quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Melo Morais Filho (Carnaval) Parte 4, final


Até 1877, a fisionomia do carnaval era mais expansiva, mais popular. Todos os teatros davam bailes; as ruas e praças decoravam-se com amplitude e profusão; carros de máscaras percorriam as ruas; os grupos fantasiados eram inúmeros; e os máscaras isolados faziam rir pela originalidade das ideias, destacando-se pelo espírito.

Enquanto um préstito desfilava e um ou outro grupo mais avultado exibia-se vistoso pela ruas principais, os máscaras de todas as categorias entretinham, em quantidade prodigiosa, todas as atenções.

Sentia-se que a cidade saía fora de sua vida habitual, e que seu aspecto exterior era um reflexo pálido da alegria pública.

Os teatros embandeirados, o comércio das vestimentas, coretos, músicas e rumores generalizados, constituíam o clima do domingo, que, desde as duas horas, transmitia o contágio da loucura à população inteira.

Durante os três dias havia o carnaval das ruas, dos teatros, do Clube, dos salões. Muitos grupos organizaram-se, cada qual com mais elegância e acentuada característica.

A Boêmia, precedendo os Cromáticos, apresentou-se nos teatros com estranho luzimento. O vestuário era o seguinte: blusa de seda, de mangas curtas, franjada de ouro, manoplas de verniz, calção de camurça e justo, botas à Fernando, faixa de cores vivas, argolões de metal nas orelhas, cabeleira crespa, distinguindo-se pelos capacetes encima dos porpássaros, lanternas, quimeras, etc., cujo efeito era admirável.

Recordamo-nos de um desses chicards, que sobre o capacete de couraceiro prussiano ostentava um penacho escarlate e branco, de mais de um metro de altura.

Esses boêmios anunciavam-se pelo grito especial, de que fala Henri Murger. O Clube X, do qual ainda se fala com saudades, compunha-se igualmente de riquíssimos e espirituosos chicards, iniciadores dos carros de ideias, que com tanta vantagem foram apropriados pelas sociedades ulteriores. As damas do Clube X fantasiavam-se com esmero e primavam pelo conjunto das formas. Da passeata que fez o clube, acompanhado de camelos, há muito quem se lembre. O distintivo dos sócios era um C e um X no alto do capacete e nos escudos.

Não nos preocupando de grupos vulgares, falemos de uma antiga sociedade, que retirou-se das folias carnavalescas, porque já não tinha mais louros a colher – os Estudantes de Heidelberg.

E quem eram estes estudantes?

Na primitiva, rapazes do curso médico, alguns empregados públicos, e poucos, mas de boa colocação, do comércio. Esta sociedade não fazia passeatas: dava seus bailes, ou concorria aos do Lírico, Ginásio e S. Pedro.

Pelo pessoal escolhido, percebe-se o sucesso de sua existência. Quando os Estudantes de Heidelberg transpunham os salões, a fina crítica, a intriga espirituosa, a pilhéria inofensiva, entravam em contribuição. As famílias nos camarotes e os máscaras que flanavam nos intervalos da dança, punham-se em guarda para o riso e para o desapontamento. O seu trajar era especial, segundo o estilo universitário. Eis o uniforme: sobrecasaca curta abotoada, calção-camurça, botas de montar, faixa, espada, boné sem aba, mas circulado por larga fita, em que realçavam as cores da bandeira do país ao qual cada um aparentava pertencer. O rei destoava, porque substituía o boné pelo chapéu armado e vestia irrepreensível casaca.

Todos traziam porta-voz, com que atroavam céu e terra. As mulheres que os seguiam, vestidas a capricho e interessantes, ajudavam-lhes a atravessar a noite, no meio das danças e das gargalhadas argentinas. Em qualquer das tardes, máscaras avulsos faziam-se célebres pela originalidade das lembranças.

Um vez apareceu um galo bastante vistoso, que cantava, abrindo as asas, junto a um figurão, que sobre o abdômen deixava ler o seguinte letreiro: Aqui dentro há alguma cousa.

No S. Pedro, no Provisório, depois de ter debicado nas ruas a todo o mundo, apresentou-se um indivíduo, corretamente trajado, vestido à corte, como vulgarmente se diz, de óculos, cabeleira e nariz postiços, de um espírito surpreendente, falando francês, inglês, alemão, italiano e português.

Não houve quem não o admirasse, já pelo chiste, já pela pureza da pronúncia nas línguas em que se exprimia.

Por baixo dos arcos pintados e de luzes; ao açoite das bandeiras suspensas, abalroando-se nos coretos; e, à noite, ao fogo dos archotes, os zés-pereiras, a Morte, de campainha e foice, os princeses de máscara de arame e de papelão, os ranchos com tocatas e os diabinhos de rabos e chifres, agitavam-se, moviam-se, dando a esses quadros um aspecto verdadeiramente encantado.

De súbito, uma banda de música assomava, precedida de fogos de bengala e da multidão dando vivas. Eram as Sumidades, a União Veneziana, os Zuavos, ou qualquer outra sociedade, conforme os tempos, que na terça-feira enterrava o carnaval...

Nos esquifes, com rodelas de limão, ouriçados de palitos, guarnecidos de archotes, carregados ao ombro, os leitões assados, os perus, as galinhas e o fiambre para as ceias no teatro.

O féretro parava em determinados lugares, entoava-se um De profundis, tocavam-se marchas fúnebres, recitavam-se discursos cômicos, poesias disparatadas, em honra do carnaval e da comezaina.

Estas festas foram mais ou menos assim até o ano de sessenta e tantos, em que a Pauliceia Vagabunda compareceu nos festejos.

Foi este o último carnaval clássico, estrondoso. O Imperador desceu, na última tarde, ao paço da cidade.

À exceção do Congresso e da União Veneziana, as mais sociedades existiam: parte da população mascarava-se, e os teatros e clubes eram paraísos artificiais.

