domingo, 14 de abril de 2024

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) = 11 =


Ela
Era dissimulada,
Tipo
"Olhos de Capitu"
Até que um dia
"Caiu a máscara"
E o beijo
Deslizou
Pelo
Corpo nu.
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Nos olhos do menino
Madrugavam sonhos.
"Sem entender direito
O que era fé
Esperava pelo sol
Mesmo diante
Das "chuvas de nãos"
Que tentavam borrar
O seu sorriso.
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Sem
Palavras
Só você
Consegue
Desenhar
Um
Sorriso
No meu
Rosto.
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Ela gritava
Por felicidade
Até que um dia quase
a saúde perdeu.
Calou suas queixas
Em preces
Saboreando as urgências
Dos "agoras"
Como se fossem
Um delicioso
Pedaço de pão.
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Num
Bocejo
Vazio do tempo
Sonolentamente
Pingam estrelas
Adormecidas.
Vida
Que passa
Tão rápido.
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Chovia...
A janela do meu eu
Lacrimejava e a solidão,
Essa velha louca
Adormecida no porão
Da minh'alma,
Amanheceu
Resmungando
E arrastando
Os seus chinelos
Pela casa.
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Lágrimas.
Na carta
De despedida
Saem pingos
Em todas
As letras
E não
Somente
No “i”.
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Tudo passa.
Mas quando
Ela passou
Eu fiquei
"Parado"
Na dela.
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Silenciando
Meus
Abismos
Uma poesia
Pousou
Em meus lábios
Num suave
Beijo.
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Sem
Nenhuma pressa
No teu jardim
Pouso
O meu olhar
Feito
Um beija-flor
Apaixonado.
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Quando
O amor
Fala mais alto,
As vozes
Dos deuses
Silenciam.

(É que nada
mais era preciso
ser dito.)
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Com a porta
Entreaberta
Deixei que entrasses
No meu céu.
E no céu da tua boca
Gostosamente
A lua procurei.
Mas foi com
Os olhos fechados
Que estrelas
Enxerguei.
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Fonte> Daniel Maurício. Palavras de cheiro. Curitiba: Ed. do Autor, 2021. Enviado pelo poeta.

Recordando Velhas Canções (Meu Mundo Caiu)


Composição: Maysa Matarazzo

Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim

Não sei se me explico bem
Eu nada pedi
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí

Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar
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A Dor de um Coração Partido em 'Meu Mundo Caiu'

A canção 'Meu Mundo Caiu', interpretada pela icônica Maysa, é um clássico da música brasileira que expressa a dor e a desilusão amorosa. A letra da música retrata o sentimento de uma pessoa que teve seu coração quebrado e seu mundo desmoronado pela partida ou traição de um amor. A expressão 'meu mundo caiu' é uma metáfora para o impacto devastador que a perda ou o fim de um relacionamento pode ter na vida de alguém, sugerindo uma sensação de desorientação e desespero.

A música também aborda a ideia de independência e resiliência. A narradora da canção deixa claro que, apesar da dor, ela não pediu nada a ninguém e que a responsabilidade de se reerguer é dela mesma. Isso reflete uma mensagem de força interior e a capacidade de superar as adversidades, mesmo quando se está vulnerável. A frase 'Eu que aprenda a levantar' é um reconhecimento de que, embora o outro tenha causado a queda, cabe a ela a tarefa de se recuperar e seguir em frente.

Maysa é conhecida por sua voz marcante e interpretações cheias de emoção, o que confere à música uma intensidade que ressoa com muitos ouvintes. 'Meu Mundo Caiu' é uma música que, através de sua simplicidade lírica e melódica, consegue transmitir um sentimento universal de tristeza e ao mesmo tempo de esperança, característico de muitas canções de Maysa e da música popular brasileira da época.

Luís da Câmara Cascudo (O Príncipe Lagartão)

Uma rainha desesperava-se por não ter filhos. Uma vez, perdendo a paciência, pediu que Deus lhe desse um herdeiro mesmo que fosse com a forma de lagarto. Meses depois, deu à luz um lagartão.

Mesmo lagarto era filho do rei e tratado como príncipe, no berço macio e com o conforto do palácio. Sucedeu, porém, um fato: a primeira ama que entregou o seio para o lagarto mamar ficou sem o bico do peito porque o bicho torou, rente, com um apertão das gengivas. E assim a segunda, a terceira, a quarta, a quinta, a sexta, etc.

Ia ficando o palácio sem gente. O lagarto, que tinha a voz de menino, chorava com fome, bulindo com as patas como se fossem braços e pernas. O rei e a rainha, aflitos, vendo a hora do filho morrer de fome, ofereciam prêmios e ordenados altos a quem fosse capaz de alimentar o herdeiro do reinado.

Atraídas pelo dinheiro e pelos presentes, as amas compareciam mas todas ficavam sem o bico do peito, cortado pelo lagarto no momento de começar a mamada.

Perto do palácio real moravam umas moças órfãs, muito honestas e trabalhadeiras. A mais jovem era inteligente como uma fada e querida por quem a conhecia. Ouvindo contar a aflição da rainha, a mocinha, que se chamava Maria, foi oferecer-se para criar o príncipe Lagartão, como estava sendo apelidado.

