sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Teimosia animalesca)


O MARCONDES estava levando uma de suas vacas para cruzar com o touro da fazenda vizinha, num espaço conhecido como “cobrição” (1), quando seu capataz chegou correndo, saltou da camionete esbaforido com a notícia:

— O que foi, Arquimedes: Por que toda essa pressa? Vamos, homem, cante a pedra. Parece estar com o pai na forca!

Arquimedes, ainda sem se refazer do susto, mandou a bomba:

— Sua mãe, patrão. Dona Catarina está passando mal. Sua esposa já chamou o médico e pediu para que eu viesse lhe chamar com urgência. Caso de vida ou morte...

Acompanhando o Marcondes, Elisa e Pérola, as duas jovens filhas de seu advogado, que morava perto, numa gleba confinante à sua. Ambas estavam em sua propriedade à espera de Valquíria, a enteada, que saíra cedo e fora até o povoado pagar as contas e fazer as compras mensais para o rancho.

O imprevisto surgido deixou o fazendeiro aparvalhado, de calças curtas e deveras preocupado. Perplexo e sem ação, diante daquele fato inesperado, ficou sem saber, de pronto, que atitude tomar. Elisa, a mais velha das meninas, vendo o estado desesperador de seu Marcondes, se prontificou:

— Pode deixar seu Marcondes. Somos dondocas do vilarejo, mas o papai, como é do seu conhecimento, também tem um sítio enorme com pasto imenso onde cria vacas e cavalos de raça, igual ao senhor.

Se abriu num sorriso contagiante e completou:

— Apesar de vivermos mais no conforto das facilidades, sabemos como agir e lidar com essas coisas.

Pérola interrompeu a irmã e completou:

— Verdade, seu Marcondes. Deixa que eu e Elisa levamos a sua vaca até onde o touro se encontra. Por favor. Vá cuidar de sua mãe e deixe esse encargo por nossa conta. Tiraremos de letra.

Espavorido e receoso com o fato de que as duas donzelas não dessem conta do recado, mil coisas vieram martelar à cabeça da criatura. Todavia, com seu homem de confiança no encalço e à sua espera, para leva-lo até à progenitora carecendo de ajuda, decidiu que naquele momento o mais acertado seria partir em amparo de sua consanguínea, uma senhorinha em idade bastante avançada:

— OK, meninas. A vaca é toda de vocês duas.

Três horas depois, terminada a árdua tarefa de ter prestado toda a assistência à sua genitora o fazendeiro regressou. Estava mais calmo e tranquilo. Deixara dona Catarina fora de perigo. A anciã fez uma batelada de exames no hospital e regressou ao lar. Sem mais delongas, Marcondes se dirigiu para o estábulo visando averiguar se as pequenas haviam cumprido, à risca, a tarefa que se propuseram levar à termo.

Ao chegar na estação de monta (2), ao lado de um galpão e de uma abegoaria (3) onde o touro num pequeno cercado se achava à espera de sua vaca, para a procriação, o agourento do desastre se mostrou encaroçado e bombástico. Topou com as moças todas sujas de lama, os cabelos alvoroçados, sem falar que estavam quase nuas, em vista dos vestidos em farrapos. Assim que o capataz parou a camionete, Marcondes saltou ao encontro das pequenas, tremendo pior que vara verde:

— Meu Deus, Elisa. O que aconteceu?  Pérola, acaso o Jovino investiu contra vocês?

Elisa ao tempo em que respondia, se pôs em pé procurando se albergar dos olhos esbugalhados do fazendeiro e do capataz, totalmente colados em suas partes intimas, a bem da verdade, recatos expostos às visitações escancaradas das salientes figuras que, de repente pareciam frenteadas com um deslumbre magnânimo jamais visto e apreciado em suas vidas:

— Seu Marcondes — indagou Elisa:  —  Quem é Jovino?

— Jovino é o nome dele. — respondeu o fazendeiro apontando o indicador em direção ao touro. Me expliquem o que aconteceu enquanto estive ausente?

Pérola também seminua, veio em socorro da irmã e completou a explicação:

— Seu Marcondes, foi a sua vaca...

O fazendeiro e o capataz boquiabertaram (4), pasmos e abismados, completamente estatelados:

— O que houve com Mimosa?  Ela é tão mansa. Espiem o semblante da coitada ... parece cansada e Jovino... o Jovino se mostra desanimado... macambúzio!... (5).

Elisa e Pérola tentaram rir, mas o choro vergonhoso não permitiu:

— Sua vaca tem nome? — Indagou Elisa se pondo também emparelhada à irmã:

— Sim, minhas lindas.  O nome dela é Mimosa.  Assim como o touro que vocês estão vendo. O nome do garanhão é Jovino. Vamos, garotas, o que aconteceu? Quero a verdade. Sou todo ouvidos.

Elisa sem deixar de se debulhar em lágrimas explicou como pode:

— O senhor falou para que nós trouxessemos a sua vaca, digo a Mimosa, e que a colocássemos em posição de ela se entregar acasalando com o touro... digo, fazendo sexo com o Jovino...

— Sim, e daí? Vocês não fizeram isso?

Pérola à imitação da irmã, ao se por fora da lama suja, o fez de forma açodada:

— Nós pelejamos de tudo quanto foi jeito, seu Marcondes. O problema é que a desgranhenta da sua vaca, quero dizer, da Mimosa, não quis, de maneira nenhuma, ficar deitada de costas no chão.
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Notas de rodapé:
1 Cobrição – Qualquer cópula (coito) entre animais quadrúpedes.  
2 Estação de monta – No sentido citado no texto, local onde se levam as fêmeas (vacas) para as exposições aos touros (machos).
3 Abegoaria – Local onde se guarda os instrumentos de uso diário de uma propriedade ou fazenda.
4 Boquiabertaram – Ficaram perplexos e abismados. De queixo caído.
5 Macambúzio –  Pessoa triste, melancólica ou mal-humorada.


Fonte:
Texto e notas de rodapé enviados pelo autor.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Adega de Versos 93: George Abrão

 

Humberto de Campos (Efeitos do tanino)


Preocupado com a mocidade da sua linda companheira e temendo, ao mesmo tempo, a decadência de tão maravilhosa formosura, principalmente daquele admirável colo de neve, que era o seu orgulho e que ela mostrava, contente, até aonde lhe era possível mostrar, o coronel Epifânio Fonteneles procurou, uma tarde, a proprietária de um famoso Instituto de Beleza, e expôs claramente o seu caso. A Circe francesa ouviu-lhe a narrativa, compreendeu-lhe os temores, percebeu-lhe as apreensões, e, com um sorriso nos lábios artificialmente vermelhos, tranquilizou-o:

- Pode ficar tranquilo, coronel. O preparado que possuímos para conservar a graça do busto, a mocidade da pele, enfim, a beleza do colo, é infalível. É uma loção adstringente, de efeito seguro e poderoso, que tem realizado verdadeiros milagres. Basta dizer que entram nela, em dose elevadíssima, a pedra-hume, a casca de romã, a folha de carvalho, a casca de manga, enfim, todas as substâncias taninosas, que fazem contrair e fortalecer a epiderme, conservando-lhe a juventude.

E retirando um vidro da prateleira:

- O senhor leva um vidro, e recomende a madame que o use todos os dias. Toma-se de um pouco de algodão delicado, molha-se no liquido, e umedece-se com ele a pele do colo, principalmente o seio, cuja rijeza é preciso conservar. Deixa-se secar o liquido na pele, põe-se uma ligeira camada de pó de arroz, e está feito o remédio, e, com ele, a "toilette" do dia.

Balançando a cabeça a cada informação, o coronel mostrou haver entendido bem, pediu dois vidros da loção, pagou-os, recebeu-os, e tocou-se para casa, onde os entregou à encantadora D. Ignezinha, a quem transmitiu, palavra por palavra, todas as explicações.

No dia seguinte, à tarde, usado o liquido de acordo com as instruções do marido, e enfiado o seu vestido de decote mais longo e mais frouxo, desceu a linda senhora, sem colete, afim de patentear melhor a graça do busto deslumbrante, para a sala de visitas, onde já se havia feito anunciar, como um dos amigos mais frequentes da casa, o jovem engenheiro militar Dr. Epaminondas Rufino.

Pausado, meticuloso, disciplinado em tudo, o coronel demorou-se ainda nos seus aposentos, vestindo-se para jantar. Meia hora depois, ouviam-se os seus passos na escada, e, logo, em seguida, a sua entrada no salão, onde madame sorria, discreta, contando uma história qualquer ao capitão Epaminondas.

- Então, como vai essa bravura? bradou, jovial, o velho coronel, estendendo a grande mão gloriosa, para apertar a do amigo.

O engenheiro ia responder no mesmo tom, mas, de repente, contraiu o rosto, empalideceu, e continuou mudo.

- Que é isto? Está se sentindo mal? - tornou o coronel apreensivo.

O capitão fez um novo esforço, com os músculos de todo o rosto, procurando descerrar os lábios apertados, contraídos num espasmo da mucosa e, com uma dificuldade horrível, quase com a boca cerrada, respondeu, apenas, num sibilo, com a língua presa, dura, paralisada pelo tanino:

- Nun... tãnho... nada!

