quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Arthur Thomaz (Voo atrapalhado)

O autor é de Campinas/SP
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Jorge Henrique e Mário Jorge, piloto e copiloto de uma companhia internacional, recém-chegados de um longo voo, hospedaram-se no hotel conveniado e, após um pequeno descanso, resolveram se aventurar na noite da cidade.

Indicado pelo concierge, foram até um famoso bar na avenida principal. Sentaram-se à mesa e pediram dois sofisticados drinques por pura ostentação. Ao notar que duas esplendorosas mulheres os fitavam ostensivamente, Jorge perguntou ao amigo se não era estranho o fato delas estarem flertando com dois caras feinhos como eles. Mario brincou dizendo que era por causa das caríssimas bebidas que eles estavam consumindo. Dirigiu-se até a mesa das moças e as convidou para tomar algo com eles.

Algum tempo depois, elas manifestaram o desejo de ir com eles até o quarto do hotel. Acordaram com o som das batidas da camareira na porta. Nus, com as mãos amarradas e sem lembrar nada dos acontecimentos da véspera.

Todos os objetos de valor haviam desaparecido, incluindo dinheiro e cartões de crédito. Entenderam que foram vítimas do famoso golpe "boa noite Cinderela" e, resignados, foram até o distrito policial registrar a ocorrência.

Num requinte de crueldade, as duas levaram seus cintos obrigando-os a improvisar com um barbante cedido pelo gerente do hotel. Segurando as calças, na delegacia ainda ouviram gracejos dos policiais perguntando se as "cinderelas" iriam estrelar filmes da Disney.

De volta ao hotel, colocaram seus uniformes, compraram cintos novos e apresentaram-se para o voo de retorno.

Não foram informados que além da amnésia, a droga que ingeriram permanecia no organismo provocando intensa sonolência.

Entraram na cabine do avião e após a decolagem, Jorge Henrique fez o cumprimento habitual aos passageiros e esqueceu ligado o intercomunicador.

Ao ver Mario Jorge dormindo ao lado gritou que, “não era hora de dormir”.

A moça gordinha da primeira fileira, ao ouvir que o piloto estava dormindo, em histeria, jogou-se ao chão parecendo ter uma convulsão, que passou assim que ela ouviu Alexandre o comissário de bordo, chamar a enfermagem para aplicar-lhe uma injeção. Então ela voltou à poltrona e continuou a gritar, histericamente, que o piloto estava dormindo na cabine.

 Kátia, Valéria e Alexandre, os comissários de bordo, tentavam em vão acalmar os passageiros.

Outra senhora gritava para abrirem a porta porque ela queria descer. Alguns, incluindo os mais fervorosos ateus, pediam ajuda às suas divindades. Ouvia-se gritos por Alá, Jesus, Buda, Ogum, Jeová e até Zeus.

Um marinheiro reformado, aos berros, dizia que era um atentado dos muçulmanos o que foi veementemente rebatido por um jovem barbudo com o Alcorão nas mãos. Quase deflagrando mais um conflito entre ocidente e oriente.

Mais atrás, um homem com as faces vermelhas e que tomava whisky em uma pequena garrafa, bradou que iria morrer; portanto, tomaria mais uma dose.

Três crianças, ao ouvir a palavra morrer, chorando, perguntaram à mãe se elas também morreriam. A mãe, como sempre, respondeu que não sabia e que perguntassem ao papai. O pai, em pânico, sorrateiramente esgueirou-se e foi beber whisky com o homem da face avermelhada.

Nesse momento, levantou-se alguém que parecia um pastor e gritou para que todos levantassem, dessem as mãos e orassem. Aumentou a confusão porque todos se ergueram ao mesmo tempo.

Nesta situação caótica, ouviu-se uma potentíssima voz de um grisalho senhor dizendo que era piloto aposentado e que iria assumir o comando da aeronave no lugar do dorminhoco piloto.

Fez-se um silêncio imediato.

 O senhor dirigiu-se à cabine sob o olhar apreensivo de todos. Com firmeza entrou e fechou a porta da cabine. Antes de desligar o intercomunicador, disse em voz alta a fim de que todos os passageiros ouvissem, que agora assumiria o comando. Desligou o aparelho, acordou o copiloto e disse que não era piloto nem de patinete, mas que na hora achou que era a única solução para acalmar a histeria coletiva.