Sem podermos firmar as datas da fundação das sociedades de hoje, recordamo-nos de um fato que determinou o renascimento do carnaval, que ia em decadência: o incêndio de uma farmácia ou drogaria da Rua Direita, no ano de 1861. Os teatros estavam cheios e a notícia espalhou-se. Os Zuavos, supondo que o fogo se havia declarado em casa de um dos sócios, para lá correram, e, com o seu uniforme carnavalesco, auxiliando o corpo de bombeiros, portaram-se com a maior valentia. Extinto o incêndio, levantaram-se para eles as labaredas do prestígio. Novos sócios entraram; o entusiasmo aviventou-se, e não longe desse batismo de fogo, que lhes consagrou o nome, receberam no crisma de Momo o de Tenentes do Diabo.

Nos carnavais posteriores a 1869, uma outra geração, trazendo consigo novas ideias, veio ocupar o cenário pouco povoado do passado e assistir à agonia das derradeiras associações que faleciam.

Da altura de suas aspirações, recolheu o que lhe pareceu útil, acumulando os cabedais de que presentemente dispõe.

Os Fenianos, grupo dissidente dos Tenentes do Diabo, exemplificam o que dizemos.

A partir de 1870, o carnaval concentrou-se nas grande sociedades, absorvendo os máscaras. Pequenos ranchos, foliões dispersos e de pontos distantes, para verem o desfilar de um préstito suntuoso, afluíam aos lugares indicados no itinerário, abandonando assim seus passeios, seus centros, seu meio; mas como tanto gozavam fantasiados como sem disfarce, opinaram pela conveniência, e o máscara de ontem tornou-se o curioso de hoje.

Não sabemos se com isso ganhou ou perdeu o carnaval; como regozijo popular, não é mais o que era. Os teatros, ficando vazios, porque as cavernas e as casas próprias locupletavam-se, apagaram seus lustres, fecharam suas portas; e os curiosos, depois que as sociedades passam, voltam aos seus lares, como nos dias comuns.

Entretanto, cumpre confessar que os Democráticos, Fenianos e Tenentes são justamente dignos da gloriosa reputação que lhes dispensa o público, reputação adquirida pelo espírito sutil de suas ideias, pelo aparato grandioso de seus préstitos.

Margeando as correntes modernas, substituíram as cavalgadas numerosas, os carros de máscaras, os personagens disfarçados, a mascarada geral, pelas suas custosas bandas de música, pelas alegorias do porta-estandarte, pelos carros de ideias, cada qual mais espirituoso e original, ou mais rico.

Debaixo das rodas destes carros, entretanto, ficaram esmagados os  arlequins, os polichinelos e outros tipos, que outrora tanto nos divertiram. E a alusão deixou de ser pessoal para abranger um círculo, um fato, uma ação. Aplaudidas muitas das suas críticas pela felicidade das reproduções, os acontecimentos mais ridículos e frisantes do ano são transportados para aqueles cenários ambulantes como para um baixo-relevo executado por mestre. O povo ri-se a bom rir, porque, conhecendo o assunto, pode dar aos personagens os nomes autênticos. Depois das ruidosas Alegorias em que todas as sociedades se empenham por exceder-se, seguem-se os carros de ideias, em que os Fenianos, Democráticos e Tenentes têm-se coroado de lauréis, na realidade deslumbrantes. A passagem de Vênus, em que aparecia um célebre astrônomo armado de telescópio; A mancha de Júpiter, alusão magnífica à escravidão; Braços à lavoura, As barraquinhas, a Questão dos bispos, etc., conquistaram tão vivas manifestações que a impressão produzida restou inapagável na memória pública.

Os Fenianos, os Tenentes e os Democráticos, empunhando o cetro da tradição, representam atualmente o carnaval do Rio de Janeiro.

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 481

 


Marcelo Spalding (Cédula viva)


Faltavam seis dias para o fim do mês, quinze para a chegada do bebê, doze prestações para sair do cheque especial e dez minutos para fechar o banco. Ele corre em meio à multidão, tropeça, levanta. Entra na agência exausto. O gerente demora vinte minutos para o receber e dois para lhe negar o empréstimo: primeiro precisava quitar o cheque especial. Chega em casa cabisbaixo, evita o olhar da esposa. No quarto do bebê, o pintor o espera. Suado, cansado, um curativo no polegar. O serviço está pronto, diz, cabeça baixa. Custava cento e cinco mas só recebeu cinquenta.

O trabalhador entra no primeiro ônibus. Por sorte, não estava cheio. Senta-se ao lado de uma senhora e tira do bolso a cédula. O curativo parece ceder, suja a nota com um pouco de sangue. Repara pela primeira vez naquela figura feminina sorrindo para ele e é como se todo o seu dia passasse num segundo: acordar, beijar a esposa, lavar o rosto, escovar os dentes, tomar um café frio, chegar na firma, ver se tem pedidos, lamentar a falta de trabalho, jogar sinuca, atender o celular, ir correndo comprar as tintas, pintar o quarto do bebê, machucar o dedão arrastando o berço, pintar o berço, o armário, receber cinqüenta reais. Seria muito ou pouco? Ouve gritos, o ônibus trava: é um assalto.

Oitocentos e dez, oitocentos e quinze, um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oitocentos e vinte e dois!, conta o bandido em voz baixa. Põe as carteiras e os documentos todos num saco de lixo preto e ateia fogo. Junta as notas por cor, dobra num bolo só e enfia no bolso do casaco. No caminho para casa, tem vontade de uma bebida, um vinho especial para ele e a esposa naquela noite quente. Separa uma nota de cinquenta, entra num mercado vazio. A moça do caixa acompanha seus movimentos com angústia. Chama o segurança, que se posta ao lado dela. O bandido escolhe o tinto mais caro e se dirige ao caixa. A moça e o segurança o observam, desconfiados. Ele quer ser simpático, pergunta porque nunca tinha visto mulher tão bonita pela vila. A moça não responde, pega a nota com nojo, verifica com atenção. Encontra uma pequena mancha de sangue. Olha para o sorriso nervoso do outro, as mãos sempre no bolso. Chama o segurança e acusa a nota de ser falsa. O bandido poderia ter sacado o revólver e descarregado raiva e cartucho ali mesmo. Preferiu a tristeza. Jogou a cédula no chão e cuspiu sobre ela.