E ganhou a rua.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 14


A aurora, em seu esplendor,
no silêncio da alvorada...
Põe reticências de amor
nos versos da madrugada!
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A existência é dividida,
em partes bem desiguais:
Na infância, o esplendor da vida,
no ocaso, a explosão dos ais!
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Amo o silêncio da noite,
e as ondas sem vendavais,
quando a brisa em leve açoite
me leva de volta ao cais!
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A noite passa enfadonha;
na jangada, a cerração,
molha os sonhos de quem sonha
nos mares da solidão!
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Ao nosso amor, fiz a jura,
por ser do amor, tão devoto.
Mas da foto da moldura,
resta a moldura sem foto!
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Ao ver o fogo apagado,
eu vejo aos pés do fogão,
que os sonhos do meu passado
viraram cinza e carvão!!!
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A todo instante, eu medito,
sobre tudo que componho,
bordando um sonho bonito
com bordados de outro sonho!
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De um grande amor, não se prive
que, a solidão é bisonha;
nunca tem dó de quem vive
nem tem pena de quem sonha!
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De volta à tapera amada,
revi meus passos incertos,
ao ver a infância abraçada
a velhos braços abertos!
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Disseste adeus!... Que maldade!...
E, essa ausência, tão vazia,
virou um grão de saudade
que germina todo dia!
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Dói a saudade! ...E, entretanto,
a dor do teu triste adeus,
não cabe na dor do pranto
que rola dos olhos meus!
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É tarde, o vento murmura,
e, à noite, de alma indefesa,
põe um pouco de ternura
na solidão sobre a mesa!
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Eu busco nas horas plenas,
toda a essência que me acalma,
num verso, que diz apenas
que a trova também tem alma!
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Eu pensei voltar cantando
do meu chão de primavera!...
Mas chorei, por ver chorando
sombras na velha tapera!
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Foi machucando a lembrança,
de volta ao meu velho ninho,
que eu chorei feito criança
pisando o mesmo caminho!
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Há um pobre vulto na rua
que entre os trapos se agasalha;
por leito, os lençóis da lua
e os véus da noite grisalha!
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Moldei tua despedida,
nos versos que te compus,
mantendo a mesma medida
dos braços de tua cruz!
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Na dor da tarde morena,
há um lenço de rubra cor,
que toda tarde me acena
fingindo acenos de amor!
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Na foto, os meus desenganos!
É que a foto envelhecida,
mostra a maldade dos anos,
nos anos de minha vida!
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Naquela velha pracinha,
não tem quem conte as pegadas
de nós dois, toda tardinha,
caminhando de mãos dadas!
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No instante em que o Sol desmaia,
aos poucos, mantenho a calma,
a espera que a noite caia
trazendo paz a minha alma!
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No sonho, tudo se alcança;
e, o tempo, insano e arbitrário,
arbitra qualquer mudança
e molda tudo ao contrário!
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O entardecer, de mansinho,
em silêncio e, sem alarde,
toda tarde faz seu ninho,
no teto do fim da tarde!
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O rio, entre os seixos canta,
canção que é quase divina;
nem reclama da garganta,
nem erra e nem desafina!
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Ouço passos na janela,
que ao passado me transporta;
se não for os passos dela,
é de alguém no pé da porta!
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Para escapar da velhice,
tentei fugir pelos flancos;
mas percebi que é tolice,
pelos meus cabelos brancos!
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Por crer neste amor imenso,
de forma tão comedida,
é que sempre enfrento e venço
os maus presságios da vida!
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Qualquer rosa na janela,
de uma palhoça sem teto,
mostra o quanto a vida é bela
quando é cercada de afeto!
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Quando a ganância insensata,
destrói a mata florida,
depois de morta, ela mata
quem tirou-lhe a flor da vida!
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Relógio, por que tu choras,
se tens segundo a segundo,
os dedos cegos das horas
marcando as horas do mundo?!…
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Sem se queixar da pobreza,
na palhoça tão singela,
se faltasse o pão na mesa,
sobrava amor dentro dela!
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Se uma lágrima desaba,
quando é pura, nos ensina,
que a lágrima não se acaba
na fonte da alma divina!
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Só Deus, com saber profundo,
permite de forma ordeira,
que o Sol beba num segundo,
o orvalho da noite inteira!
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Teu bilhete apaixonado,
que alguém me entregou com medo,
esconde o nosso passado
e expõe o nosso segredo!
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Triste num canto da sala,
brilha uma velha candeia;
muda, em silêncio, não fala,
mas mostra a tristeza alheia!
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Um velhinho e uma criança,
são barcos em dois extremos:
Um com remos de esperança
outro à deriva e sem remos!
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Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

Contos e Lendas do Mundo (O rei e suas 4 esposas)


Era uma vez um rei que tinha 4 esposas. Ele amava a quarta esposa demais, e vivia dando-lhe lindos presentes. Dava-lhe de tudo e sempre do melhor.

Ele também amava muito sua terceira esposa e gostava de exibi-la aos reinados vizinhos. Contudo, ele tinha medo que um dia, ela o deixasse por outro rei.

Ele também amava sua segunda esposa, sua confidente e sempre pronta para ele, com amabilidade e paciência. Sempre que o rei tinha que enfrentar um problema, ele confiava nela para atravessar esses tempos de dificuldade.

A primeira esposa era uma parceira muito leal mas ele não a amava. Apesar dela o amar profundamente, ele mal tomava conhecimento dela.

Um dia, o rei caiu doente e percebeu que seu fim estava próximo.

- É, agora eu tenho 4 esposas comigo, mas quando eu morrer, com quantas poderei contar?

Então, ele perguntou à quarta esposa:

- Eu te amei tanto, querida, te cobri das mais finas roupas e joias. Agora que eu estou morrendo, você é capaz de morrer comigo, para não me deixar sozinho?

- De jeito nenhum! – ela respondeu, e saiu do quarto sem sequer olhar para trás.

A resposta que ela deu cortou o coração do rei como se fosse uma faca afiada. Tristemente, o rei então perguntou para a terceira esposa:

- Eu também te amei tanto a vida inteira. Agora que eu estou morrendo, você é capaz de morrer comigo, para não me deixar sozinho?

- Não!!! - respondeu ela - A vida é boa demais!!! Quando você morrer, eu vou casar de novo.

O coração do rei sangrou e gelou de tanta dor.

Ele perguntou então à segunda esposa:

- Eu sempre recorri a você quando precisei de ajuda, e você sempre esteve ao meu lado. Quando eu morrer, você será capaz de morrer comigo, para me fazer companhia?

- Sinto muito, mas desta vez eu não posso fazer o que você me pede! - respondeu - O máximo que posso fazer é enterrá-lo.

 Daí, então, uma voz se fez ouvir:

- Eu partirei com você e o seguirei por onde você for...

O rei levantou os olhos e lá estava a sua primeira esposa, tão magrinha, tão mal nutrida, tão sofrida... Com o coração partido, o rei falou:

- Eu deveria ter cuidado muito melhor de você enquanto eu ainda podia...
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Na verdade, nós todos temos 4 esposas nas nossas vidas...

Nossa quarta esposa é o nosso corpo. Apesar de todos os esforços que fazemos para mantê-lo saudável e bonito, ele nos deixará quando morrermos...

Nossa terceira esposa são as nossas posses, as nossas propriedades, as nossas riquezas. Quando morremos, tudo isso vai para os outros.

Nossa segunda esposa são nossa família e nossos amigos. Apesar de nos amarem muito e estarem sempre nos apoiando, o máximo que eles podem fazer é nos enterrar...

E nossa primeira esposa é a nossa alma, muitas vezes deixada de lado por perseguirmos, durante a vida toda, a Riqueza, o Poder e os Prazeres do nosso Ego... Apesar de tudo, nossa Alma é a única coisa que sempre irá conosco, não importa aonde formos... Deixe-a brilhar!

Fonte:
Contos orientais. Publicado em 1995.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

José Fabiano (Muros de Trovas) 02

 

Eduardo Affonso (Sologamia)


Uma conterrânea minha, bela loura de 38 anos, casou-se esta semana consigo mesma.

Beagá tem esse “problema”: mais mulheres (quase 200 mil a mais) que homens. Arrumar marido lá deve ser quase tão difícil quanto conseguir um “bom dia” em Curitiba.

A sologamia feminina poderia ser uma forma de equilibrar as contas e minimizar a solteirice congênita que afeta tantas meninas de Minas. Mas ninguém garante que algum homem belo-horizontino também não venha a contrair matrimônio com si próprio, e o déficit permanece igual ao da Previdência – crônico, inexorável, vitalício.

Sem contar que a sologamia – em que pese a economia de uma aliança e um bonequinho em cima do bolo – tem seus senões.

Pode-se pensar que ela signifique solidão, mas é o contrário. Aí é que você não vai ficar sozinho/a de jeito nenhum. Seu/sua parceiro/a vai grudar em você, sempre estará onde você estiver – e não adianta nem se trancar no banheiro para ter um minuto de paz.