A rainha, que simpatizava muito com ela, avisou-a dos perigos e perguntou se tinha leite. Maria explicou:

– Rainha, minha senhora! Mande fazer uma armação de ferro na forma de um seio. Enchemos essa forma com leite e o príncipe pode mamar sem ofender a ninguém.

Mandou-se fazer o seio de folha de ferro, cheio de leite, e Maria, amarrando-o ao busto, deu de mamar ao príncipe Lagartão, que ficou com as gengivas machucadas de tentar fazer o que fizera com as outras. Mamou, mamou, ficou satisfeito e adormeceu. O palácio sossegou e os anos foram passando sem alteração.

O príncipe Lagartão estava enorme, comendo tudo. Tinha os olhos e a voz humana. No mais, era um bichão de meter medo ao mais valente.

Quando ele ficou na idade do sacramento, disse para a rainha que precisava casar-se.

A rainha falou ao rei e ambos botaram anúncio no reinado para que as moças comparecessem ao palácio a fim de o príncipe Lagartão escolher sua esposa. Não apareceu ninguém. Não havia moça que quisesse casar com um lagarto, mesmo que o lagarto fosse príncipe.

O rei podia obrigar, mas ficou receoso de ser castigado por Deus pelo seu orgulho. Conversou com o príncipe Lagartão, contando o sucedido. O príncipe Lagartão disse:

– Não tem importância, Rei meu Pai. A noiva está achada e é Maria que me criou com o peito de ferro. Mande chamá-la e pergunte se quer fazer esse outro serviço por mim.

O rei disse à rainha e esta mandou chamar Maria e expôs todo passado. A moça pediu três dias para responder e foi rezar. Rezou, rezou, pedindo que Deus lhe mostrasse os caminhos certos. Voltou ao palácio e aceitou a proposta.

Fizeram o casamento no palácio. Maria ficou bonita como uma rosa e o noivo arrastava-se, todo vestido de seda verde, bordada de ouro e pedras preciosas. Houve banquete e lá para as tantas da noite o casal foi conduzido ao quarto.

Logo que entraram o príncipe Lagartão soprou a luz e ficou nas trevas. Maria mudou a roupa e deitou-se. Apesar do escurão a noiva reparou que o marido estava no meio do quarto, em pé, como um homem, e ia tirando uma por uma as sete capas, deitando-as ao chão. Quando arrancou a derradeira, estava um homem perfeito. Foi para o leito e Maria fingiu que nada vira.

Pela manhã, quando Maria acordou, já o esposo estava feito o grande lagartão esverdeado e feio. Foram para o café e os dias não trouxeram novidades.

A rainha, com a curiosidade de mãe, tanto perguntou, tanto perguntou, que a moça contou o que vira. A rainha lhe disse:

– Maria, vista sete camisas brancas, virgens de uso, molhadas n’água de laranjeira. Quando for para o quarto, fique na beira da cama, sentada, sem mudar a roupa. O príncipe há de perguntar por que você não troca a roupa. Você diga que só o fará ao mesmo tempo que ele. Cada camisa que você tirar, ele faz o mesmo com uma capa e você reza uma Ave-Maria. No fim, quando acabarem, você estira a mão para ele e espeta-lhe a ponta desse espinho, tirado da coroa de Jesus Cristo na Sexta-feira da Paixão. Faça o que lhe digo e seja feliz, minha filha.

Deu o espinho a Maria e esta, se melhor ouviu, melhor fez. De noite, na hora de dormir, sentou na cama, vestida dos pés à cabeça. O príncipe Lagartão, habituado com a mulher ir-se logo deitando para descansar, fez finca-pé e pôs-se como um homem, no meio do quarto, no escuro. Reparando que a mulher estava acordada e vestida perguntou-lhe se não ia trocar a roupa, como costumava. Maria respondeu que só mudava a roupa ao mesmo tempo que ele. O príncipe Lagartão, que usava sete capas verdes, achou graça, sabendo que ela não podia acompanhar, peça por peça, o número do traje dele. Disse que sim e tirou uma capa pondo-a em cima do tapete. Maria, mais do que depressa, tirou uma camisa e rezou uma Ave-Maria. E foram assim indo, camisa e capa, até as últimas. Maria então pôs a ponta do espinho entre os dedos e aproximando-se do marido, estendeu-lhe a mão. O príncipe Lagartão, sem maldar, apertou-lhe e soltou um grito. As sete capas ficaram transformadas em manto.

Imediatamente o quarto ficou claro como o dia e no meio estava um rapaz bonito, forte e benfeito, todo contente pelo fim do encanto. As sete capas ficaram transformadas em mantos lindos e as sete camisas em flores de laranjeira.

Maria e o marido acordaram o rei e a rainha, contando o caso e todo o reinado festejou muitos dias o fim da penitência, sendo o casal muito feliz.
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Nota sobre o Conto:

Aurélio M. Espinosa (Cuentos Populares Españoles, IIº, nº 131, 267) incluiu El Lagarto de Las Siete Camisas, ouvido em Cuenca. Difere o final. O lagarto despe as sete camisas e a mulher avisa a sogra. Esta queima as camisas e o príncipe fica mais encantado que nunca, desaparecendo para o Castillo de Irás y no Volverás. Se a esposa quiser vê-lo, deverá gastar, na caminhada, sete pares de sapatos de ferro e outros tantos gastará a criança que ia nascer. 