A cédula amanheceu quase no mesmo lugar onde o bandido a jogou. O cuspe fora absorvido mas a mancha de sangue ainda resistia no seu cantinho. Ali perto, mãe e filho saíam de mãos dadas para a escola. Ela, passo apressado, teria deixado a nota para trás não fosse o menino gritar. Voltaram e recolheram o dinheiro. O menino disse que deveriam achar o dono da nota, mas ela respondeu que se a nota estava ali é porque não tinha dono. O menino desconfiou, insistiu, e ela comprou a anuência da criança lhe prometendo um presente. Os olhinhos dele brilharam. Nem foram à escola: ele escolheu uma miniatura de Ferrari com fricção e ela sorriu quando a moça do caixa lhe deu trinta reais de troco. A corrupção do filho lhe custara vinte.

A moça não sonhava em ser caixa de loja quando tinha a idade do menino. Lembrava disso enquanto via ele se afastar, mãos grudadas na Ferrari. Queria ser atriz de televisão ou professora, mas cresceu demais e engordou além da conta para uma atriz. Professora os pais não deixaram ser. Acabou espremida entre o fim do colégio e o não passar no vestibular. Sua maior alegria era ser caixa de uma loja de brinquedos, odiou ter trabalhado em banco, chegava em casa com as mãos doendo e os dedos sujos de tanto contar essas malditas cédulas. O menino já ia longe e ela ainda segurava os cinquenta reais, os manchados e sujos reais, pensando no dia em que teria um filho e uma nota dessas para comprar um presente.

Uma bicicleta. Um homem comprava uma bicicleta. A moça que queria ser atriz e não pôde porque engordou muito e queria ser professora e não pôde porque os pais não deixaram sorriu para o homem que comprava uma bicicleta. Ele perguntou se aceitavam cartão de crédito. Ela sorriu novamente mas disse que infelizmente a loja não trabalhava com aquela bandeira. Ele ironizou e tirou da bolsa uma carteira de couro escuro. Pôs quatrocentos reais em notas de cem diante da moça. Ela, perdida na lembrança do tempo em que pela última vez andou de bicicleta, demorou para pegar as notas. Impaciente, o homem perguntou: nunca viu, né? A moça ficou sem graça, registrou a compra e deu o troco: cinquenta e três. Ele saiu sem agradecer.

O celular toca num ritmo frenético. O jovem atende aos gritos, enche a casa de gírias. Beleza, combinado, tô indo praí. Sobe as escadas de dois em dois degraus e encontra o pai fazendo a barba. Tô precisando de grana, ele diz. O homem se concentra na gilete, termina aquele movimento e pergunta o que o filho fez com a mesada. Qual é, meu velho, vai dar uma de durão pra cima de mim? Pro pirralho tu compra bicicletinha... Bate a espuma da gilete na pia, olha para o filho e pede que abra sua carteira e pegue o que tiver ali. O jovem vai e volta reclamando: pô, meu velho, só isso? Cinquenta e três pila? O pai não responde, ocupado com um novo movimento da gilete. O garoto insiste: então pelo menos empresta o carro, velho.

Não há esquina em que ele não desacelere para ver as meninas. Buzina, fica imaginando o que vai fazer se uma delas entrar no carro e lembra que não tem dinheiro nem para um bom restaurante nem para um motel. Reclama do pai, onde já se viu só andar com cinquenta pila na carteira. Para na sinaleira e aproveita pra conferir de novo. Pega a cédula levemente manchada de sangue, amassada, pegajosa. Pensa, pensa e, como se achasse a solução, sorri para a figura feminina. Quando o sinal abre, sai cantando pneu. Engata a segunda, a terceira, a quarta, a quinta. Abre os vidros, aumenta o volume do rádio, acelera. Buzina para um grupo de prostitutas. Desvia de um ônibus, troca de faixa, ultrapassa o amarelo. A cédula, viva, é a primeira a voar do carro quando ele capota em frente a um banco.

Fonte:
Site do autor.

Chico Anysio (Sábado de Aleluia)


Tomava dois banhos por ano, na fonte da praça.

— Sapucaia! — os garotos gritavam, quando ele passava, exalando um mau cheiro desagradabilíssimo.

Não respondia mal aos meninos. Limitava-se a sorrir, quando lhe gritavam o apelido. Talvez por isso os gritos se repetissem pela rua inteira, à sua passagem malcheirosa.

— Sapucaia!

Não era velho. Poderia ter 35 anos, calculando-se por cima. Os cabelos crescidos, sebosos, caíam-lhe pelos ombros, misturavam-se com a barba nunca cortada; o bigode, jamais aparado, entrando pela boca. A roupa, um amontoado de molambos, rasgões nas calças, sapatos furados.

Aqui e ali alguém se apiedava e lhe dava um prato de comida, que ele devorava como bicho. Não usava a colher que lhe estendiam. Comia com a mão, fazendo bocados disformes.

No sábado de Aleluia os meninos fizeram um Judas que era um réplica dele. De barba e bigode, além da cabeleira onde nunca um pente deslizara, supunha-se.

De longe, viu-se malhado. Os garotos corriam e davam pauladas no boneco de pano que era ele. Furavam os olhos do Judas, rasgavam-lhe a roupa, deixando a palha saindo. De longe, ele via a malhação do Judas, quase sofrendo na carne o que acontecia com o bruxo pregado no poste. Doeu-lhe muito quando atearam fogo ao boneco. Os gritos da garotada saudando a queimação do Judas feriram-lhe os tímpanos. Com as mãos nos ouvidos, correu. Escondeu-se debaixo da ponte, canto onde morava, e chorou.

Um cachorro velho, cego de um olho, aproximou-se. Lambeu-lhe a mão, e isto lhe deu conforto. Puxou o cachorro, estreitando-o nos braços. O cachorro deixou-se ficar ali, esquecido, livre do frio que vinha do rio. Dormiram.