Pegou o quepe, colocou na cabeça, saiu da cabine e falou aos passageiros que já estava no comando e que todos sentassem para prosseguir a viagem em segurança.

Aclamaram-no aos gritos de mito, herói e outros adjetivos.

A aterrissagem foi tranquila e o novo comandante foi carregado nos ombros dos passageiros por todo o aeroporto. Logo que se desvencilhou da multidão, desapareceu antes que alguém descobrisse que nunca havia sequer entrado em um avião até aquela data.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: mirabolantes. Volume 2. Santos/SP: Bueno Editora, 2021. Enviado pelo autor 
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Vereda da Poesia = 176


Trova de
FABIANA GONÇALVES DA VEIGA
Balneário Camboriú/SC

Eu sinto grande emoção
ao ver o mar, e então, canto
com amor no coração
o mais suave acalanto!
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Poema de
CLARISSE CRISTAL
Balneário Camboriú/SC

Algaravia

Encontrei as chaves perdidas de papai
Estavam lá, estáticas e bem seguras
 Na algibeira interna
 Do meu sobretudo negro  

Agora sou eu que não me encontro mais 
Acordo pelo amanhã
E contíguo a mim
Uma angústia
Infinda
De ser uma outra pessoa
Alheia do que fui até a pouco

Desaprendi
 A compor em versos com poesia 
Desaprendi a contemplar o vago

E o vazio inquebrantável
Do noturno silêncio oblíquo
Em noite perdida no campo santo

Encontrei as outrora chaves perdidas de papai
Agora a luz do dia faina
O meu corpo oco e insípido
Inerte em duas rodas velozes

Encontrei as chaves perdidas de papai
E minha nova paixão
Surge sempre benfazeja
Ao final do expediente
= = = = = = 

Trova de
JULIANA APPEL
Brusque/SC

Sua boca tem segredos,
e assim, você me seduz,
revelo então, os meus medos
que nem a noite reluz!
= = = = = = 

Poema de
FABIANE BRAGA LIMA
Rio Claro/ SP

Alma de poeta

Meus versos se rasgaram com o tempo,
As minhas mãos calejadas sangraram,
Ao escrever infindos poemas.
Hoje sou o grito intenso das madrugadas,
Sou o silêncio árduo em forma de rimas,
Sou a alma do poeta que derrama lágrimas...
A cada lágrima, nasce uma nova poesia...!
= = = = = = 

Trova de
MARIA HELENA CALAZANS DUARTE
São Paulo/SP

Por vingança o centro-avante,
que há muito tempo vai mal,
fez gol contra fulminante
a um segundo do final.
= = = = = = 

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ ES

Amada

Que bom que acreditastes
Na minha volta, paixão
Se magoei teu coração
Perdoa, eis-me aqui
Acabou tua infelicidade
Sou tua Felicidade: 
voltei pra ficar.
= = = = = = = = = 

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Já pronta e de vela içada
tremulando de ansiedade,
vai para o mar a jangada
carregada de saudade!
= = = = = = 

Poema de
SOUSÂNDRADE
Guimarães/ MA 1833 – 1902, São Luís/ MA

Inverno 

Salve! felicidade melancólica,
Doce estação da sombra e dos amores-
Eu amo o inverno do equador brilhante!
A terra me parece mais sensível.
Aqui as virgens não se despem negras
À voz do outono desdenhoso e déspota,
Ai delas fossem irmãs, filhas dos homens!
Aqui dos montes não nos foge o trono
Dessas aves perdidas, nem do prado
Desaparece a flor. A cobra mansa,
Cor d’azougue, tardia, umbrosa e dútil,
No marfim do caminho endurecido
Serpenteia, como onda de cabelos

Da formosura no ombro. À noite a lua,
Qual minha amante d’inocente riso,
Co’a face branca assenta-se nas palmas
Da montanha estendendo os seus candores,
Mãe da poesia, solitária, errante:
O sol nem queima o céu como os desertos,
Simpáticas manhãs é sempre o dia.

