sábado, 13 de janeiro de 2024

Estante de Livros (“Além da Magia”, de Tahereh Mafi)

Uma aventura cativante e cheia de cores, um conto de fadas moderno escrito pela autora do best-seller da série Estilhaça-me. Inspirada por seu amor a livros como O jardim secreto e As crônicas de Nárnia, Tahereh Mafi cria um mundo novo e fascinante no qual a aventura é inevitável e a amizade pode ser encontrada nos lugares mais improváveis. 

Resenha por Tânia Bueno

Há apenas três coisas importantes para Alice Alexis Queensmeadow, de 12 anos: sua mãe, que não sentiria sua falta; magia e cor, os quais parem escapar dela; e seu pai, que sempre a amou. No dia em que seu pai desapareceu de Ferenwood, ele levava consigo apenas uma régua. Já se passaram quase três anos e Alice está determinada a encontrá-lo. Ela o ama tanto quanto ama aventura, e está prestes a embarcar em um para encontrar o outro.

No entanto, trazer seu pai para casa não será tão fácil. Alice precisa viajar através da mística e perigosa Terra de Furthermore; onde para baixo pode ser para cima, papel está vivo e esquerda pode ser direita. Sua única companhia é um garoto chamado Oliver, cuja habilidade mágica é mentir e enganar – e com um mentiroso em uma terra onde nada é o que parece ser, requisitará de Alice toda sua concentração para encontrar seu pai e conseguir voltar para casa sã e salva. Em sua jornada, Alice precisa se encontrar - e se agarrar à magia do amor diante da perda.

O que dizer de um livro que abraça o leitor e o faz desejar que magicamente a leitura aconteça num piscar de olhos para saber tudo o que acontece de uma vez? Ah! Mas que graça teria ler num piscar de olhos? 

Alice mora em um país magico, que faz grande festividade todos os anos para o evento que se intitula A ENTREGA, é neste dia que os jovens de 12 anos precisam entregar seus talentos, que é mostrar os seus talentos à sociedade e então recebem um desafio que consiste  em ajudar alguém enfrentando alguma dificuldade, necessitando de algo em algum lugar e a conclusão do desafio cresce. Alice almeja por esse momento embora não acredite que tenha um dom/talento mágico, ela tem uma autoestima um tanto baixa, se acha feia e como ela mesma fala: somente Pai a acha bonita. Por não ter cores como as demais pessoas ela se sente diferente e infeliz.

A história começa três anos antes, quando do nada, seu Pai desaparece e ninguém sabe para onde ele foi, ela sofre com a ausência do Pai e acha que a mãe não a ama tanto quanto o Pai amava, mas entenderemos toda esta situação no final da trama. Alice se apresenta na Entrega e o que apresenta não impressiona os jurados e ela recebe um envelope preto que prefere não abrir por ter sido reprovada e não ter mais chance alguma, mas parece que na vida é assim, às vezes imaginamos algo e não queremos confirmar o que achamos que sabemos e muitas vezes sofremos desnecessariamente, pois antes do outro nos dar outra chance, nós precisamos nos dar a primeira chance. Bom, mas isso também você saberá durante a leitura desse mágico livro que impressiona do início ao fim.

Agora, que não tem seu desafio, Alice pode investir em encontrar o Pai ainda que para isso tenha que se aliar a Oliver, um garoto que é mentiroso (razões a serem entendidas durante a leitura). Oliver nunca deu nenhum motivo para Alice confiar nele, mas diz que é a única pessoa que poderá encontrar o Pai, claro, se ela o seguir em uma aventura sem precedentes, até porque Oliver tem um tempo para cumprir o seu desafio que é encontrar o Pai, que é uma das pessoas mais respeitadas na terra de Ferenwood, a terra mágica e que respeita todos os seres vivos, e não pense que é uma terra com magia feitas com varinhas e poções, nada disso. Trata-se de uma “terra simples e rica em recursos naturais e os recursos naturais mais importantes era cor e magia. Um lugar onde se colhe as cores e a magia do ar e da terra.” 

Nesta aventura muitas coisas serão postas à prova como a coragem, inteligência, o perigo como viver uma linha tênue entre a vida e a morte, isso porque Alice e Oliver terão que ir à terra de Furthermore, onde muitas coisas que parecem ser, não é. Onde o visitante tem que ficar alerta o tempo inteiro, dormir e sonhar pode significar morte, não comer pode significar garantia de vida e segurança, pois em algumas situações estar leve é absolutamente imprescindível. Tudo parece não fazer sentido agora, mas leia o livro e você compreenderá.

