domingo, 2 de junho de 2024

Artur de Azevedo (Vi-tó-zé-mé)

Vi-tó-zé-mé? Que quer isso dizer? Perguntará o leitor, imaginando que escrevi esse título em algum idioma bárbaro e desconhecido.

Tenha o leitor um pouco de paciência; não vá procurar no final do conto a explicação do título, que será plenamente justificado, por mais estranho que pareça.

Durante os primeiros dois meses da revolta de 6 de setembro, fui vizinho de uma família, que eu não conhecia, composta de marido, mulher e um filhinho de pouco mais de dois anos, encantadora criança que fazia a delícia dos meus olhos quando todas as tardes, azoado (atordoado) pela artilharia e pelos boatos, voltava à casa para jantar.

Poucos dias depois de declarada a revolta, comecei a notar que os pais do menino se retiravam da janela quando eu me aproximava e volviam ao peitoril quando só pelas costas me podiam ver, evitando, ao que parecia, o cerimonioso cumprimento que eu lhes fazia dantes.

Atribui o fato a alguma intriga de vizinhança, e, como não os conhecia nem eles me interessavam, não me importei absolutamente com isso. Como de nenhuma vergonha me acusa a consciência, tenho por hábito não dar a mínima importância ao juízo – bom ou mau – que os estranhos possam fazer da minha pessoa. É uma questão de temperamento.

Quem me fez cismar foi a criança. Essa estava quase todas as tardes à janela, e, quando eu passava, dizia-me com uma vozinha esganiçada e penetrante:

Vi-tó-zé-mé.

Debalde tentei apanhar o sentido dessas quatro sílabas misteriosas, que eu ouvia diariamente, à mesma hora, e acabaram, como já disse, por me dar que pensar, não obstante partirem dos lábios inconscientes de uma criancinha.

E isto durou mais de um mês.

Ao cabo desse tempo vieram as andorinhas da Empresa Geral de Mudanças, e os meus vizinhos abalaram para outro bairro, deixando-me a curiosidade fortemente excitada por aquele vi-tó-zé-mé enigmático e cronométrico.

Há dias achava-me num bonde, quando de repente o pai da criança, que eu perdera inteiramente de vista, entrou no veículo, sentou-se ao meu lado e cumprimentou-me com muita amabilidade, pronunciando o meu nome.

Bem que o reconheci: entretanto, obedecendo a um ressentimento muito natural, correspondi com certa frieza ao seu cumprimento, o que o levou a perguntar-me, sorrindo:

— O senhor não se lembra de mim?

— Confesso que não.

— Veja bem.

— Tenho uma ideia vaga...

— Fomos vizinhos. Morávamos na mesma rua – o senhor no número 55 e eu no 49 – quando rebentou aquela maldita revolta cujas consequências ainda estamos sofrendo...

— Ah! sim... agora me lembro...tem razão...

E não pude me conter.

— Por sinal que tanto o senhor como sua senhora se retiravam bruscamente da janela quando me viam.

O pai da criança baixou os olhos, suspirou, e, pôs-se com a ponteira da bengala e empurrar um fósforo apagado para uma das frestas do soalho do carro. Depois, levantou a cabeça, suspirou de novo, e disse-me com uma expressão dolorosíssima na voz e no olhar.

— É verdade... Praticávamos essa grosseria... Desculpe... eram coisas de minha mulher... Que quer o senhor? – Eu tinha a fraqueza de me deixar dominar...

E o homem procurou num sorriso uma atenuante para a seguinte revelação.

— Ela não podia vê-lo.

— Ah!

— Não podia vê-lo, não, senhor, e então exigia que saíssemos ambos da janela para evitar o seu cumprimento. Eu, com medo de um escândalo, fazia-lhe a vontade... Ora, aí tem o senhor!

— Não me podia ver? Mas... por quê?

— Asneiras. Não podia vê-lo, porque o senhor era um florianista intransigente e ela uma custodista exaltada.

— Ainda bem, disse eu, sorrindo.

— Conhecia os seus escritos... ouvia-o conversar, e... e não podia vê-lo!

— Com efeito!

— O senhor não faz ideia até que ponto a pobrezinha levava o seu fanatismo por aquela revolta que nos desgraçou. Imagine que havia um homem, um bom homem, um pai da vida, que há cinco anos nos vendia ovos... ovos frescos, deliciosos, mais baratos que no mercado...