Aliás, o banheiro é outro problema. Não há relacionamento que sobreviva à visão do/a parceiro/a absorto/a em questões escatológicas aboletado/a no vaso sanitário. E isso não só de vez em quando, ou por acaso, mas todo dia.
Dia após dia.
Até o fim dos dias.

Nas DRs não dará pra fazer de conta que você está prestando atenção, ou fingir que concorda só encerrar logo o assunto. A coisa só vai acabar quando você se cansar de falar, não quando se cansar de ouvir.

Se você brigar consigo mesmo/a (quem nunca?), fizer as malas e voltar pra a casa da sua mãe, vai parar é na casa da sua sogra.

E não vai poder dormir de conchinha.
Não vai ter quem tire cravos das suas costas.
Não vai ter quem passe protetor solar nas suas costas.
Quem te ajude a fechar o fecheclér (se você for mulher).
Quem te lembre a data do aniversário do casamento (se você for homem).

Nunca vai chegar em casa e encontrar um jantarzinho surpresa.
Nunca vai ter com quem dividir a quantidade de louça suja decorrente do jantarzinho surpresa.

E vai ter que ser fiel na marra.

Tem que ser muito esperto/a para pular a cerca sem que nem você perceba, e muito sonso/a para não perceber que você mesmo/a pulou a cerca – o que é um paradoxo.

No sexo conjugal, então, vai ser uma tristeza. Porque o auto-engano é uma arte, mas tem seus limites.

Não vai dar para fingir orgasmo, nem inventar que está com dor de cabeça ou vir com aquele papinho de que “isso nunca me aconteceu antes”.

Nunca vai poder transar pensando em outra pessoa sem ser flagrado/a cometendo adultério em pensamento. E se pensar em si mesmo/a, é narcisismo. E quem aguenta ir pra cama pelo resto da vida com um/a parceiro/a que ou é narcísico/a ou traíra?

Não adiantará mentir quando perguntar a si mesmo/a “foi bom pra você?” Nem fazer de conta que está dormindo para não ter que passar por aquilo tudo de novo. Ou por saber que uma segunda, logo em seguida, não rola nem a pau.

Mas tem um lado bom.

A cama é toda sua.
O controle remoto é todo seu.

A tampa do vaso estará sempre abaixada.
Ou sempre levantada.

Não haverá calcinhas penduradas no box.
Ou não haverá alguém reclamando das calcinhas penduradas no box.

Não haverá drama se esquecer de tomar a pílula ou de comprar camisinha.

E na divisão dos bens, em caso de divórcio, por mais litigioso que seja, tudo vai acabar ficando pra você.

Complicada mesmo é a pensão por viuvez – que você não vai receber nem morto/a.

Fonte:
Blog do autor. 30 de maio de 2019.
https://tianeysa.wordpress.com/2019/06/04/sologamia/

Caldeirão Poético LV



Clarice Cristal
Balneário Camboriú/SC

NOS BRAÇOS DA INCONSCIÊNCIA

 
Na árdua jornada interna
Pelos campos
Que ardem em fúrias
E em múltiplas explosões
De ódios eviternos
Atirei-me nos braços
Da inconsciência

No meu rumo
À inconsciência pura
Que eu seja autossuficiente
Que eu não dependa
De mais ninguém

Na luta interna
Que travei comigo mesma
Eu dormia incauta
Em noites de tempestades
E muito frio
E acordei soberana
Em dias de muito sol e calor
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Clarisse da Costa
Biguaçu/SC

COTIDIANO  

São os móveis
no mesmo lugar
as flores vermelhas
no quintal
e a vida à passar.

Retratos na parede,
ausência que
traz saudades
e o perfume
que se foi com ela.

O tempo é feito
menino
nem sequer olha
pra trás.
Ou eu vou com ele
Ou eu fico sem rumo.
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Fabiane Braga Lima
Rio Claro/SP

A MAIS BELA POESIA

 
Páginas… minha escrita sem nexo, hoje gritam
Há uma certa repetição de palavras
Poemas incoerentes, sem lucidez...
Palavras aglomeradas, infindas e rimadas.
Leio um livro, talvez tenha inspiração
Mas a saudade me faz companhia
Sempre presente, me faz melancólica
Aonde se esconde...!? Não a vejo!
Leal e afável. De repente me deixou...
Palavras belas, tua essência incógnita
Formoso, não sei!  Vasto de encanto...
Tento te decifrar, mas não consigo, não lhe ouço
Preciso recomeçar, viver. Largo tua mão!
Cativou-me, seremos a mais bela de todas as poesias...
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Elisa Alderani
Ribeirão Preto/SP

PAUSA DA NATUREZA

Aprendi a seguir o exemplo da natureza...
Parar, observar todos os detalhes que a visão ainda me permite ver...
sentada no chão, sobre folhas mortas, caídas, já ressequidas
vejo a beleza do rio passar;
ele não para, é igual ao tempo que passa.
Ninguém pode parar suas águas que fluem,
agora lentas, ou rápidas, dependendo das estações...
Seguem seu percurso indiferente até chegar ao fim do vale,
quando abraçarão o mar...
A tarde passada olhando essa imagem calmamente,
até as árvores verdes fazem reverência ao rio,
as outras, com folhagem outonal, também estão na pausa,
logo o vento irá despi-las para o inverno passar...
Depois, para elas, virá a primavera mais uma vez.
Assim é a lei da natureza,
olho para o azul do céu,
nuvens brancas passando,
mudam a sintonia do meu pensamento.
Também reverencio minha pausa,
com gratidão ao tempo!
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Jaqueline Machado
Cachoeira do Sul/RS

GOSTO
 
Gosto de gente profunda,
mas que nem por isso deixa de ser simples.
Gosto de gente apaixonada,
que se emociona fácil e sabe nos tocar a alma.
Gosto de gente original.
Esse negócio de viver de um jeito “padrãozinho”, é viver de mentira.
 
Gosto de gente, inteligente, envolvente,
engraçada sem deixar de ser séria.
 
Gosto de gente natural
cujo astral é feito de loucura e poesia…
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Samuel da Costa
Itajaí/SC

AGNELA EM ANUNCIAÇÃO

Escolho o pecado!
Encolho-me!
Fujo! Traio!
Minto para mim mesma!

Agora...
Já não sei mais quem realmente sou.
Aonde vou!
Se estou realmente viva!
Pelo menos penso que estou;
Que existo lânguida,
 A vagar em uma outra...
Dimensão.

Tento fugir de mim mesma!
Escolho o pecado.
Afronto!
Magoo!
Quem realmente me ama.

Escondo-me!
De tudo e de todos.
Na agonia de ser eu mesma...
Minto para mim!

Escondo-me...
Na sibilina bruma!
No outono da minha vida.
No outono dos decadentistas...

Contemplo o arrebol…
Em total êxtase!
Escuto a sinfonia idílica e ignota...
Ouço o madrigal ao longe.

Lembro-me de quem se foi...
E choro de saudades.

Escondo-me!
No meu mítico passado!
Finjo estar em outro lugar...
Finjo que me importo…
Com as outras pessoas!
Com alguém que diz amar-me.

Aprisiono-me!
Em um mundo encantado,
um multiverso quimérico!
Que construí somente para mim!
Minto para mim mesma.
Na esperança vã...
De me encontrar comigo mesma!
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Vivaldo Terres
Itajaí/SC

MENINA

 
Menina de negros cabelos...
De olhos escuros,
E de lábios vermelhos...
De pele tão clara,
E tão atraente...
Quando ela nós olha!
Nós vimos uma modelo,
Na nossa frente.

Menina és tu a própria beleza,
Tu és algo de divino, és obra da natureza.
Desta natureza perfeita,
Que vai das matas a flor,
Tu és todo encantamento,
Tu te desmanchas em amor.

És filha do universo, dos rios...
Das matas e da flor!
Tu és toda iluminada,
Tu te desmanchas em amor;

Às vezes nas tuas horas de tristeza e dissabor;
Ajoelhas-te de mãos postas,
Pedindo auxílio ao senhor;
E nesse instante também,
Tu te desmanchas em amor.

Das flores és a mais bela,
Moldada pelo criador,
Teu coração sei que é puro,
Tua alma tem valor,
Em qualquer lugar do mundo,
Tu te desmanchas em amor.

Marcelo Spalding (Exercícios de concentração para escrever)


A escrita é uma atividade intelectual que exige uma série de habilidades, como criatividade, foco, imaginação, observação, memória, síntese, organização, entre muitas outras. Porém, para ativar tudo isso na hora de escrever, o autor precisa se concentrar para iniciar e seguir no processo até o último ponto final.

Estamos acostumados a ouvir entrevistas com cantores famosos falando sobre seus exercícios para aquecer a voz. Mas, quando se trata dos escritores, que geralmente escrevem completamente sozinhos e não costumam dar tantas entrevistas, ficamos sem saber sobre seus exercícios de concentração para escrever.

Será que são relevantes no processo da escrita? Será que existe uma regra sobre o assunto ou cada autor faz do seu jeito? Confira algumas respostas e reflexões neste artigo.