Farenwood, um lugar onde ocasionalmente chovia e as cores eram mais fortes do que o normal e a magia era tão comum quanto o franzir de testa de um pai ou de uma mãe. E sua peculiaridade ficava evidente nas coisas mais simples que ela fazia... Alice parava muitas vezes desviando do caminho, respirando fundo e segurando a respiração, egoísta demais para libertar o ar de seus pulmões. Girava e rodopiava as saias com um sorriso tão enorme que chegava a pensar que seu rosto explodiria para desabrochar. Saltitava na pontinha do pé só quando não aguentava mais exalava o que não era seu.” (pag. 13)

E assim nossa heroína teimosa inicia sua jornada em busca do Pai, passa pela Vila de Sonolência, mas não pode dormir, embora seja o desejo. Na Vila de Quietude todo cuidado é pouco, pois qualquer barulho pode despertar feras interiores e horrores e é lá que terão que encontrar o Tempo. Descrença é uma Vila horrorosa, então não ouse proferir a palavra descrença em hipótese alguma, aliás, cuidado com tudo que fala, não tenha cabeça pequena e lembre-se que você está sendo observado o tempo inteiro, é como se fosse um grande jogo. Ah! Tem tempo para permanecer e se roubar tempo será perseguido e preso. 

Alice e Oliver seguem a aventura e chegam a lugares surpreendentes, desconfiados e prudentes muitas vezes se colocam em riscos ou por não conhecer o lugar ou por não pensar fora da casinha e ficarão em situações que terão que pensar rápido e embora estejam caindo para a vida, a sensação é de morte imediata. Mas eles são inteligentes e captam mensagens que salvarão suas vidas e os colocarão de volta no objetivo, cujo fim é encontrar o Pai.

A menina Alice vai se descobrindo e aprendendo a se valorizar reconhecendo qualidades até então menosprezadas, entra em contato com sentimentos novos que a faz se sentir amada e querida, neste caminhar aventureiro ela descobrirá que ser diferente não impedirá para nada. Descobrirá que o seu talento é importantíssimo para o mundo, afinal este talento dá vida e alegria ao local e às coisas, mas ela não usa seu talento para se vangloriar por acreditar que se não aplica-lo a si mesma que valor tem?

A narração é feita pela autora que está dentro da trama e nos conta alguns segredinhos da terra Farenwood, de Alice e Oliver isso tudo para nos situar no mundo de Além da Magia, ela conversa em vários momentos com o leitor e faz sentir próximo.

CONSTATAÇÕES:

- quanto mais as pessoas pensam, mais facilmente se livram da persuasão de outras pessoas.

- estudos já provaram que reflexão e questionamento levam a um processo de tomada de decisão consciente. (Pag 172)

- Sabe qual é um dos maiores truques da vida? “O riso era um bálsamo que tornava mais leves até os momentos mais difíceis.” (pag. 263) Amo rir de tudo, inclusive de mim mesma. Rir sozinha quando lembro-me de algo engraçado, rir de situações que presencio e por aí vai.

Um alerta importantíssimo de mãe para a criança Alice: “Mãe sempre dizia, especialmente, em relação a homens estranhos, Sentir medo significa que não tem problema nenhum em deixar as boas maneiras de lado. Se sentir medo, não precisa ser gentil.” (pág. 15)

De Pai para Alice: “Por que você precisa se parecer com o restante de nós? Por que tem de mudar? Nós que mudemos o nosso jeito de ver. Não mude o seu jeito de ser. Você é uma artista – Ele sorriu. – Pode pintar o mundo com as cores que tem dentro de você.” (pag. 234)

Cuidado com a zona de conforto – constatação de Pai : “Conforme fiquei mais velho, acabei me acomodando. Era mais difícil pensar de formas diferentes e passei a precisar de mais tempo para entender as coisas. O medo me atrapalhou. Fiquei tenso demais, cauteloso demais. E foi então que comecei a cometer muitos erros.” (pag. 355)

Sobre ser diferente: “Alice sabia que ser diferente sempre seria difícil; sabia que não existia magia capaz de abrir a mente fechada das pessoas ou acabar com as injustiças da vida. Mas também começava a entender que a vida nunca era vivida em termos absolutos. As pessoas a amariam e a desprezariam; elas mostrariam tanto gentileza quanto preconceito. A verdade era que Alice sempre seria diferente – mas ser diferente era ser extraordinário, e ser extraordinário era uma grandíssima de uma aventura. Como o mundo a via, isso não tinha importância. O que importava era como Alice se via.” (pag. 356)

E viva o diferente! Seja a diferença e viva extraordinariamente sempre.

Fontes:
Resenha: Tãnia Bueno in Faces da Leitura . 23 de setembro de 2019. 

Hinos de Cidades Brasileiras (Campinas/SP)


por Carlos Gomes

Progresso! Progresso!
Seja a nossa divisa.
Progresso! Progresso!
Seja a nossa divisa.

Porvir!
Das Indústrias no enorme Congresso.
Precisamos galhardos agir.
Precisamos galhardos agir.