No conto espanhol a mulher é ajudada pela Mãe das Águias e recebeu nozes encantadas, presente da Virgem. Consegue ser reconhecida pelo marido comprando o direito de dormir no mesmo quarto, a troco de maravilhas que as nozes contêm. O príncipe está adormecido nas duas noites mas a vê na última e são muito felizes. 

É visivelmente, convergência de outros contos, comuns em Portugal e Brasil. A parte final do conto brasileiro parece-me mais pura. Acabar o encanto pela queima da pele encantada é o processo tradicional no fabulário europeu. No norte do Brasil assim termina o encantamento da Cobra Honorato, ou Cobra Norato, José Carvalho, O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará (Belém, 1930, 21). 

Há os elementos C 750, D 621.1, D 700. Straparola (XIII Piacevoli Notte, noite-II, fábula-I) conta a “história” do Príncipe Porco, filho do rei d’Anglia. O Príncipe mata duas irmãs e casa com a terceira que o desencanta. A pele é rasgada, não podendo o moço, forte e bonito, voltar a usá-la.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

sábado, 13 de abril de 2024

Filemon Martins (Aquarela de Trovas) 32

 

Aparecido Raimundo de Souza (O eterno “Menino maluquinho” foi morar lá no céu)

 

NOS DEIXOU neste sábado, 6 de abril p.p, o escritor, pintor, chargista e cartunista Ziraldo Alves Pinto, o eterno pai do fantástico “Menino Maluquinho.” Seus traços inconfundíveis e a sua criatividade bucólica e pastoril marcaram gerações. E continuarão marcando, ad aeternum. A notícia do seu falecimento, embora esperada pela passagem voraz do tempo inexorável, chegou a todos nós, como um sopro imenso de tristeza magoando profundamente nossos corações. 

Nascido em Caratinga, nas Minas Gerais, aos 24 de outubro de 1932, Ziraldo partiu do nosso meio aos 91 anos. Morava no bairro da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro e nos deixou, como sempre desejou: em seu apartamento, dormindo, evidentemente sonhando com novas criações que certamente seguirão os mesmos passos do “Flicts”; “Bichinho da Maçã”; “Um Amor de Família”; “Uma Professora Muito Maluquinha”; “O Menino Marrom”; “Os Dez Amigos”; “Chapeuzinho Amarelo (ilustrações)”; “As Flores da Primavera”, e tantos mais. 

Partiu ao lado da segunda esposa, dona Marcia Martins, dos filhos Daniella Tomas Pinto, roteirista e cineasta, Antônio Alves Pinto, compositor de trilhas sonoras e da diretora teatral Fabrízia Alves Pinto. O escritor deixou um legado de linhas e cores, de risos e reflexões. Sua extensa obra (repleta de personagens que se tornaram ícones culturais), permanecerá viva, dialogando vivamente com o futuro e inspirando novos talentos e criadores de sonhos. Seu livro mais conhecido, “O Menino Maluquinho”, com a sua panela na cabeça e uma energia indomável, representará, talvez a mais pura expressão do espírito de Ziraldo: aquele homem simples e alegre, irreverente e profundamente humano. 

Em suas crônicas Ziraldo retratou o Brasil com uma honestidade rara, apontado as suas mazelas sociais sempre com pitadas de humor e esperança. Sua partida é um momento de reflexão sobre o papel do artista na sociedade. Ele nos ensinou que a magia da arte não é apenas para ser vista como um espelho refletindo a realidade. Sobretudo, deve ser notada e sentida, ou melhor, vista e revisitada como uma janela para tudo aquilo que podemos ou pretendemos ser. 

Sendo assim, o país inteiro chora a perda de um de seus maiores artistas. Todavia, em paralelo, celebra a fortuna de ter sido palco para a sua inesgotável genialidade. Certamente, agora, esse cidadão que aprendemos a amar e a respeitar desenha lá na imensidão das estrelas, deixando para nós a tarefa de continuarmos a contar as histórias que ele tanto amava. Que a sua memória seja preservada nas páginas dos futuros livros infantis e nas lembranças afetuosas e imorredouras de quem cresceu acompanhando as suas incríveis e fantásticas aventuras.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Laércio Borsato (Nas Asas da Poesia) = 1 =


ESCOLHAS

Somos sempre tentados a fazer escolhas.
Todos os momentos, a vida assim revela:
Pisamos, ao caminhar, por sobre folhas
Que poderiam ser tema de uma linda tela!

Procuramos sempre escolher um caminho
Que nos direciona para um mundo bom.
Mas muitas vezes perturbamos o vizinho,
Quando esquecemos de baixar o som.

E no trânsito vemos em nosso dia a dia
Completo alheamento! Falta cortesia...
Sempre é negado uma simples preferência.

Muitos preferem uma vida bem agitada,
Correndo em busca, muitas vezes do nada,
Ou talvez, o fim, prematuro da existência!
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MARCAS DOS TEMPOS

Reporto aos meus guardados da memória:
Tempos ditosos, vida plena de alegria.
A tinta que escrevemos nossa história,
Tinha algo envolto em amor e poesia...

As marcas dos tempos ficaram sem glória.
Já não temos o sabor da companhia...
É bem diferente a nossa trajetória,
Muito ao contrário do que foi um dia!

