tal é o poder, que então goza
(decantado, na época, em aulo)
que a cidade chegou poderosa,
a se sombrear com a própria São Paulo!

A louvar-te, com ânsia,
tanjam todos os sinos...
Vens de longa distância,
vais a altos destinos.

E hoje, rica e industrial, o esplendor
a ostentar de moderna cidade,
tens no ensino tal vulto e labor
que és, inteira, uma só faculdade!
Mas, sem ti o progresso se espalma
e em concreto te elevas, heril,
és a mesma cidade com alma
que nasceu no alvorar do Brasil!

Contos e Lendas da África (O tambor mágico)


por Robert Hamill Nassau

PERSONAGENS
Kudu (Cágado)
Rei Maseni (homem)
Njâ (Leopardo)
Ngâmâ (tambor mágico)

PREFÁCIO
Este conto explica a razão pela qual a tribo dos cágados vive somente na água.
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Antigamente, a humanidade e todas as tribos de animais viviam juntos em uma única nação. Construíam suas aldeias e moravam todos no mesmo lugar. No país do Rei Maseni, o Cágado e o Leopardo ocupavam a mesma cidade; cada um em uma extremidade da rua.

O Leopardo tinha duas esposas e o Cágado também.

Aquela região do país sofria com escassez de comida. A fome castigava todas as tribos. O Rei Maseni estabeleceu uma lei dizendo que toda caça ou comida encontradas deveriam ser levadas até ele — para que assim fossem divididas igualmente. Também colocou soldados para vigiar todo o país. 

A fome só aumentava. As pessoas, sem esperança, não sabiam o que fazer e muitos morriam de fome. Assim como hoje, esse é um mal que aflige os povos pobres, não somente da África, mas também nas terras do Manga-Manĕne (terra dos homens brancos).

Os dias se passavam sem que ninguém encontrasse uma solução. Certo dia, o Cágado saiu cedo de sua casa e adentrou a selva, procurando um tipo especial de alimento: cogumelos.

— Vou seguir pela praia na direção sul — avisou à sua esposa.

Caminhou até encontrar um grande rio, com quilômetros de largura. Havia um coqueiro em uma das margens e, quando o Cágado se aproximou para examinar melhor, viu que estava repleto de cocos.

— Estou morto de fome, vou subir pelo tronco e apanhar os frutos — disse a si mesmo.

Colocou sua bolsa de viagem no chão e imediatamente subiu na árvore. Colheu dois e os jogou ao chão. O terceiro escorregou de sua mão e caiu no rio que corria ao lado.

— Com a fome que tenho, não deixarei um coco se perder na água! — exclamou o Cágado. — Vou mergulhar atrás dele.

E saltou para a água — tchibum! Afundou no local onde o coco havia caído, mas ambos foram apanhados pela correnteza e levados por uma boa distância até chegarem a uma curva na qual o leito se alargava criando uma praia. Mais adiante havia um vilarejo desconhecido onde erguia-se uma grande casa. Haviam pessoas ao redor e dentro dela. As que estavam fora chamaram o Cágado, e ele pôde ouvir alguém gritando lá de dentro:

— Leve-me! Leve-me!

(Era um tambor falante.)

Uma mulher dava banho em uma criança na beira do rio e perguntou:

— O que o traz aqui, Kudu? E para onde está indo?

— Minha cidade está sofrendo com a escassez — explicou o Cágado. — Por isso fui à floresta procurar cogumelos. Subi em um coqueiro. Comecei a colher os cocos e deixei um cair no rio. Pulei atrás dele e cheguei aqui.

— Então você encontrou sua salvação, Kudu! — respondeu a mulher. — Vá até aquela casa. Lá você vai encontrar uma coisa. É um tambor. Vá pegá-lo agora.

Uma das pessoas do povoado acrescentou:

— Você verá várias dessas coisas lá dentro. Não pegue o tambor que fica dizendo “Leve-me, leve-me”. Você deve escolher o que não diz nada o que apenas emite o som “wo-wo-wo”. Leve-o com você e amarre-o no tronco do coqueiro. Então diga a ele: “Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!”.

O Cágado seguiu essas instruções. Entrou na casa, apanhou o tambor e levou-o à beira do rio onde a mulher estava.

— Faça um teste primeiro, para aprender a usá-lo. Bata! — instruiu ela. 

Quando o Cágado fez isso, instantaneamente surgiu uma mesa com vários tipos de comida. Após comer, disse ao tambor:

— Guarde!

E a mesa desapareceu.

O Cágado levou o tambor diretamente para o coqueiro. Amarrou-o ao tronco com uma corda de fibra e então ordenou:

— Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!

No mesmo instante, do tambor surgiu uma longa mesa, com vários tipos de comida. O Cágado ficou muito feliz com toda aquela abundância. Comeu até se fartar e repetiu a ordem:

— Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!

O tambor recolheu a mesa, mas deixou um pouco de comida ao pé do coqueiro. Depois, voltou para as mãos do Cágado. Kudu colocou os alimentos em sua bolsa, junto com os cocos que havia apanhado de manhã, e tomou o caminho de volta para casa. Parou quando estava quase chegando à cidade. Estava tão encantado com os poderes do tambor que fez mais um teste. Bateu no instrumento outra vez. Novamente uma grande mesa cheia de comida apareceu. O Cágado comeu uma vez mais e guardou mais um pouco em sua bolsa. Virou-se para uma árvore que havia o lado e ordenou:

— Curve-se!

