segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Figueiredo Pimentel (O Dr. Grilo)


Filho de um simples operário, Carolino lembrou-se um dia de se intitular adivinho. 

Era um moço esperto como poucos, e viu que este mundo era dos espertalhões. Anunciou que curava todas as doenças e que era capaz de adivinhar qualquer segredo que houvesse.

Lembrando-se, porém, que ninguém é profeta em sua terra, Carolino mudou-se da cidade. Foi residir na capital do reino, onde toda a gente o conhecia por Dr. Grilo, em vista da sua imensa altura e extraordinária magreza.

Em pouco tempo, o Dr. Grilo tornou-se célebre. Com sua charlatanice, conseguia coisas maravilhosas.

Sucedeu, entretanto, que o rei, sabendo daquilo, mandou chamá-lo ao palácio.

O Dr. Grilo para lá se dirigiu, tremendo de susto, sabendo que o soberano era malvado, e que com ele ninguém brincava.

Apresentando-lhe a mão fechada, ordenou-lhe sua majestade que dissesse o que era que ali se encontrava.

Vendo-se encurralado, o rapaz exclamou:

— Ah! Grilo! em que mãos estás metido?

— É verdade. – disse o rei abrindo a mão. – É mesmo um grilo que tenho aqui.

Tempos depois, o monarca o fez comparecer novamente à sua presença.

— De que bicho é este sangue? – indagou, apresentando um frasquinho.

O adivinho, desesperado, não tendo outra coisa que fazer, disse:

— Aí é que a porca torce o rabo.

— É de porca mesmo. Adivinhaste! – disse o rei.

Passado um mês, como prosseguissem os sucessos assombrosos do rapaz, o soberano mandou que o trouxessem pela terceira vez.

Ordenou-lhe sob pena de morte, que descobrisse os ladrões de um tesouro real.

Os verdadeiros gatunos, que eram três criados do paço, receando que o Dr. Grilo de fato adivinhasse, foram ter com ele e suplicaram-lhe que os não delatasse.

O rapaz, sem perda de tempo, denunciou-os ao rei.

Grilo foi nomeado, então, médico do hospital militar.

Havia nessa ocasião uma grande epidemia que se espalhava entre os soldados, sem que médico algum soubesse descobrir o que era.

Assim que foi nomeado, o falso doutor dirigiu-se à enfermaria, e declarou que, no dia seguinte, iria autopsiar todos os enfermos, mesmo os vivos.

Pela manhã estavam todos bons, e o hospital inteiramente vazio, pois os soldados nada tinham, fingindo-se doentes, a fim de não irem para a guerra.

O rei, acreditando na ciência de Carolino deu-lhe carta de nobreza e grandes riquezas.

Fonte: Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público. 

Olavo Bilac (Um homem)

Desde a véspera, havia grande alegria no colégio. Fechadas as aulas, o saguão estava cheio de canastras e malas, já arrumadas. Pelos corredores, numa vozeria alegre, andavam os alunos, em grupos. Aquele severo edifício, que era o terror dos calouros, pelo seu silêncio e pela sua tristeza, durante a época dos trabalhos, estava agora transformado. Folhagens de mangueira atapetavam ainda o salão de estudo, cujas paredes desapareciam sob a profusão das bandeiras, das cortinas, dos arcos verdes. Realizara-se ali, na véspera, a distribuição dos prêmios. Muitos alunos tinham já partido. Os que ainda esperavam que os viessem buscar, tinham os olhos brilhantes de alegria e de impaciência.

Férias! Férias! Quando, depois da distribuição de prêmios, a sineta do colégio, num repique festivo, anunciou àqueles pequenos corações o fim da sua prisão de um ano, todos eles se dilataram, antegozando já os dias de liberdade e de ventura, que os esperavam em casa, junto das famílias, longe da tristeza daqueles refeitórios e daqueles dormitórios imensos e frios.

Mas, no meio da alegria geral, Jorge, um menino de dez anos, encostado a uma janela, meditava. Recebera os melhores prêmios. Lá os tinha, cuidadosamente guardados na mala. Lembrava-se das palavras de louvor que ouvira, quando o diretor lhe entregara os dois livros ilustrados e a grande coroa de mérito. Mas lembrava-se também de que, ouvindo aqueles elogios do mestre e aquelas palavras entusiásticas que saudavam os seus triunfos, sentia o coração apertado, cheio de uma grande tristeza, e somente a custo continha as lágrimas que lhe cresciam nos olhos. 

Todos os outros voltando de receber os prêmios, passavam entre os companheiros com a face corada de orgulho. Jorge, porém, ficara triste. E triste estava ainda agora, mais triste do que, se, tendo recebido repreensões em vez de prêmios, fosse apontado como o mais vadio do ano.

Ninguém viera assistir à sua vitória... Nos outros anos, vinha sempre seu pai, um velho que chorava como uma criança, quando beijava o filho, ao fim desses dez meses de separação. E Jorge lembrava-se das perguntas sem conta que lhe fazia então, das notícias que pedia da mamãe, e da maninha, e dos animais domésticos, e dos criados, e de toda aquela vida da casa, tão conhecida e tão profundamente amada...