Já não ouves minha voz, querida minha!
Ouves, talvez, quando chega à tardinha,
Soar, na voz dos ventos, os meus madrigais.

Inserindo em teu coração, docemente,
Notas suaves que são simplesmente,
Lembranças dos tempos que não voltam mais!
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NAS ASAS DA ILUSÃO

Sei que não posso construir um vigamento,
Que me faça transpor, limites da cidade;
Talvez, em sonho, possa usar asas do vento,
E usufruir, totalmente, minha liberdade!

Posso, todos os dias, mirar o firmamento,
Sentir do sol o calor e luminosidade;
A chuva molhar a terra e produzir alimento:
Sustentáculo real de toda humanidade...

À noite, é gratificante, ver as estrelas.
Não posso abraça-las, mas, contento em vê-las.
Seu cintilar constante no etéreo universo.

Sei que não posso realizar tudo que sonho,
Mas, nas asas do pensamento me transponho...
Sinto-me leve e solto, ao fim de cada verso!
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SAUDADE DE MINHA TERRA

Desde a infância aprecio a música erudita,
É bom ver no pedestal, grandes compositores.
Certas obras famosas ao serem escritas,
Os desígnios de Deus foram precursores...

Uma música suave nos acalma e suscita
Um enlevo indizível, traz paz nos arredores.
Vemos o mundo de uma forma mais bonita;
Amamos mais a vida, valorizamos as flores!

Não só o erudito, mas no canto popular,
Vemos páginas, de uma beleza sem par;
Versos simples que muita verdade encerra.

Tributo a Gerson Coutinho da Silva o Goiá.
Cantou seu torrão, prova de amor maior não há,
Pelos céus do Brasil, SAUDADE DE MINHA TERRA!
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TRIBUTO À ROSANA

Sempre de manhã, em minha vida diária,
No trabalho, algo se tornou rotina:
Dirijo-me a próxima agência bancária,
Cumprindo o fadário, que a mim destina.

Cada funcionário, cada funcionária,
Tem um porte que agrada e fascina.
Ao invés de afluência mercenária,
A gentileza sobressai e predomina!

Há um ambiente de paz e segurança,
A competência inspira confiança,
Pelo dom, que de cada ser emana!

Eleva-me! Já demonstro regozijo,
A espreitar em cada rosto um sorriso,
...E a simpatia sem par,...DE ROSANA!
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UMA TARDE NA PRAIA

Vejo além o astro rei, com ares sorridente.
Seus raios luzem fixos, no extremo da praia,
Onde as águas dosadas, em cores diferentes,
Camuflam a touceira da verde samambaia...

Navego em meu barco tosco, calmamente,
Curtindo a beleza da tarde que desmaia.
Um sino lá bem longe, tange molemente.
Uma onda bate na pedra, espuma, espraia!...

As marrecas alçam voo, rumo a seus ninhos...
Milhares vão a bando bem de mansinho,
Como uma escolta, pelos ares se encurvando...

Vê-se aos pouco, multidão de pirilampos,
Perambulando céleres, aos trancos e arrancos...
Milhões de brancas luzes, acendendo e apagando!…
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VOZES DA NATUREZA

Trituradas à fúria dos redemoinhos,
As folhas secas pulverizam o canteiro;
Os colibris com bicos longos e traquinos,
Colhem néctar das flores o tempo inteiro!

Ouve-se uma cantiga forte estridente:
Coro marcial das cigarras cantadeiras;
Na trilha as formigas em ritmo cadente,
Armazenam sustento pra estação inteira.

À tarde no terreiro reúnem-se as rolinhas
Fazendo caracol sobre a areia branquinha,
Em harmonia e total desprendimento...

Quando o sol se põe o silencio ronda a terra,
Um lobo uiva tristemente, longe, na serra,
A lua surge com todo seu deslumbramento!
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Fonte> http://www.sonetos.com.br/meulivro.php-a=119.htm (site desativado) 
Acesso em 15 janeiro 2016.

Recordando Velhas Canções (Onde Anda Você?)


Composição: Hermano Silva / Vinícius de Moraes

E por falar em saudade
Onde anda você? Onde andam os seus olhos
Que a gente não vê?
Onde anda esse corpo
Que me deixou morto de tanto prazer?

E por falar em beleza
Onde anda a canção que se ouvia na noite?
Nos bares, de então, onde a gente ficava?
Onde a gente se amava em total solidão?

Hoje, eu saio na noite vazia
Numa boemia, sem razão de ser
Da rotina dos bares
Que, apesar dos pesares, me trazem você

E por falar em paixão
Em razão de viver
Você bem que podia me aparecer
Nesses mesmos lugares
Na noite, nos bares
Onde anda você?

Hoje, eu saio na noite vazia
Numa boemia, sem razão de ser
Da rotina dos bares
Que, apesar dos pesares, me trazem você

E por falar em paixão
Em razão de viver
Você bem que podia me aparecer
Nesses mesmos lugares
Na noite, nos bares
Onde anda você?
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A Melancolia da Saudade em 'Onde Anda Você'

A música 'Onde Anda Você', interpretada por Tiago Nacarato, é uma expressão lírica da saudade e da busca por um amor que se foi. A letra aborda a temática da ausência e do desejo de reencontro, elementos comuns em canções que tratam de relações amorosas que deixaram marcas profundas.