— Pois bem: deixamos de ser fregueses desse pobre-diabo; ela despediu-o porque ele se chamava Floriano... Coitada! – tinha essas coisas mas era uma excelente criatura. Não há dia em que eu não chore a sua morte!

— Ela morreu?!

— Morreu, sim, senhor... ou por outra: mataram-na, porque naquele corpo havia seiva para cem anos.

E o viúvo enxugou uma lágrima que lhe rolava na face.

— E quer saber o que a matou? Uma bala atirada pelos revoltosos! Foi uma das vítimas dessa guerra estúpida que tanto a entusiasmava! – Um dia estava debruçada tranquilamente à janela, quando, de repente –, pá! mesmo aqui...

E o pobre homem levou a mão à testa.

— Não sobreviveu dois minutos. Quando lhe quis acudir, já era tarde: estava morta! 

E com a voz embargada pelos soluços.

— Deixou-me um filhinho, coitada! – um filhinho a quem faz mais falta que a mim próprio...

Para que o infeliz marido chorasse à vontade, conservei-me silencioso durante cinco minutos; passado o acesso, perguntei pelo menino.

— Está bem, obrigado... Mora no colégio... é pensionista... e vai indo.

— Lembra-me bem do menino, porque todas as tardes – quando eu passava e ele estava janela – dizia-me alguma coisa que eu não podia perceber e, por isso mesmo, tal impressão me causou, que nunca me esqueceu.

— Que era?

— Vi-tó-zé-mé.

— Ah! já sei...

— Sabe?

— Coisas da falecida... Era para o moer... Ela ensinava o filho a gritar todas as vezes que o senhor passava: “Viva Custódio José de Melo!” E ele, coitadinho, na sua meia língua dizia: “Vi-tó-zé-mé!”

— E aí está explicado o título.

Fonte> Artur de Azevedo. Contos efêmeros. Publicado originalmente em 1897. Disponível em Domínio Público.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 30

 

Silmar Bohrer (Croniquinha) 113

Sabe aquele riacho estrondoso que desce lá da serra levando tudo pela frente? Pois é... Assim anda a vida. As notícias de hoje são como torrentes que arrastam as de ontem, porque as de hoje amanhã já se foram também. 

Doida, doidivana, adoidada vida. Anda em disparada. E lembrar que não era assim. Belos dias de calmaria, de sossego, de suspiros serenos, de vislumbres, de imagens, de piqueniques nalgum cantinho do interior, das festas de igreja lá na vila, das bochas ali na cancha, do futebol na várzea, inesquecidas domingueiras. 

Hoje? Pensar, hoje? Para a vida não há tempo de pensar hoje. Ela corre célere, celerada. Automatismo puro. E eu me perguntando, o que houve com você, vida, parece que estás sempre com pilha nova? 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Vereda da Poesia = 22 =


Trova Humorística, de Pouso Alegre/MG

Newton Meyer Azevedo
1936 – 2006

Tira a roupa, e, quase nua
diz ao marido, emburrada:
- Pareço ainda "Perua "?!
- Parece, sim... depenada!
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Poema do Rio de Janeiro/RJ

Carlos Drummond de Andrade 
Itabira/MG, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ

AMAR

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e mal amar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.
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Aldravia de Belo Horizonte/MG

Clevane Pessoa
(Clevane Pessoa de Araújo Lopes)

Aquém 
da
porta
segredos
abraçam 
medos.
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Soneto de Poços de Caldas/MG

Laércio Borsato

A ORQUÍDEA

NA ENTRADA da casa, a orquídea abriu
Seu vasto sorriso, lilás e amarelo.
O verde das folhas também aderiu,
Esbanjando um quadro, nobre e mui belo!

Da sacada eu contemplo de perfil
Essa obra que Deus. De modo singelo,
Mormente nos recantos de meu Brasil,
Faz da graça e da beleza um forte elo!

Quem passar por ali sentirá a candura
Dessa flor, que com delicadeza pura,
Indelével toca o coração humano...