Antes de tudo, precisamos dizer que exercícios de concentração para escrever não são a mesma coisa do que exercícios para escrever, pois os objetivos são diferentes. Por exemplo, para se concentrar, o autor não precisa ser criativo, mas sim, se desligar das distrações e focar no tema que deseja escrever. Lembrando que esse exemplo pode ser o caso de alguns escritores, mas não necessariamente de todos, já que alguns podem gostar de barulho para se concentrar, por mais estranho que possa parecer.

Para abordar este tema, trouxemos exemplos de alguns autores conhecidos como Cíntia Moscovich, Stephen King, Ernest Hemingway e Maya Angelou.

Cíntia Moscovich, antes de se sentar e escrever o que se propõe, costuma ouvir música, desenhar ou ler. Segundo ela, os exercícios de concentração para escrever atuam como uma afinação do cérebro e ajudam a desfocar do mundo externo. Além disso, a autora evita contato interpessoal enquanto se concentra e também enquanto escreve.

Quanto a ouvir música, você pode aproveitar as facilidades da tecnologia para aumentar as possibilidades. Uma dica é criar uma playlist para este momento de concentração ou ainda para cada texto ou livro que for criar.

Outro exercício de concentração é reler o texto no qual você está trabalhando antes de começar a escrever. Este vale tanto para se concentrar quanto para escrever melhor, já que ajuda o autor a continuar o texto sem perder o ritmo e sem desviar do tema. Esse exercício é ou foi praticado pela maioria dos grandes escritores, como Stephen King e Ernest Hemingway, entre outros. Hemingway, em seu artigo para a revista Esquire, deu o seguinte conselho: "Nunca pense sobre uma história em que você esteja trabalhando antes de voltar a ela no dia seguinte. Desta forma, seu inconsciente vai trabalhar nela o tempo todo".

O próximo exemplo pode ser encarado como um exercício de concentração ou como uma condição para escrever. Escolher um local neutro, que não seja nem a casa nem o escritório, para se dedicar à escrita é o que a americana Maya Angelou fazia. A poetisa, escritora, ativista de direitos civis, historiadora, atriz, cantora (e muitas outras atuações), falecida em 2014, saía de casa todos os dias às 06h da manhã e ficava em um pequeno quarto de hotel escrevendo até às 14h. Se distanciar das pessoas e dos locais "confortáveis" pode ajudar o autor a se concentrar melhor na sua escrita.

Se a obra na qual estiver trabalhando requer pesquisa prévia, destinar algum tempo antes de começar a escrever para pesquisar e organizar os dados coletados é uma estratégia que vale a pena testar. Dessa forma, o autor consegue se concentrar melhor na escrita durante o tempo que tem para ela. Cuide, porém, para que você não se canse demais durante a pesquisa para não prejudicar a qualidade do seu texto.

Eliminar as distrações antes de escrever e enquanto se escreve pode parecer uma dica básica, mas, hoje, com whatsapp e redes sociais nos chamando a todo minuto, é um desafio daqueles. Stephen King foi claro quando disse: "Não deve haver telefone no seu local de escrita, certamente não deve haver TV ou videogame pra você se distrair. Se tiver uma janela, feche as cortinas".

Consumir outras artes também é uma forma de se concentrar para escrever e de ter ideias. Ficar observando ou até mesmo criar obras de arte, quadros, esculturas, pinturas, fotografias e outras é uma dica para se concentrar para escrever. Clarice Lispector costumava apreciar obras de arte e isso com certeza a inspirava para escrever daquele jeito tão único.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 20: Enlevo

 

Paulo Leminski (Versos Diversos) 19



ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa
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ais ou menos

(oração pela descrença)

Senhor,
peço poderes sobre o sono,
esse sol em que me ponho
a sofrer meus ais ou menos,
sombra, quem sabe, dentro de um sonho.
Quero forças para o salto
do abismo onde me encontro
ao hiato onde me falto.
Por dentro de mim, a pedra,
e, aos pés da pedra,
essa sombra, pedra que se esfalfa.
Pedra, letra, estrela à solta,
sim, quero viver sem fé,
levar a vida que falta
sem nunca saber quem é.
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como pode?

Soa estranho, esta manhã,
tudo o que sempre foi meu, como pode?
Como pode que esse som lá fora,
os sons da vida, a voz de todo dia,
pareça ficção científica?

Como pode que esta palavra,
que já vi mil vezes e mil vezes disse,
não signifique mais nada,
a não ser que o dia, a noite, a madrugada,
a não ser que tudo não é nada disso?

Pode que eu já não seja mais o mesmo.
Pode a luz, pode ser, pode céu e pode quanto.
Pode tudo o que puder poder.
Só não pode ser tanto.
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Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.
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para que leda me leia
precisa papel de seda
precisa pedra e areia
para que leia me leda

precisa lenda e certeza
precisa ser e sereia
para que apenas me veja

pena que seja leda
quem quer você que me leia
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pareça e desapareça

Parece que foi ontem.
Tudo parecia alguma coisa.
O dia parecia noite.
E o vinho parecia rosas.
Até parece mentira,
tudo parecia alguma coisa.
O tempo parecia pouco,
e a gente se parecia muito.
A dor, sobretudo,
parecia prazer.
Parecer era tudo
que as coisas sabiam fazer.
O próximo, eu mesmo.
Tão fácil ser semelhante,
quando eu tinha um espelho
pra me servir de exemplo.
Mas vice-versa e vide a vida.
Nada se parece com nada.
A fita não coincide
Com a tragédia encenada.
Parece que foi ontem.
O resto, as próprias coisas contem.
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três metades

Meio dia,
um dia e meio,
meio dia, meio noite,
metade deste poema
não sai na fotografia,
metade, metade foi-se.

Mas eis que a terça metade,
aquela que é menos dose
de matemática verdade
do que soco, tiro, ou coice,
vai e vem como coisa
de ou, de nem, ou de quase.

Como se a gente tivesse
metades que não combinam,
três partes, destempestades,
três vezes ou vezes três,
como se quase, existindo,
só nos faltasse o talvez.
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voláteis

Anos andando no mato,
nunca vi um passarinho morto,
como vi um passarinho nato.

Onde acabam esses voos?
Dissolvem-se no ar, na brisa, no ato?
São solúveis em água ou em vinho?

Quem sabe, uma doença dos olhos.
Ou serão eternos os passarinhos?

Fonte:
Paulo Leminiski. Distraídos venceremos.  Publicado em 1987.
Livro cedido gentilmente pelo poeta.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 05

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 65


Sexta-feira em Santa vilegiatura.

Caminhos verdes, ceus azuizinhos, veredas ensolaradas.  O silêncio dá ouvidos às folhas do outono caindo serenamente.  Alguém colhendo macela nos barrancos. Tradição secular. Logo os chás alicientes.

Caminhos e caminhares em busca de sabores para os olhos e a mente. Porque a vida sempre foi de buscares, de enxergares, de quereres.  Acúmulo de vivências.

Andanças nos dão horizonte, vamos mais longe, surgem os detalhes, a curiosidade chega pertinho.  Talvez este seja o melhor da existência, recolher o que pudermos, amealhar as essências, peneirar o máximo do mínimo.

E o genebrino Jean-Jacques Rousseau parece pontual:  " Caminhar com bom tempo, numa terra bonita, sem pressa, e ter pela caminhada um objetivo agradável  -  eis, de todas as maneiras de viver a que mais me agrada ".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Samuel da Costa (Cristina)


Ivanoé, não suportava mais ver aquilo, a neta impaciente dividia o olhar, entre a janela da frente da casa e o telefone, instalado, na mesa no centro da sala de estar. Era um olhar difuso, um misto de desespero, de ansiedade, de expectativa e de dor.

– Márcia, minha filha, o que foi? O que tens, minha filha? – Disse impaciente Ivanoé, o delegado aposentado, ao interromper a leitura do Jornal da tarde, ele estava sentado confortavelmente, na poltrona de leitura. Ivanoé, estava aposentado somente há alguns meses da polícia civil, e desde que o seu único filho lhe faltou, deixando a neta, ainda um bebê de colo, como seu bem mais precioso na vida, nada mais importava de fato na vida do velho policial. Uma vez que a esposa de Ivanoé não era mais nada que uma mera sombra do passado, depois que ela faleceu, há tempos atrás. Era um passado que Ivanoé fazia questão de esquecer por completo.

Agora Ivan, como gostava de ser chamado na intimidade, estava aposentado do serviço público e agora não tinha mais que dividir seu tempo entre as duas coisas que mais amava na vida. Nada mais importava de fato, senão Márcia, sua neta. Uma vez que uma das suas duas paixões, a polícia civil, já não fazia mais parte da vida cotidiana de Ivan. Mas, ele não lamentava o fato, a vida é assim mesmo, tudo passa nesse mundo, menos a família, pois o sangue sempre prevalece. Pelo menos, era assim que o velho policial civil encarava como a vida deveria ser.

– Márcia, minha filha, o que é isso aí no teu braço?

– Ainda é uma tatoo meu pai, e foi mês passado, quando o senhor me fez a mesma pergunta. E hoje ainda é uma tatoo e será amanhã também uma tatoo. Ela vai ficar bem aqui, no meu braço por muito tempo! Vai ficar bem aqui e para sempre na minha vida.