À noite saiu, na cata de comida. Não. Não passaria pela rua onde lhe tinham feito aquela maldade. Andou pela praça, estendendo a mão, no pedido da esmola.

— Vai trabalhar.

— Sai, fedor!

O cachorro o acompanhava. Ele quis enxotá-lo, não conse­guiu. Por mais que tentasse, o cachorro não se afastava. Quando o espezinhava, o cão retirava-se alguns metros e depois voltava a segui-lo. Deixou de o expulsar. Admitiu-o como amigo. Como companheiro, pelo menos. Temeu a presença do cachorro.

— Outra boca pra alimentar...

Mas o cão, fiel como um velho amigo, seguia-o, manso e cativo.

No bar ganhou um pão. Com esforço, dividiu ao meio. Sentou no meio-fio, dando metade do pão ao cachorro. Comeram com sofreguidão. Negaram-lhe a água que pediu.

— Depois eu tinha que quebrar o copo... — comentou o dono do botequim, explicando a negativa.

Todos ficaram de acordo.

Tinha sede. O portão da casa estava aberto e ele viu a torneira, no jardim. Ninguém por perto. O cachorro entrou primeiro. Ele abriu a bica e esperou que o cachorro bebesse. Depois, com a mão em concha, serviu-se da água, quase gelada, reconfortante.

— Um ladrão!

O grito do menino assustou o cachorro. O pulo do animal foi tão rápido que ele não pôde evitar. Cravou os dentes na perna do menino que, aos gritos, correu para casa. Ele fugiu para debaixo da ponte. O cachorro já estava lá.

— Você fez muito mal. Então, é certo morder uma criança? O que foi que o menino lhe fez, pra você dar aquela mordida nele? Eu devia bater em você.

O cachorro parecia entender. Abria e fechava os olhos, boca escancarada, língua de fora, arfando.

Pensava no menino. O que estaria sofrendo, coitadinho, àquela hora?

O menino escondeu dos pais a mordida. Tratou, ele próprio, de passar mercúrio cromo na ferida da perna. Estava com medo de ser castigado. A vizinha vira o molambento no jardim. Imaginou que fosse roubar.

— Vou avisar a polícia — disse o dono da casa.

Considerou um abuso aquele mendigo entrar na sua casa, mesmo não tendo passado do jardim. Não sabia o que fazer ali. Talvez roubar, como a vizinha supunha. Era preciso que tomasse uma providência.

Recebeu adesões. Todos, na rua, de acordo. Tinham raiva dele, do cheiro dele, do aspecto dele, do perigo enorme que ele representava para a sociedade. Aquele bicho!

— Lincha! — berrou uma voz, menos humana.

Apanharam lanternas e saíram na busca do monstro.

— Eu sei onde ele mora! — ofereceu-se uma mulher.

Cercaram a ponte. O mendigo quis falar, tentou correr.

Fecharam as saídas possíveis. Tinha gente com achas de lenha e barras de ferro. Não lhe davam tempo para explicações, nem jeito de fuga. Tentou alcançar o alto da ponte. Bateram-lhe nos dedos. Ele caiu na terra onde antes dormia. Fizeram um cerco em volta dele. Eram mais de quarenta, ninguém poderia ser culpado. Deram e espancaram como de manhã tinham feito com o Judas.

Foram atirados no rio os dois: o cachorro e ele. A correnteza os levou. O cachorro morreu, certamente, sem sentir. O mendigo sofreu muito antes de morrer. Queria ter tido tempo de avisar que o cão estava hidrófobo.

Quando o pai chegou de volta, satisfeito com o que fizera, tinha tanta alegria que nem notou que o filho estava com febre.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

Melo Morais Filho (Carnaval) Parte 3


Uma vez Laurindo Rabelo estava na porta. Um mascarado, vestido de capim, aproxima-se. O poeta fá-lo parar e diz-lhe, torcendo o bigode:

– Meu amigo: o senhor, depois de divertir-se, come a roupa, não é assim?

Ao que o interlocutor nada respondeu, perturbado, por certo.

O imperador, a imperatriz, e as princesas observavam do passadiço do palácio a animação dos festejos, esperando um pouco retirados pelas Sumidades, cuja tardança os impacientava.

Por volta das 5 horas da tarde, a turba tomava as saídas de onde o clangor dos clarins e o tropel dos cavalos avizinhavam-se. O povo abria-se em fileiras defronte do paço; ao redor da multidão os velhos cabeçudos, de cajado e luneta, suspendiam no ar as enormes máscaras de papelão, saracoteando; os diabinhos barbudos reviravam a máscara, enrolando à cinta a cauda vermelha... A expectativa era inexcedível! E os sons se escutavam de perto, de muito perto...

A família imperial chegava às sacadas, e os vivas e urras, como uma pirâmide sonora, que enfiasse a grimpa na imensidade, tinham por base ondulante o pasmo de toda aquela população.

Logo após, transpunha o Largo do Paço a banda marcial do Congresso das Sumidades Carnavalescas, vestida com o pitoresco costume dos cossacos da Ucrânia.

Os clarins escoceses do regimento dos highlanders formavam-lhe a retaguarda, antecedendo ao carro de D. Quixote, o cavaleiro da Mancha, que fazia tremular, com a galhardia de um herói de Cervantes, o pendão admiravelmente trabalhado das Sumidades.

Todos os caleches – e deviam ser mais de doze – eram puxados a duas parelhas lindíssimas, ajaezadas com grandeza. Sobre cada carro desenrolava-se rica colcha de damasco coberta de rendas alvíssimas; e, em cima das almofadas, ou aos pés dos personagens, cestas com pequenos buquês, caixinhas com estalos fulminantes, grãos-de-bico e feijões confeitados, que cada um atirava aos espectadores das janelas e à gente aglomerada nas ruas.

No meio de bravos e flores, o primeiro grupo de cavaleiros foi de um sucesso maravilhoso. Era um grupo histórico, reproduzido com tanta propriedade e luxo no trajar, que não há quem o tivesse visto que dele não se recorde deslumbrado. Esses cavaleiros eram Nicolau I, Imperador de todas as Rússias, Abdul-Metjid, o senhor de Istambul, um grego, o Almirante Duguay-Trouin, Marco Spada e um dragão prussiano da Morte.