O refrão 'E por falar em saudade, onde anda você?' é um questionamento retórico que revela a dor da separação e a esperança de que a pessoa amada possa reaparecer. A repetição dessa pergunta ao longo da música cria um sentimento de busca incessante, refletindo a dificuldade de seguir em frente. A menção aos 'olhos que a gente não vê' e ao 'corpo que me deixou morto de tanto prazer' intensifica a sensação de perda e a memória dos momentos íntimos compartilhados.

A canção também faz referência a lugares e momentos passados, como os bares e a noite, que agora são vazios e sem sentido sem a presença da pessoa amada. A 'boemia sem razão de ser' e a 'rotina dos bares' são metáforas para a vida que continua, mas que perdeu seu brilho e propósito. A música de Tiago Nacarato, portanto, é um retrato da melancolia e da esperança que acompanham a saudade, um sentimento universal e atemporal.

Mia Couto (A Gota)

Após os bombardeios, a cidade ruiu, pedra sob pedra. O que antes era chão, é agora um imenso tapete de cinzas. Por entre ruínas, nem gente, nem bicho, nem planta. Resta um único sinal de vida: dona Teófila e o seu marido, Diamantino. Vivem no que restou da antiga casa, sobrevivem do que sobrou na velha despensa. Todas as manhãs, dona Teófila pede ao marido que vá conferir as reservas de comida, as latas de conserva, os sacos de arroz, os garrafões de água. E o marido, que é cego, sorri, complacente, e faz de conta que cumpre com o que lhe foi mandado.

Ao final da tarde, quando o calor amaina, o casal sai dos seus escombros privados e atravessa em silêncio a defunta paisagem. Com passo trémulo, Diamantino empurra a cadeira de rodas, guiado pelas instruções murmuradas com firmeza pela esposa. Protegida por um sombreiro, a velha senhora vai empertigada como se as ruínas fossem o seu reino, a cadeira fosse o seu trono e Diamantino fosse o seu povo.

— Devagar, Diamantino! — comanda dona Teófila. E acrescenta: — Estás farto de saber que esta poeira é um veneno.

O marido não percebe nada do que ela diz, as palavras dela enroscam-se no tecido da máscara que lhe cobre o rosto. A própria voz de Teófila lhe parece estranha, depois de atravessar o pano que ela teima em usar sobre a boca e o nariz.

Desde os bombardeamentos que não chove nem sopra a mais tênue brisa.

Foi como se as bombas tivessem rasgado e vazado as nuvens. Os sulcos das rodas e as pegadas de Diamantino são o único desenho vivo sobre a poeira perpétua dos escombros. Acontece como na superfície lunar: toda a pegada se torna eterna.

O percurso é o mesmo de sempre: dirigem-se às ruínas da casa dos vizinhos, os Pimentas. Ali se senta dona Teófila, numa mutilada sombra, enquanto vai desatando falas, como se alguém escutasse do outro lado do muro. E vai revelando, num longo rosário, peripécias e segredos do marido.

Aos poucos, ali se desfiam lembranças de uma vida conjugal que o próprio Diamantino desconhecia. Até que, cansado de tanto esperar, o homem a faz regressar à realidade.

— Ponha na sua cabeça, mulher: não há ninguém do outro lado do muro, está tudo morto, mais do que morto — vai avisando Diamantino. E depois, entediado, ele reclama: — Por que tanto insistes em falar de mim, mulher?

— Para que essa maldita Marlu morra de ciúmes. — responde dona Teófila.

Um sol implacável escoa por entre uma espessa e persistente bruma.

Apesar desse céu fechado — de onde para sempre se ausentou o sol e a lua — dona Teófila não abdica do seu guarda-sol. Protege-se, diz ela, da poeira que cai das nuvens.

— Os pássaros já começaram a voltar — afirma dona Teófila. — Gostava que os pudesses ver, Diamantino.

— A verdade é que não os escuto — avisa o marido.

— Mas já andam por aí — insiste dona Teófila. — Não tarda que comecem a cantar.

— Onde pousam esses pássaros, se as árvores morreram?

— Se fosses mulher educada, saberias da existência dos albatrozes. Pousam no próprio voo, morrem sem tocar no chão.

Na velha cidade tudo se tornou chão: um chão tão deitado e macio que eles não escutam os próprios passos. E um outro chão vertical, feito desse céu de onde se penduram restos de paredes. Diamantino traz a máscara caída sobre o queixo. A mulher corrige-lhe esse descuido enquanto adverte: — Esse pano está imundo, da mesma cor deste mundo. Assim que voltarmos à casa, vais lavar esse trapo.

— Não vou desperdiçar água, os panos que esperem.

— Olha, está a passar agora uma garça! — proclama dona Téofila, com entusiasmo. E repete o anúncio da celestial descoberta, sabendo das dificuldades auditivas do marido. — É pena não veres, é tão branca, parece um anjo...

— Por que é que mentes, mulher? Os pássaros, a vizinha, a garça. Tudo mentira, tudo pura mentira.

— Às vezes, meu velho, mentir é a única maneira que nos resta de rezar.

O marido insiste: já não há gente vivendo entre as ruínas. Dona Teófila opõe-se. Há gente, sim. Se o marido fosse mulher e não fosse cego, saberia que os sobreviventes perambulam como sombras por detrás dos escombros.