A árvore obedeceu e ele amarrou o tambor em um galho. Ao chegar na cidade, deu os cocos e cogumelos a suas esposas e filhos. Quando entraram todos em casa, sua esposa principal perguntou:

— Onde você esteve todo esse tempo?

— Fui até a praia tentar colher cocos — justificou-se ele. — E encontrei muitas coisas boas. Veja!

Abriu a bolsa e tirou batatas, arroz e carne.

— Podemos comer, mas Njâ não deve saber disso.

Então ele, suas esposas e filhos fizeram uma grande refeição. O dia escureceu logo e foram todos dormir. O novo dia não tardaria. Ao amanhecer, o Cágado voltou ao lugar onde havia deixado o tambor. Logo que chegou à árvore, ordenou:

— Ngâmâ! Faça como lhe mandaram!

O tambor rapidamente desceu ao chão e fez aparecer uma mesa farta. O Cágado comeu parte da comida até matar sua fome, depois colocou o restante em sua bolsa. Então deu outra ordem:

— Guarde tudo!

O tambor recolheu as coisas e voltou ao galho. No dia seguinte, ao amanhecer, o Cágado retornou à árvore e repetiu suas ordens. Alguns dias mais tarde, enquanto se dirigia para o esconderijo do tambor, seu filho mais velho o seguiu, pois estava curioso para saber como o pai conseguia tanta comida. Quando o Cágado chegou à árvore, seu filho se escondeu e ficou imóvel, observando. Kudu deu o comando novamente:

— Curve-se!

E a árvore obedeceu. O jovem testemunhou tudo, a forma como seu pai apanhou o tambor, bateu e ordenou “Faça como lhe mandaram”.

A mesa surgiu mais uma vez e Kudu sentou-se para comer. Ao terminar, mandou a árvore se curvar e amarrou o tambor no galho. O tronco então se endireitou novamente.

Aquilo continuou por mais alguns dias. O Cágado ia até a árvore, repetia o mesmo processo, comia e voltava para casa, sempre levando comida para sua família. Seu filho, de tanto observar escondido, já sabia o que seu pai fazia. Então foi sozinho até a árvore e disse:

— Curve-se!

E a árvore dobrou seu tronco. O jovem repetiu os comandos de seu pai e o tambor fez surgir a mesa. Depois de comer, ordenou:

— Guarde tudo!

A mesa desapareceu. O rapaz apanhou o tambor e, em vez de amarrá-lo no galho, levou-o escondido para sua casa. Sem que seu pai soubesse, chamou todos os outros membros da família. Juntaram-se todos na casa e ele repetiu os comandos ao tambor. A comida surgiu e, terminada a refeição, o jovem ordenou ao instrumento que guardasse tudo de volta.

Naquele dia, o Cágado tinha ido à floresta procurar pelos cogumelos de que ele e sua família tanto gostavam.

— Antes de voltar à cidade, vou passar no esconderijo para comer — pensou em voz alta.

Ao se aproximar da árvore, ainda a uma certa distância, viu que ela estava reta como de costume, mas o tambor havia sumido.

— Será que esta árvore está me pregando uma peça? — exclamou.

Então foi até ela, e de fato o tambor não estava mais lá. Ainda tentou dar seu comando:

— Curve-se!

Mas nada aconteceu. Voltou à cidade, apanhou seu machado e voltou ao local.

— Curve-se ou cortarei você! — ameaçou.

A árvore permaneceu imóvel. O Cágado começou a golpeá-la com seu machado até que ela caiu ao chão com um estrondo.

— Me dê o tambor ou farei você em pedaços!

Cortou a árvore em diversas partes, mas não encontrou o tambor. Decidiu voltar à cidade e, ao caminhar, pensava ansioso, “Quem terá feito isso?’

Chegou em casa tão desgostoso que não quis falar com ninguém. Então seu filho mais velho foi até ele e disse:

— Meu pai, por que está tão calado? O que aconteceu na floresta?

— Não quero conversar — respondeu Kudu.

— Você nos trouxe cogumelos, mas ficava mais feliz quando trazia comida para nós. Fui eu que peguei o tambor.

— Meu filho, traga-o aqui agora! — mandou o Cágado.

O jovem foi pegá-lo em um quarto dos fundos e depois chamou os outros membros da família. Reuniram-se todos na casa e deram ordens ao tambor. A mesa apareceu como sempre e todos comeram. Os filhos menores estavam tão animados que, ignorando o pedido de seu pai, levaram sobras de batata e carne para comer na rua. Outras crianças viram e pediram um pouco. Entre elas estavam os filhos do Leopardo, que foram mostrar a comida ao pai. Na mesma hora, o Leopardo foi até a casa do Cágado e encontrou toda a família a se fartar.

— Amigo! O que você está fazendo é errado! — acusou o felino. — Minha família passa fome enquanto vocês se fartam.

— Não temos mais nada hoje, mas volte amanhã e dividiremos com você — respondeu Kudu.

O Leopardo então voltou para sua casa.