Mas, desta vez, ninguém viera. Pela primeira vez, passara Jorge, no imenso e frio dormitório do colégio, essa primeira noite de férias, que costumava ser a primeira noite de sua felicidade anual.

E ninguém vinha! Todos os companheiros saíam. No saguão, iam diminuindo as rumas das malas e das canastras. Poucos alunos restavam... 

Ninguém vinha!

Jorge fechou o rosto nas mãos e desatou a chorar.

De repente a voz de um bedel gritou:

— Número 36!

Era ele! Jorge voltou-se, de um salto, correu, já certo de ir ver seu pai, já esquecido do quanto sofrera, já pronto para se atirar, como um louco, de encontro ao peito do velho. Mas deteve-se, assustado. Quem o vinha buscar era um desconhecido, — um homem alto e magro, fisionomia dura, de gestos secos, e de poucas palavras. Jorge despediu-se do diretor, e saiu com ele.

Quis interrogá-lo. Soube apenas que o pai adoecera, e mandara pedir ao seu correspondente no Rio de Janeiro que se encarregasse de mandar para a roça o menino. Mais nada.

E nessa noite, num escuro e feio quarto de casa de comércio, Jorge não dormiu. Sentia-se tão só! Tão só! Um pressentimento cruel lhe enchia a alma de terror. E, de madrugada, quando o vieram chamar para tomar o trem, ele ainda soluçava com a cabeça enterrada no travesseiro.

Com que alegria fizera em outros anos essa viagem! O trem voava, alucinadamente... mas Jorge ainda o amaldiçoava, achando-o lento e aborrecido. E, respirando o ar fresco da manhã, vendo as montanhas que pareciam galopar em sentido oposto ao do trem, pensava nos beijos com que cobria a face da mamãe, e no rodopio de júbilo supremo em que arrastaria a irmã, e nos dias calmos que se seguiriam...

Mas, nesta triste madrugada, até o céu era outro. Chovia. Uma grande mágoa cobria e enfeiava a natureza. As árvores molhadas, gotejantes, vistas de relance, parecia que choravam. Jorge, cansado da noite de insônia, adormeceu, ao lado do caixeiro da casa comercial, que fumava, indiferente, lendo um jornal.

Houve uma parada brusca do trem. O menino acordou. O caixeiro sacudia-o. Tinham chegado. E foi com o coração batendo precipitadamente que Jorge subiu para o troleibus que o esperava na estação, e fez a viagem, por aquela estrada tão conhecida, — entre árvores familiares que guardavam em cada folha uma recordação.

Na porteira da fazenda, ninguém o esperava. A cancela rangeu soturnamente, surdamente... Aquela cancela! Aquela cancela de traves pintadas de verde, através das quais, nos outros anos, costumava ele ver o rosto ansioso da mamãe todo iluminado de um sorriso, e a cabeça fulgurante da irmã em que os cabelos louros brilhavam como o resplendor de um anjo...

Entrou. Dentro do seu coração de criança já a verdade terrível estava palpitando. Já o seu cérebro de dez anos adivinhara tudo... por isso não teve uma palavra, quando viu, toda coberta de luto, a mamãe que lhe abria os braços chorando. Precipitou-se nesse adorado seio, tremendo, com soluços que o afogavam. E, como, ao seu lado, a maninha também chorava, Jorge, como um homem feito, começou a acariciar-lhe a face, dando-lhe beijos, dizendo-lhe palavras doces, que, daí a pouco, faziam a menina sorrir, na sua inocente alegria de seis anos...

O pai morrera. Toda a casa tinha ainda o pavor e o espanto desse desastre recente. Jorge foi buscar, dentro da mala, os seus prêmios, — os dois livros grandes, ricamente encadernados, e a grande coroa de mérito.

Foi até o gabinete do pai. Lá estava a sua secretária, larga e severa. Sobre ela, pregado à parede, o retrato do velho sorria. Jorge colocou sobre a mesa as recompensas de seu trabalho, como se quisesse mostrar ao retrato do pai que não desprezara os seus conselhos.

Mas voltou-se, ouvindo um barulho de choro. Era a mãe que entrava, toda de luto, e que o abraçava, dizendo:

— Não temos mais ninguém, meu filho! Não temos mais ninguém neste mundo!

Jorge aprumou o corpo, e, com os olhos enxutos e a bela face tranquila, perguntou:

— E então eu, mamãe? E então eu não sou um homem?

E havia na face e na voz desse menino de dez anos uma tal resolução de uma tal coragem que a velha senhora, já sem chorar, teve nos lábios um sorriso de orgulho. Beijou a testa do filho. E traçando, com a mão direita, sobre ele, uma cruz, murmurou:

— Tu és um homem, meu filho! Deus te abençoe, meu filho!

Fonte: Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios. 1906. Disponível em Domínio Público.

domingo, 17 de novembro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 65: Meus ideais

 

José Feldman (O Último Suspiro de Mia)


Para Ayllin (2001-2016), minha princesa guerreira. 