Honra ao povo que sabe,
Os louros da glória colher.
E co a alma de luzes
Sedenta, sedenta a luz

Do trabalho vai colher!
Honra ao povo que sabe,
Os louros da glória, da glória colher.
Honra ao povo que sabe,

Os louros da glória colher
Ao povo... ao povo que sabe
Da glória os louros colher.
Progresso! Progresso!

Seja a nossa conquista: Porvir!
Progresso!

O nosso português de cada dia – 03 –


 


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Varal de Trovas n. 593

 

Mensagem na Garrafa – 78 -

Jaqueline Machado
Cachoeira do Sul/RS

Devaneios

 Nas paredes da casa do meu “eu”, estão plasmadas em placas de muitas letras, as histórias de todas as minhas experiências. E elas revelam as múltiplas faces de mim mesma. Nelas, estão vestígios hereditários, vícios, virtudes, dores e alegrias não contadas...

E tudo que existe em mim também existe em você.

Fico inquieta em meus devaneios a pensar... Nós, humanos, somos tão pequenos. E ao mesmo tempo, seres verdadeiramente hábeis, férteis, grandiosos, filhos da imensidão...

Mas tem algo que frequentemente me sobressalta a mente: como podemos ser tão inteligentes e, por vezes, tão débeis?

Já fomos capazes de pintar a Santa Ceia, de criar o avião, criar vacinas capazes de erradicar males terríveis e, mesmo assim, também capazes de entregar nosso bem maior, o coração, para quem não o deseja.  E ainda vermos graça nisso...

É ... Somos incríveis e também bestiais... Mas não será justamente essa mistura de sensatez com loucura que nos torna seres humanos de fato?

Eis o eterno dilema do  “ser ou não ser”, fazer ou deixar de fazer sem entendermos bem o porquê de toda essa confusão...

Acho que escolhas certas e erradas fazem parte do caminhar. Não há como evitá-las. E o dia que houver, deixaremos de ser gente para nos tornarmos em robôs...

Somos verdadeiros paradoxos em pequenos frascos de perfume onde o ciúme da vida vem nos acariciar.

Somos feitos de todos os aromas, de todas as somas do caos e do equilíbrio dessa existência maravilhosamente louca, vaidosa, cheia de delírios...

Queria ser um querubim, um serafim, talvez... Mas acho que sou apenas um anjo decaído, de asas cortadas, a buscar pela própria redenção por meio de preces faladas, rezas cantadas, dirigidas aos céus...

E veja que curioso: quando estou a rezar, por alguns instantes, crio asas e diante dos reflexos do passado, do presente e do futuro, insisto em me perguntar: Afinal, quem sou? Uma réplica viva do pecado ou sinônimo de amor? E no interior de mim, a voz misteriosa da Grande Mãe sussurra em meu ouvido: – Você é uma mescla de tudo isso e mais um pouco, a minha mais bela criação!

Humberto de Campos (Resposta difícil)

Rosto em fogo, cabelos em desalinho, Dr. Atanásio, que acaba de entrar da rua, passeia nervosamente de um lado para outro no seu gabinete de trabalho, agitando nas mãos crispadas uma carta que acabara de receber no escritório, e que fora, para ele, uma punhalada no coração. À sua frente, no canapé de couro escuro, tauxiado de prata polida, a jovem D. Eleonora esconde a face lavada de lágrimas nas duas conchas das mãos cor de neve, soluçando de vergonha e de susto no horror daquela situação.

- E dizer-se que eu confiava em ti, tua honra, no teu amor, e que estava em S. Paulo tranquilo, sereno, na certeza de que procedias, aqui, com seriedade. com dignidade, com a correção que me havias jurado, de joelhos, diante de Deus!... - geme, quase chorando, o pobre esposo desesperado.

Madame procura, como um náufrago na tormenta, uma frase com que inicie a desculpa impossível, mas o marido atalha, agitado, com os olhos em chama, forçando-a a esconder, de novo, a cabeça entre as mãos:

- Que vergonha, meu Deus! que vergonha, agora, para mim!... Nunca mais, na minha vida, poderei levantar o rosto diante desta sociedade, que conhece, que sabe, que testemunhou, impassível, o teu crime, a lama que atiraste sobre o meu nome!...

Enfiando os dedos na cabeleira grisalha, passadas largas, o notável advogado mede, cada vez mais nervoso, a extensão do gabinete, cujos tapetes lhe abafam os passos, quando, de repente, para, e reclama, cerrando os punhos:

- Confessa-me. afinal: quando foi que aquele miserável, abusando da tua fraqueza, e aproveitando a minha ausência, penetrou nesta casa?

Adivinhando nessa pergunta um caminho para a reconciliação, D. Eleonora levanta o lindo rosto ensopado de lágrimas, e, fixando os grandes olhos úmidos nos olhos ardentes do marido, indaga, apenas, pronta para uma explicação:

- Qual?

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público. 