Nesse meditar a minha alma cogita.
Meu ser acende, se rende e acredita,
Isso só é possível, com o toque soberano!
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Trova de Maringá/PR

A. A. de Assis
(Antonio Augusto de Assis)

Havia à noite um poema:
as luzinhas em cardumes...
Hoje sequer no cinema
pisca-piscam vaga-lumes.
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Sextilha do Ceará

Walmar Coelho

O AMOR

O amor é uma plantinha
Que medra no coração!
Com o afeto se avizinha,
Bem querer ou ilusão,
Vive e cresce, não sozinha,
Nem prescinde afeição.
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Quadra Popular

Saudade consumidora,
eterna sócia de amor,
serás minha companheira,
irás comigo onde eu for.
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Soneto de Assaré/CE

Patativa do Assaré
(Antonio Gonçalves da Silva)
1909 – 2002

O BURRO

Vai ele a trote, pelo chão da serra,
Com a vista espantada e penetrante,
E ninguém nota em seu marchar volante,
A estupidez que este animal encerra.

Muitas vezes, manhoso, ele se emperra,
Sem dar uma passada para diante,
Outras vezes, pinota, revoltante,
E sacode o seu dono sobre a terra.

Mas contudo! Este bruto sem noção,
Que é capaz de fazer uma traição,
A quem quer que lhe venha na defesa,

É mais manso e tem mais inteligência
Do que o sábio que trata de ciência
E não crê no Senhor da Natureza.
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Trova Premiada  em Taubaté/SP, 2000

Antonio Juraci Siqueira 
Belém/PA

Perdão no amor que se apruma
sem guardar mágoas, constrói.
É flor que enfeita e perfuma 
as mãos de quem o destrói.

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Décima de Belo Horizonte/MG

Úrsula A. Vairo Maia

MULHER-PEIXE

Um segredo quero contar
Muitos pensam em mim
Como uma habitante plena do mar
Sou mulher-peixe a suspirar
Durante o dia me ponho a nadar
Ao cair da noite, me banho ao luar
Tenho a lua e o mar como habitat
Sou do dia, sou da noite
Sou do mar ,  sou do luar
Sou de quem, em sonhos , me desejar
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Haicai de Jacarepaguá/RJ

Antonio Cabral Filho

Seu laço de fita
Abalou meu coração:
Paixão virtual.
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Poema de Porto União/SC

Benjúnior
(Benevides Garcia Barbosa Júnior)

CANÇÃO GUERREIRA

Quero fazer uma canção triste
que seja como vento ligeiro...
Uma canção para o povo
como um canto de esperança!
Quero fazer uma canção guerreira
que luta para que voltem à vida
aqueles que declararam sua guerra!
Quero fazer uma canção para
animar os que caem...
Quero fazer uma canção de amor
que seja a de todos os tempos
e para sempre...

E que todos se levantem
e levantem suas bandeiras,
acima de seus corpos e cabeças;
levando todos os sonhos,
a todos os povos da terra
que vivem, amam e sofrem
e ainda esperam
uma canção guerreira…
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Trova de Caicó/RN

Eva Garcia

A bela flor de papel
que tu me deste, outro dia...
Foi tão perfeita e fiel,
que o cheiro dela eu sentia!
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Poema de Lisboa/Portugal

Antero Jerónimo

PAZ 

Vem de dentro para fora
caminho seguro de pés descalços
imune aos cardos crescendo descontrolados
Sábio silêncio do homem que não cala a voz
isolado de guerras inúteis 
ecos de palavras ocas 
Nobre missão em cruzada atemporal
na luta sem decreto nem cartel
contra o inimigo invisível e cruel
Tecida pelos mais alvos fios solidários
jardim cultivo de amor e justiça, onde
nardos de esperança florescem no mais pleno viço
Só na presença da tua asa suprema
se tranquiliza da desordem o meu coração.
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Epigrama de Salvador/BA

Roberto Correia
1876 – 1937

De muitos “doutores” sei
Que fundamente acatamos,
Aos quais, se dizem: – “Cheguei”,
Retruca a Morte: – “Chegamos”.
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Trova de Fortaleza/CE

Nemésio Prata
(Nemésio Prata Crisóstomo)

Dizem, com propriedade,
que a saudade é inexplicável;
explica-se: na verdade,
o senti-la é indecifrável!
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Spina de Berilo/MG

Nina Mariza

DANÇARINA 

Ritmada ao som
do meu coração,
ela alegre dança.