Geme às canções d’aldeia apaixonadas
Mui saudoso violão: as vozes cantam
Com náutico e celeste modulado.
Chama às tácitas asas o silêncio
Ao repouso, aos amores: as torrentes
Prolongam uma saudade que medita:
Vaga contemplação descora um pouco
O adolescente e o velho: doce e triste
Eu vejo o meu sentir a natureza
Respirar do equador, selvagem bela
De olhos alados de viver, à sombra
Adormecendo d’árvore espaçosa.
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Trova Humorística de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Minha insensata paixão
passou – transpondo barreiras –
das fronteiras da ilusão
para a ilusão sem fronteiras...
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Poema de 
EDITH CHACON THEODORO
São Paulo/SP

Ler

Ler.
Ler sempre.
Ler muito.
Ler “quase tudo”.
Ler com os olhos, os ouvidos, com o tato, 
pelos poros e demais sentidos.
Ler com razão e sensibilidade.
Ler desejos, o tempo, 
o som do silêncio e do vento.
Ler imagens, paisagens, viagens.
Ler verdades e mentiras.
Ler o fracasso, o sucesso, o ilegível, 
o impensável, as entrelinhas.
Ler na escola, em casa, no campo, 
na estrada, em qualquer lugar.
Ler a vida e a morte.
Saber ser leitor, 
tendo o direito de saber ler.
Ler simplesmente ler.
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Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

O espelho não me enganou,
sem disfarce, esse sou eu:
um jovem que não sonhou,
um velho que não viveu!
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Hino de
INDIAROBA/ SE

Era começo do século XVIII
Catecúmenos vieram aqui se instalar
Em incursão entre os bravos silvícolas
Para a antiga "Feira da Ilha" habitar

Sobre as águas do rio que nos banha
Os imigrantes conseguiram aqui chegar
E entre os quais vieram ilustres jesuítas
Com a missão de evangelizar.

Abençoada seja Indiaroba
Recanto amado, hospitaleiro e sacrossanto
Iluminada seja Indiaroba
com a luz do Divino Espírito Santo

Disputaram os dois fortes caciques
capitães-mor: José de Oliveira Campos
e Manoel Francisco da Cruz e Lima
pela posse da Vila do Espírito Santo.

Se seria de Sergipe ou da Bahia,
foi decidido através Decreto-Lei
sendo, pois, a divisa o Rio Real da Praia
Ganhou a posse Sergipe Del-Rei!
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Não lamento o meu passado,
nem mesmo o tempo me ofende.
Viver é um aprendizado
quem mais vive mais aprende.
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Poema de
RAINER MARIA RILKE
Praga/ Tchecoslováquia (1875 – 1926)

O homem que lê

Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde… em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.

E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa.
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Trova de
RODOLPHO ABBUD
Nova Friburgo/RJ 1926 – 2013)

Aproveita, criançada,
o tempo, alegre, ligeiro,
que dá a uma simples calçada
dimensões do mundo inteiro!
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Gilmário Braga (Clara, a feia)

O autor é de Serra/ES
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Eu começo essa história fazendo a seguinte pergunta: Até que ponto beleza é fundamental? Esteticamente falando, eu nunca fui, digamos assim: Uma mulher chegada à beleza, e mesmo assim sempre convivi bem com isso, até porque não tenho como mudar. Boniteza em minha pessoa somente aquela que vem de dentro, e isso já é mais do que o suficiente para eu me sentir uma pessoa feliz. Nas festas que costumava frequentar raramente algum rapaz me tirava para dançar. Naquela época ainda dançávamos de rosto coladinho, hoje não se usa mais fazer isso. Eles preferiam sempre as meninas mais bonitas. Às vezes isso me incomodava um pouco, mas não era sempre que eu me sentia assim. Minhas tentativas de arranjar um namorado, ter um relacionamento sério eram sempre frustradas. Os rapazes sempre tinham uma desculpa para não me namorar. Chegou um momento que isso começou a mexer muito comigo.

Eu me reporto agora ao ano de 1982, época boa onde as coisas eram bem diferentes de hoje em dia. Chegamos ao fim do ano, e com ele as merecidas férias, e nessa ocasião recebemos em nossa casa a minha prima Judith que veio de Minas Gerais passar uns dias conosco no Espírito Santo. Minha prima era animada, alegre, pra cima e adorava sair, curtir a vida. Um belo dia a tarde ao chegarmos da praia, resolvemos por iniciativa dela acessar um serviço que uma empresa de telefonia disponibilizava aos seus usuários. As pessoas daquela época devem lembrar do chamado serviço 145. Esse serviço era febre na época e muita gente se divertia com isso. Funcionava assim: Você discava este número e ouvia várias pessoas conversando ao mesmo tempo, era uma espécie de linhas cruzadas. Muitas pessoas passaram a se conhecer e se relacionarem a partir dessas conversas. Bastava a gente passar o nosso contato ou apanhar o de alguém que nos interessasse. Hoje em dia isso é bem menos complexo devido as redes sociais.