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 10 -


ANTÓNIO BOTTO
(António Tomás Botto)
Concavada/Abrantes, 1897 – 1959, Rio de Janeiro/RJ/Brasil

A Julieta do Beco das Cruzes 

Aos arrancos, lá vai ela 
Despedir-se do amante 
Nesta manhã de Janeiro! 
Coitada, morre por ele! 
- Foi o seu primeiro amor 
E será o derradeiro. 

Todas as tardes, risonha, 
Ela falava com ele 
Num beco escuro de Alfama. 
Era ali que ela morava; 
- Até que uma noite foram 
Pernoitar na mesma cama. 

Estou a vê-la!, cingida 
Ao corpo delgado e quente 
Desse esbelto carpinteiro! 
E vejo-a, dias depois, 
nervosa, afastar-se dele 
Chamando-lhe: trapaceiro. 

Mais tarde ia procurá-lo 
À oficina e chorosa 
Seguia-o sem que ele a visse; 
E naquela perdição 
Adoeceu porque um dia 
Com outra o viu, - mas, sorriu-se... 

Soube-lhe bem ser «mulher» 
Do homem que apenas teve 
Um desejo passageiro! 
Mas, agora, - cruel preço! 
Dos olhos fez duas fontes
E do amor um cativeiro. 

Adoeceu gravemente. 
Nunca mais saiu à rua, 
Sempre a tossir e a sofrer... 
E era a mãe que, mendigando, 
De porta em porta arranjava 
Qualquer coisa pra viver. 

Hoje, constou-lhe que a Guerra 
O chamara para as linhas 
Do combate, - e combalida, 
Vai ao embarque levar-lhe 
No silêncio de um olhar 
Os restos da sua vida.
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ANTÓNIO GEDEÃO
(Rómulo Vasco da Gama de Carvalho)
Lisboa, 1906 – 1997

Poema da malta das naus

Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias
arreneguei, roguei pragas,
mordi pelouros e zagaias.

Chamusquei o pelo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me a gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.
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FERNANDO NAMORA 
Condeixa-a-Nova, 1919 – 1989, Lisboa

Poema para Iludir a Vida

Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes,
ou asa de anjo
caída num paul. 

O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã.
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FLORBELA ESPANCA
(Florbela de Alma da Conceição Espanca) 
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos

Tarde no Mar

A tarde é de ouro rútilo: esbraseia
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Pousa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue ao seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia.
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas, 
São as asas do sol, agonizantes...
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SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa, 1919 – 2004, Porto

O Anjo

O Anjo que em meu redor passa e me espia
E cruel me combate, nesse dia
Veio sentar-se ao lado do meu leito
E embalou-me, cantando, no seu peito.

Ele que indiferente olha e me escuta
Sofrer, ou que, feroz comigo luta,
Ele que me entregara à solidão,
Pousava a sua mão na minha mão.

E foi como se tudo se extinguisse,
Como se o mundo inteiro se calasse,
e o meu ser liberto enfim florisse,
e um perfeito silêncio me embalasse.
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Geraldo Pereira (Manhã de Domingo)

Bucólica manhã esta de um domingo qualquer, em tudo tropical. Mês de maio, mês das noivas, das mães e dos ventos, dos terços e das novenas. Velhas fruteiras do Rosarinho, mangueiras antigas de boas mangas, jambeiros e oitizeiros que se juntam e abrem os galhos em sincrônicos movimentos das despedidas medidas, nunca pedidas, de um final de semana gostoso, saboroso até. Na minúscula praça em frente os peões da construção estão fiando conversa, matando o tempo do lazer fora de casa. Ocupam os três únicos bancos, mas cedem lugar à figurante feminina que chega, se aconchega e vem compor a cena desse espetáculo sem roteiros. De longos cabelos pretos, estirados e viçosos, penteados a óleo, faz as vezes de interprete da sedução nessa encenação de ocasião. O moço que passa com a gaiola na mão aprisiona sonhos ou vai encarcerando devaneios e assim, com o imaginário contido, restringe as fantasias e inibe as divagações.

O vagabundo aproxima-se da praça a passos lentos, como se estivesse calculando distâncias, mesmo conhecendo na palma da mão esses entornos. Escolheu um dos bancos e estendeu no encosto o paletó surrado, sentando-se em seguida, não sem antes acomodar ao seu lado a caixa de leite cheia de revistas. Deslocou, então, um dos peões que assim fiavam conversa! Abriu uma dessas e passou rapidamente as páginas, detendo-se, aqui e ali, numa foto qualquer, sem que lhe importassem os textos.

Retratos da sensualidade feminina à vista de um homem como outro qualquer, diferenciado, apenas, pela condição humilhante do analfabetismo, que impede a cidadania. O cão ajeitou-se no chão, abriu a boca preguiçoso, fechou as pálpebras jurando fidelidade que tantos não conhecem e quase ronca. O passante, que empurrava a carroça repleta de latinhas usadas, com o filho a lhe ajudar no ofício, decidiu parar e descansar. Tirar um deforete, diriam os antigos!