A noite logo veio e todos se deitaram para dormir. Na manhã seguinte, bem cedo, o Cágado saiu à rua e anunciou:

— Ninguém, seja da família de Njâ ou da minha, irá à floresta hoje. Comeremos aqui juntos!

E foi sozinho até o coqueiro (onde, durante a noite, havia levado o tambor sem que ninguém visse). Quis fazer um teste para confirmar que o instrumento não havia perdido seu poder por ter sido usado na cidade. Então deu os comandos de sempre, que foram prontamente atendidos. Voltou para a cidade com o tambor nos ombros, à vista de todos, e foi direto à casa do Leopardo.

— Chame toda sua família! — pediu Kudu.

Todos foram à casa, inclusive os familiares do Cágado. Sob as mesmas ordens, o tambor fez aparecer uma mesa com abundância de comida. Depois de todos comerem, a mesa foi recolhida. O tambor ficou na casa do Leopardo por duas semanas. Usavam-no de maneira tão excessiva que o instrumento se aborreceu e, exaurido, não produzia mais nenhuma comida.

O Leopardo então foi falar com o Cágado:

— O tambor não faz mais comida. Arranje outro.

Kudu ficou irritado com o mau uso de seu tambor, mas ainda assim o pegou e o guardou em sua casa.

Os soldados do rei ouviram rumores de que o Leopardo escondia comida em sua casa e foram interrogá-lo:

— De onde vieram os alimentos que suas crianças estão comendo?

— Pegaram com os filhos de Kudu — respondeu o Leopardo.

Os vigias voltaram imediatamente ao palácio do Rei Maseni e relataram:

— Encontramos uma pessoa que guarda comida.

— Quem? — perguntou o rei.

— Kudu.

O soberano mandou chamá-lo. Os soldados foram até a casa do Cágado e anunciaram:

— O rei exige sua presença.

— O que eu fiz para que o rei me chamasse? Desde que moramos neste país, ele nunca quis falar comigo.

Mesmo assim, Kudu resignou-se e foi até o palácio real.

— Você anda estocando comida enquanto todas as famílias passam fome? — o rei esbravejou. — Traga tudo o que tiver para cá!

— Peço perdão, majestade, mas não conseguirei trazer hoje — desculpou-se o Cágado. — Convoque todas as famílias amanhã.

Na manhã seguinte, o rei mandou tocar o sino e anunciar que qualquer pessoa, de qualquer idade, deveria ir até o palácio para um banquete. Todos os animais foram até a cidade do rei, inclusive o Cágado, levando seu tambor. Seus parentes distantes, sem saber da existência e poderes do tambor, perguntaram se haveria dança.

Dentro do palácio real, o Cágado ergueu o tambor e, com uma forte batida, ordenou:

— Que apareçam todos os tipos de comida!

E assim aconteceu. Surgiu uma mesa que se estendia por toda a cidade, com uma imensa variedade de pratos. Todos os animais comeram o quanto conseguiram e depois foram embora. O Cágado guardou seu tambor e voltou para casa. Ao chegar, pediu para que sua família se reunisse. Bateu novamente no tambor. Não houve nenhum som e nada saiu dele. Bateu novamente. Nada. O instrumento sentia-se ofendido por ter sido tocado por outras mãos que não as de Kudu. A família passou a noite sem comer.

No dia seguinte, o Cágado correu até o coqueiro, escalou-o, apanhou dois cocos e jogou um terceiro no rio. Pulou na água e seguiu o coco pela correnteza, como havia feito antes. Chegou ao remoto vilarejo e contou à mulher sobre o que havia acontecido com o tambor. Ela respondeu que já esperava aquilo e mandou-o pegar um novo tambor. Kudu voltou à grande casa e reencontrou as mesmas pessoas de antes:

— Kudu! Para onde vai?

— Vocês já sabem. Vim atrás do meu coco.

— Não! Deixe o coco e leve um tambor — disseram.

E como da primeira vez, aconselharam-no a pegar um tambor que não falasse. Kudu entrou na sala dos tambores e alguns deles gritaram:

— Leve-me! Leve-me!

“Acho que desta vez vou levar um tambor falante”, pensou o Cágado. 

E assim fez. Ao sair da casa, informou a todos que havia escolhido um tambor e que voltaria para sua casa.

Subiu o rio até o coqueiro. Amarrou o tambor no tronco, como antes, e com uma batida ordenou:

— Ngâmâ! Faça como sempre!

No mesmo instante surgiu uma grande mesa, mas sobre ela, em vez de comida, havia chicotes. O Cágado ficou surpreso e repetiu:

— Como sempre!

O tambor pegou um dos chicotes e golpeou Kudu, que gritou de dor.

— Agora, faça como sempre. Guarde tudo!

E o instrumento recolheu a mesa e os chicotes.

“Bem que me avisaram para não pegar um tambor falante”, pensou o Cágado, arrependido. “Minha curiosidade custou caro.”

Apesar disso, Kudu logo bolou um plano para se vingar do Leopardo e do rei pelos problemas que causaram.

Levou o tambor até sua cidade e foi à casa do Leopardo.

— Vamos com nossas famílias visitar o rei amanhã — convidou o Cágado. 

O Leopardo alegrou-se ao ver o tambor de comida.