– Então, Clara. Vamos tentar? Não temos nada a perder. O máximo que pode acontecer é a gente tirar uma onda com a cara dos rapazes, ou eles com a nossa cara. – Disse Judith.

– Não sei, prima. Eu me acho muito tímida para essas coisas. E depois passar o meu contato para quem eu não conheço pode ser uma furada.

– Que nada, Clara. Deixa de bobagem. O que alguém pode fazer tendo somente o seu número? Quem sabe nessas linhas cruzadas esteja o seu príncipe encantado (risos). 

– Montado no cavalo branco e tudo. – Complementei sorrindo.

Judith insistiu tanto que eu acabei topando, e diante disso ela imediatamente discou. Durante alguns minutos ela conversou com várias pessoas, e pelo visto aquele não era o dia de sorte dela.

– Agora é sua vez, Clara. Coragem. Eu estou sentindo que hoje é o seu dia de sorte.

– Será, prima?

– Se você não tentar não terá como saber. Vamos, prima! Coragem!

Meio trêmula e sem jeito apanhei o telefone e disquei. Era a primeira vez que acessava este serviço. Várias linhas se cruzavam ao mesmo tempo. Uns falavam bobagens, mulheres davam gargalhadas, mas também tinha aquelas pessoas que falavam o que se aproveitasse. Depois de alguns minutos tentando entender alguma coisa, um homem, com uma voz romântica, linda, despertou meu interesse e eu o dele também. Trocamos mais algumas palavras e o nossos contatos. 

– Viu aí prima. Eu disse que hoje era seu dia de sorte.

– Será? Eu estou tão acostumada a levar fora que um a mais um a menos não vai fazer diferença.

– Deixa de ser pessimista, Clara. Acredite! Pense positivo.

Na semana seguinte Judith foi embora. Passei dias ansiosa para que chegasse logo o dia do nosso encontro onde finalmente eu conheceria o misterioso Otto, pois foi este o nome que ele me deu. Marcamos de nos encontrarmos em um restaurante muito conhecido na cidade. Eu cheguei propositalmente meia hora depois do horário combinado, disse o nome e as características dele para o garçom e fui conduzida até a mesa onde ele supostamente me aguardava. Confesso que me surpreendi. Otto estava muito bem vestido, de aparência agradável. Eu estava diante de um homem simplesmente lindo. Aproximei-me e o cumprimentei.

– Boa tarde!

Ele virou-se para mim. Usava óculos escuros na ocasião.

– Otto? – Perguntei.

– Sim. Boa tarde. Você deve ser a Clara (pausa) – Sente-se por favor!    

Eu sentei-me de frente para ele e nos pusemos a conversar. Que homem bonito ele era! Conversamos sobre vários assuntos, mas não me animei muito. Certamente um homem bonito daquele não iria querer nada comigo, e para falar verdade, eu já estava preparada para terminar aquele encontro como bons amigos. Mais curioso é que em nenhum momento ele retirou os óculos. No início me incomodou, mas depois não dei importância. A conversa com ele estava muito agradável.

– Você quer beber alguma coisa, Clara?

– Um suco está ótimo.

– Me fala um pouco mais sobre você! Como você é por exemplo.

– Você quer saber como eu sou? Isso?

– Sim. Me fala sobre você!

Enquanto conversávamos, eu tinha a nítida sensação de que Otto não olhava para mim, e sim em minha direção. Confesso que fiquei meio confusa quando ele perguntou como eu era. Pela primeira vez estava diante de um homem que conversava comigo à vontade, sem pressa ou querendo logo terminar aquele encontro e sem se preocupar com a minha aparência. Seria mesmo o meu dia de sorte como disse a Judith? E tomada por um impulso resolvi arriscar:   

– E então, Otto? Eu sou como você esperava ou eu frustrei suas expectativas? 

– Como assim, Clara? Não entendi.

– Eu achei que você fosse me dizer alguma coisa quando estivesse diante de mim.

Ele fez um breve silêncio e logo em seguida disse:

– Infelizmente eu não posso te ver.

– Na hora eu não entendi e perguntei: Como assim não pode me ver? Estamos aqui há horas conversando.

 Ele tomou fôlego e prosseguiu:

– Eu sou deficiente visual, Clara. Não enxergo nada. Sou totalmente cego. Perdi a visão ainda na adolescência. Se houver outra oportunidade te conto como tudo aconteceu.