Oh, amiga leal, tua ausência é um tormento,
teu miado é um canto que não se apaga,
e a vida, sem ti é um triste lamento.
Nos dias nublados a dor é uma chaga,
em cada lembrança, um doce momento,
que me abraça e em lágrimas se embriaga.

Os nomes são fictícios, mas a história foi real.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Na esquina de uma rua movimentada, sob a sombra de um velho carvalho, havia uma gata chamada Mia. Ela era apenas um filhote quando a vida a presenteou com uma dura realidade: o abandono. Junto com seu irmão, Max, Mia enfrentava o mundo desconhecido, cheio de perigos e solidão. Os dois se aconchegavam em caixas de papelão, buscando calor e proteção um no outro. Mas, à medida que os dias passavam, a vida na rua tornava-se cada vez mais insuportável.

Certa manhã, um casal, Giuseppe e Erin, que passava por ali notou os dois gatinhos. Erin, a mulher, de olhos suaves e coração gentil, não conseguiu resistir. “Olha, amor! Precisamos ajudar!” disse ela, apontando para os filhotes trêmulos. Giuseppe , que sempre teve um carinho especial pelos animais, concordou. Eles se aproximaram e, com cuidado, pegaram Mia e Max, levando-os para casa.

O novo lar era um lugar acolhedor. Mia e Max foram recebidos com carinho, comida e um espaço quentinho para dormir. Eles logo se adaptaram, explorando cada canto da casa, enquanto o casal se tornava a família que nunca souberam que precisavam.

Mas a felicidade não durou muito. Dois anos depois, Max começou a apresentar problemas de saúde. Giuseppe e Erin fizeram o possível para cuidar dele, levando-o ao veterinário, mas infelizmente a doença venceu a batalha. Mia estava ao lado do irmão quando ele deu seu último suspiro. A dor da perda foi insuportável. Ela não entendia por que seu pequeno mundo havia desmoronado tão rapidamente.

Com a partida de Max, a vida de Mia se transformou em um luto silencioso. O calor do lar agora parecia gelado. Ela se afastou de tudo e todos, passando horas em um canto escuro da casa. O casal, preocupado, tentava animá-la, mas a alegria que antes preenchia o lar havia se dissipado. Ela não parecia mais ser a mesma gata brincalhona.

Foi Giuseppe quem mais se dedicou a cuidar dela. Ele a cercou de amor, tentando atrair sua atenção com brincadeiras e petiscos. 

“Mia, minha querida, você ainda tem a mim”, ele dizia, acariciando seu pelo macio. Com o tempo, ela começou a reagir, mas apenas em momentos fugazes. Ele sentava-se ao seu lado, contando histórias, e afagando seus pelos. 

Com o passar dos meses, Mia começou a aceitar a presença dele, mas a tristeza nunca a abandonou por completo.

Giuseppe se tornara um amigo dedicado, compreendendo que a cura de Mia precisava vir do seu próprio ritmo. 

Ele sempre dizia: “Estamos juntos nessa, meu amor.” E, assim, um novo laço foi formado, uma amizade silenciosa, mas profunda.

Os anos se passaram, e Mia envelheceu. Já não era mais a gata ágil e brincalhona que um dia foi. Com 15 anos, ela começou a enfraquecer. 

Giuseppe, agora mais velho também, percebeu que o tempo estava se esgotando. Ele se dedicou ainda mais a cuidar dela, alimentando-a com carinho e dando-lhe amor nos momentos mais difíceis. 

“Você é minha irmã, e eu estarei com você até o fim”, prometeu ele, segurando-a em seus braços.

Mia se aninhava em seu colo, buscando conforto. Giuseppe se lembrava de cada amassada de pão, cada momento feliz que passaram juntos, e seu coração se apertava ao pensar que tudo isso estava chegando ao fim.

Certa manhã, Giuseppe acordou e percebeu que Mia não havia se levantado. Ele se aproximou e viu que ela estava mais fraca do que nunca. Com delicadeza, a pegou no colo, acariciando seu pelo, enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto. 

“Você é tudo para mim, Mia. Eu te amo tanto”, ele sussurrou, com a voz embargada.

Enquanto Mia respirava lentamente, ele ofereceu um pouco de comida, ajudando-a a comer. Mas, naquela manhã, ela parecia tão cansada. Seu olhar, antes vibrante, agora estava distante. Giuseppe, com o coração pesado, sabia que o momento estava se aproximando. Ele segurou Mia mais apertado, como se pudesse transmitir todo o amor que sentia através daquele abraço.

E então, em um momento silencioso e sereno, Mia deu seu último suspiro. Giuseppe sentiu seu corpo relaxar em seus braços, e a dor da perda o atingiu como uma onda devastadora. Ele chorou como uma criança, deixando suas lágrimas caírem sobre o pelo dela, enquanto o vazio se instalava em seu coração.