No dia seguinte, foram até a capital e Kudu disse ao Rei Maseni:

— Trouxe a comida que encontrei, conforme suas ordens. Convoque todos amanhã.

Na manhã seguinte, o rei fez soarem os sinos e toda sua corte dirigiu-se ao palácio, juntamente com as famílias do Cágado e do Leopardo. Kudu disse a seus familiares que não entrassem na mansão do rei, mas que esperassem do lado de fora na janela.

— A refeição que trago hoje só poderá ser comida dentro do palácio — anunciou o Cágado.

Após todos os familiares do rei e do Leopardo entrarem, Kudu acrescentou:

— Só poderemos comer quando as janelas e portas estiverem fechadas. E todas foram fechadas, exceto uma que Kudu manteve aberta próxima de si. O Cágado bateu em seu tambor e ordenou:

— Faça como te mandaram.

Surgiram várias mesas cheias de chicotes.

— O que significa isso? — perguntaram alguns. — Por que esses chicotes?

Kudu se posicionou perto da janela aberta e deu o comando:

— Faça como sempre!

No mesmo instante os chicotes começaram a voar pela sala, açoitando a todos, inclusive o rei. Njâ foi um dos que mais sofreu golpes. Foi uma grande surra. A família do Leopardo gritava de dor. Seus corpos ficaram cobertos de cortes e arranhões.

O Cágado saltou pela janela logo depois de dar a ordem ao tambor. Lá fora, depois de algum tempo, gritou novamente:

— Ngâmâ! Guarde tudo!

O tambor recolheu todas as mesas e chicotes, pondo fim ao castigo. Kudu sabia que os açoitados iriam atrás dele para matá-lo, por isso fugiu com sua família para o rio. Pularam todos na água e se espalharam, escondendo-se atrás de raízes e troncos submersos. O Leopardo, vendo o Cágado sumir na água, gritou ainda:

— Para sua sorte, é bom que não nos vejamos mais! Se eu o encontrar novamente, vou matá-lo!

Fonte: texto por Robert Hamill Nassau, in Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Arthur Thomaz (Arco-Íris de Trovas) = 1 =

 

Mensagem na Garrafa – 83 -


Clarice Lispector
(Chaya Pinkhasivna Lispector)
Chechelnyk/Ucrânia, 1920 – 1977, Rio de Janeiro/RJ

DIVAGANDO SOBRE TOLICES

Depois de esporádicas e perplexas meditações sobre o cosmos, cheguei a várias conclusões óbvias (o óbvio é muito importante: garante certa veracidade). Em primeiro lugar concluí que há o infinito, isto é, o infinito não é uma abstração matemática, mas algo que existe. Nós estamos tão longe de compreender o mundo que nossa cabeça não consegue raciocinar senão à base de finitos.

Depois me ocorreu que se o cosmos fosse finito, eu de novo teria um problema nas mãos: pois, depois do finito, o que começaria? Depois cheguei à conclusão, muito humilde minha, de que Deus é o infinito. Nessas minhas divagações também me dei conta do pouco que sabia, e isso resultou numa alegria: a da esperança. Explico-me: o pouco que sei não dá para compreender a vida, então a explicação está no que desconheço e que tenho a esperança de poder vir a conhecer um pouco mais.

O belo do infinito é que não existe um adjetivo sequer que se possa usar para defini-lo. Ele é, apenas isso: é. Nós nos ligamos ao infinito através do inconsciente. Nosso inconsciente é infinito.

O infinito não esmaga, pois em relação a ele não se pode sequer falar em grandeza ou mesmo em incomensurabilidade. O que se pode fazer é aderir ao infinito. Sei o que é o absoluto porque existo e sou relativa. Minha ignorância é realmente a minha esperança: não sei adjetivar. O que é uma segurança. A adjetivação é uma qualidade, e o inconsciente, como o infinito, não tem qualidades nem quantidades. Eu respiro o infinito. Olhando para o céu, fico tonta de mim mesma.

O absoluto é de uma beleza indescritível e inimaginável pela mente humana. Nós aspiramos essa beleza. O sentimento de beleza é o nosso elo com o infinito. É o modo como podemos aderir a ele. Há momentos, embora raros, em que a existência do infinito é tão presente que temos uma sensação de vertigem. O infinito é um vir-a-ser. É sempre o presente, indivisível pelo tempo. Infinito é o tempo. Espaço e tempo são a mesma coisa. Que pena eu não entender de física e matemática para poder, nessa minha divagação gratuita, pensar melhor e ter o vocabulário adequado para a transmissão do que sinto.

Espanta-me a nossa fertilidade: o homem chegou com os séculos a dividir o tempo em estações do ano. Chegou mesmo a tentar dividir o infinito em dias, meses, anos, pois o infinito pode constranger muito e confranger o coração. E, diante da angústia, trazemos o infinito até o âmbito de nossa consciência e o organizamos em forma humana simplificada. Sem essa forma ou outra qualquer de organização, nosso consciente teria uma vertigem perigosa como a loucura. Ao mesmo tempo, para a mente humana, é uma fonte de prazer a eternidade do infinito: nós, sem entendê-lo, compreendemos. E, sem entender, vivemos. Nossa vida é apenas um modo do infinito.