Ivan gostou de ouvir a neta o chamar de pai. Mas, passou a não gostar do linguajar desrespeitoso da neta de tempos para cá, nem estava gostando das roupas que ela vinha usando, eram trajes diáfanos e negros como a noite. Márcia tão rebelde e revoltada com tudo e todos, como era parecida com Aldo nesse aspecto, pensou Ivan:  ‘’Meu Deus, como Márcia é parecida com o Aldo em tudo!’’ – falou Ivan bem baixo.

E, olhando a neta parada diante dele, de repente Ivan foi tomado por velhas recordações, dos tempos da infância e da adolescência quando Ivan e Aldo eram praticamente inseparáveis. Eram insolúveis e indissociáveis, onde estava um, o outro também estava, onde um ia o outro também ia. E, como os caminhos tortuosos da vida adulta, fizeram os dois irmãos estarem em lados opostos. Ivan ingressou na policial civil e Aldo foi se engajar na luta armada. Eram os conturbados anos de chumbo, anos negros da ditadura civil militar.

Aldo desaparecera por completo, por algum tempo, da vida de Ivan, Aldo sumira em meio ao caos que o país estava mergulhado naquele momento sombrio. Ivan só ficou sabendo onde estava o irmão por vias tortas. E Ivan teve que ajudar o querido irmão a voltar para casa, e como foi difícil aquilo para Ivanoé, ver o irmão no cárcere, preso como um marginal qualquer.

– Filha, a tua amiga não te ligou mais e nem veio mais te visitar? Que coisa estranha? Não é mesmo minha filha? – A voz de Ivan era pastosa e cheia de ternura, muito diferente do tom forte e autoritário de poucos minutos atrás. Mas Márcia não respondeu a pergunta feita por Ivan, e como aquele silêncio incomodava Ivan profundamente.

Tinha aquela súbita união das duas moças, e de repente as duas eram tão inseparáveis. Era o cinema, a praia, espetáculos, as peças de teatro e os mais variados programas e até mesmo futebol as duas andaram assistindo juntas. E como aquilo deixava Ivan muito preocupado em demasia. Para Márcia, parecia que não existia mais ninguém no mundo, a não ser a amiga Cristina.

E agora esse sumiço repentino de Cristina, uma moça tão meiga e doce, tão diferente da neta. Cristina era diferente em tudo, nos estudos, nas roupas e tudo mais. Se Cristina era o frescor de uma manhã primaveril, Márcia era soturna e intensa como uma noite de tempestade e frio no inverno. A princípio, aquela estranha amizade não incomodava em nada o velho policial, ele até achava bom ver a neta, sempre solitária, na companhia de alguém. Mas, agora olhando por outro prisma, Ivan começou a pensar o oposto, aquela dependência de Márcia pela companhia da amiga, não deixava que Márcia vivesse a própria vida, trilhasse seu próprio caminho. Cristina monopolizava a vida de Márcia, de um tal jeito, que vinha assustando Ivan. Na visão do velho policial, a neta parecia querer viver a vida da outra. Era esse o confuso quadro formado na cabeça de Ivanoé.

– Aldo, meu irmão...

– O que foi, pai, tás falando comigo?

– Nada, minha filha, só estava pensando no teu tio, que ainda está morando no estrangeiro, saudades dele, só isso, minha filha. Márcia, o que é isso no teu nariz, minha filha?

– É um piercing...

– Já sei... já sei... ainda é um piercing, e foi mês passado quando o teu velho pai...

– Pai, o amor é mesmo uma coisa tão estranha, não é mesmo? Pega a gente de tal jeito, e não larga mais, e dói tanto!

Só agora olhando com mais atenção, Ivan notou na tatuagem em forma de coração, estava escrito Cris dentro da tatuagem.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Jerson Brito (Sonetos Escolhidos) 2


FERIDAS FECHADAS


Bendigo as cicatrizes que hoje ostento
porque comprovam lutas superadas,
feridas dolorosas, mas fechadas
à custa de esperança e sofrimento.

Não nego que existiu abatimento
frente aos reveses destas caminhadas,
perante o medo e nas encruzilhadas
surgidas no percurso pardacento.

Os tombos me ensinaram que a derrota
faz parte do processo necessário
à formação das mentes vencedoras.

Quando menos se espera a força brota
no ventre de um prolífero calvário
para conter as outras, opressoras.
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LÁGRIMAS AO VENTO

À sombra do carrasco o pó se espalha
nos dentes de seu tétrico brinquedo
e escreve outro capítulo a batalha
sem novo vencedor, sem novo enredo.

Um golpe, um tombo, a ríspida navalha
assustam logo todo o passaredo:
as folhas se transformam em mortalha
no derradeiro embate do arvoredo.

O vento leva as lágrimas vertidas
por muitas anciãs desprotegidas
Enquanto desvanece, nua, a terra.

O ronco cessa, a rude mão descansa
e vaga na clareira a vista mansa
do jovem que conduz a motosserra.
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Menção Honrosa no 9º Concurso Literário da AML – Academia Madureirense de Letras – Prêmio "Austregésilo de Athayde" 2020.
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O MENINO

Atrás de um garotinho que corria
na rua de cascalho, em vão, também
corri o quanto pude, mas ninguém
acompanhar-lhe o passo poderia.

De igual maneira, as cores da alegria
em meu olhar lançavam seu desdém,
fugiam dos apelos de um refém
daquele resplendor que fenecia.

Brinquedos eu perdi, precipitados
no abismo onde definha a formosura
dos dias pelos ventos devorados.

O asfalto que recobre a sepultura
dos tempos outra vez rememorados
desfaz um sonho cheio de doçura…
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PORCELANAS

Vivemos nosso conto ao arrepio
de convenções antigas, puritanas,
levados pelas fábulas mundanas
às garras do faminto desvario.

Desesperadas bocas têm, ciganas,
os pratos de um banquete fugidio
e engolem, neste falso senhorio,
manjares, deslizando em porcelanas.

Olhamos ao redor as rachaduras
crescerem nas paredes destes mundos
erguidos sobre bases quebradiças.

Mais uma vez seguimos, às escuras,
roteiros diferentes mas fecundos
em solidão, carências e cobiças.
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RIOS DE FOGO

Faceiros, partilhamos balbucios,
ardendo entre blandícias, completude:
declarações repletas de inquietude
ouvidos tomam, nutrem arrepios.

A ebulição dos lábios erradios
consente que o desejo se desnude;
dos corpos toma posse a lassitude,
sem fôlego, de lavas somos rios...

À mesa dos prazeres, cobiçosos,
servidos de banquetes majestosos,
aproveitamos tudo, imoderados.

Olhares e sorrisos dardejantes
são marcas desenhadas nos semblantes
pelo arrebatamento transformados.

Fonte:
Recanto das Letras do poeta
https://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?pag=9&id=50832&categoria=Z

Contos e Lendas do Paraná - 14 (Cerro Azul – Paranaguá)


Município de Cerro Azul

HERMÓGENES


Talvez o personagem mais conhecido do imaginário popular cerroazulense seja o “coronel” Hermógenes de Araújo, que viveu nos idos do século XIX, em tempos de coronelismo e voto de cabresto. Hermógenes era figura muito conhecida na região, sua casa era a melhor e mais rica e ele tinha muita influência junto ao Governo do Estado, representado por Vicente Machado. Bastante conhecido pela sua dureza e crueldade, era o mandatário da região, vivendo cercado de jagunços encarregados de fazer o “serviço sujo”.

O episódio mais famoso envolvendo seu nome está relatado no livro “A Cruz do Alemão”, de Cid Destefani: é o assassinato, à tocaia, de um imigrante alemão chamado Henning. Henning foi executado por um bandido chamado Diomiro Furquim e capangas, a mando de Hermógenes, por razões políticas que envolviam nomes importantes do cenário paranaense da época, como Vicente Machado, Padre Alberto, Pároco de Curitiba e o Barão do Serro Azul.

Por ser uma figura tão peculiar, são controversas as muitas histórias a respeito dele. Conta-se que teria morrido de uma febre misteriosa que tomou seu corpo. Antes de morrer, agonizou durante vários dias e seus empregados se revezavam noite e dia, abanando o seu corpo na tentativa de aplacar o calor. Muitos diziam que era o fogo do inferno, castigando-o por seus pecados.

Conta-se, também, que depois da morte, seu túmulo vivia rachando, porque a alma não encontrava descanso. Para resolver o problema, o túmulo recebeu grossas correntes a sua volta. Mais tarde, estas correntes foram levadas para o antigo pátio da Prefeitura Municipal e conta-se que enquanto elas ali permaneceram, nada naquele local prosperou.
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Município de Paranaguá

A LENDA DA CAVEIRINHA

Um escravo muito tagarela vinha da Fonte Velha, trazendo um pote d’água à cabeça. Ao atravessar o “Campo Grande”, viu, encostado a uma velha figueira, um esqueleto humano. Meio assustado, porém, por brincadeira e com vontade de falar, arriscou-se a dizer ao esqueleto:

– Caveirinha, quem te matô?

– Foi a “língua”; ouviu o esqueleto responder.