Roda, roda, não se cansa.
Como é bom vê-la assim!
No ar, sacoleja sua trança.
Esse lindo jeito ágil, vivaz,
é emoção que me balança.
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Poetrix de Recife/PE

Antonio Carlos Menezes

LISBOA

uma guitarra que chora 
de longe, um fado
que me toca a alma.
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Glosa de Portugal

António Aleixo
(António Fernandes Aleixo)
Vila Real de Santo António, 1899 — 1949, Loulé

ONDE NASCEU A CIÊNCIA E O JUÍZO

MOTE
Onde nasceu a ciência?…
Onde nasceu o juízo?…
Calculo que ninguém tem
Tudo quanto lhe é preciso!

GLOSA
Onde nasceu o autor
Com forças p’ra trabalhar
E fazer a terra dar
As plantas de toda a cor?
Onde nasceu tal valor?…
Seria uma força imensa
E há muita gente que pensa
Que o poder nos vem de Cristo;
Mas antes de tudo isto,
Onde nasceu a ciência?…

De onde nasceu o saber?…
Do homem, naturalmente.
Mas quem gerou tal vivente
Sem no mundo nada haver?
Gostava de conhecer
Quem é que formou o piso
Que a todos nós é preciso
Até o mundo ter fim…
Não há quem me diga a mim
Onde nasceu o juízo?…

Sei que há homens educados
Que tiveram muito estudo.
Mas esses não sabem tudo,
Também vivem enganados;
Depois dos dias contados
Morrem quando a morte vem.
Há muito quem se entretém
A ler um bom dicionário…
Mas tudo o que é necessário
Calculo que ninguém tem.

Ao primeiro homem sabido,
Quem foi que lhe deu lições
Pra ter habilitações
E ser assim instruído?…
Quem não estiver convencido
Concorde com este aviso:
— Eu nunca desvalorizo
Aquele que saber não tem,
Porque não nasceu ninguém
Com tudo quanto é preciso!
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Glosa, estrofe onde é recuperado e explicado um determinado tema apresentado num mote que é colocado no início do poema e do qual pode repetir um ou mais versos em posição certa, como um refrão.

A glosa prolifera como estrutura formal da poesia lírica do séc. XV, designando as estrofes da poesia obrigada a mote, que desenvolviam o tema proposto por este. Inicialmente fazia parte de composições poéticas breves, como o vilancete, que apresentava uma ou mais glosas de sete versos, ou como a cantiga, que apresentava uma glosa de oito ou dez versos. O verso utilizado era o heptassílabo e, menos frequentemente, o pentassílabo.

No entanto, segundo Le Gentil, progressivamente, a glosa deixou de ser exclusivamente composta a partir de um mote de dois ou três versos, podendo retomar uma cantiga, um vilancete inteiro. 

O poeta devia repetir e explicar sucessivamente cada verso de uma destas composições, criando um novo poema de tamanho variável. Em cada estrofe da nova composição poética, podiam reaparecer um ou dois desses versos, colocados em qualquer posição, com a condição desse local permanecer fixo até ao seu final. Normalmente, citavam-se dois versos por estrofe, um no meio e outro no fim, podendo existir outras combinações, como por exemplo, um verso no princípio e outro no meio, ou os dois no fim. Quando apenas um verso era retomado, podia surgir em qualquer posição da estrofe, embora fosse mais usual o seu reaparecimento no final. Deste modo, a extensão da glosa dependia do modelo selecionado pelo poeta e do número de versos da composição glosada.

O hábito de realizar glosas implementou-se em todas as cortes do ocidente latino europeu, constituindo um dos principais passatempos dos serões do paço onde praticamente todos os participantes eram simultaneamente produtores e ouvintes deste tipo de composições sujeitas a um mote. Os temas abordados eram essencialmente de sentido amoroso ou satírico, visando geralmente pessoas conhecidas por todos. A improvisação e o amadorismo dos seus intervenientes tornaram algumas destas composições artificiais e dignas de pouco interesse, sendo frequente a repetição exaustiva de ideias, vocábulos e rimas

A glosa continuou a sofrer transformações durante a Renascença, começando a ser constituída por um mote de quatro versos que lhe servia de introdução e quatro estrofes de dez versos cujo último verso era a repetição de cada um dos versos do mote inicial, mantendo a medida velha.