Ou melhor: o infinito não tem modos. Qual a forma mais adequada para que o consciente açambarque o infinito? Pois quanto ao inconsciente, como já foi dito, este o admite pela simples razão de também sê-lo. Será que entenderíamos melhor o infinito se desenhássemos um círculo? Errei. O círculo é uma forma perfeita mas que pertence à nossa mente humana, restrita pela sua própria natureza. Pois na verdade até o círculo seria um adjetivo inútil para o infinito. Um dos equívocos naturais nossos é achar que, a partir de nós, é o infinito. Nós não conseguimos pensar no existo sem tomarmos como ponto de vista o a partir de nós.

Para falar a verdade, já me perdi e nem sei mais do que estou falando. Bem, tenho mais o que fazer do que escrever tolices sobre o infinito. É, por exemplo, hora do almoço e a empregada avisou que já está servido. Era mesmo tempo de parar.

(em Clarice Lispector. A Descoberta do Mundo. 
Publicado originalmente em 1967)

Newton Sampaio (Família)

| I |

Minha rica mulherzinha, que atende por este nome impossível: Eglantina Exupério Leão (na intimidade eu a chamo de Eglezinha. Nesse passo, ela se põe integralmente derretida...), é um amor de esposa. Não que a Eglantina seja dessas beldades afrodisíacas. Não são fatais os olhos seus, nem nunca o foram, em tempo algum. Seu sorriso não chega a criar pecados no cérebro dos franciscanos menos austeros. Seu corpo jamais executou, com perfeição, a sinfonia das curvas. Em predicados sinfônicos, até, minha rica mulherzinha não vai além do dueto do busto (um dueto, aliás, não muito forte, como convém às mulheres honestas...

O rosto sequer serve a sugerir longas fermatas a decadentes tenores napolitanos). Não, meus senhores. A Eglantina não é mulher que justifique, pela presença, a imensa asneira do casamento. E se eu — cidadão atacado de spleen, em pleno despertar dos trinta anos; eu, que não hei feito outra coisa senão torturar-me à procura da perfeição na forma e no ritmo, através de esculturas que fizeram meu renome de artista genuíno; eu — implacável no detalhe de um músculo, incansável no acabamento das expressões fugidias; se eu, apesar de tudo, recebi no altar, com todas as exigências sacramentais, a pessoa de Eglantina Exupério Leão, é porque encontrei na Eglezinha (ela se põe integralmente derretida, neste passo...) um predicado, comuníssimo nas mulheres, é bem verdade, mas não com a intensidade presente em minha esposa: a ignorância.

Eglantina, meus prezados amigos, é oceanicamente ignorante. Eglantina mal sabe assinar o nome, lê com extrema dificuldade, tropeçando, indagando, soletrando, e surpreende qualquer pessoa com o desconhecimento absoluto, absolutíssimo, que tem das coisas deste mundo.

Eglantina é um amor de esposa. Por isso eu a tornei como modelo à obra-prima que me incumbe realizar na escultura antes de morrer.

| II |

Minha sogra (que tem um nome farmacológico, assaz parecido com o de minha esposa: Ergotina) é o ideal das sogras, Dona Ergotina é muda. Dona Ergotina Exupério é completamente muda. E talvez fique surda no próximo ano, segundo prometeu o físico (especialista em otologia) que a examinou.

| III |

Minha cunhada mais velha é digna irmã de Eglantina e digna filha de Ergotina. Não aprendeu em tempo a sinfonia das curvas (um adepto de Schubert diria que ela é uma sinfonia inacabada. Mas eu não digo. Não digo porque acho muito besta essa piada).

| IV |

A cunhada número dois (eu tenho uma coleção delas) é flor que cresce em um monturo. Eis que sua beleza alucina todos os moçoilos válidos do bairro. Por causa dela, só por causa dela, a Assistência trabalhou onze vezes na rua dos Pássaros. Isto sugeriu a um vizinho — futebolista inveterado, torcedor do Vasco e muito crente de ser homem de espírito —, a constituição de um time: o time dos suicídios. 

Cuido que a ideia vingou. Se não vingou por completo, permitiu ao menos um novo bloco carnavalesco na rua dos Pássaros. O que é um grande acontecimento.

| V |

A terceira irmã de Eglantina é metida a moderna. Vê, nos cinemas, as donzelas americanas morando em apartamentos, correndo nos automóveis dos amiguinhos, tomando whisky (coquetel), “abrideiras” etc., e quer agir como as donzelas de Tio Sam. Eu acho isso ridículo. Acho que a irmã de Eglantina tem sobre os ombros várias toneladas de preconceitos e sobre si pesa a cretinice de várias gerações anônimas. Ela quer ser moderna, quer ser sabida. Mas não consegue ser outra coisa que não uma recalcada.

| VI |

O outro membro da família não é mulher. É homem. Tem uma vintena de anos. E, como a maioria dos rapazes da cidade, leu, por descuido, uns vagos livros de sociologia, tomou umas vagas noções de economia ou direito e já se propôs a salvar o Brasil. Imaginem que ele quer, à viva força, tirar o país do caos. Fala mal da liberdade-democracia, chama o Sr. Vargas de nomes muito feios, diz não compreender o metafísico Sr. Gustavo (o tal do Ministério da Cultura), afirma, com o grito de quem descobriu a pólvora ou encontrou um novo continente, que o Brasil é uma colônia de banqueiros. E anda por aí, levantando o braço em saudações obscenas.