Cumprimentaram-se e um diálogo nasceu! O nômade falava e gesticulava, argumentando com segurança, explicando as suas ideias e os seus ideais, talvez. O interlocutor de ocasião retrucava o quanto podia, discordando do pensamento alheio. A criança, absorta, acompanhava os dois na conversa, sem compreender bem de que falavam e o que discutiam.

Não houve acordo e o moço forasteiro se levantou, virou-se para o menino e fez o gesto universal, tocando a têmpora com o indicador da mão direita: “É doido!” E seguiu em frente, voltou à faina da reciclagem do alumínio, garantindo a féria. Outra vez o homem errante abriu uma revista, folheou com a mesma rapidez e se deteve na visão da nudez! O menino de rua, cheirando cola quase senta no banco, não fossem os latidos do cachorro. O cavalo que passou pachorrento, como cabe ser aos equídeos,  nem ligou para os dois, mas por pouco não provocou um acidente grave, não fosse a precisão dos freios.

O prédio em frente vai se compondo aos poucos, tijolo por tijolo, parede por parede e andar por andar. Acolhe no quarto pavimento os peões do interior, tangidos da cana-de-açúcar, largados da bagaceira. Embaixo, o vigia vem atender à porta a mulher que bate e toca a sineta. É a esposa a conferir destinos? Não se abraçam e nem se tocam, não há afagos e nem afetos, somente a troca de palavras, que se tornam inaudíveis nos ares da rua. No edifício ao lado a festa já começou, os músicos tocam saudosos acordes de orquestras românticas, mas fazem em seguida outra opção. Há uma cantora entre os presentes, mulher cinquentona, como parece, a entoar “Bandeira branca/Amor/Eu quero mais/Pela saudade...”, para depois preencher o mundo com a maviosa letra que Nelson Gonçalves consagrou: “Minha normalista linda/Rapidamente conquista/Meu coração sem amor...” Resgate, por certo, de perdidos e já encantados tempos!

E a hora vai passando, porque o tempo não para, sequer em momentos assim, de enlevo d’alma! Os ponteiros se abraçam e despedem a manhã, comemoram o nascer da tarde e anunciam que a noite vai chegar e outro dia surgirá, recomeçando o tudo. O doidinho da rua há de voltar e declamar a agourenta rima, para desespero dos peões: “Se você cair!/Não vai se ferir!/Nem ficar em pedaços!/Estarei aqui para segurá-lo nos braços!” Ouvirá o que não quer e outra vez gritará a plenos pulmões: “Se você cair!...”
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∗ Inspirações paridas em certas manhãs de domingo. Cenas que foram vistas da varanda de casa em momentos distintos, em mais de um final de semana.

Fonte> Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Hinos de Cidades Brasileiras (Sorocaba/SP)


por Benedito Cleto

I
Saudamos-te, querida Sorocaba,
Com muito júbilo e acendrado amor;
desde a selva selvagem, o índio e a taba,
teus feitos cantaremos teu valor.

Às fraldas norte da Paranapiacaba,
tu te elevas Rainha d'esplendor,
e ao pé do morro d'Ouro, o Araçoiaba,
és pioneira paulista do interior.

Ó' Sorocaba, cantamos triunfantes,
bravos, heróis, cantamos teus pioneiros;
Cidade, és filha e mãe de bandeirantes,
com muito orgulho, a "Terra dos Tropeiros".

Tu és, ó Sorocaba, uma das molas
deste grande São Paulo glorioso,
cidade do Trabalho e das Escolas,
dos Liberais de brio belicoso.

Com teus arranha-céus, ao alto evolas
todo o ideal de um povo laborioso,
e o potencial fabril que hoje controlas
é o signo de um Brasil mais poderoso.

II
Tu, Sorocaba, marchas, "pari-passu"
com tuas irmãs, ao lado das primeiras,
Marchas tu com São Paulo no compasso,
Já desde os áureos tempos das bandeiras.

Foste terra de peões, campeões do laço;
Com suas tropas, com suas famosas feiras;
hoje és comércio, indústria, torres de aço,
Tudo é teu sangue, nas veias brasileiras.

Ó' Sorocaba, cantamos triunfantes,
bravos heróis, cantamos teus pioneiros;
Cidade, és filha e mãe de bandeirantes,
com muito orgulho, a "Terra dos Tropeiros".

Pela alvorada, a orquestra dos apitos,
O operário marcha ao seu mister fabril
e os homens da palavra e dos escritos,
da ciências, em teu progresso atuantes mil;

às escolas a colher frutos benditos,
a juventude marcha varonil,
O Saber e Labor marcham contritos,
em prece a Deus, pela Pátria - Brasil.