Já não restam portas nem paredes, é verdade. Mas as pessoas têm artes mágicas de se enclausurar. “Somos os mais competentes carcereiros de nós mesmos”. É o que diz dona Teófila.

— Quando falas, mulher — reclama o homem —, espalhas cuspe e levantas poeira e ambos são venenos mortais.

— Tem que haver pessoas, Diamantino — insiste a esposa. — Se assim não fosse, já teríamos morrido. É que o ar precisa de gente — prossegue dona Teófila. — Se tivesses estudado, Diamantino, saberias que o ar, para se manter vivo, precisa de ser respirado. As pessoas são o nosso oxigênio.

Diamantino levanta os braços da cadeira e limpa o rosto com a própria máscara. As mãos e os gestos parecem desencontrados como acontece com quem nunca viu o seu próprio corpo.

— Falas de mim, Diamantino, falas dos meus cuspes e das minhas poeiras e devias ter vergonha na cara — acusa dona Teófila. — Continuas a sonhar com essa maldita Marlu. Eu bem te escuto a murmurar o nome dela. Tens que passar a dormir de máscara, para não me contaminares.

— Não entendo nada do que dizes, mulher — comenta Diamantino.

— Às vezes me pergunto como é que um cego sonha? — interroga-se dona Teófila. — Desconfio que à noite deixas de ser cego.

Diamantino sorri com um riso oblíquo. A mulher fala sozinha. É então que o marido percebe de que Teófila se levanta e caminha por si mesma.

O cego sabe que o vestido dela é de um vermelho intenso, como sabe que a sua camisa é azul-marinho e imagina que aquelas duas manchas coloridas visitarão os seus sonhos. No início, Diamantino percebe que a esposa vai atravessando a rua. Aos poucos, ele vai deixando de escutar o suave ruído dos passos dela e, de novo, todos os silêncios voltam a tornar-se indistintos.

Usando a cadeira de rodas como se fosse uma bengala, Diamantino transpõe a praça até chegar aos destroços da casa da Marlu Pimenta. Deve ser ali que a sua esposa se encontra. O cego vai evoluindo, cauteloso, entre as brumas até que esbarra com um vulto. E logo se apercebe de que ali se aglomeram sombras, imóveis e silenciosas como pedras. Assusta-se, primeiro, o cego Diamantino. Depois escuta uma das sombras que lhe dirige a palavra.

— Veio ao funeral, Diamantino?

— Funeral? Funeral de quem?

— Da Marlu. Morreu esta noite.

Diamantino tomba desamparado sobre a cadeira. Leva a mão ao rosto para se certificar de que ainda existe.

— Não sei o que dizer — murmura ele. — Sempre pensei que Marlu não tivesse sobrevivido aos bombardeamentos.

— O que se passa, Diamantino? — espanta-se um dos vizinhos. — Desde que ficou viúvo, não houve tarde em que o senhor não tivesse levado a passear a nossa querida Marlu.

— Ainda ontem saíram os dois, já não se lembra? — pergunta um outro vizinho.

Diamantino retira-se, os sapatos raspando as cinzas. Regressa à casa, o universo pesando-lhe nos ombros. Sempre soube vencer o escuro. Mas reconhece que lhe faltou discernimento para admitir que, apesar das cinzas, a cidade se mantinha viva, na companhia dos vivos. Se alguém enviuvara tinha sido apenas ele.

Dirige-se ao velho poço e ali se deixa ficar sentado na cadeira de rodas, o braço estendido sobre uma sombra aberta entre um pequeno monte de pedras. Num dado momento, escuta passos de alguém que se aproxima. São passos de mulher, disso ele está certo. E reconhece o silêncio de quem chegou. Depois o cego faz pender mais o braço sobre o chão, aponta para a sombra entre as pedras e pergunta: — Já germinou?

— Já despontam duas pequenas folhinhas — responde uma voz toldada pela comoção.

Do braço de Diamantino tomba uma gota de suor. E ele jura que é a chuva que regressa. Como jura que um vulto de mulher se vai afastando por entre o nevoeiro. Às vezes, mentir é a melhor forma de rezar.

Fonte> Mia Couto. O Caçador de Elefantes Invisíveis. Editorial Caminho, 2021.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

José Feldman (Versejando) 135

 

Contos das Mil e Uma Noites (Um Cádi astuto)

Não esqueçamos que Deus colocou os juízes no mundo para julgar as aparências. É somente Ele que julgará as intenções e os pensamentos escondidos.

Conta-se que havia certa vez no Cairo um cádi que cometeu tantas prevaricações e pronunciou tantos julgamentos iníquos que foi demitido de seu alto ofício e teve que viver dos recursos de sua engenhosidade.

Um dia, quando sua cabeça estava tão vazia quanto seu bolso e seu bolso tão vazio quanto seu estômago, chamou o único escravo que lhe restava e disse-lhe: 

– “Estou adoentado hoje e não posso sair de casa. Para nos sustentar, deves ou percorrer as ruas à procura de algum biscate ou enviar-me algum infeliz que precise de um parecer jurídico.” 