| VII |

O membro número cinco também quer salvar o Brasil. Faz, porém, o gesto oposto do irmão (afinal de contas, tudo vai dar numa questão de gestos). E andou, até bem pouco, pichando as paredes, defendendo um capitão sem compostura (um capitão que não tem sequer o talento do poeta do mesmo nome), escrevendo em jornais sem conceito, berrando em comícios terroristas. Hoje, o membro número cinco não pode mais salvar o Brasil (o que deploro...). E sem ser qualquer Marquesa de Santos, está passando uma temporada sobre o Pedro I... Dessa temporada poderá advir não uma duquesinha de Goiás, mas um libelo contra os opressores de consciências...

| VIII |

Neste ponto, o garoto que Eglantina me deu: Eutrópio (reminiscência dos meus estudos de latim), entra no escritório. Lê essas coisas que eu ando escrevendo e diz, com a liberdade que caracteriza as crianças hodiernas:

— Papai. Tu és uma besta, não achas?

Então eu compreendo que a Eglantina deu um gênio à família. Eis que o meu filho Eutrópio tem a intuição profunda das coisas…

(Publicado originalmente em O Dia, Curitiba, 01/02/1936)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Luciano Dídimo (Nas águas da poesia) – 2 –


A POESIA

Às vezes, se o poema está contente,
Eu toco a poesia em instrumentos,
Cantando doces versos para os ventos,
Recebo a poesia na nascente.

Às vezes, se o poema está doente,
Eu sofro a poesia nos tormentos,
Gemendo amargos versos em lamentos,
Oferto a poesia no poente.

Nas Rosas, eu encontro a poesia,
Nas cores e no aroma, em cada espinho,
Nos versos que, das pétalas, escorrem.

Diferem os poemas, todavia,
Das rosas, em seu rápido caminho,
Que brotam, desabrocham, depois morrem!
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A ROSA DO DESERTO

Quem dera se eu tivesse um coração
Que fosse feito a Rosa do Deserto,
Que emana formosura a céu aberto,
Na sua exuberante floração. 

Quem dera se eu tivesse a proteção
Que tem seu sangue em seiva recoberto
Por caule resistente que, decerto,
Suporta gigantesca sequidão. 

Assim meu coração palpitaria
Com toda a fortaleza dessa rosa
E por qualquer deserto eu passaria. 

Por onde quer que eu fosse, espalharia,
Também sua beleza graciosa,
E rosa no deserto então seria!
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A SUPERLUA 

A lua, cor de pérola, reluz,
Transforma o grande mar em seu espelho,
Expulsa sutilmente o sol vermelho
E a noite escura acolhe a sua luz. 

A lua, assim gigante, me conduz
Por caminhos sem placa e sem conselho,
No silêncio, no qual eu me assemelho,
Beleza imensa que ninguém traduz. 

A superlua, cheia e esplendorosa,
Derrama em mim um brilho sedutor,
Inspirando um soneto que a desposa. 

A lua, em suas glórias, indiscreta,
Que faz da poesia o seu andor,
Se torna a grande musa do poeta!
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CEARENCÊS

Aqui no Ceará é “invocado”
O linguajar cantado e  bem rasteiro.
Todo cabra matuto é “beradeiro”
E aquele que tem pressa é “avexado”. 

Quem se mete a valente é “arrochado”,
Se cria muito caso é “bunequeiro”,
Se o cara é brincalhão, ele é “fuleiro”,
E se não “bate bem”, “abirobado”. 

Quem gosta de mexer é “buliçoso”
E aquele que tem fome,“esgalamido”.
“Só o pitel” é algo bem gostoso.

Chamamos de “ariado” o distraído,
“Bichim” é tratamento carinhoso,
Cearencês é mesmo divertido!
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NORDESTE

O sol com sua força incomplacente
Abraça o chão sedento do sertão,
Clamores se derramam na oração
Do povo tão sofrido e renitente.

O sol com sua luz incandescente
Abraça as belas praias com paixão,
Gigante litoral em extensão
Com mares de água morna transparente.

A lua embala o frevo e a capoeira,
As dunas e falésias, cor dourada,
Cordel, literatura verdadeira.

Estrela que reluz na Pátria Amada,
Cultura que enriquece a terra inteira,
Nordeste, a minha terra abençoada!
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O MAR 

O mar, com soberana majestade,
Impõe-nos a vontade que lhe emana
Com toda intensidade e não engana
A solidez tirana da maldade. 

Com sua veterana autoridade,
Despreza a sociedade leviana,
Pois a salubridade é sua gana,
Não há ação insana que lhe agrade. 

Esconde em seus rochedos um rosário,
Pois, mesmo autoritário, tem seus medos,
Encontra em nossos dedos seu calvário. 

Espelho refratário de degredos,
Sepulcro de penedos, santuário,
O mar é relicário de segredos!