Achando graça, tornou a perguntar:

– Caveirinha, quem te matô?

E a resposta não se fez esperar:

– Foi a “língua”...

Fez o negro a pergunta pela terceira vez; a mesma resposta ouviu:

- Caveirinha, quem te matô?

– Foi a “língua”.

O escravo, então, apressou o passo, não por medo, mas para chegar mais cedo à casa do amo; pois estava doidinho para soltar a língua, como sempre fazia, mentindo descaradamente. Tão logo deixou o pote com água na cozinha, foi, lépido, até a senzala nos fundos do quintal, para contar o caso aos companheiros de cativeiro, que havia falado com uma caveira.

Alguns começaram a rir, gozando o escravo linguarudo. Outros, nem deram atenção; pois já conheciam as manhas e mentiras dele. Mas um deles, muito crédulo, aventurou-se a contar ao amo a façanha do negro marombado, como diziam todos. O patrão, cansado de saber das invencionices do escravo, mandou-o chamar. Ele veio todo lampeiro. O patrão então perguntou.

– Que história é essa do esqueleto falar, seu negro sem vergonha?

– Meu amo, eu juro que oví a caveira falá.

– Você não perde o costume de soltar a língua. Não se emenda mesmo.

– Mas eu vi a caveira e oví ela falá. Eu juro que não tô mentindo. Ela tá lá.

– Você é um descarado. Não sabe que um esqueleto não tem vida? Como então poderia ele falar?

– Falô, sim sinhô, meu amo. Eu tô dizendo a verdade. Mecê pode aquerditá. Desta veis eu não tô mentindo.

– Jura em nome de Deus?

– Juro, por nosso sinhô!

– Pois bem. Nós iremos ao Campo Grande. Queremos ver esse esqueleto, se ainda lá está, e também ouvi-lo falar com você. Mas fique certo do seguinte; se o esqueleto ainda lá estiver e não responder à sua pergunta, eu mandarei amarrá-lo ao tronco da figueira, junto ao esqueleto, para receber 100 chicotadas, a fim de nunca mais mentir.

E lá se foram todos, patrão, empregados e escravos; onde, de fato, encontraram um esqueleto encostado a uma figueira, no tal Campo Grande.

– Agora, disse o patrão: fale, negro sem vergonha; fale com ela.

– E o negro, já meio amedrontado; caveirinha, quem te matô? Nada; o esqueleto não respondia. Tornou a perguntar: caveirinha, meu bem, quem te matô? Nem uma palavra. O negro, temendo já o castigo que ia receber e que por certo não aguentaria, começou a implorar: Caveirinha, minha boa amiguinha, diga, por favô, quem te matô. Diga, senão eu vô apanhá muito. O silêncio continuava.

– Pessoal, falou o patrão, amarrem esse marombado ao tronco da figueira e executem as minhas ordens. E foi-se com os demais escravos. O pobre escravo não aguentou o suplício e morreu. Já era noite quando isso aconteceu.

Depois que os empregados foram embora, deixando o negro amarrado ao tronco da árvore. Ouviu-se uma voz, a voz do esqueleto: “eu não te disse que quem me matou foi a língua?”

Isso aconteceu no tempo da escravidão. Contavam os negros em suas senzalas, à noite.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

domingo, 23 de outubro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 16

 

George Abrão (Balaio de galinhas)


Era uma festa a compra de galinhas. Minha mãe, de antemão, já sabia o dia e o local da venda.

As galinhas vinham do Sertão de Cima. Galinhas caipiras: carijós, pévas, índias, de pescoço-pelado, pretas. Havia quem gostasse de galo, também tinha. Muitas vezes traziam algum pato, leitão ou cabrito.

O transporte era feito em grandes balaios de taquara sobre o lombo dos cavalos, um em cada flanco à guisa de cangalhas. Os sertanejos vinham em comboio e o barulho juntado à conversa dos condutores (ele riam muito) logo denunciava sua aproximação.

Minha mãe me apressava:

- Vamos filho, senão quando chegarmos as galinhas melhores já não estarão mais lá!

No local da venda as donas de casa iam se reunindo. Quando os vendedores chegavam: “- Bão dia, meu povo, se aprocheguem”, o toma lá, dá cá começava.

Os precos eram regateados e o produto sempre enaltecido:

- Está muito caro, seu Silvino.

- Num tá, dona. Dá trabaio jogá mio tudo dia e adispois corrê atrais prá pegá.

- Quero uma galinha bem gorda, vou ali no balaio do Gumercindo.

- Ihhhh! Dona, as dele ta tudo cum peste.

E ria muito pelo chiste. A camaradagem era grande entre todos.

Minha mãe tinha um jeito peculiar de avaliar e escolher o produto, pegando a galinha pelas pernas, de cabeça para baixo, descia e levantava várias vezes. Nunca entendi o porquê.

Traziam também saborosos ovos caipiras bem frescos e embalados um a um em palha de milho; mandioca; batata-doce; mandioca-salsa; milho-verde (quando era época); amendoim; feijão; rapadura, etc. Era uma verdadeira feira ambulante.

Bons tempos nos quais os alimentos eram criados e cultivados naturalmente sem hormônios nem agrotóxicos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 9


SURREALIRISMO


Muitas  vezes, ela sai... mas, sonolenta.
Espreguiça-se e, trôpega, devaneia
pela página, no fundo o que ela anseia,
é mostrar-se a quem a leia... ela é ciumenta.

Não escolhe a temática, titubeia,
entretanto deixa rastros ou... sementes
revoltadas, fatigadas, inocentes,
é veemente: apaga o fogo ou... incendeia.

Cativante, insinuante ou... grosseira,
leva o sonho e a verdade na bagagem,  
seleciona o erudito ou diz bobagem...
afinal, que tal o humor ? Viva a besteira !

Não copia nem sequer  parafraseia,
é avessa aos arrotos lagostinos...
ou nojentos caviares tão... cretinos
...pensa e sonha... e, assim, se delineia.

Neológica na essência, vocaliza
silenciosa como lágrima ou serpente.
Capitu ou monalísica o que sente,
grassa livre quando, lírica,  desliza.

E sorri, é debochada, imagina  
cada cara incorrigível que a desdenha -
e ao autor que a produz -  entrega a senha
a quem a lê com a  emoção mais cristalina.

A exemplo de outras tantas caminhadas
rabiscadas em qualquer mais rota agenda,
ou em folhas sujas, velhas, amassadas,
este texto é um retalho de fazenda.

Ka ! Ka ! Ka ! ... você a leu, fiquei feliz
pois, a custo, conseguiu interpretá-la,
Gratidão !!! ... é o que ela diz... a sua fala
é apenas arco-íris...  do que eu fiz.
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TRANSATIVIDADE VERBAL

- Você me ama, perguntei. - Amo - seu tolo!
... mas o seu verbo, que era tão... intransitivo...
ganhou ação e complemento... o seu consolo
passou a ser um pronome... reflexivo.

Revendo as regras,  expliquei que o verbo amar
é ideal, quando a  ação é transitiva,
e que o pronome essencial que a completar
tem que ser "te"... de forma  mais objetiva.

Ela me olhou - confesso, aquele olhar doeu -
e sussurrou: - Meu verbo é bem mais natural...
e o sujeito... meu amor... hoje sou "eu",
só sei, de cor, colocação... pronominal.

Se numa próclise, um romance se inicia,
uma mesóclise é a forma mais completa,
pois na conjugação a dois, amar-se-ia
na plenitude que a sintaxe  projeta.

Tornou-se enclítica nas suas exigências,
porém me disse, num tom bem coloquial:
"O seu pronome supre bem minhas carências...
mas cada verbo que conjugo é... passional.

Juro, optei pelos meus vícios...de linguagem,
e no calor da nossa  Nova Ortografia,
os pleonasmos ganharam nova roupagem
e... hiperbolamos... nossas fisiologias.
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UM SETE UM

Talvez por ingenuidade ou quando é conveniente,
Alguém pega o que é da gente sem ver a assinatura
E chora, ri, gesticula, num êxtase particular
Declama, canta, sei lá... Até chora,  a criatura !

E digita o que a gente...  criou, sem nos perguntar
Se podia publicar... e o pior, sem autoria !
A gente quer se matar ou matar o desgraçado
Que parece um retardado que nem escreve poesia !

Ah... brincadeira tem hora ! A adrenalina cresce,
A gente se enfurece e xinga quem publicou:
Safado, ladrão, cretino, hipócrita, um sete um !
Porque o que rouba um, na certa uns dois já roubou !

E cadê a autoria ? Que fim levou o meu nome ?
É assim ? ... o nome some e ninguém reclama nada ?
É mentira, isto é piada ! É estelionato, é rapina !
E a pessoa, cretina... Além de tudo é folgada !

Se mostra logo ofendido, na maior cara-de-pau
Corre logo pro jornal e até dá entrevista !
Que safado ! É um artista na arte do surrupio,
O sem-vergonha, vadio vai dando uma de sofista

E diz: esse texto lindo, que pena... sem autoria,
É meu... Que patifaria ! Tem dono agora o meu texto ?
O tal inventa um pretexto inaceitável, mesquinho,
E trata até com carinho o desfecho do contexto.