Mais tarde, especialmente em Espanha, durante o Século de Ouro, a glosa continuou a ser uma forma poética bastante utilizada, através da qual os poetas demonstravam grande perícia intelectual e verbal, combinando conceitos subtis e figuras de retórica .

Tendo sido ignorada pelo Romantismo, esta forma de discorrer sobre um determinado tema acabou por chegar até aos nossos dias, continuando alguns poetas populares a glosar diversos assuntos. 

Arthur Thomaz (O beijo e a montanha)

 
Nilsen cresceu em condomínio de classe média, com uma segurança que permitia muitas brincadeiras infantis. As famílias organizavam muitas festas de aniversário. 

Na festa em que comemorava 10 anos, tudo corria tranquilamente, até que na hora das despedidas, um primo adolescente veio em sua direção para o clássico beijo de até logo.

Percebeu, com horror, que ele era portador de acne e que iria encostar o rosto no seu. Aquelas acnes, em sua mente, transformaram-se em enormes montanhas de pus.

Sem conter a expressão de asco, viu-se soterrada por aquele Everest desmoronando sobre seu rosto, e ainda por um descuido, o primo escorregou e seus lábios tocaram parte dos dela.

Aquele hálito de brigadeiro com refrigerante inundou seu cérebro, fazendo-a correr enojada ao banheiro mais próximo, onde vomitou incessantemente e lavou o rosto e a boca, ao menos, 30 vezes.

À noite teve pesadelos com montanhas de pus, atolando-se em areia movediça daquela substância horripilante. O cheiro de brigadeiro misturado a refrigerante infiltrou-se em algum recôndito local em seu cérebro, de onde nunca mais saiu.

Evitou festinhas e jamais esteve perante a este primo. Na adolescência, vivia em consultórios de dermatologistas para evitar qualquer possibilidade de ter acne.

Enfim, a faculdade de Veterinária em outra cidade, longe do tal primo.

Nunca sequer aventou a hipótese de beijar uma pessoa, mas em uma festa na república de colegas de turma, beberam como era de costume nessas reuniões, e evitando beijar, relacionou-se sexualmente com um rapaz, que alcoolizado, preocupou-se apenas em consumar o ato para voltar logo ao lado dos amigos, sem sequer ter reparado que era a primeira vez dela.

Para ela, foi um alívio em não ter tido que beijar uma boca estranha e nem encostar seu rosto em alguém potencialmente portador de acne.

Mas nela ainda havia o temor de um dia apaixonar-se e ter que trocar beijos e carícias, porque, afinal, a imagem das montanhas de pus permaneciam em suas lembranças.

Foi convidada por uma colega de faculdade a assistir a um jogo de polo a cavalo. Era um amistoso contra La Dolfina, um famoso time argentino.

Notou, apesar de corado pelo esforço, que o cavaleiro do time brasileiro possuía um rosto liso. Lembrou da palavra rubicundo e riu intimamente.

No intervalo do jogo, aproximou-se do local onde estavam os cavalos e ofereceu uma cenoura a um deles. O jogador perguntou o porquê ela tinha uma cenoura na bolsa, já sorrindo pelo inusitado da situação.

Sem graça, ela respondeu que trouxera também frutas, porque avisaram-na que tudo era caro neste ambiente hípico e que ainda era estudante sem muito dinheiro.

Ele sorriu e convidou-a para almoçar no caríssimo restaurante do clube. Bem apessoado, aparentando ter uns 40 anos, muito atencioso, mostrou-se encantador aos olhos dela.

Ela, fitando insistentemente as faces do acompanhante, lembrou da dermatologista, que dizia ser a acne muito mais rara em adultos e sentiu-se segura.

Empresário, ele possuía também um pequeno haras, onde criava e treinava cavalos para o jogo de Polo.

Nilsen, agora esposa do “face lisa”, como carinhosamente o chamava, tornou-se uma veterinária especializada em éguas e cavalos de polo. Seus dois filhos tiveram acne na adolescência, sem que isso a traumatizasse novamente.