Eu tomei um choque com aquela revelação. Cego? Que pena, um homem tão bonito. Tentei disfarçar meus sentimentos naquela hora. Logo em seguida tomei coragem e abri meu coração para ele dizendo exatamente como eu era e com isso a minha dificuldade de conseguir um relacionamento amoroso. Ele me ouviu em silêncio e depois disse:

– Pois para mim você é a mais linda das criaturas, a mais linda das mulheres. Que importância tem a beleza física? Eu estou diante de uma mulher de alma nobre, de coração puro, e com toda certeza tem muito a oferecer. Seu afeto, seu carinho e seu amor.

As palavras de Otto me deixaram emocionada. Eu nunca tinha ouvido isso de alguém. Eu estava feliz, as lágrimas desciam em meu rosto, mas era um choro de alegria. Naquela hora eu tive a certeza que estava diante do homem da minha vida. Saímos dali como namorados, e pouco tempo depois nossas famílias foram apresentadas e tanto de um lado como do outro recebemos todo apoio.

Namoramos, noivamos e nos casamos, e como não poderia deixar de ser, minha prima Judith foi nossa madrinha de casamento. Continuamos juntos e somos felizes até hoje. Agora posso dizer que em se tratando de amor, beleza não é fundamental. O amor sim. Este será sempre fundamental para conservarmos uma relação, além de respeito e cumplicidade.

Palavras do autor: 
Embora essa seja uma obra de ficção, nos deparamos com diversas situações como essa em nosso cotidiano.

Fonte: Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Estante de Livros ("Kalki", de Gore Vidal)

RESUMO

"Kalki" é um romance de Gore Vidal publicado em 1978, que se passa em um futuro distópico, especificamente em um mundo onde os valores e a moralidade da sociedade foram profundamente corrompidos. O livro é uma crítica incisiva à política contemporânea, à religião e ao estado da civilização.

A história é narrada através da perspectiva de uma série de personagens, mas o foco principal está em Kalki, uma figura messiânica que representa a última encarnação de Vishnu, o deus hindu preservador. O enredo se desenrola em um cenário em que a sociedade se deteriorou sob o peso da corrupção, do consumismo e da guerra. Kalki, que surge como um salvador, é uma figura ambígua que desafia as noções tradicionais de heroísmo e sacrifício.

Em 2067, após uma catástrofe nuclear, os Estados Unidos estão fragmentados. O protagonista, Theodore "Ted" Barker, é um jovem jornalista que descobre um movimento messiânico liderado por Kalki, uma figura misteriosa, que promete uma nova era de paz e prosperidade, mas seu verdadeiro objetivo é criar uma raça superior através da engenharia genética. Ted se torna um discípulo de Kalki, mas logo questiona as intenções do líder.

TEMAS CENTRAIS

Messianismo e Redenção: 
Kalki é apresentado como uma figura messiânica, mas Vidal subverte a ideia tradicional de um salvador. A busca por redenção é complexa; ele não é necessariamente um herói, mas um reflexo das falhas da humanidade e das instituições que a governam. Isso provoca uma reflexão sobre a natureza da salvação e a responsabilidade individual.

Crítica Política: 
A obra é uma crítica contundente à política americana e ao sistema de governo. Através da descrição de líderes corruptos e de uma sociedade decadente, Vidal examina a hipocrisia da política e a alienação do cidadão comum. O livro sugere que a corrupção é endêmica e que as instituições falharam em servir ao povo.

Religião e Poder: 
Gore Vidal explora a intersecção entre religião e poder, questionando como as crenças espirituais podem ser manipuladas para fins políticos. A figura de Kalki, como um deus encarnado, levanta questões sobre a fé, a manipulação religiosa e o papel que essas crenças desempenham na sociedade.

Desumanização e Alienação: 
O ambiente distópico do livro ilustra a desumanização do indivíduo em uma sociedade dominada pelo consumismo e pela superficialidade. Vidal retrata personagens que lutam com a alienação, refletindo a crise de identidade em um mundo que valoriza a aparência sobre a essência.