O escravo saiu com a intenção de molestar algum transeunte e arrastá-lo até o juiz para ser multado. Assim, mal cruzou com um cidadão pacífico carregando um cesto no ombro, tropeçou nele e enviou-o ao chão. A vítima levantou-se furiosa e avançou para castigar o agressor. Mas quando reconheceu nele o escravo do cádi, virou as costas e fugiu de encontro tão perigoso. 

– “Todos me conhecem como conhecem meu amo,” resmungou o escravo desanimado. “Devo achar outros meios.” 

Na primeira esquina, cruzou com um homem levando uma bandeja com um magnífico peru, recheado e guarnecido com tomates e alcachofras. Seguiu-o e viu-o entrar numa cozinha pública e entregar a ave ao mestre do forno, dizendo que voltaria para apanhá-la uma hora mais tarde. 

– “Esta é a minha oportunidade,” decidiu o escravo. 

Menos de uma hora depois, entrou na cozinha pública, dizendo: – “Salve Mustafa!” 

O mestre do forno reconheceu-o e respondeu: ”Salve Mobarak! Há muito tempo que meus carvões nada assam para teu amo. Trouxeste algo hoje?”

- Nada, exceto o peru.

- Mas este não te pertence, meu irmão.

- Não fales assim, ó xeque. Eu vi esse peru sair do ovo materno, alimentei-o, matei-o, recheei-o e o enviei a ti.

- Se for assim, estou pronto a te entregar - disse o cozinheiro – Mas que direi ao homem que o trouxe?

- Acho que ele não voltará. – replicou Mobarak num tom evasivo. – Mas se voltar, ele deve gostar de uma boa piada. Poderás dizer-lhe que tão logo o peru foi colocado no fogo, deu um grito agudo e voou. Agora, dá-me logo aquela ave, por favor. Acho que já está bem assada. 

O cozinheiro riu e entregou o peru a Mobarak, o qual correu para a casa do cádi e ajudou-o a limpar o prato. Quando, minutos depois, o dono do peru voltou para levá-lo, o cozinheiro disse-lhe: “Tão logo coloquei-o no forno, deu um grito agudo, voou para longe, e não voltou mais.” 

O homem não gostou nada da piada e gritou com raiva: “Ó nada, ousas brincar nas minhas barbas?” 

Das palavras passaram às imprecações e das imprecações aos socos. Uma multidão se formou em volta deles. “Estão brigando acerca da ressurreição de um peru recheado,” disseram os vizinhos, a maioria dos quais apoiavam o cozinheiro cuja honestidade nunca fora posta em dúvida. 

Entre os espectadores, havia uma mulher grávida. Quando o cozinheiro aplicou um pontapé no seu adversário, o golpe se desviou e atingiu a mulher, que emitiu um grito igual ao de uma galinha ultrajada e abortou na hora. Seu marido, informado, correu com um cacete enorme na mão, gritando: “Vou sodomizar este cozinheiro e seu pai e seu avô! Vou eliminar toda a raça dos cozinheiros da face da terra!” 

O mestre do forno, não querendo enfrentar essa fúria, fugiu, subiu ao terraço e deixou-se cair no terraço vizinho. Quis o destino que ele caísse com seu peso enorme sobre um mouro que dormia num canto. As costelas do mouro foram quebradas, e ele morreu na hora. Os outros mouros acorreram e prenderam o cozinheiro, e arrastaram-no até a casa do juiz. O dono do peru e o marido da mulher grávida juntaram-se a eles. Armando-se de seu ar mais solene, o cádi começou por recolher depósitos dobrados de cada litigante e, apontando o dedo para o primeiro réu, o cozinheiro, perguntou: “Que tens a dizer a respeito do peru?” 

Achando que era melhor aderir à tese do escravo do juiz, o cozinheiro respondeu: “Por Alá, ó representante da justiça humana e divina, assim que coloquei a ave no forno, emitiu um grito agudo e, mesmo recheado e guarnecido, levantou voo, foi-se e não mais voltou.”

Ao ouvir essas palavras, o dono do peru gritou: “Filho de cachorro, ousas contar tais tolices a nosso amo, o cádi?” 

Mas o cádi repreendeu-o com indignação: “E tu, tens a audácia, ó ímpio infiel, de duvidar de que Aquele que ressuscitará todas as criaturas no Dia predestinado, recolhendo-lhes os ossos dispersos pelos quatro cantos da terra, é incapaz de devolver a vida a um simples peru que tinha ainda a totalidade de seus ossos e só lhe faltavam as plumas?”

Impressionada com a argumentação do juiz, a multidão gritou: “Glória a Alá que ressuscita os mortos!” e pôs-se a vaiar e apupar o dono do peru até que ele foi embora, lamentando sua falta de fé.

Então, o cádi virou-se para o marido da mulher que havia abortado e perguntou-lhe: “E tu, que tens contra este homem?” O marido expôs sua queixa.

E o juiz pronunciou a seguinte sentença: “O caso é claro. O cozinheiro causou sem dúvida o aborto com o golpe que desfechou na mulher. A lei de Talião se aplica. Tu, o marido lesado, ganhaste a tua causa. Autorizo-te, portanto, a levar tua mulher à casa do réu e deixá-la lá até que esteja grávida outra vez. Também poderá continuar a viver com o réu e às suas custas até o sexto mês de gravidez, já que o aborto aconteceu no sexto mês da primeira gravidez. 