Na hora da intimidade, quando no esforço do amor, o rosto dele ficava corado, ela adorava provocá-lo chamando-o de rubicundo, o que causava muitas risadas. Ele, então, zombava carinhosamente das histórias que ela lhe contara a respeito da “terrível” acne.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (Avôhai)


Compositor: Zé Ramalho

Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde quarava
Sua camisa e seu alforje de caçador

Oh, meu velho e invisível
Avôhai
Oh, meu velho e indivisível
Avôhai

Neblina turva e brilhante
Em meu cérebro, coágulos de sol
Amanita matutina
E que transparente cortina
Ao meu redor

E se eu disser que é mei sabido
Você diz que é mei pior
E pior do que planeta
Quando perde o girassol

É o terço de brilhante
Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo da porteira
Nem também da companheira
Que nunca dormia só

Avôhai! Avô e pai!
Avôhai! Avôhai!

O brejo cruza a poeira
De fato existe um tom mais leve
Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos
Que amargam as pessoas que fitar

Mas que bebem sua vida
Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas
Cabelos de avôhai

Na pedra de turmalina
E no terreiro da usina, eu me criei
Voava de madrugada
E na cratera condenada, eu me calei

E se eu calei foi de tristeza
Você cala por calar
E calado vai ficando
Só fala quando eu mandar

Rebuscando a consciência com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta no jogo de improvisar

Entrecortando eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa
Pra doutor não reclamar
Não reclamar!

Avôhai! Avô e pai!
Avôhai! Avôhai!
Avôhai!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Avôhai: Uma Ode às Raízes e à Sabedoria Ancestral
A música 'Avôhai' de Zé Ramalho é uma homenagem poética e carregada de simbolismo ao avô do cantor, figura que representa sabedoria, tradição e a conexão com as raízes familiares e culturais. O termo 'Avôhai' é uma junção das palavras 'avô' e 'pai', indicando a importância do avô na vida do artista, como um segundo pai ou até mesmo um guia espiritual.

A letra descreve o avô com imagens rústicas e místicas, como um homem de 'botas longas' e 'barbas longas', adornado com um colar de ouro, sugerindo uma figura quase mítica, que carrega consigo a história e a cultura de seu povo. A menção à 'neblina turva e brilhante' e à 'amanita matutina' (um tipo de cogumelo) pode ser interpretada como uma alusão a estados alterados de consciência ou sabedoria transcendental, que o avô parece possuir.

A música também aborda a relação entre a vida e a morte, a sabedoria e a ignorância, e a importância de enfrentar os medos e desafios da vida. A referência à 'pedra de turmalina' e ao 'terreiro da usina' onde o cantor cresceu, trazem o ouvinte para o ambiente físico e cultural do Nordeste brasileiro, onde Zé Ramalho foi criado. 'Avôhai' é uma celebração da ancestralidade e do legado que as gerações mais velhas deixam para as mais novas, um convite para honrar e lembrar das origens.

Aparecido Raimundo de Souza (O escuro alimento)

A MEDIOCRIDADE, conhecida também como uma coisa leviana ou corriqueira, é igualmente assemelhada a um terreno inóspito de areia movediça, ou seja, um determinado local onde um fenômeno natural (tipo uma praia deserta ou mesmo uma área frequentada por grande número de pessoas), tem a sua superfície embebida em água. Por conta de tal entrave, não oferece a resistência devida e necessária para quem se acha em posição de risco iminente. Assim sendo, contribui unicamente para que os menos desavisados (sejam elas pessoas, animais ou qualquer outro tipo de vida que respire) se vejam sumariamente tragados.

Grosso modo, um portento assombroso que pode nos afundar num abrir e fechar de olhos, e em consequência, nos aprisionar, impedindo os nossos passos de seguirem o horizonte delineado, o porto seguro. Visto por uma ótica mais estranha. Privando os nossos objetivos de deslancharem, de irem e virem e de alcançarem o verdadeiro e tão sonhado potencial que todos nós carregamos por força do Criador. Em outras palavras, uma voragem insólita e inesperada desviando para uma rota-alternativa e sem volta os nossos empenhos previamente delineados. 

Se tratando de jornada de existência desconhecida, muitas vezes nos encontramos em um itinerário que parece monótono e sem brilho. Será que a exiguidade, como a areia movediça se faria inevitável, ou melhor posto, poderia ser ela, de alguma forma, simplesmente evitada? Apesar de difícil, vamos tentar explorar o alvo de uma forma bem amena. A mediocridade ou a parvidade não seria apenas uma condição. Ela se faria como uma escolha “não escolhida.” Partindo daí, se manifestaria quando nos contentássemos com o mínimo, ou quando aceitássemos a mesmice e abandonássemos os desafios ainda não buscados. 