Hinos de Cidades Brasileiras (Joinville/SC)


Claudio Alvin Barbosa – Zininho (letra), 
Maestro Moacir Portes (arranjo musical)

Tu és a glória dos teus fundadores,
És monumento aos teus colonizadores,
Oh! Joinville Cidade dos Príncipes,
Oh! Joinville Cidade das Flores.

Às margens do Rio Cachoeira,
Um dia o audaz pioneiro,
Plantou do trabalho a bandeira
E se deu, corpo e alma, ao torrão brasileiro.

Depois foram lutas e penas,
Mas nunca o herói fraquejou,
Com sangue, suor e com lágrimas
Do seu próprio corpo teu solo irrigou.

Tu és a glória dos teus fundadores,
És monumento aos teus colonizadores,
Oh! Joinville Cidade dos Príncipes,
Oh! Joinville Cidade das Flores.

E se hoje o bravo imigrante,
Que tua semente plantou,
Com a força e o vigor de um gigante
Nas mãos com que, em preces, ao céu suplicou,

Te visse radiosa e pujante,
Nascida na mata hostil,
A imagem da Pátria distante
Veria, grandiosa, exaltando o Brasil!

Estante de Livros (“Pauliceia Desvairada”, de Mário de Andrade)

Pauliceia Desvairada é uma coleção de poemas de Mário de Andrade, publicada em 1922. Foi a segunda coleção de poesia de Andrade e a mais polêmica e influente. O uso livre da métrica por Andrade introduziu ideias modernistas europeias revolucionárias na poesia brasileira, que antes era estritamente formal.

COMPOSIÇÃO

"Pauliceia " é o apelido de São Paulo, cidade natal de Andrade e cidade em que o livro foi publicado. Nos poemas individuais da coleção, Andrade ocasionalmente se refere à cidade como "Pauliceia". 

A coleção se passa em São Paulo e está ligada à cidade de inúmeras formas, tanto artística quanto historicamente. Ela nasceu diretamente das experiências de Andrade no centro da cena artística de São Paulo no ano que antecedeu a 1922, o divisor de águas do movimento modernista brasileiro do qual Andrade foi a principal figura literária. Na mitologia do livro que o próprio Andrade criou, surgiu de uma experiência transcendentemente alienante que Andrade teve em 1920: a raiva de sua família por ter comprado uma (na visão deles) uma escultura blasfema de Victor Brecheret. Não há dúvida de que Brecheret e os demais jovens artistas e escritores do círculo de Andrade - principalmente Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Emiliano Di Cavalcanti e Menotti del Picchia - influenciaram o desenvolvimento do livro. 

Foi escrito, como a obra-prima modernista paralela The Waste Land, ao contrário: Andrade explica no prefácio que ele começou com uma obra muito longa, escrita apressadamente e um tanto desestruturada que foi gradualmente reduzida ao seu estado final.

ESTRUTURA E ABORDAGEM

O livro é composto por 22 poemas curtos, cada um uma imagem única de um segmento da vida de São Paulo, seguido de um longo poema "As Enfibraturas do Ipiranga", descrito como "Um Oratório Profano" e completo com instruções de palco específicas, mas impossíveis: "Todos os 550 000 cantores rapidamente pigarreiam e respiram profundamente" (81). Andrade lê vários desses poemas durante a Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, que ele organizou em colaboração com Di Cavalcanti, Malfatti, e vários outros. Ele também leu um ensaio, escrito depois que os poemas foram concluídos, descrevendo sua base teórica em retrospecto; este ensaio foi publicado como uma introdução à coleção, com o título irônico de "Prefácio Extremamente Interessante". O tom é irreverente e combativo e o ensaio traça um uso livremente musical dos versos.

Os poemas, que não apresentam métrica regular nem rima e que não são escritos principalmente em frases completas, mas em frases curtas e rítmicas, foram recebidos com vaias na leitura inicial, embora muitos na plateia ainda reconhecessem seu significado. Na forma, eles são totalmente novos; no tema eles podem ser eufóricos ou extremamente queixosos, preocupados com os cantos menos glamorosos da cidade, de uma forma que era totalmente nova para a poesia brasileira. "Tristura" começa:

Profundo. Imundo meu coração.
Olha o edifício: Matadouros da Continental.
Os vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios.
Minha alma corcunda como a avenida São João.

DEDICATÓRIA

Publicado no final do mesmo ano da Semana de Arte Moderna, o sentido militante de inovação artística do livro está em primeiro plano, do início ao fim. A dedicatória é ao próprio Mário de Andrade e começa:

"Amado Mestre,
Nas muitas e breves horas que me fez passar ao seu lado, muitas vezes falou da sua fé na arte livre e sincera; e recebi a coragem da minha Verdade e o orgulho do meu Ideal não de mim mesmo, mas de sua experiência. Permita-me agora oferecer-lhe este livro que me veio de você. Por favor, Deus, que você nunca se irrite com a dúvida brutal de Adrien Sixte...

Respondendo ao apelo poético tradicional às musas clássicas e a Deus, Andrade coloca ambos dentro de si, e se pergunta para não sofrer a dúvida de Adrien Sixte, personagem de um romance de Paul Bourget, Le Disciple, que, como professor de filosofia, argumenta calma e racionalmente em favor do positivismo e do naturalismo sem admitir o pessimismo absoluto dessas ideias em sua própria vida tranquila, até que um estudante, levando-as talvez mais a sério do que ele, age sobre elas severamente e alguém morre. Para Andrade, ser Mário de Andrade significava nunca desistir da severidade das suas convicções. "

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Edy Soares (Oceano de Trovas) – 3 –

 

Mensagem na Garrafa – 82 –

George Abrão 
Maringá/PR

AMIGOS

Nosso grande poeta Vinicius de Moraes escreveu: “E eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!”