Ah... me larga ! Eu viro bicho !
Pensa que achei no lixo a minha inspiração ?
Se eu pego esse sacripanta
Eu corto sua garganta ! ... E arranco seu coração !

...que nada... eu sou poeta e poeta é de uma casta
Sublime... Por hoje basta... registre, amigo, sua obra
Tem gente que é como cobra sorrateira e mentirosa
Que rouba um poema ou  prosa com a astúcia... de certas sogras.

Leandro Bertoldo Silva (O colorir de uma flor)


(Dedicada à Fabiene Lemos)


Levantou cedo. Enquanto a água fervia para o café, se arrumou e verificou se estava tudo certo com o material da escola. Era o seu primeiro dia de aula e não tinha a menor ideia do que encontraria, principalmente após a recomendação da diretora dias antes: “Não vá puxar muito dos alunos, professor. Eles não estão acostumados. Além dos mais, estamos no interior…”.

O fato de ter vindo da capital nunca fora para Isidoro preceito de ser diferente. E daí estar no interior? Muito estranho. Mas lá foi Isidoro com uma diferença, sim, ao menos estrutural. Ele não tinha uma pasta ou bolsa, como os outros professores; ao contrário, ele tinha uma mala repleta de livros e carregava às costas um violão. E foi assim que adentrou pela primeira vez aquele portão escuro como o novo professor de Português.

Embora e escola estivesse toda pintada e com panos esticados em formato de grandes triângulos em tons diferentes, a falta de cor era evidente, não uma cor física, mas uma cor de alma, de falta de sorrisos reforçada pelo cinza do piso o qual gritava aos seus olhos. Sempre pensou: “As escolas nunca deveriam ser cinza, nem mesmo onde pisamos.” No entanto, estava ele ali em meio a uma a esperar pacientemente o seu momento de conhecer os alunos.

Feitas as apresentações, os alunos foram para as suas salas desanimados e desbotados, enquanto os professores, em desmaio de cores a reclamarem do fim das férias, foram pegar os seus pincéis. Isidoro não precisava deles, a não ser para pintar o chão, onde um rolo seria mais adequado.

Nem pincéis e nem rolo. Adivinhou-se na entrada de cada turma o que Isidoro trazia de novidade. No lugar do “bom-dia, vamos sentar nos seus lugares”, o novato professor sentava-se em cima das carteiras junto aos alunos, ou no chão os convidando a fazerem o mesmo, sacando o violão e contando-lhes histórias.

Os dias foram passando e o professor seguiu a sua tentativa de colorir a escola. Entendia agora o porquê em tempos meninos, ainda no jardim da infância, quando seus pais perguntavam o que ele havia feito, ele respondia: “Eu só coloro”. Essa sempre foi a sua missão, ainda mais do que ensinar as próprias letras.

Porém, o empreendimento era árduo. Não contava com os outros professores e muitos alunos não compreendiam nem o vermelho, nem o azul ou qualquer outra cor de suas palavras. Sentia-se na superfície, não haviam profundidades. Lembrou-se da sentença da diretora ao recomendá-lo cautelas. Estaria ela com a razão?

Isidoro foi para casa. Pensativo. Queria tanto colorir se não a escola, ao menos o coração daquelas crianças e jovens! Em sua biblioteca buscava nos livros a cor perfeita a salvar do desbotamento contagiante aqueles que se acinzentavam.  De repente seus olhos pousaram em um pequeno livro de capa preta, sem atrativos e muito sem graça em meio a tantos outros volumosos. No título lia-se: “O coração escuta pela boca”, de Silvana de Menezes. Tratava-se da biografia romanceada de Freud. Será?… Nunca acreditou em julgar um livro pela capa. Pegou-o e o guardou em sua mala. No dia seguinte o apresentaria para os alunos na berma de um pensamento: “as pessoas são como os livros; algumas serão tocadas, lidas e descobertas enquanto outras permanecerão fechadas”.

Tal pensamento se refletiu na realidade quando, em meio a vários alunos e alunas, Isidoro viu brilhar um amarelo diferente, um ponto de luz nos olhos de uma menina. Nenhum livro havia conseguido tal feito. E fora justamente aquele de capa preta a ganhar variedades de belezas como um caleidoscópio a fazer nascer alguns anos mais tarde uma profissão.

A menina, miúda ainda de idade, cresceu com o passar dos anos, os mesmos anos que fizeram Isidoro não estar mais naquela escola, pois o tempo não havia colorido os seus despropósitos.

Sentado junto à janela a olhar uma flor prestes a abrir em seu jardim, ouve um toque de mensagem em seu telefone:

“Oi, professor, tudo bem? Hoje é o lançamento do meu trabalho, do meu projeto como psicóloga e eu postei um vídeo explicando o motivo de ter escolhido a psicologia. Obviamente você fez parte disso, fez parte lá das raízes até as folhas e as flores dessa árvore linda que eu construí. E não tem como falar desse projeto sem me lembrar de você. Foi por causa do livro que você passou, “O coração escuta pela boca”, que esse amor nasceu em meu coração. Estou te mandando essa mensagem para te agradecer. Essa vitória não é só minha, essa vitória é nossa. Muito obrigada mesmo por ter feito parte disso”.

Ao escutar a mensagem e com os olhos marejados, viu que a flor, em um colorido intenso e cintilante, acabara de se abrir.

sábado, 22 de outubro de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 7: Fonte em Azul Cerúleo



Poema obtido em:
Vanice Zimerman y Gustavo Henao Chica. Saudade… . Curitiba/PR: Nogus Ed., 2021.
Livro enviado pela poetisa.


Cecy Barbosa Campos (A chuva)


Chovia torrencialmente. Os relâmpagos riscavam a escuridão com linhas ziguezagueantes, que vinham do céu, antecipando os trovões que rugiam ameaçadores. Os veículos estavam parados na via pública, impedidos de continuar o seu trajeto, ou pela altura das águas ou pelo tráfego congestionado, que obstruía as ruas inundadas.

Apreensivos, os passageiros olhavam pela janela do ônibus, vendo os automóveis que o circundavam e que iam sendo abandonados pouco a pouco. Seus motoristas, em um certo momento, preferiam se aventurar a pé, tentando alcançar algum porto seguro, do que ficarem aprisionados sem conseguir dominar aquele frágil barco, que balançava ao sabor de ondas tempestuosas.

Analisando o duplo perigo que se lhes apresentava, os passageiros hesitavam entre sair e enfrentar a água, que talvez pudesse alcançar-lhes a cintura, conforme a estatura do indivíduo, ou permanecer dentro do ônibus, o que lhes transmitia alguma sensação de segurança. Entretanto, em pouco tempo, esta segurança se manifestou enganosa.

Os bueiros entupidos não conseguiam dar vazão à água da chuva e lançavam jorros de imundície e detritos aos borbotões. A inundação fétida começava a subir os degraus do ônibus, pois a chuva continuava, incessante.

Apavorada, Zildinha pensava em como desejava chegar ao seu modesto quarto, alugado numa casa do subúrbio. Nem se lembrou das vezes em que, voltando do trabalho, não tinha vontade de chegar, pois odiava aquele quartinho. Sonhava com o dia em que pudesse morar num apartamento onde usaria a cozinha e o banheiro à vontade e receberia os amigos. Naquele momento, seu quarto parecia um palácio inatingível e não ansiava por nada melhor.

Enquanto se imaginava protegida por aquelas paredes, imersa em si mesma, não chegou a perceber que a chuva fizera uma estiagem. Foi surpreendida por seus companheiros de viagem que davam vivas e batiam palmas, entusiasmados com uma réstia de sol da tarde que penetrara no ônibus.

Decorridos alguns minutos, o motorista avisou que a água estava baixando e que logo que o trânsito começasse a fluir, retomariam o seu caminho.

Ao chegar, Zildinha foi recebida com carinhosa alegria pela dona da casa em que morava e, fragilizada pela aflitiva experiência pela qual passara, não pôde conter as lágrimas de emoção sentindo-se amparada por aquela senhora que lhe parecia tão distante.

A chuva estabelecera elos de comunicação entre as duas, suavizando problemas de isolamento que tanto afetam as pessoas no mundo moderno.