O segredo de uma existência falha e traiçoeira, é marcado por alguns comportamentos e atitudes. Quais seriam? Vejamos os mais chatos: O “Conformismo” lidera o ranking. Com isso, a mediocridade floresce, ganha vida e força, se robustece, quando nos agasalhamos com o “status quo.” Não buscamos, como deveríamos, o crescimento, bem ainda, não questionamos, não nos esforçamos, aliás, não fazemos nada... simplesmente aceitamos sem pestanejar, não movendo uma palha, para melhorar o quadro hostil bem ali à nossa frente. Quando nos acomodamos albergados na zona de conforto e deixamos de explorar novos horizontes, o obscuro desordenado imediatamente entra em cena e ganha terreno. 

Se continuarmos inertes, feitos pobres e tristes pacóvios, por certo, mais hoje, ou amanhã, sucumbiremos. Há um outro   ponto a ser trazido à baila. A “Falta de paixão.” Uma vida mal vivida, sem a vitalidade da vicissitude, carece de paixão. Muita paixão. De preferência uma devoção eufórica e avassaladora. Um dos nossos piores problemas está bem aqui diante de nossos narizes. Não nos dedicamos com fervor a nada. Levamos na flauta. Fazemos o mínimo necessário para sobreviver, porém, não nos apaixonamos idolatradamente por nossos projetos, relacionamentos ou sonhos.

Mesma estrada de retorno incerto, amamentamos como a um recém-nascido, a “Ausência de Autenticidade.” A burrice cavalar, nos leva a esconder a nossa verdadeira essência. Tememos ser diferentes e, em razão disso, nos camuflamos mergulhados em meio de uma multidão desenfreada e sem objetivos vorazes e sôfregos. Perdemos, com essa fraqueza, o âmago e, de lambuja, a plenitude. Deixamos de lado a autenticidade e, por conta, nos tornamos meras cópias desbotadas. “Medo do fracasso.” O receio de falharmos nos impede de arriscar. Preferimos não tentar coisa alguma, a enfrentarmos a possibilidade de não atingirmos, em cheio, o sucesso. Permanecemos, pois, onde o risco é mínimo, ou acredite se quiser, quase insignificante. 

“Resistência a mudanças. ” O anódino (insignificante), como todos devem saber, é balsâmico E por qual motivo é assim? Pelo fato de não queremos mudar, de não planejamos ir em frente. A mutação, ou a conversão, acima de qualquer coisa, exige esforço hercúleo e enfrentamento. Optamos pelo menor combate, qual seja, mantermos por comodidade, simplesmente deixarmos as coisas como estão, mesmo que isso signifique uma decisão simples conhecida como “estagnação.” Entre mortos e feridos, como escapar desse carreiro temerário? Como transformar uma existência despicienda em algo mais eficaz e duradoura e logicamente significativa? 

Se os meus senhores e as minhas senhoras me permitirem, darei algumas sugestões. “Autoconfiança.” Reconhecer quando estamos caindo no inócuo (inofensivo) inoperante seria o passo mais propício. Devemos estar sempre atentos aos sinais de conformismo e falta de paixão. A autoconsciência é o passo robusto, na verdade, o passo avultado e mais indicado para a verdadeira mudança. No mesmo seguimento, “Definir metas inspiradoras.” Também tal atitude não pode deixar de ser vista e revista. O que seriam metas inspiradoras? Simples! Estabelecermos ou criarmos situações inusitadas que empolguem, ou que balancem literalmente a roseira. 

O arrebatamento quando ponderoso (importante) e suasório (convincente), costuma dar bons resultados. Devemos também sonhar grande e traçar uma estrada direta e sem curvas, para abocanharmos os objetivos pretendidos. É de bom alvitre lembrarmos sempre que a moderação vulgar não sobrevive quando há uma visão clara e objetiva do que realmente temos como favoritismo. Outro ponto fundamental. “Superar os medos.” Aceitamos com fé e coragem que o fracasso faz parte do processo. Todavia, nunca deixarmos que o receio se achegue e paralise a nossa mente, ou tolha os nossos   movimentos, ou no pior dos mundos, tente pintar de outras cores, o nosso cotidiano. 