Mia partiu, mas seu espírito permaneceria para sempre na vida de Giuseppe. Ele sabia que havia amado e sido amado de uma maneira pura e incondicional. A dor da perda seria eterna, mas as memórias dos momentos felizes que passaram juntos seriam seu consolo.

A casa, agora silenciosa, era um lembrete do amor que um dia habitou aqueles espaços. Giuseppe prometeu nunca esquecer a gata que entrou em sua vida em meio à dor e encontrou um lar. Ele sabia que, embora Mia não estivesse mais ali fisicamente, seu amor e a amizade que compartilharam viveriam para sempre em seu coração.

Fontes: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Meta, do Whatsapp

Vereda da Poesia = 160 =


Trova de
ÁTILA SILVEIRA BRASIL
Cornélio Procópio/PR

Velha foto esmaecida
deixou lágrima de herança!
Hoje a vejo colorida
pelo cristal da lembrança!
= = = = = =

Folclore Brasileiro em Versos de
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

Matinta Pereira

Na bruma da noite, um canto a soar,
Matinta Pereira, sombra a vagar,
com penas de gaivota e mistérios a contar,
guardiã das almas, seu destino a traçar.

Canta para os mortos, em lamento profundo,
e em cada sussurro, um eco fecundo,
protege os perdidos, os que não têm voz,
e em seu olhar sábio, a dor se faz feroz.

Mas quem a desafia, deve ter temor,
pois a força da bruxa é de um grande amor,
que luta na sombra, em busca de paz,

e entre os mistérios, a vida se faz,
Matinta, a lenda, com seu eterno clamor,
nas noites de velas, seu canto é fervor.
= = = = = = 

Trova de
LICÍNIO ANTONIO DE ANDRADE
Juiz de Fora/MG

Cai a tarde e a passarada
em gorjeios musicais
é orquestra desafinada
na algazarra dos pardais.
= = = = = = 

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Se

Se eu morresse hoje (agora)
Levaria comigo
A tristeza do seu adeus.

Depois de tudo que restou de mim
Sou a parte de você
Que se desprendeu de mim...
= = = = = = 

Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Das culminâncias da serra
ao mais profundo grotão,
trago viva a minha terra,
dentro do meu coração!
= = = = = = 

Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

A Rua dos Cata-ventos (I)

Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!
= = = = = = = = = 

Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

As cordas desafinadas
e esta voz chegando ao fim!...
São mimos das madrugadas
guardados dentro de mim!
= = = = = = 

Poema de 
APOLÔNIA GASTALDI
Ibirama/SC

O vento
 
Um dia
bem à tardinha
bate  o  vento
a viração 
e
varre  ligeiro
as  folhas  secas  do  chão
 
Olhei bem aquela cena
do terreiro limpo
e
então
lembrei todos  os  sonhos
que  eu  tinha 
na  coração.
 
Se  você  tivesse  visto
com os olhos  da  alma
a dor
não teria  arrancado
de  mim
aquele  amor
 
Sonho  com o terreiro  limpo
depois de  uma viração.
Um  amor não mata  outro
o que  nos mata 
é a  dor.
= = = = = = 

Trova humorística de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Arma um barulho no "ninho"
ao ver que a cara-metade
curte um som com o vizinho
em "alta-infidelidade!"
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Oh, tempo!

A rua onde brinquei na meninice,
período mais feliz de minha vida,
só fui revê-la agora, na velhice...
E ali... senti minha alma compungida!

Aquela que implorou que eu não partisse...,
que era tão bela e larga, tão comprida,
como pôde encolher? Foi vigarice
do tempo que a tornou tão espremida?

Meu grande espanto fez-me recordar
do imenso amor da minha juventude,
que então julguei ser o maior do mundo...

Mas quando a vida me obrigou provar
a imensidão daquele amor... Não pude,
tão diminuído estava... E moribundo!
= = = = = = 

Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

O homem é tão insensato,
tanto na farsa delira,
que chega a viver, de fato,
o fato que era mentira!
= = = = = = 

Hino de 
ROSÁRIO DO SUL/RS

Terra fértil de ricas colheitas
de rebanhos e verdes cereais
tua praia de areias eleitas
lembra imenso lençol de cristais

Estribilho: 
Rosário do Sul, Rosário do Sul
Do povo gaúcho contente e feliz
orgulho da gente, cidade bendita
que sonha e palpita no sul do país

O brasão da cidade retrata
as origens que a história traduz
em seus rios, a pureza da prata
sobre o verde à que o ouro dá luz

O rosário, a cabeça de touro
e as armas que em paz hoje estão
simbolizam no verde e no ouro
que Rosário engrandece a nação

Quem o rio contemplar das barrancas
vendo as águas e a vida passar
essas praias de areias tão brancas
dentro d'alma vai sempre levar
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Velha casa, sonho alado
que a saudade hoje remonta
para mostrar meu passado
brincando de faz de conta.
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
SAMBA TRISTE 
(1960) 
Billy Blanco e Baden Powell 