Parando a instantes, refreando os ginetes ariscos, jogavam às senhoras, durante o trajeto, ramos de flores, dentro dos quais metiam um cartão de visita, que tinha por fim declarar o nome dos personagens que representavam. Por exemplo:

Nicolau I cumprimenta a V. Exª, por quem morre de amores.”

Caleches com bayaderas, mandarins, nobres do Cáucaso, Benvenuto Cellini, Fernando o Católico, o Duque de Guise; grupos a cavalo, caracterizados como o Duque d’Alba, Carlos V, o Conde de Provença, Tadeu Kosciusco; faetones em que se repimpavam o Dr. Dulcamara, pregoeiros, etc., constituíam o pomposo préstito do Congresso que, em sua marcha triunfal por uma estrada de folhas verdes e aromáticas, ao dardejar das luzes que assemelhavam-se a abóbadas de fogo, às aclamações populares e às catadupas de flores e harmonias, entrava vitoriosamente no grande carnaval.

Impossível fora descrever o entusiasmo das multidões! Para caminhar no passado, só a imaginação esclarece a treva!

Na noite antecedente, o baile das Sumidades marcava notável acontecimento, por isso que, como baile à fantasia, ainda nenhum outro
enlaçou com tanto brilho e formosura, a nobreza e o talento.

O Clube Fluminense, adornado com o maior esplendor, era o palácio das representações fidalgas. As moças mais belas, membros do Ministério, do Senado, do corpo diplomático, generais, poetas, literatos, jornalistas, funcionários públicos, etc., aí se achavam dando mais realce à grandiosa festa.

Sem roteiro determinado, a passeata daquele ano realizou-se ao acaso; e depois de percorrerem o Catete, voltaram à chácara da Floresta, de onde saíram, dispersando-se afinal.

Na terça-feira fizeram o enterro do carnaval. As pompas funerárias do deus Momo não podiam ser mais solenes. O préstito seguiu a pé: carregado por dominós, o féretro simbólico foi deposto num cadafalso erguido debaixo das arcadas iluminadas da Rua das Violas. A banda militar tocou a marcha fúnebre, um membro da comissão dos festejos recitou um discurso, terminado o quê, foi transportado o ataúde, escoltado pelo Congresso, ao teatro Provisório.

Durante o trajeto, as estrondosas demonstrações excediam do entusiasmo. Vivas, poesias, alocuções burlescas na Petalógica, iluminação das ruas e do edifício do clube, bandeiras e músicas, assinalavam-lhe os triunfos.

À entrada do Lírico, as saudações da plateia e dos camarotes não foram menos significativas. Quando o Congresso das Sumidades Carnavalescas banqueteava-se nos salões, as polcas, os galopes, as quadrilhas e as valsas respiravam apenas, sufocados pelos sons dos guizos e das trompas, dos gritos estrídulos, da vozeria confusa e do bater dos pés de um louco em delírio – o Baile Mascarado!

Destarte inaugurada a festa, fora debalde querer detê-la nas suas celebrações anuais.

As Sumidades, erguendo arcos triunfais, preparavam o caminho até hoje trilhado pelo carnaval do Rio de Janeiro, em busca do templo do deus Momo, uma das mais palpitantes individualizações das bizarrices do espírito humano. E a União Veneziana, que aparecera mais tarde, chama o Congresso de irmão, e disputam-se a primazia. Ambos têm nas mãos a taça dos três dias, que ferve de risos e de esquecimento.

Com a fronte engrinaldada das rosas pálidas da folia, como as mulheres da Babilônia, o Congresso e a União antecipam-se no requinte do prazer.

A Euterpe Comercial, sociedade de música, transforma-se em Zuavos e, ano por ano, o carnaval adianta-se nas suas jornadas ruidosas. Entretanto, o Congresso, durante o seu reinado, campeou absoluto. Os seus bailes e os seus préstitos ficaram únicos.
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Continua… parte final.

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Pergaminhos da Saudade – 1 –

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 17


Há males que vêm para o bem, diz a expressão que anda na boca e nas ideias de muita gente. Dobra esquinas, passa nas encruzilhadas, invade sentimentos, navega em muitas águas, resiste ao tempo porque o dizer é sempre lembrado muitos dias e noites tantas.

Começando o ano terminei a leitura do livro com título sugestivo, " É HORA DE MUDARMOS DE VIA ", do pensador Edgar Morin, que festeja cem anos em julho próximo.

Nele o escriba faz um apanhado das vicissitudes dos últimos cem anos - da época em que nasceu até nossos dias. Abre o volume falando da gripe espanhola, passando pelas várias crises mundiais - econômicas, sociais, intelectuais, ecológicas, chegando à pandemia atual (que chamei desde o começo de pandemônio).

O ser humano é gregário por natureza, mas nos perdemos ao longo do tempo com o corre-corre que gera individualismo e chega ao egoísmo. A sede de querer e ter mais nos fez esquecer as lições do TAO, por exemplo, que nos ensina que somos unidades a partir de nós mesmos, como também somos unos nos envolvendo com todos os seres. Devemos então viver em harmonia e cuidar do nosso mundo sendo unidades em pensares e ações.

Nos capítulos finais do livro Morin nos põe a refletir nas lições da pandemia e nos desafios que temos pela frente - existenciais, econômicos, sociais, incertezas de toda ordem para o futuro. O livro é pertinente, oportuno, elucidante.

Fazemos reformas na casa, no carro, no jardim. Que tal uma mexida nos hábitos, costumes e pensares ?