O Nosso português de cada dia – 002


 

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Edy Soares (Fragata de versos) – 41: Doces Recordos

 

Mensagem na Garrafa – 77 -

Cecy Barbosa Campos
Juiz de Fora/MG

PRESENÇA

Aprendi, com você, que é sempre bom voltar para casa. Até mesmo, quando em período de férias, aproveitando momentos de lazer e achando que seria bom prolongar aquele período de relaxamento, eis que o retorno ao nosso espaço de intimidade total, surpreendentemente, torna-se agradável ao atravessarmos o umbral da porta.

Até hoje, permanece em mim este sentimento. Ao chegar do trabalho, ou de alguma viagem, sinto aquele impulso de alegria ao virar da chave na fechadura e ao adentrar no meu espaço.

Naquele momento, sinto que você está ali. Rapidamente, percorro a casa, presto atenção aos ruídos que me enganam. Às vezes, são os estalidos da madeira que geme ao abraço do sol. Procuro, em cada cômodo, atrás das portas, fico em dúvida, olho outra vez. Você pode estar escondido em qualquer canto, tentando surpreender-me alegremente, com seu olhar matreiro e afetuoso.

De repente, penso tê-lo visto e estendo os braços ansiando por um abraço. Só o vazio encontro... Percebo, então, que, ali, a busca é inútil, porque é em meu coração que você está presente.

(in Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009. Livro enviado pela autora.)

Silmar Bohrer (Croniquinha) 102

Pois me prometi :

Vou caminhar até o rio ali na barra, nem que tenha que tomar o primeiro banho de chuva da primavera .

Delícia e quimera, quimera e mardelícia. 

E assim foi. Fui, fomos, eu e meus Eus. Nós todos, zebedeus. 

Pingos vieram, garoagens chegaram, chuvisqueiros, trovejares abundantes, a chuva romeira. 

Mais importante do que o feito é o sonho e a execução. 

Profecia virou instância, na tarde calma lavei a cara, o corpo, as ideias, lavei a alma. 

Vida exuberância.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 12 -


NO ÁLBUM DE DOLORES

Escuta-me bem, Dolores,
Não queiras meu nome aqui:
Ele não é colibri
Para viver entre flores.

Tu’alma, irmã de Jesus,
Como consente ficar
Sobre a mesa de um altar
Um pobre círio sem luz?

Meu triste nome choroso
Quer uma outra habitação;
Guarda-o no teu coração,
Lírio celeste e formoso!

Rasga esta folha, Dolores,
Não deixes meu nome ai:
Ele não é colibri
Para viver entre flores.
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NOITE CRUEL

Morrer... morrer... morrer... Fechar na terra os olhos
A tudo o que se ama, a tudo o que se adora;
E nunca mais ouvir a música sonora
Da ilusão a cantar da vida nos refolhos...

Sentir o coração ferir-se nos escolhos
De tormentoso mar, — pobre vaga que chora!
E no arranco final da derradeira hora,
Soluçando morrer num oceano de abrolhos.

Nem ao menos beijar — ó supremo desgosto!
A mão doce e fiel que nos enxuga o rosto
Mostrando-nos o céu suspenso de uma Cruz...

E perguntar a Deus na agonia e nas trevas:
Onde fica, Senhor, a terra a que nos levas,
Com as mãos postas no seio e os dois olhos sem luz?!
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NUM LEQUE

Na gaze loura deste leque adeja
Não sei que aroma místico e encantado...
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado!

Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado...
Até minh’alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.

E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,

Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores!
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NUNCA MAIS

Que é feito de meu sonho, um sonho puro
Feito de rosa e feito de alabastro,
Quimera que brilhava, como um astro,
Pela noite sem fim do meu futuro?

Que é feito deste sonho, o cofre aberto
Que recebia as gotas de meu pranto,
Bagas de orvalho, folhas de amaranto,
Perdidas na solidão de meu deserto?

Ele passou como uma nuvem passa,
Roçando o azul em flor do firmamento...
Ele partiu, e apenas o tormento,
Sobre minh’alma triste, inda esvoaça.

Meu casto sonho! Lá se foi cantando,
Talvez em busca de uma pátria nova.
Deixou-me o coração como uma cova,
E dentro dele, o meu amor chorando.

Nunca mais voltará... Pois, que lhe importa
Esta morada lúgubre e sombria?
Não pode agasalhar uma alegria
Minh’alma, pobre morta!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

NOEMI

Eu quisera saber em que ela pensa,
Esta mimosa e santa criatura
Quando indeciso o seu olhar procura
Alguma estrela pelo azul suspensa;

E que tristeza, indefinida, imensa,
Do seu olhar na flama, ardente e pura,
Intérmina e suave se condensa
Como as brumas no céu em noite escura.

Pobre criança! Que infinita mágoa
Punge-te o seio e te anuvia os olhos
— Benditos olhos sempre rasos d’água!

Choras... E o mundo te oferece flores...
Deixa os espinhos, lágrimas e abrolhos,
Só para mim, que só conheço dores!

Fonte: Auta de Souza. Poemas. Publicado postumamente em 1932. Disponível em Domínio Público.