Samba triste 
A gente faz assim 
Eu aqui 
Você longe de mim, de mim 
Alguém se vai 
Saudade vem e fica perto 
Saudade resto de amor 
De amor que não deu certo 

Samba triste 
Que antes eu não fiz 
Só porque 
Eu sempre fui feliz, feliz 
Agora eu sei 
Que toda a vez que o amor existe 
Há sempre um samba triste, meu bem 
Samba que vem de você, amor
= = = = = = = = = = = = = 

Geraldo Pereira (A Sapatilha de Ponta)

Retomo sempre que posso o início de vida de cada uma das minhas filhas, recordando o primeiro choro que ouvi, de cada uma separadamente na sala de parto. Gosto de parar e notar o quanto progrediram! Fabiana chorou logo, Patrícia demorou e levou umas palmadas nas costas, mas pronunciou-se fortemente, fazendo o avô, na sala de espera, dizer: “Pelo choro, será tão inteligente quanto a outra!”. Digressão psicológica tirada, talvez, em conversa de calçada com Sylvio Rabello. Depois, Carolina nem queria sair da barriga, fazendo Jorge Regueira rebuscar o ventre à procura dela, mostrando quando quis e bem entendeu o pé, veio à luz de cabeça para baixo. Chegou e chorou, deu o grito das outras, igual ao de Fabiana e tão estridente quanto o de Patrícia.

Agora, já estão todas mais na frente! Fabiana rodopiando no balé, calçando a sapatilha de ponta. Chega do ensaio, conversa com Catarina e Karina, confessa: “Vou tirar um retrato com a minha sapatilha de ponta!”. Depois, volta-se para mim e define, deseja - isso sim! - substituir a foto de seu quarto de uma bela moça atacando a sapatilha por seu próprio retrato.

Concordo e me disponho a ser o fotógrafo oficial do grupo! 

Patrícia ingressa na adolescência, pelo menos pretende isso e aparece no Shopping Center todos os sábados para fazer o footing, como dizem os do meu tempo, imitando os americanos, e não gosta ela que se fale agora. Vai e volta, anda pra lá e pra cá, paquera de um e de outro lado, mas vez ou outra é tomada pelo desejo infantil, pede dinheiro e monta o cavalinho que sai rodopiando no salão.

Carolina é pixote, agarra-se à boneca, instala-se na casa dos sonhos de criança e tome briga com Catarina. Mas, se Catarina não vier, a boca vai lá embaixo e a chorumela é grande!

São três meninas diferentes, três cabecinhas completamente diversas, uma quase moça, outra forçando a chegada, embora presa na brincadeirada da idade e a pequena, sem saber das paqueras da vida, agarra-se com a boneca e se encanta com as estórias das fadas e das bruxas.

Eu virei motorista, levo Fabiana e trago Patrícia, secretariado, sempre, por Carol, que diz: “Painho! Menina pequena pode ir?”. Se disser que pode ela vai, se falar que não, ela fica, imperturbável, tranquila. É programa de toda ordem, festa de aniversário e festa sem motivo! O carro abarrotado, gente por todo lado! Aí, Catarina me explica que Pedro – o pai –, não pôde vir, ocupado como está no Palácio do Governo. Digo eu, então, a ela: “Seu pai é um fidalgo! Nasceu em tempo errado! Elegante como um Prefeito, mas simples como Pedro, o pescador da Galileia!”. 

Ela não entende bem, mas garante que vai dizer ao pai!

Fabiana divagando, qual bailarina no palco, confessa ao meu ouvido, satisfeita e vibrante, quase gritando: “Painho! Quebrei a sapatilha de ponta!”. “Ah, meu Deus, não me diga uma coisa dessa!”. Tem que quebrar, mesmo, é a explicação que recebo!

Eis a vida de pai, em três idades diferentes!

(Texto escrito na adolescência da filha mais velha, na pré-adolescência da segunda filha e na infância da terceira).

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Humberto de Campos (Punição)


Há mulheres que você nunca deve se casar. Temos que deixá-las se casar com seus amigos –  Alfred Capus.

Molemente estirado no leito revolto, com a farta cabeleira de ouro em desalinho sobre o travesseiro em que se achava impresso ainda, o sinal de outra cabeça, a linda Julieta Erst acompanha com os olhos os movimentos do Dr. Cardoso Simas, que abotoa a botina, tranquilamente, com o pé sobre uma cadeira. Olhando-o, assim, de costas, ela examina, desvanecida, a máscula formosura do amante jovem, cuja harmonia de espáduas se patenteia através da camisa de seda creme sob a cruz grená do suspensório quando, de repente, a sua saudade lhe dita uma queixa:

- Vê, só, Eduardo, o que foi o resultado daquele arrufo em nossa vida! Se tu não tens brigado comigo, naquela tarde, nós nos teríamos casado, e, em vez deste amor cortado de sustos, de incertezas, de pecados, viveríamos, agora, um junto do outro, sem temores nem pesares!

O rapaz continua, de costas, abotoando as botinas e a moça insiste, aconchegando o lençol, com os olhos nele:

- Seria uma vida ideal; não achas?