E eu, na minha pequenez, afirmo: A nossa família Deus determina; os nossos amigos são irmãos com os quais Ele nos presenteia!

Desde que nascemos, temos a necessidade de amar e sermos amados, isso é primordial para a nossa existência. Então, nossos pais e nossos irmãos - se por felicidade tivermos - cercam-nos de carinho e afeto. Conforme vamos crescendo e outros horizontes abrindo-se para nós, encontramos na nossa vida escolar, na nossa vida social, outras pessoas com as quais convivemos em nosso dia a dia. Algumas delas passam com o tempo, mas outras ficam para todo o tempo, são os irmãos recebidos de Deus, são os irmãos recebidos da vida.

E esses amigos, muito embora e em muitas vezes, por contingências diversas separam-se de nós, do nosso convívio, ficam sempre presentes em nossa mente e em nosso coração, pois nem o tempo, nem a distância conseguem fazer com que nos olvidemos de uma amizade, de um amor verdadeiro!

E quando em uma ou outra ocasião nos reencontramos nos parece que o tempo não passou tamanha é a alegria que nos cumula o espírito. E a nossa convivência parece-nos que não sofreu um parêntese onde só restava a saudade. 

Amo os meus amigos e não tenho pejo em afirmar ou em lhes dizer isso, como não tenho pejo em lhes demonstrar o meu carinho, pois não existe amor mais puro e desinteressado que o amor fraterno, amor que sobrepuja todas as adversidades que a vida impõe. E sempre torço pelos seus sucessos; e sempre vibro quando algo de bom lhes acontece; e sempre choro quando, por uma ou outra razão, eles sofrem.

Na vida não se consegue fazer amigos, se ganha!

Fonte> George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017. Enviado pelo autor.

Humberto de Campos (Lâmpadas e ventiladores)

- A resistência física da mulher, Sr. conselheiro, - dizia-me, uma destas tardes, saboreando voluptuosamente o seu sorvete de melão, o meu velho amigo o conselheiro Abelardo de Brito, a resistência física da mulher é um fenômeno que merece a atenção dos fisiologistas e, principalmente, dos psicólogos. O poder da vontade é, nelas, maravilhoso, extraordinário, formidável. Senão, observe. Há um baile na sua casa, ao qual concorrem dezenas de moças. Com o entusiasmo que lhes empresta a alegria, essas encantadoras criaturas dançam, seguidamente, continuamente, valsa sobre valsa, polca sobre polca, mazurca sobre mazurca, ou, como hoje acontece, "ragtime" sobre "ragtime", "foxtrote" sobre "foxtrote", tango sobre tango, maxixe sobre maxixe.

- Perdão! - interrompi. Em minha casa não se dançaria isso!

- Eu sei! eu sei! - tornou o antigo magistrado, batucando a colherinha no fundo da taça, para dissolver o sorvete. - Eu sei disso. É uma simples comparação!

E continuou:

- Na festa, enquanto se dança ninguém se fatiga. As moças rodopiam, correm, pulam, divertem-se com alarido, sem atentarem para as horas, que se passam. Às três da manhã estão ainda tão lépidas, tão dispostas, como no momento em que entraram. E assim continuam, pela festa adiante. De repente, dá-se o baile por terminado. A musica retira-se, começam as despedidas, aproximam-se, buzinando, os "landaulets" (tipo de automóvel) dos convidados. E é uma calamidade: as moças, que, dois minutos antes, dançavam, riam, pulavam, mal podem, agora, dar um passo! Estão todas cansadas, fatigadas, com os pés arrebentados, de modo a ser necessário levá-las, uma a uma, pelo braço, para dentro dos automóveis!...

A tarde estava quente, abafada, ameaçando tempestade. Na sala da sorveteria onde tomávamos chá, os ventiladores ronronavam, como gatos, refrescando o ambiente. Lufadas ardentes, fortes, brutais, varreram, lá fora, o asfalto da Avenida. O céu escureceu, de repente, e um trovão estalou, rolando pelo céu. Nesse momento. as lâmpadas do salão, abertas àquela hora, apagaram-se todas, ao mesmo tempo que, dependendo da mesma corrente elétrica, os ventiladores foram, pouco a pouco, diminuindo a marcha, até que pararam, de todo, como aves que acabam de chegar de um grande voo. Estranhando aquela interrupção, ao mesmo tempo, da luz, e dos aparelhos, o meu venerando amigo levantou a cabeça venerável, e sentenciou, apontando o teto:

- As moças, meu velho, são assim. Apaguem as luzes do salão em que rodopiaram sem descanso, e elas se sentirão, em seguida, como esses ventiladores, cansadas, exaustas, quase mortas!

Lá fora, no ar pesado, um novo trovão estalou. E a chuva caiu, graúda, como grãos de milho, tamborilando descompassadamente no chão.

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.