"MUDAR DE VIA . . ." ! Recomendo.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Baú de Trovas XXIX


Santo Antônio, que lição
de política nos dás,
mostrando ao partir o pão,
que havendo justiça, há Paz!
A. A. de Assis
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Começou pensando em ouro,
escavou, e agora aceita
que a terra guarda um tesouro
em cada grão de colheita.
Alba Christina Campos Netto
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Despedida, a liberdade,
te esqueci, ponto final.
Mas me mandaste a saudade
no perfume de um postal!...
Ana Cristina de Souza
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No cantinho que era nosso,
que em nosso adeus se desfez,
eu volto sempre que posso,
e choro tudo outra vez!
Campos Sales
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Sentimos tanta alegria
quando estamos abraçados,
que, para nós, qualquer dia,
é dia dos namorados!
Divenei Boseli
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Hoje o mistério desvendo,
ao sentir a alma ferida:
só o tempo põe remendo
nos estragos desta vida!...
Domitilla Borges Beltrame
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Olhando o triste cenário,
com tanta virtude à venda,
não vou dizer o contrário:
um honesto vira lenda.
Eduardo Domingos Bottallo
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Amo ler, e bem escolho
no livro a mensagem certa.
0 conteúdo eu recolho,
não deixo a mente deserta!
Elisa Alderani
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Tanta anedota contou
o Olímpio na churrascada,
que ele até troféu ganhou:
"Campeão da Olim... piada".
Héron Patrício
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Vem surgindo o sol nascente
nos braços da madrugada,
e as estrelas, lentamente
deixam rastros pela estrada!
leda Marini de S. Oliveira
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Quem doa os olhos percebe
a paz maior prometida,
por toda luz que recebe
do outro lado da vida.
José Gilberto Gaspar
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Dois corações, duas vidas,
e um só destino traçado;
duas almas envolvidas,
caminhando lado a lado!
José Roberto Pereira de Souza
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Lusitana alma que um dia
enfrentando tempestades,
navegou com galhardia
para ensinar as "saudades".
José Xavier Borges Jr.
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Mal ganho pro meu sustento...
a coisa tá feia, irmão!
Mas no Natal, como aumento,
faço ceia de feijão!
Josué Vargas Ferreira
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Creio que a felicidade
tem cor. E posso afirmar.
Teus olhos são, na verdade,
dois talismãs cor do mar.
Jupyra Vasconcelos
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Pelas vias pedregosas,
com sacrifício eu subia...
Mas, ao descer, colhi rosas
que me encheram de alegria!
Lourdes Borelli
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Exuberante ou singela,
há na grinalda a magia
que me faz ser Cinderela
pelo menos por um dia!
Luzia Brisolla Fuim
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A morte, que tudo alcança,
não vence, nem intimida
quem guarda acesa a esperança
de renascer noutra vida.
Maria Helena Calazans Duarte
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Quem quiser ter livre acesso
ao peito de um sonhador,
basta trazer como ingresso...
um bilhetinho de amor.
Maria Madalena Ferreira
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A grande, a maior virtude
é de quem pode mostrar
que sendo apenas açude
tem a grandeza do mar.
Marta Maria 0. Paes de Barros
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Que os rumos de meus Irmãos
não se percam nas estradas,
e as vias de duas mãos
sejam vias de mãos dadas!
Renata Paccola
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Quando a tarde veste o manto,
torna escura a luz do dia,
saudade dói outro tanto
do tanto que já doía.
Professor Garcia
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Não lhe dou o meu perdão
porque, mais que insensatez,
é achar que ainda tem razão
depois do que você fez…
Ruth Farah
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Gera corrida e surpresas
notícia mal pontuada:
"A mulata Globeleza
visita a Serra, Pelada!...
Therezinha Dieguez Brisolia
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Graças á mão da lembrança
que lhes reacende o estopinn,
meus buscapés de criança
correm sempre atrás de mim.
Waldir Neves
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De um amor que é só miragem
finjo agora ter o assédio,
para escapar da engrenagem
dessa moenda que é o tédio.
Wanda de Paulo Mourthé

Fonte:
Informativos da UBT Seção São Paulo

Aparecido Raimundo de Souza (Para todas as horas)


ANINHA LIGOU para a amiga Eloísa e disse que precisava se avistar o mais rapidamente possível com ela. Uma dúvida cruel a atormentava e lhe chegara, por conta, ao incômodo de lhe afetar o sossego e tirar o sono:

— Venha aqui em casa. Vou lhe esperar com um café reforçado. Pegue um Uber. Eu pago...

— OK. Estou indo.

— Vou providenciar nosso café.

Aninha passou a mão na bolsa, pediu um carro de aplicativo e, vinte minutos depois, estava sentada à farta mesa do café no apartamento da sua melhor e única amiga, confidente íntima a quem contava todos os seus segredos, mesmo os mais inadmissíveis e cabeludos:

— E então, Aninha, o que foi desta vez?

— Encontrei um bilhete no bolso do paletó de meu marido! Acho que o Leopoldo está me traindo. Aquele safado tem uma amante, uma amante, Eloísa.

— Um bilhete, amiga?

— Na verdade, o terceiro, só esta semana. Se eu pego a vagabunda, eu mato, juro que mato...

— E o que ele diz?

— Ele quem, meu marido?

— Não, Aninha, os tais bilhetes...

— Estou tão furiosa, tão irritada, que dei para me atrapalhar. Pra você ter uma ideia, já me peguei falando sozinha com a geladeira.

Eloisa caiu numa estrondosa gargalhada:

— E ela respondeu?

— Amiga, você está me tirando? Fazendo hora com a minha cara?

— Claro que não, amiga. Só estou tentando descontrair a sua irritação. Continue, o que diziam os bilhetes?

— No primeiro, a sem vergonha escreveu: ‘Amor, eu te amo. Vamos nos ver no lugar de sempre?’. O segundo, esclarece pouca coisa: ‘meu gato, nosso encontro de ontem foi legal. Vamos repetir a façanha? Me liga. O terceiro, dá conta de que sou ‘otária’. A maldita me chamou de otária. E assinou assim: ‘Sua gatinha, E...’.

— E...?!

— É. A infeliz assinou com um ‘E’ e um coraçãozinho. A desnaturada deve se chamar Elisa, Eliane, Érica, Esther...

— Meu Deus, amiga, que safada! Acaso você desconfia de alguém?

— Sim e não. Para dizer a verdade, sim.

— De quem?