- Talvez... - aventura o moço.

- Talvez por quê?

E ele, explicando-se, displicente:

- Por que? Porque, se eu me tivesse casado contigo, estaria, agora, no escritório, enquanto que o Erst se acharia, talvez, aqui, na minha ausência, amarrando os sapatos!

E, sem olhar para trás, continua, em silêncio, abotoando a botina…

Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

sábado, 16 de novembro de 2024

Jerson Brito (Asas da poesia) 01

 

José Feldman (Epopeia de Lysandra, de Malta)


Canto I: A Terra de Malta

Nas águas azuis do Mediterrâneo,  
ergue-se Malta, ilha de história e beleza.  
Das ondas surgem lendas de valentes,  
e entre elas, brilha Lysandra, para a defesa.

Filha de marinheiros, com o sol no cabelo,  
cresceu ouvindo contos de bravura e amor.  
Em cada enseada, uma nova aventura,  
em cada rocha, o eco de um clamor.

Mas a paz da ilha estava ameaçada,  
um dragão de fogo despertara,  
com escamas de ferro e garras afiadas,  
a sombra do medo a ilha espalhara.

 Canto II: O Chamado à Ação

O povo, em desespero, clamou por um herói,  
mas Lysandra, com coragem no peito,  
decidiu que o destino não seria em vão,  
e que a vitória viria com seu feito.

Armou-se com uma espada ancestral,  
forjada nas chamas de um amor perdido.  
Na noite escura, sob as estrelas,  
ela partiu, seu destino querido.

Canto III: O Encontro com o Sábio

Nas montanhas altas, onde o vento uiva,  
encontrou um sábio, de olhar profundo.  
"Você busca o dragão, mas não é só isso,"  
disse ele, com voz que reverberava no mundo.

"O maior combate é dentro de você,  
os dragões que teme são seus receios.  
Domine-os, e com luz em seu ser,  
a vitória será, então, sua, sem rodeios."

Canto IV: A Preparação

Lysandra ouviu, absorveu as palavras,  
e em cada treinamento, cresceu mais forte.  
Com as danças das sombras, aprendeu a lutar,  
e com cada golpe, aproximou-se da sorte.

As noites eram longas, mas seu espírito ardia,  
e os ventos traziam histórias de coragem.  
A ilha a apoiava, suas vozes unidas,  
e Lysandra tornou-se a esperança da paisagem.

Canto V: O Confronto

Finalmente, chegou o dia fatídico,  
o dragão aguardava, a respiração pesada.  
As chamas dançavam, o céu se escurecia,  
mas a heroína, com firmeza, não estava amedrontada.

Ela avançou, espada em punho,  
o rugido do dragão ecoou na noite,  
mas a luz em seu coração iluminou o caminho,  
e com fé inquebrantável desafiou o açoite.

Canto VI: A Batalha

A batalha foi feroz, o chão tremia,  
chamas e aço se encontravam no ar.  
Mas Lysandra, com astúcia e destreza,  
desferiu golpes que fizeram o dragão hesitar.

"Eu não temo você, criatura da noite!  
a força que carrego é maior que a dor."  
Com um golpe final, a luz rompeu a escuridão,  
e a ilha renasceu, no calor do amor.

Canto VII: O Retorno Triunfante

Com o dragão derrotado, Lysandra voltou,  
aplaudida pelo povo, um hino de glória.  
As crianças dançavam, os velhos sorrindo,  
cada um celebrando a nova história.

Mas Lysandra, humilde, não buscou a fama,  
sabia que a verdadeira vitória estava na união.  
Construiu um templo, um lugar de encontro,  
onde as lendas de coragem ecoariam em canção.

Canto VIII: O Legado Eterno

As gerações passaram, mas a lenda cresceu,  
o espírito de Lysandra vive em cada coração.  
Malta, em suas praias, ainda canta,  
a heroína que lutou pela união.

E assim, a epopeia se perpetua,  
um símbolo de força, amor e esperança.  
Que cada alma saiba que, como Lysandra,  
a verdadeira bravura é a luz que se lança.

Epílogo: A Lenda de Lysandra

E nas noites estreladas, quando o vento sopra,  
as ondas sussurram seu nome com fervor.  
Lysandra de Malta, heroína eterna,  
guardiã da paz, da esperança e do amor .

Fontes: José Feldman. Devaneios poéticos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Aparecido Raimundo de Souza (De um simples ato de beijar uma estranha no meio da rua)

 
ÀS VEZES, a vida apronta das suas e nos surpreende nos momentos mais inesperados. Caminhando pela Avenida Paulista, na altura do MASP, em São Paulo, Eduardo se viu imerso nos sons e atropelos de uma metrópole agitada. Seus passos rápidos denunciavam uma rotina enervante ao tempo em que seu olhar vagava, curioso, pelas faces anônimas que cruzavam num vai e vem desordenado. Foi aí que aconteceu. Ela surgiu como um raio de luz em meio à multidão. Vestida de forma simples, porém com uma elegância impar e um ar de sofisticação, suas emoções cintilavam com um amálgama de mistério e ternura. Eduardo não conseguiu desviar a atenção, sentindo uma discrepância diferente, pesada e inexplicável. 