Ouvindo essa sentença, o marido declarou: “Ó nosso amo o cádi, desisto de minha queixa. Possa Alá perdoar meu adversário.

Abordando então o caso do mouro, perguntou o cádi aos seus parentes que acusação faziam ao cozinheiro. Falaram todos ao mesmo tempo, amaldiçoando o cozinheiro, apontando para o cadáver e clamando pelo preço do sangue.

Sentenciou então o juiz: “A evidência é decisiva. A indenização é devida. Preferis que seja paga em dinheiro ou em sangue?”

- Em sangue, gritaram. Sangue por sangue.

– Seja, proclamou o juiz. Levai este cozinheiro, enrolai-o na mortalha do defunto e colocai-o por baixo do minarete da mesquita do sultão Hassan. Então, o irmão da vítima subirá até o minarete e saltará de lá sobre ele, esmagando-o da mesma forma que ele esmagou a vítima... Quem de vós é o irmão do morto? 

Um certo mouro, que parecia ser o líder do grupo, levantou-se e declarou: “Ó nosso amo o cádi, retiramos a nossa queixa contra este homem. Possa Alá perdoá-lo!”

E saiu, seguido por todos os membros de sua tribo. A multidão dispersou-se, maravilhada com a equidade, sutileza e os profundos conhecimentos jurídicos do cádi. 

Quando os ecos do processo atingiram os ouvidos do sultão, restaurou o cádi nas suas altas funções e demitiu o honesto homem que o havia substituído.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 5


CÉU E MAR

O dia marinheiro
todo vestido de sol branco
andava navegando com os marujos
de solavanco em solavanco
a prometer-lhes mundos nunca vistos nem sonhados

em mares nunca antes navegados
tudo por conta de outro dia
que mais adiante aparecia
e a mesma coisa prometia.

Luas marítimas, logo após,
nadavam no silêncio da amplidão
por onde a noite, caravela de carvão
levava a bordo uma porção de estrelas nuas.

Como era doída no outro dia
a dor da repetição!
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CIDADEZINHA DO INTERIOR

Uma ermida e um curral
como que para dizer, por inocência,
que o Menino Jesus não nasceu entre rosas,
mas entre bois.

Logo depois brota a cidadezinha branca.
É uma menina, ainda descalça.

As casas tortas de janela azul
dançam de roda, da mãos dadas.

Há duas bandas de música, logo de começo,
uma da oposição e outra dos canários.
Todos os dias da semana são domingos de ramos.

Dentro da ermida
nossa Senhora brinca de pular corda num arco-íris.

Cada enterro parece uma festa
e cada procissão lembra um rio de gente. . .
Não há iluminação, há muitas luas.
E os bois passeiam pelas ruas, fundadores.
Até que um dia o legislador das posturas municipais se impacienta
e manda proibir os bois de passearem nas ruas.
Como se a origem da cidadezinha branca não fosse um curral
e como se o Menino Jesus não houvesse nascido entre bois
quem sabe se o legislador das posturas municipais
pensa que o Menino Jesus nasceu entre rosas?

Se pensa, é por inocência.
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COMPETIÇÃO

O mar é belo.
Muito mais belo é ver um barco
no mar.

O pássaro é belo.
Muito mais belo é hoje o homem
voar.

A lua é bela.
Muito mais bela é uma viagem
lunar.

Belo é o abismo.
Muito mais belo o arco da ponte
no ar.

A onda é bela.
Muito mais belo é uma mulher
nadar.

Bela é a montanha.
Mais belo é o túnel para alguém
passar.

Bela é a nuvem.
Mais belo é vê-la de um último
andar.

Belo é o azul.
Mais belo o que Cézanne soube
pintar.

Porém mais belo
que o de Cézanne, o azul do teu
olhar.

O mar é belo.
Muito mais belo é ver um barco
no mar.
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CONSCRITO

Sofro, não só por mim mas pelos outros,
dentro da ordem que me foi imposta.
Não flores levo, mas um ramo, apenas,
de perguntas – são flores sem resposta.

Erros que recebi, toda uma herança
da vida que foi sempre a face oposta
ao que eu quisera ser, eis minha luta,
de sol a sol, em pedregosa encosta.

Somos irmãos, mas eu sei que o não somos,
e em o provar – é uma secreta aposta –
sofro mais que sofrer por uma imagem.

Sofro e, por força de uma lei suposta,
pego em armas e vou, herói cruento,
(e absurdo) defender meu sofrimento.
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DEIXA ESTAR, JACARÉ

Jacaré da lagoa
você nunca esteve triste.
Você tem tudo quanto quer.
Tem água boa, é dono da lagoa.
Vai ao cinema ver a lua tomar banho
quando a lua parece, de tão nua,
um corpo branco de mulher.

Você cresceu e as lagartixas e os lagartos tão
bonitos verdolengos não cresceram. . .
viraram bichos de jardim.

Só você, jacaré,
foi que cresceu assim!

Mas olhe, escute uma coisa:
quando a felicidade é tão grande
que chega a passar da conta,
a gente deve desconfiar
porque, como diz o povo:
deixa estar, jacaré. . .
a lagoa há de secar.

Fonte> Cassiano Ricardo. Vida e Obra. Disponível em https://www.fccr.sp.gov.br/portalcassianoricardo/#