A partir daquele instante, Zildinha começaria a encarar as dificuldades da vida com um novo olhar. Estaria alerta para a chegada de uma réstia de sol, que poderia surgir a qualquer momento em meio à tempestade, fosse na forma de um sorriso, um carinho ou um estender de mãos.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Manoel Monteiro (Canteiro de Trovas)


Adoro a Virgem Maria;
Maria ensinou-me a ler;
outra roubou-me a alegria
e tu me fazes morrer.
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Ao vê-la, em vistoso templo,
fazendo o pelo-sinal,
fui imitar-lhe o exemplo,
ficou me querendo mal.
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Aprendi, cheio de ardor,
pensando no paraíso,
o A B C de meu amor
na carta de teu sorriso.
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Costuma-te a ser jocundo,
coração, não desesperes:
Hás de viver neste mundo
sem entender as mulheres.
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De ternas flores mimosas
terno leito vou fazer,
embora possa entre as rosas
teu corpinho se esconder.
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Filhinha, toma cuidado!.,.
não largues mais tua cruz,
que o demônio anda trajado
nas roupagens de Jesus.
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Fiz inveja a muita gente
no dia em que andei contigo...
Até um lírio inocente
mostrou-se meu inimigo.
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Fui confessar-me e na grade
contei meus crimes e o teu,
se é bonita... disse o frade,
e rindo me absolveu.
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Maio surgiu entre flores.
Tudo ri no mês de maio.
Só eu, senhora, desmaio*
pelo caminho das dores,
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Meu peito sofre calado,
nunca chorou nem gemeu,
pois se o fizer, desgraçado,
sua fortuna perdeu.
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Milagres - terra de Olinda
quando o sol no azul desmaia,
é corpo de moça linda
deitado à beira da praia.
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No dia em que tu fizeste
a primeira comunhão,
a hóstia do amor me deste,
guardei-a em meu coração.
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Nos olhos não tenho pranto,
Lucília o pranto levou.
Pela morta chorei tanto
que a pobre fonte secou.
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Os dobres causam-me espanto!
Antes de morto previno:
se houver dobres me levanto
e quebro as cordas do sino.
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Pois da vida nos escombros
minha esperança me diz:
há de cair de teus ombros
este manto de infeliz.
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Seguindo junto ao teu seio,
vendo teu rosto sem véu,
julguei-me um santo em passeio
pelas estradas do céu.
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Somos cinco retirantes
pelas estradas reais!
Pobres dos nossos descantes,
descantes pobres de mais! ...
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Suporto negro ciclício,
mas não conto meu desgosto
que, pelos traços do rosto,*
todos lerão meu suplício
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Todo moço que for pobre,
faça o que eu faço também
para quem mágoas descobre
só desprezo o mundo tem.
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Um só desejo na vida
eu sinto-me perseguir:
é nos teus braços, querida...
pousar a fronte e dormir.
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Vem aos meus braços abertos,
desce do teu quinto andar,
que os anjos do céu, espertos,
procuram te namorar.
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Vivo ausente de Palmares,
feliz terra onde nasci.
Eu lá não senti pesares,
vim padecer foi aqui.
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* Na época não era obrigatório rimar o 1. com o 3. verso, somente foi normalizada esta obrigatoriedade com a fundação da União Brasileira de Trovadores, em 1966.
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Fonte:
Adelmar Tavares et al. Descantes. Recife/PE: Tipografia da Imprensa Oficial. 1a. edição publicada em 1907.

Raymundo de Salles Brasil (Uma Pensão Fumaça)


Todo estudante tem histórias para contar. Quem passou por essa fase da vida, quase sempre recheada de deveres, pouquíssimos direitos, e para compensar muita irresponsabilidade, sabe que é utopia imaginar que seus filhos não aprontaram. Histórias, as mais diversas aconteceram e acontecem hoje, das dramáticas às hilariantes, mas todas elas, contadas depois de que tudo se passou, muito engraçadas. As que eu sei dariam, certamente, alguns belíssimos contos, caídas na pena hábil de um contista de verdade. Na sua falta, arvorar-me-ei de sê-lo, para contar-lhes uma, que até hoje me enche de pejo.

Todos na quadra dos vinte anos, todos buscando um lugar ao sol, mas, aqui e acolá, ainda fazendo coisas absurdas, que só o jovem pode fazer e ainda, passadas algumas décadas, se dar ao direito de contá-las sem que lhe tire hoje a condição de homem sério, probo e digno de toda respeitabilidade, em fim, coisas do passado, vistas como coisas da juventude.

Uma pensão de estudantes: Rua Direita da Saúde – uma rua torta, como são todas as ruas direitas que eu conheço – n. 2, um velho bicentenário casarão no bairro de Nazaré, na capital da Bahia. Pela sua idade e pelo seu porte deve ter uma história, e deve ter sido palco de muitas outras. Eu participei de uma, vou contá-la: Não se suscetibilizem os meus comparsas se não era de seus pensamentos que fosse revelada uma história já apagada pelo tempo.

Dona Simplícia era a dona da pensão, uma mulher de poucas letras, mas de um tino comercial invejável e de uma capacidade de trabalho que deixava o seu marido, seu Deraldo, frustrado, pois ele mal tinha ânimo para pegar as malas dos hóspedes, quando bem instigado a fazê-lo pela sua consorte; o que ele gostava mesmo era de fumar o seu charuto pacífica e tranquilamente, sem ser incomodado e sem incomodar. O casal tinha um filho, foi o máximo de esforço que seu Deraldo pôde fazer, mas o fez bem, porque Edvard era um rapaz bem afeiçoado, de compleição saudável, um bom estudante, e inteligente. Era nosso companheiro de todas as horas, menos no que ferisse os interesses da pensão, obviamente, de que era extremamente zeloso.

Dona Simplicia viera de Santo Amaro para estabelecer-se em Salvador visando abrigar uma leva de estudantes que saia do antigo Ginásio Santo-Amarense para fazer o curso colegial e outros que já entravam nas universidades, certa de que eram rapazes de família, de boa educação, (e eram sem dúvidas) mas sem imaginar que dentro de cada um deles dormia um menino travesso, pronto para acordar a qualquer momento.

Era uma festa a nossa convivência; todos nós trabalhávamos ou estudávamos ou as duas coisas, mas, nas horas vagas nos reuníamos para desfrutar de uma mocidade sadia, inteligente, viva; fazíamos festas, serenatas, namorávamos, conversávamos, divertíamo-nos; foi uma quadra inesquecível na minha mocidade. Todos, ou quase todos, caboclos da mesma aldeia.

A maioria saldava religiosamente os seus compromissos com o caixa da pensão, outros por contingências que não me convém aqui citar, atrasavam seus pagamentos, o que dificultava a boa administração da empresa, levando a sua direção (Dona Simplicia e Edvard), como medida compensatória, a tomar a decisão drástica de diminuir o “rango” dos esfomeados jovens estudantes.

Houve um protesto dos bons pagadores que estariam, como justos, pagando pelos pecadores; mas ao fim todos se acumpliciaram no sentido de ir à represália. Aproximavam-se os festejos de São João, nos céus da Rua Direita da Saúde já se ouviam, aqui e acolá, os estampidos de alguns foguetes e lágrimas de fogos de artifício, que, de vez em quando, se confundiam com as estrelas cadentes, enquanto as bombas pipocavam nas calçadas lançadas pelas mãos traquinas dos adolescentes que inspiraram tanto as nossas mentes maquiavélicas.

A ideia não foi minha, poderia ter sido, mas me confesso tão culpado quanto. Entre as tais bombas tocadas inocentemente pelos adolescentes, havia uma, a maior de todas, que sozinha causava um estampido ensurdecedor. Esta foi a escolhida para o nosso plano hitleriano.

O velho sobrado tinha duas entradas, uma delas, a mais utilizada pelos hóspedes, era lateral – um portão de ferro dava acesso ao pátio que ia ao longo do prédio até um alpendre contíguo, de um lado, à cozinha e do outro à sala de refeições. Nós morávamos no andar superior e para esse pátio abriam-se as janelas de todos os quartos, as dos hóspedes incautos e as dos maquiavélicos.

Descrito o cenário vamos ao plano diabólico e à cena dantesca:

Inacreditável que jovens tão bem educados pudessem urdir semelhante absurdo. Mas estudante é assim, nunca foi diferente, tirando aqueles que excepcionalmente são bem comportados, todos aprontam. O que importa é que não foi por mal, foi uma brincadeira que fizemos sem que atinássemos para as consequências. Nós éramos 16 estudantes que se transformaram todos, sem exceção, em homens de bem, de conduta ilibada, vejamos:

Num dos quartos moravam os quatro irmãos Araujo: Otávio, já falecido (economista), Francisco Otávio (advogado), Jaime Otávio (geólogo) e Hamilton Otávio (médico veterinário); Noutro moravam os dois irmãos Bastos: Walter e Mário (contadores); Noutro os Valladares: Mário e Flávio (advogado e médico respectivamente); noutro Geraldo Castro (médico); noutro Romil e Carlos Rosa (um advogado, o outro professor); no outro Edmundo Caroso (fiscal da receita federal e virtuose do cavaquinho) e por fim num outro quarto morávamos, eu, meu irmão Rodrigo, já falecido e meu primo Afonso, aposentado da Petrobrás. Quem diria!

O plano era o seguinte: cada um compraria uma daquelas bombas monstruosas a que já me referi, e levaria para o seu quarto guardando todo o segredo da arma do crime; às 10 horas da noite todos apagariam as suas luzes como se fossem dormir o sono dos anjos; todos os relógios previamente acertados; às 12 horas (meia noite) em ponto, quando todos os hóspedes já deveriam estar dormindo, Jaime Otávio acenderia um fósforo como sinal e aí, sim, todos, de uma só vez, acenderíamos as nossas 15 bombas e joga-las-íamos ao longo do pátio no meio do silêncio daquela famigerada noite de junho de 1953.

Dito e feito: buuummmmmmmmmmmm!

Desculpe-nos, Edvard, não foi por mal.

Dona Simplícia! Que Deus a tenha.