Então, em um instante que lhe pareceu dulcificado, seus olhares se galantearam por breves segundos. O bastante, para que o mundo ao redor se dissolvesse em uma espécie rara de acolhimento. Sem pensar, sem hesitar, ele se aproximou. Se mediram da cabeça aos pés. Não trocavam palavras. Apenas o silêncio da linguagem do amor pairando acima de suas cabeças.  Antes que ele percebesse, estava tão próximo dela que podia sentir o calor da respiração e até as batidas descompassadas do coração daquela princesa. O beijo aconteceu partindo dele. E ela, se permitiu sem se constranger em meio aos apressados que se esbarravam, uns aos outros, naquela cadência incessante do ir e vir. 

Pelo ato impensado, Eduardo se preparou para levar um tremendo tapa no meio da cara, ou no pior de tudo, ela se revoltasse e chamasse a polícia. Nada disso aconteceu. O beijo foi breve, certeiro e intenso. Fatal. O bastante, para selar um encontro de almas mais do que de lábios. Na verdade, um impulsivo regido por uma força maior que ambos. Durou apenas alguns segundos, e neles, o tempo parecia ter parado. De fato, estancou. Quando se separaram, não houve palavras ofensivas, apenas sorrisos tímidos e o entendimento glamoroso de que algo inexplicável acontecera. Ela, tímida e enrubescida, se afastou. A mão direita cobrindo os lábios, como se pretendesse envolver o beijo não autorizado num gesto de felicidade. 

Dessa forma rápida e rasteira, ela seguiu em frente e voltou a se misturar com o agrupamento que a cada minuto mais e mais se avolumava. Eduardo permaneceu como se voasse sem sair do chão. Seus pés pareciam colados à calçada, em vista daquela sucção espetaculosa. Por algum tempo, ficou ali feito um bobo apalermado, a boca escancarada num entreaberto, se deleitando com o sabor do momento gravado na memória. A vida voltou ao normal. O enxurro (ralé) da massa humana continuou a rolar sem interrupção. O barulho da cidade retomou o seu curso tresloucado. Eduardo sabia que aquele breve gesto de tocar uma fenda bucal ádvena (sic* estrangeiro?), assediada com aquele efêmero beijo, seria algo que carregaria consigo para sempre, como um lembrete de que, mesmo no meio da rotina mais frenética, a impulsividade do surreal havia acontecido e ele estava feliz só de pensar nessa possibilidade. 

Nos dias que se seguiram após o “beijo violado” gualdido (sic* esbanjado?) ao furto desgovernado nos lábios carnudos daquela estranha, ele continuou fazendo o mesmo caminho (fosse indo ou vindo) na esperança de revê-la. Contudo, para seu desassossego, Eduardo nunca mais a encontrou, porém, em seu âmago, ele sabia, ou melhor, tinha certeza que embora tivesse sido um “choque” breve e ligeiro de beiços, o ato, em si, havia marcado a sua vida de uma maneira etérea. Em outras ocasiões cada vez que se embrenhava pela Avenida Paulista, seu afligir renovava aquela possibilidade (ainda que distante) de que um dia veria novamente a pecaminosa pessoinha que mudou todo o seu “eu” interior tanto por dentro, como por fora. 

Nas suas andanças posteriores, incansavelmente buscava por aquele brilho especial, na esperança imorredoura de reviver a estrondosa conexão mágica. Mesmo sem reencontrá-la, o ato de oscular uma deia e sonificada (sic*) mulher em plena Paulista, se tornou um lembrete constante de que, em meio à rotina caótica, e momentos inesperados esses entraves poderiam trazer uma alegria inexplicável e transformar um dia comum em algo extraordinário. Embora não soubesse o nome da teteia, Eduardo alimentava a lembrança imperecível daquele roçar de lábios, como um tesouro, um testemunho silencioso da beleza de um comenos (momento) que a vida, assim do nada, lhe ofereceu de bandeja. 

Quase um mês depois, sabia que o seu sonho de voltar a satisfazer  seus anseios se deliciando com aquela formosa, não mais se repetiria. Cada um seguiu sua própria estrada após aquele abrupto indeliberado. A vida continuou, e às vezes, a mágica está apenas guardada numa efemeridade que não se repete. Apesar disso, Eduardo guardou a sete chaves, a lembrança daquele gesto assarapolhado (atrapalhado), como um tesouro raro, audacioso do ato por ele praticado, ou melhor, de uma loucura que se fez assim, do nada (apesar de real e inesquecível) por razões outras prevaleceu misturado a beleza impar das “topadas” fortuitas que surgem quando menos se espera. 