— Olhe você mesma os bilhetinhos. Salvo melhor juízo, me parece, com a caligrafia da secretária dele, a Efigênia.

Aninha abre a bolsa e, de dentro, tira os bilhetinhos encontrados no bolso do paletó do marido:

— Pode ser. Você não deixa de ter razão.

— Eloísa, você ainda tem aquele caderninho cheio de páginas com folhinhas coloridas iguais aos destas mensagens?

— Sim, amiga... Quero dizer, tinha...

— Ué! Que fim levou?

— Joguei fora. Depois que arranjei um problema com a minha mão direita... Ela deu para ficar dormente, assim sem mais nem menos e pior, a doer terrivelmente. Peguei a droga do caderninho e joguei no lixo. Veja você mesma. Nem segurar a caneta estou conseguindo. Se você soubesse como esta coisa dói... Minha vizinha aqui do lado, me disse que é artrite, ou artrose, sei lá.

— Credo, amiga! Não sabia. Que situação! Quanto aos bilhetinhos, o que acha que devo fazer?

— Deixa todos aqui comigo. Vou tentar apurar se as letras de uma de nossas amigas (as que costumam frequentar aqui em casa, nos encontros que nossos maridos e os delas, lógico promovem), batem, ou se assemelham com a caligrafia destes papeizinhos.

— Que legal, minha amiga. Bem pensado. Você me faria este favor?

— Com certeza. Lembra que somos unha e carne e a nossa amizade, nestas horas, serve para ajudar no que for preciso. Asseguro a você que juntas vamos desmascarar rapidinho quem poderá estar se encontrando com o Leopoldo. Deixa estar, ou não me chamo Eloísa.

— Mas nenhuma das esposas tem o nome começado com a letra ‘E’.

— Pode ser um despiste, amiga. Pra não dar na pinta, entende? Juro a você que pego essa periguete seja lá quem for, com a boca na botija.

— E como fará isto?

— Minha ideia, a princípio é comparar as letras. E como farei isto? Pedindo a cada uma das esposas que escrevam alguma coisa para mim.

— Para mim?

— Para eu. Inclusive, até você entrará no jogo. A partir de agora, não fale nada pra ninguém. Bico calado. Te juro que mais cedo do que você pensa, pegarei o sem noção do Leopoldo. Ele que me aguarde.

— Ele?

— Sim amiga, ele...

— Não estou conseguindo acompanhar a sua cabeça. Desenhe.

— Eles, amiga, os bilhetinhos, os bilhetinhos...

Fonte:
Texto integrante do livro 'Comédias da Vida na Privada'. Editora AMC-Guedes Rio de Janeiro 2021.
Texto enviado pelo autor.

Melo Morais Filho (Carnaval) Parte 2


É fácil de cogitar: em pequenos grupos de máscaras errantes, um princez desgarrado, e assim por diante.

Em 1854, já alguns carros com máscaras apareceram e das janelas atiraram-lhes flores. O Jornal do Comércio, noticiando o fato, aconselhou que para o ano futuro se reunissem, o que daria mais relevo ao festejo.

Até então a loucura descobria o prazer ao som da música escolhida, inundava-se da luz dos lustres e candelabros, mitigava a sede provocada pelas danças ardentes nas taças de champanha, e requintava de gozo naqueles abrigos resguardados e ideais como as cismas voluptuosas dos crentes.

Era à noite que naquelas Lupercais esplêndidas as mulheres coroavam-se de fascinações, que os moços de qualificação distinta dissipavam-se atraídos.

No Clube, especialmente, quanta perdição no langor morno da beleza aristocrata, no roçar de um corpo de neve, num cismar vago, ao terraço ou à janela, tendo por testemunhas o olhar pestanejante das estrelas e o céu profundo e escuro como as marés incertas do destino!...

Mas a luz do dia tivera inveja da luz dos candelabros; a voz do jornalista é o flat das sociedades; e a Loucura, no seu despertar de Festas e Tradições Populares do Brasil sonâmbula, emboca as fanfarras no meio das praças, com o seu séquito de cem escravas e de milhares de cativos.

Em janeiro de 1855 já as folhas diárias anunciavam que o carnaval seria magnífico: as famílias mais consideradas, a mocidade mais dinheirosa e ilustre, associavam-se à empresa do dia. Jurisconsultos, médicos, jornalistas, militares, altos funcionários públicos, negociantes, fazendeiros, tudo quanto a sociedade fluminense possuía de seleto absorvia-se numa só ideia, num só pensamento.

No Largo do Rocio e em muitíssimas ruas, as casas de vender e alugar vestimentas multiplicavam-se. Nas casas particulares viam-se o veludo e a seda, as espiguilhas e os bordados a ouro; nos alfaiates, os costumes especiais; nos ourives, adereços finíssimos.

Decoravam-se suntuosamente os teatros. Nos cenários, subindo até as bambolinas, os espelhos cintilavam como vagas descendo de fantásticas muralhas: palmeiras à entrada de grutas, cascatas artificiais, flores e perfumes, faziam supor que naqueles salões enormes se iriam asilar as fadas dos contos das Mil e Uma Noites.

Cá fora o comércio abria pesada bolsa ao artista mais hábil no enfeite das ruas, ao jardineiro mais zeloso no cultivo das palmeiras e arbustos de ornamentação, a quem mais deslumbrantes erguesse as arcadas iluminadas, ao pintor de mais imaginação e espírito no acabado dos escudos implanta dos de troféus, onde se liam epigramas e quadras chistosas.

Nos coretos em profusão pregavam-se bancos para a música e colocavam-se figuras que simbolizavam personagens e acontecimentos ridículos.

Nos primitivos carnavais a influência era tamanha, que poderia dizer-se que um terço da população mascarava-se.

E tanto é verdade, que os diretores de teatros advertiam ao público que seria vedado o ingresso nos bailes a quem não se apresentasse fantasiado.

Em 1855 fazia a sua primeira passeata o Congresso das Sumidades Carnavalescas.