IMPACTO CULTURAL

1. Recepção crítica: 
Kalki recebeu críticas mistas, mas é considerado um clássico da ficção distópica.

2. Influência em outros autores: 
Inspirou obras de autores como Don DeLillo e Margaret Atwood.

3. Contexto histórico: 
Reflete a ansiedade pós-guerra fria e a crise de confiança nos líderes políticos.

ESTILO E ESTRUTURA

O estilo de Gore Vidal em "Kalki" é caracterizado por uma prosa incisiva e um diálogo afiado. Ele utiliza uma narrativa não linear, intercalando diferentes pontos de vista e contextos históricos, o que enriquece a complexidade da história. A construção dos personagens é multifacetada, permitindo que eles sejam simultaneamente representativos de arquétipos e indivíduos únicos.

CONCLUSÃO

"Kalki" é uma obra que transcende seu contexto temporal, abordando questões universais sobre a moralidade, a política e a condição humana. Gore Vidal oferece uma visão sombria, mas perspicaz do futuro, instigando os leitores a refletirem sobre seu papel dentro da sociedade e as implicações de suas escolhas. O livro se destaca não apenas como uma narrativa envolvente, mas como um manifesto crítico que ressoa com inquietações contemporâneas.

Fonte: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Silmar Bohrer (Gôndola de Versos) 04


José Feldman (Um encontro inusitado)

Era uma tarde tranquila na biblioteca de um universo que desafia a nossa compreensão. Estantes infinitas se estendiam até onde os olhos podiam ver, cobertas de livros de todas as épocas e estilos. Em um canto iluminado por um brilho suave, três figuras notáveis saíram de uns livros e tiveram um encontro inusitado além da imaginação: William Shakespeare, Edgar Allan Poe e Monteiro Lobato.

Shakespeare, com seu ar aristocrático e uma pena na mão, foi o primeiro a se pronunciar.

— Ah, senhores! Que prazer imenso é vê-los! Eu sou William Shakespeare, dramaturgo e poeta. E vocês devem ser os ilustres Edgar Allan Poe e Monteiro Lobato. Um encontro de mentes brilhantes, sem dúvida!

Poe, com seu olhar sombrio e uma aura de mistério, respondeu:

— Sim, sou eu, Edgar Allan Poe. O gênio do terror e do macabro. E você, Sr. Shakespeare, deve saber que seus sonetos são maravilhosos, mas, francamente, você precisa de um pouco mais de escuridão em suas obras.

Lobato, sempre com um sorriso no rosto e uma caneta na mão, interveio:

— E eu sou Monteiro Lobato, o escritor para crianças e do folclore do Brasil! Prazer em conhecê-los, senhores. Agora, o que vocês precisam é um pouco de imaginação infantil! Shakespeare, seus dramas são tão sérios que eu me pergunto se você já ouviu uma boa piada!

— Vamos lá, então! — disse Shakespeare, ajeitando seu colarinho. — Eu, que escrevi sobre o amor, a ambição e a tragédia, defendo que a complexidade da condição humana é meu forte. O que você tem a dizer sobre isso, Poe?

— Complexidade? — Poe levantou uma sobrancelha. — O que você entende de complexidade, meu caro? Você escreve sobre amores perdidos, enquanto eu exploro as profundezas da loucura e da morte. Em "O Corvo", por exemplo, abordei a obsessão de um homem que perde sua amada. Não é isso que chama a atenção?

Lobato se inclinou para frente, rindo.

— Loucura, sim, mas e o humor? Vocês dois parecem estar sempre tão sérios! Eu, em "O Sítio do Picapau Amarelo", trago a fantasia e a brincadeira! Afinal, quem não gostaria de conversar com um saci ou uma boneca de pano que ganha vida? Isso é o que eu chamo de literatura!

Shakespeare, com um sorriso travesso, respondeu:

— Então você acha que um saci é mais interessante que um Hamlet? Um príncipe que discute sobre a vida e a morte? Venha, Monteiro, não me diga que prefere a companhia de um personagem que não sabe nem se deve existir!

Poe não deixou barato:

— E o que dizer de sua "Comédia dos Erros"? Uma confusão de identidades que só pode ser resolvida com um final feliz? Isso é muito otimista para o meu gosto. Onde está a tragédia, a verdadeira essência da vida?

Lobato, rindo ainda mais, respondeu:

— Olha, eu não diria que confundir personagens é um erro. É mais uma estratégia de marketing! E, Shakespeare, você fala de tragédia, mas seus personagens têm um talento incrível para fazer escolhas ruins. Que tal um pouco de sabedoria popular? "Quem não arrisca, não petisca!" E olha que eu sou um especialista em ensinar isso às crianças!