Lima Barreto (Generosidade)

Quando estive agora, ultimamente, no interior de São Paulo, confins desse Estado, próximo a Goiás e a Mato-Grosso, tive muita coisa a observar e muita coisa a meditar.

Lá, em Rio Preto, é ponta de trilhos e para lá vão ter toda a espécie de aventureiros, no bom ou mau sentido.

Há os "grileiros" fabricantes de títulos falsos de propriedades de terras; há os advogados; mas há também os que querem horizontes novos para a sua atividade e para o seu trabalho.

É justo que essa gente se mova para o interior do Brasil. Eu lá senti muito que já estivesse desfibrado, intoxicado de Rio de Janeiro, para não me deixar ficar por aquelas bandas, "cavando" e espalhando a graça e a harmonia da Guanabara que estão na minha alma. 

Tive lá um amigo, o Francisco de Sales, que é um portento de energia e honestidade. É um abridor de estradas. Ele as abre pelo deserto e faz por elas trafegar automóveis, nos quais andei graças à sua generosidade. Ele as traça por gosto e prazer, e tive um grande desgosto em não saber mais nada de topografia para auxiliá-lo.

Se ainda tivesse energia para recordar esse estudo elementar, ficaria lá para ajudá-lo no seu mister, mesmo com um simples nível de pedreiro e uma trena.

Muitas figuras como essa lá conheci de energia e de combate, no bom sentido. Feriu-me, porém, muito a de um médico, formado na Suíça, onde ganhou um ar severo de alemão, mas que tem o nome portuguesíssimo de Barros. O seu primeiro é Cenobelino; e, conquanto esteja iniciando a carreira, é de uma generosidade fidalga. 

Conto-lhes o caso.

O Dr. Cenobelino foi chamado para ver uma criança que tinha levado um coice de um cavalo, na cabeça.

A criança precisava de uma operação difícil, creio que de trepano. Era cara; a família do pequeno ou da pequena não a podia pagar. Ele se prontificou a fazê-la gratuitamente. 

A criança se salvou e não podia ver bilhete de loteria que não pedisse ao pai que o comprasse.

- Para quê?

- Para pagar ao doutor que me salvou.

Certo dia, o pai satisfez o pedido do filho e tirou a sorte. Escusado é dizer que recompensou generosamente o médico do filho.

(Publicado na Careta, 25-6-1921)

Fonte: Lima Barreto. Marginália. Publicado originalmente em postumamente 1953. Disponível em Domínio Público.

Hinos de Cidades Brasileiras (Areia Branca/RN)


por José Nicodemos

I
Junto ao mar, entre os raios alegres,
Deste sol de beleza invulgar
Tu nasceste ó terra querida,
Sobre areias da cor do luar.

II
Pequenina, no entanto, a grandeza,
Do Estado, altaneira, constróis,
Com o sal do teu mar generoso,
No teu solo que é berço de heróis,

III
És o berço de audazes marujos,
Cuja audácia é um cruzeiro de luz,
A luzir sobre os mares gigantes,
Onde a virgem o barco conduz.

IV
As salinas luzentes paisagens,
Imaginam em telas de sol...
São as vigas de nossa pujança,
Sustentando da história do farol.

V
O porto-ilha a brilhar, sobranceiro,
Como estrela caída no mar...
O teu nome eleva e propala,
Noutras terras, feliz, a cantar.

CORO
Areia Branca, terra amada,
Terra do sol, terra do sal,
És a sereia majestosa,
Rindo esmeralda ao litoral.

O Nosso Português de Cada Dia – 001

 

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Daniel Maurício (Poética) 62

 

Mensagem na Garrafa – 76 -

Luiz Poeta
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

FILHA DO TUDO E DO NADA

Por que chegaste sem convite, poesia?
Ferindo o dia com teus líricos mistérios?
Traçando rotas sem pedir meus hemisférios,
Iluminando o meu amor com a fantasia?

Por que vieste sem palpites, inspirada,
filha do nada que há no tudo dos amores?
...trouxeste a lírica angústia que há nas dores,  
e a sedução que há na  pessoa apaixonada.

Ah, qual Cupido, me tornaste sonhador, 
mas fui flechado na emoção  mais colorida, 
e fiz de ti, poesia, a alma de uma vida,
tão dividida entre a lida e o meu amor. 

Por que é que partes para os olhos mais carentes
de ler meus sonhos, como se eles fossem seus
e meus silêncios  - que nem sei se ainda são  meus -
que alimentas, com teus versos convincentes?

A emoção, filha do amor dos sonhadores
da qual te apossas todas vezes que ela vem,
liricamente se transporta para alguém 
que, como eu, busca silêncios sedutores.

Ouve o que dizem os amores, poesia,
planta, no dia, o teu melhor, liricamente, 
deixa, de mim, esta alegria que só  sente
o coração que; com teus sonhos... se inebria.