Precisamos aprender de uma vez por todas com os erros e continuarmos avançando. Sempre em frente. Passos à retaguarda, nem para tomar impulso. “Carecemos, outrossim, sermos autênticos.” Abandonarmos as máscaras. Mostrarmos como somos, com todas as nossas imperfeições e peculiaridades. A autenticidade é uma fonte libertadora e inesgotável que nos afasta para bem distante da submissão. “Abraçar a mudança.” A vida, meus caros e nobres amigos, é dinâmica. Por assim, se faz mister estarmos dispostos a mudar, a aprender, a crescer. Sobretudo, a nos expandirmos. 

A avareza de espírito, a sovinice, ou até mesmo a ignorância em sua forma mais apurada, não sobrevivem em um coração de portas abertas, menos ainda frenteada a uma alma limpa e cristalina em ritmo constante de transformação total. Termos, acima de tudo, haja o que houver, a certeza amadurecida de que a somiticaria (avareza) é uma escolha. Nós todos podemos, a qualquer tempo, optar por seguirmos um itinerário monótono ou, em via paralela, trilharmos por uma senda mais longa, usque (expressão em direito que significa até) desafiadora, majestosa e significativa. A decisão final, aquela que nos levará ao sucesso, glorioso estará sempre, seja em que circunstancia for, em nossas mãos. 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Isabel Furini (Poema) 61: Sol

 

Eduardo Affonso (Herói da resistência)

Houve um tempo em que telefone telefonava e máquina fotográfica fotografava.

As coisas eram unívocas, com jurisdições demarcadas, como que regidas por uma religião.

Em algum momento algo se rompeu, e telefones começaram a fazer contas, mandar cartas, tocar música, tirar fotos.

Por que o telefone, não o ferro elétrico? Jamais saberemos.

O ferro elétrico é de um tempo em que máquina de escrever escrevia, carteiro entregava cartas e computador computava.

Então, como se tivessem surtado, computadores começaram a escrever, enviar e entregar cartas, as máquinas de escrever silenciaram, os carteiros tiraram um peso dos ombros e um pouco da alegria dos cachorros.

Relógios marcavam as horas, não batimentos cardíacos.

Cinemas passavam filmes, não encenações de milagres.

Impressoras imprimiam, copiadoras copiavam, aparelhos de fax enviavam fax – hoje, nestes tempos de transgêneros, uma multifuncional dá conta de tudo sozinha.

O micro-ondas já doura e gratina.

O liquidificador, que só liquidificava, mudou o nome para mixer e agora corta, amassa, mistura, processa, rala, pica, bate, tritura, e por pouco não chuleia, caseia e prega botão.

Só o ferro elétrico continua apenas passando roupa.

Ele resiste, solitário, à degeneração dos costumes.

Até os óculos enxergaram que o fim estava próximo, com as lentes descartáveis, e começaram a fotografar, filmar, ensinar o caminho, mandar e-mail.

Em vão.

Os óculos morrerão como morreram o monóculo, o pincenê, o telex, a antena interna, pager, disquete, fita k7, orelhão, ficha de orelhão, lâmpada incandescente, mimeógrafo, bala Soft, goma arábica, revólver de espoleta, anágua, bomba de flit, Emulsão de Scott, cinto de castidade.

Fogões não precisam mais de fogo.
Geladeiras degelam sozinhas.

Quando nada mais for o que era, nos restará o ferro elétrico como prova de fidelidade aos princípios, como exemplo de dedicação exclusiva, de fé inabalável no destino.

Pode soltar vapor pelas ventas, ter dezoito temperaturas, base de teflon, recipiente para amaciante, design aerodinâmico, funcionar com energia solar, não importa.

Não há ideologia de gênero que o faça tirar fotos.
Mandar mensagens de voz.
Pagar contas.
Curtir comentários.

Quando nenhum tecido amarrotar, ou quando roupa amarrotada virar moda, o ferro de passar cairá de pé.

Deixará o mundo pela porta da frente, de cabeça erguida e com a consciência tranquila de jamais ter se rendido.

(publicado originalmente em agosto de 2017)