A conversa continuou, repleta de risadas e provocações. A biblioteca, testemunha desse encontro inusitado, parecia vibrar com a energia das palavras trocadas. Após horas de debate, todos concordaram que, apesar das diferenças, o que realmente importava era o amor pela literatura.

Poe, finalmente relaxando, disse:

— Sejamos francos, senhores. Cada um de nós tem sua própria abordagem para a complexidade do ser humano. Shakespeare com seu romantismo, Lobato com sua fantasia e eu com meu terror.

Shakespeare assentiu, um brilho de compreensão em seus olhos:

— Exatamente, meu amigo. E o que seria do mundo sem essas diferentes vozes? A diversidade é a alma da literatura.

Enquanto Shakespeare, Poe e Lobato discutiam animadamente, uma nova presença se fez notar na biblioteca. A luz suave que iluminava o espaço pareceu se intensificar, e um homem de porte elegante, com um olhar penetrante e um leve sorriso nos lábios, se aproximou. Era Machado de Assis.

— Boa tarde, senhores! Posso me juntar a essa conversa tão vibrante? Sou Machado de Assis, e ouvi falar sobre suas obras. Estou curioso para saber o que pensam sobre "O Alienista".

Shakespeare, sempre cortês, respondeu:

— Senhor Machado, é uma honra tê-lo entre nós. "O Alienista" é uma obra fascinante. A forma como você aborda a loucura e a razão é singular. Mas diga, o que o levou a explorar a mente humana dessa maneira?

Machado, com um brilho nos olhos, explicou:

— A loucura é um tema que me intriga profundamente. Em "O Alienista", eu queria discutir não apenas a sanidade, mas também o que é considerado normal em nossa sociedade. O Dr. Simão Bacamarte, que se dedica a entender a mente, acaba por se perder em sua própria obsessão. É uma crítica à ciência e à razão.

Poe, com um sorriso enigmático, interveio:

— Fascinante, de fato! Mas você não acha que, em sua busca pela razão, Bacamarte se torna uma figura trágica? Ele se assemelha aos meus personagens que, perdidos em suas obsessões, acabam se destruindo. A diferença é que você traz uma ironia bem-humorada à sua narrativa, enquanto eu prefiro o tom sombrio.

Machado assentiu, apreciando a observação.

— Sim, Edgar. A ironia é um dos meus instrumentos. Eu quis mostrar como a busca pela lógica pode ser tão irracional quanto a própria loucura. 

Shakespeare, com seu estilo característico, comentou:

— Muito bem colocado, Machado! Mas me pergunto se a crítica social em "O Alienista" não perde um pouco da profundidade emocional que permeia minhas tragédias. Bacamarte, embora intrigante, parece distante. Não seria mais poderoso se ele tivesse um dilema mais humano, como o meu Hamlet, que luta com questões de vida e morte?

Machado sorriu, reconhecendo a validade da crítica.

— Você tem razão, William. A emoção é fundamental na literatura. Contudo, minha intenção foi refletir a sociedade de uma maneira mais cerebral, quase como uma fábula. O que importa é que, ao final, Bacamarte é um espelho de todos nós.

Lobato, sempre entusiasmado, não deixou de defender seu ponto de vista:

— E eu gostaria de adicionar que, enquanto você aborda a loucura, eu trago a fantasia como uma forma de libertação! Os personagens do seu livro, cercados pela racionalidade, poderiam se beneficiar de um pouco de magia! Imagine Bacamarte conversando com o Saci ou criando novas teorias com a ajuda de Emília!

Machado riu, imaginando a cena.

— Seria uma combinação curiosa, sem dúvida! A magia poderia oferecer a Bacamarte o que falta em sua vida: um pouco de leveza. 

Após a troca de ideias, Machado de Assis, com seu olhar perspicaz, fez uma reflexão sobre as obras de seus colegas.

— Senhores, é interessante notar que, apesar de nossas abordagens distintas, todos nós tratamos da condição humana. William, você mergulha nas profundezas da emoção, explorando o amor e a tragédia. Edgar, você desafia os limites da sanidade e do terror, revelando a fragilidade do ser humano diante do desconhecido. E Lobato, você nos lembra da importância da imaginação e da infância, onde tudo é possível.

Ele fez uma pausa, permitindo que suas palavras ecoassem.