Eduardo Martínez (Duas vidas, um parque e o silêncio da jovem viúva)

Vera, por um desses eventos fortuitos que acontecem quase com ninguém, teve a sorte de enviuvar justamente no primeiro dia de trabalho do então marido, Júlio, no Banco Central nos idos de 1985. Não que faltasse amor pelo esposo, mas tal imprevisto acabou por lhe render uma polpuda pensão vitalícia. Sem filhos, a jovem viúva, no auge dos seus 27, teve dinheiro de sobra para comprar vários vestidos e viveu o luto por um ano inteirinho.

Ela, que havia se mudado para Brasília por conta do marido, acabou ficando por ali. Sentia falta da família, é verdade, mas fincou os pés naquela terra vermelha e nunca mais quis voltar para Belo Horizonte. Ademais, o apartamento, mesmo que pequeno, já estava montado e, melhor, ela gostou daquele silêncio.

Conforto, economia e uma renda muito acima do razoável foram mais que suficientes para aplacar aquele sentimento de querer ir embora, que, vez ou outra, a instigava. Foi ficando, ficando, ficando, até que a capital se tornou seu lar. É verdade que as promessas de largar tudo aquilo e se mandar para uma cidade praiana ainda são ditas para os mais próximos. Seja como for, Vera está tão incrustada em Brasília, que ninguém mais acredita nas suas palavras. Além do mais, hoje, prestes a completar 63, talvez até ela própria já tenha perdido o ânimo de abandonar a cidade projetada por Lúcio Costa.

Ângelo, a despeito de ter morado longe de Brasília por quase quatro décadas, retornou para a sua terra natal. Viajou o mundo por conta do trabalho, mas, encardido desde as primeiras horas de vida pelo vermelho daquele chão, não teve dúvida de que seu lugar era ali. Aposentado e viúvo, voltou no final de 2021, quando os 70 anos já lhe batiam à porta.

Não ficou rico, mas estava longe de ter que fazer economias para chegar ao fim do mês para manter a geladeira cheia. Além disso, era um homem prático. Tão prático, que preferiu comprar um pequeno apartamento. Nada mais que dois quartos: um para ele, outro para possíveis visitas, que, na verdade, eram raríssimas. Por isso, tal cômodo se tornou uma espécie de escritório ou, como Cida, a faxineira, dizia, o quarto da bagunça.

O velho, mesmo que acessível, teve certa dificuldade de fazer amizade. Ficou sócio de um clube, mas logo percebeu que horas ao sol só lhe trouxeram uma pele mais bronzeada, o que até lhe destacavam os olhos claros. Mas desistiu daquilo, continuou sem amigos. Ainda mais porque muito sol poderia lhe causar um câncer de pele. Acostumou-se com aquela vida silenciosa.

Vera e Ângelo, apesar de morarem na mesma quadra, no mesmo prédio, ela um andar acima, nunca haviam se notado. Provavelmente por conta dos horários distintos ou, talvez, pela miopia. Seja como for, os dois passaram a fazer caminhadas por recomendação médica. Aliás, a mesma geriatra, que ainda não havia chegado aos 40.

Os dois, a princípio, não gostaram daquela atividade física, mas logo descobriram o prazer de andar ali pertinho, no aprazível parque Olhos D’Água, uma belezura de lugar. Aquelas paisagens, na verdade, tornavam as caminhadas tão prazerosas, que os dois, não raro, davam duas, três voltas, sem se darem conta, tamanho o grau de relaxamento.

Invariavelmente, Vera e Ângelo faziam uma pausa na Lagoa do Sapo, onde degustavam toda aquela mansidão. Uma flor com seu colorido aqui, aquela borboleta de asas graúdas ali, a tartaruga esquiva entre a folhagem aquática. É possível que aqueles dois captassem tudo, a despeito dos sentidos já envelhecidos. Gastos sim, mas com certeza mais experientes para apreciar as maravilhas ao redor.

Interessante era que, apesar de tantas idas e vindas, jamais haviam se reparado. No entanto, naquele dia, lá estava aquela mulher diante da Lagoa do Sapo, quando Ângelo se aproximou. Ele nem a percebeu, pois seus olhos míopes miravam aquela água mansa à sua frente.

Os velhos se encontravam a não mais de dois metros um do outro. Ela foi a primeira a perceber a presença de alguém, mas não teve ânimo de olhar para o lado, mesmo porque estava entretida com os peixes no fundo da lagoa. Ângelo, apesar de distraído, foi despertado pelo perfume exalado pela pele da mulher. Tímido, porém, manteve a vista numa enorme árvore, mas seu pensamento já era outro.

Curiosos, finalmente se olharam. Vera, mais corajosa, sorriu e, então, se pronunciou: “Bonita lagoa”. Ângelo concordou com um leve movimento de cabeça. Por um instante, abstraíram-se daquele lugar, até que o canto de um joão-de-barro os transportou de volta para seus próprios devaneios. Silêncio total.