Lembrava sempre que não trocaram palavras nomes nem contatos. Foi um momento só, um acidental puro e isolado, que não precisava de continuidade para ter significado. Ainda assim, ele sempre se perguntava quem seria aquela deliciosa, de corpo escultural, de rostinho de princesa e como levava a sua vida cotidiana? Por outro lado, esse mistério preservou intacto o sonho audacioso do momento, transformando aquele simples e rápido beijo extorquido em uma lenda pessoal, tipo um conto de fadas para ser lembrado em noites solitárias e dias nublados. Às vezes, a beleza da vida, ou o início de uma paixão avassaladora, está justamente na impossibilidade de voltar atrás, e aquele topar ao acaso, se tornou um símbolo disso – ou seja –, se fez mais que um ato de coragem e bravura, uma espontaneidade que iluminou para sempre, a sua existência cotidiana. 

A vida tem suas próprias maneiras de surpreender. Exatos seis meses depois daquele beijo de cena memorável, Eduardo se fazia sentado na “Bovinu’s Grill" (também na Avenida Paulista) tomando um café tranquilo e folheando um livro, quando sentiu, lá fora, na calçada, um olhar familiar. Ao levantar-se de seus devaneios, Nossa Senhora! Por Deus, lá estava ela, a mesma pérola nacarada, a garota com aquele brilho inesquecível no rostinho de boneca que ele nunca esquecera. Surpresos e encantados, ao se reconhecerem, sorriram um para o outro. Ato contínuo, reavivando e reacendendo a antiga homologia (sic* analogia?) advinda de um simples beijo tomado à força, na marra, atrelado ao gosto das trocas de salivas que os uniram naquele dia distanciado se transfigurando e se fazendo imensurável, um correu de encontro ao outro. 

Dessa vez, ao se “pegarem,” não deixaram que o audacioso  passasse. Se beijaram, em ímpetos soberbos e, em seguida, arranjaram junto ao garçom, um lugar mais reservado lá para os fundos para conversarem E fizeram isso por horas. À medida em que o tempo passava, iam se redescobrindo e o melhor de tudo, se vangloriaram a compartilharem, numa mesma jornada, as suas impudências adormecidas. Aquele reencontro não foi planejado, tampouco premeditado, menos ainda esperado. Aconteceu assim, ao acaso, como se o destino tivesse conspirado para uni-los novamente. Dessa forma, Eduardo e ela (o nome da preciosa era Paloma) se entrecruzaram. Movido por um breve ato impulsivo de beijar uma donzela no meio de uma via pública, essa insânia paranoia contribuiu, sobremaneira, para algo muito maior, provando que, às vezes, a vida agitada em sua conturbação desenfreada, reserva segundas chances para aqueles que se atrevem a seguir os impulsos de seus desejos mais prementes. 

Nesse embalo de mil tons de instantâneos pressurosos, Eduardo e Paloma decidiram não deixar o destino ao acaso. O reencontro marcou definitivamente o início de algo muito especial. Eles passaram a se ver regularmente, redescobrindo o maravilhoso de um amor que a cada dia prosperava para se tornar em algo que não poderia ser medido. De fato, esse manente (constante) se rejuvenesceu e se agigantou por consequência daquele simples beijo que Eduardo roubou sem pensar no que poderia advir depois. Aquela moça, como uma Iracema saída das páginas de José de Alencar, que ele nunca antes havia visto, se fez a sua namorada. Pouco tempo à frente, noivaram e casaram. Hoje, passados dois anos, aquela joia de extremo valor está grávida do primeiro filho. 

O que começou como um encontro abstruso (confuso) de um beijo afanado em pleno reboliço da Avenida Paulista, voou imarcescível (duradouro) para um relacionamento profundo e significativo. A vida deles, por conta, mudou. Guinou 360 graus, descambando para um patamar que nunca poderiam ter previsto. Aquele simples e breve ato de Eduardo beijar uma alienígena no burburinho da Avenida Paulista, se tornou o ponto de partida para uma história inesquecível de amor pleno que desafiou as probabilidades e provou que os momentos mais inesperados podem levar às maiores e bem-aventuradas cartadas de sucesso. Realmente, a vida, às vezes imita as histórias românticas que encontramos nos livros ou vemos nos filmes. 

Na maioria, esses encontros mais significativos surgem de formas, as mais sutis e cotidianas, e no caso de Eduardo, um simples beijo na calçada, no meio da rua, poderia parecer improvável como início de uma bela e insofismável história de amor. Devemos ter em mente, que a beleza da vida está em sua imprevisibilidade. Os entrelaçamentos humanos surgem dos lugares mais inesperados, seja num sorriso trocado no metrô, ou dentro do ônibus, "usque" (em latim: até) uma conversa casual em uma fila de banco ou, quem sabe, um trocar de gestos apaixonados em um café ou dentro de um elevador. É essa incerteza deslumbrante que mantém pulsante a magia eloquente da vida abundante e nos lembra de estarmos sempre abertos para todas as possibilidades que o cotidiano, de uma maneira inverossímil e assombrosa tem a nos oferecer.
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* Nota do blog: (sic) é relativo a palavras inexistentes no dicionário ou sem sentido no parágrafo, talvez por distração do autor.

Fonte: Texto enviado pelo autor