— Assim como Bacamarte busca entender a mente humana, nós buscamos entender o que nos torna humanos através de nossas obras. Cada um à sua maneira, contribuímos para um entendimento mais profundo da vida e da sociedade. E, se pudermos aprender uns com os outros, talvez possamos criar um universo literário ainda mais rico.

Os três escritores, tocados pela análise de Machado, concordaram, reconhecendo que, no final das contas, a literatura é um diálogo contínuo. Eles estavam apenas começando a explorar as maravilhas que poderiam surgir de suas interações, prontos para desafiar e inspirar uns aos outros, como verdadeiros mestres da palavra.

Com risadas e promessas de um novo encontro, os escritores se despediram, cada um levando consigo a certeza de que, embora suas obras fossem diferentes, a paixão pela escrita os unia em um laço eterno. E assim, na biblioteca dimensional, as histórias continuaram a se entrelaçar, trazendo à vida a magia da literatura.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Eduardo Affonso* (Cyrano na Pandemia)

* Eduardo Affonso é de Belo Horizonte/MG
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No início da pandemia, a Daniella me mandou um lote de máscaras, cada uma com uma estampa diferente. Tudo higienizado, esterilizado, bem embaladinho.

O uso ainda não era obrigatório, mas quis logo estrear as minhas – em especial uma, perfeita para o passeio com os cachorros, porque tinha desenhos de patas caninas.

A Daniella me conhece razoavelmente, mas devia ter se esquecido do meu perfil. Não o psicológico – o perfil literal mesmo. O narigão.

As máscaras eram do tipo peleja: se cobriam o nariz, descobriam a boca, e vice-versa. Sabe vestido de periguete? Aquele padrão.

Sob pena de parecer neurótico ou obsessivo, passei a usar duas máscaras – uma cobrindo o narigão e parte do lábio superior; outra, a boca e parte do queixo. Funcionou bem, considerando que eu não ia mesmo conversar com ninguém e respiração não chega a ser uma necessidade básica.

Consultei sobre modelos maiores. Claro que havia! E me chegou nova remessa, com máscaras de tamanho mais generoso.

Mas para um nariz como o meu, generosidade não basta. É preciso desperdício.

As pautas identitárias conseguiram que houvesse poltronas mais largas nos cinemas, teatros, auditórios e aviões, para acomodar pessoas com sobrepeso. Lojas passaram a disponibilizar roupas de modelagem compatível com índices de massa corporal pra lá de 30. Mas ninguém pensou nos portadores de nariz pluçaize*.

Não há óculos cujas pontes não nos cavem uma vala horizontal no ponto de apoio. Não há armação com plaquetas afastadas o bastante para nossa envergadura nasal. Vale para óculos de grau, vale para os de natação. Conhece algum narigudo campeão de 800 metros cráu*? Nem eu. Quando você se sentir profundamente frustrado, lembre-se do narigudo que tentou mergulhar de esnórquel*.

Não há boné com aba de 20 cm. Não se vende Rinossoro em embalagem de 500 ml.

O pior é que nem somos uma minoria tão desprezível assim. Juca Chaves, Jean Paul Belmondo, Jean Reno, Luciano Huck, Gerard Depardieu. Para não falar em Maria Bethânia, Maria Callas, Barbra Streisand e a bruxa da Branca de Neve.

Para não incomodar de novo a Daniella, acabei comprando mais algumas máscaras numa loja de artigos hospitalares. Antes, sondei quem estava fabricando máscaras caseiras (sempre é bom dar preferência ao pequeno empreendedor), mas ninguém produzia no tamanho Extra GGG Ultra Plus. O moço da loja disse que aquelas eram “oficiais”, do tipo seguro Golden Platinum, com cobertura total. Quebrei a cara.

Fabricantes de máscaras, óculos, burcas, esnórqueis, vaporizadores: pensem em nós. Claro que o gasto de material vai ser muito maior, mas somos um mercado consumidor disposto a pagar mais caro por um produto adequado à nossa pujança nasal. Se não se adaptarem – como fizeram as indústrias de cosméticos para pele negra, de biquínis manequim 54 ou de tesouras para canhotos – é porque vocês não enxergam um palmo adiante do nariz.
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* VOCABULÁRIO
Cráu = crawl. Técnica de natação.
Esnórquel = tubo oco, preso na boca, utilizado por mergulhadores para respirar debaixo da água.
Pluçaize = plus size. Tamanhos maiores.

Fontes: https://tianeysa.wordpress.com/2020/07/24/cyrano-na-pandemia/
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