Antes do dia 23 de fevereiro, em que caíra o Entrudo, uma comissão composta do Dr. Joaquim Francisco Alves Branco Muniz Barreto, Coronel Polidoro da Fonseca Quintanilha Jordão e do Dr. José Martiniano de Alencar, dirigiu-se a S. Cristóvão, pedindo a S. M. o Imperador que viesse com as princesas ao paço da cidade honrar com a sua presença o carnaval do ano e assistir à passagem do Congresso.

Desta sociedade tiveram a iniciativa notáveis homens de letras e jovens escritores, cujo talento impunha-se pelo brilho progressivo. Estes leais companheiros de tantas glórias, que resplandecem do passado, faziam parte da redação do Correio Mercantil e chamavam-se Henrique César Muzzio, Pinheiro Guimarães, Manuel Antônio de Almeida, J. de Alencar, Augusto de Castro, Ramon de Azevedo e outros, que saudavam o futuro entre um artigo de fundo, uma poesia, um folhetim, e o desabrochar das esperanças nas alamedas sempre encantadoras da primeira mocidade.

Felizes tempos aqueles em que Alves Branco, F. Otaviano, Firmino Rodrigues Silva e Paranhos regiam os moços, porque eles viam a pena de ouro na mão do mestre e do amigo!

Afastados desse grupo, mas conhecidos de bonito nome, a eles reuniam-se Joaquim de Melo, Francisco Augusto de Sá, os dois Faros, Palhares, Cristiano Stockmeyer, Horácio Urpia e mais, que fortaleceram o empreendimento como forma e como ideia.

Nas tardes do domingo as bandas marciais tocavam; os chicards, os titis, os flambarás, os pierrots, os débardeurs, os dominós, os zés-perei ras, os D. Nunos e os cavaleiros de capa e espada percorriam a cidade. Os carros de mascarados não tinham conta. Dos sobrados desdobravam colchas de damasco e entornavam flores; os estalos fulminantes imitavam as crepitações das fogueiras e a multidão acudia a vários lugares, curiosa e festiva.

No ano a que nos referimos, os máscaras de espírito tornaram-se salientes. Um francês houve que, no Provisório, intrigou a toda a gente. Este máscara envergava um costume metade preto e metade branco.

Muitas pessoas ainda se recordam de um indivíduo que, trepado numa saia-balão de proporções colossais, distribuía pelas janelas poesias, trocando pilhérias.

Consecutivo este carnaval à iluminação a gás desta capital, junto a um mineiro que montava num boi, conquistou gostosas gargalhadas um sujeito enfezadinho, escanchado numa jumenta branca, tendo em toda a exótica vestimenta escadas e lampiões de pano, recortados e cozidos.  Pisava-se sobre folhas de canela e mangueira, sacudia-se do chapéu rosas e jasmins, corava-se à indiscrição de um máscara que segredava (em voz alta) o que vira e o que não vira.

Na Petalógica do Largo do Rocio, Paulo Brito, Teixeira e Sousa, Constantino Gomes de Sousa, Laurindo Rabelo, Zaluar, o bacharel Gonçalves, Castro Lopes, José Antônio, Bracarense e Machado de Assis, atropelavam os princeses que entravam e os desenxabidos que passavam.

Quanta lembrança original, quanto desapontamento engraçado, quanta corrida de vencido!
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Continua…

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 480

 


Paulo Mendes Campos (A arte de ser infeliz)


O homem perfeitamente infeliz tem saúde de ferro; check-up e estação de águas todos os anos; seus males físicos são apenas dois: dor de cabeça (não toma comprimido porque ataca o coração) e azia (não toma bicarbonato porque vicia o organismo).

O pai e o avô do homem infeliz morreram quase aos noventa anos - e ele o diz frequentemente.

Banho frio por princípio, mesmo no inverno, e meia hora de ginástica diária.

O homem perfeitamente infeliz julga-se ameaçado: ao norte, pela queda do cabelo; ao sul, pela desvalorização da moeda; a leste, pelo acúmulo de matéria graxa; a oeste, pela depravação dos costumes.

Não empresta dinheiro; não deve nada a ninguém; toma notas minuciosas de todas as despesas; nunca pagou nada para os outros; não avaliza nota promissória nem para o próprio filho; tem manifesto orgulho disso tudo.

Não tomou conhecimento de qualquer revolução artística ou literária depois de 22: gênio é o Rui; brasileiro é o Rui; saber português é o Rui*.

Iniciar oração com o pronome oblíquo é para ele um crime contra o idioma pátrio, embora seja esta toda a sua ciência a respeito de gramática.

Em sua sala de jantar, um quadro a óleo: o ipê florido, moldura dourada, assinatura de Josimar ou Asdrúbal.

A força de vontade do homem perfeitamente infeliz é tremenda: deixou de fumar há onze anos, três meses, cinco dias. Se não deixou, poderá deixar a qualquer momento.

Racista, embora só o confesse aos mais íntimos; admite vagamente todas as religiões; não pratica nenhum culto, mas considera o catolicismo um freio. Sem simpatia política em aparência, vota por instinto nos candidatos mais reacionários.

Antigamente, para ele, era muito melhor que hoje: um dos erros fatais do Brasil foi derrubar Dom Pedro II.

Acha-se (e infelizmente é verdade) insubstituível em seu trabalho; sem ele, o escritório não anda.

Sempre o primeiro a chegar a enterros de parentes, amigos, conhecidos, colegas; também o primeiro a saber e divulgar que abriram e fecharam Fulano, não há nada a fazer.

Ver televisão é o seu recreio mental mais importante; resolver problemas de palavras cruzadas desenvolve o raciocínio e enriquece o vocabulário - uma de suas teses preferidas.

O homem perfeitamente infeliz sabe o que é enfiteuse** e pignoratício***.

Conhece os preços de todos os gêneros e de todos os objetos usuais; está sempre de olho em qualquer transação imobiliária lucrativa; se possui imóveis alugados (quase sempre os possui), é mestre em fabricar um contrato desvantajoso para o inquilino; mestre ainda em sonegar imposto de renda; dá aula sobre a maneira mais efetiva de se proceder a uma ação de despejo.

Sua psicologia: todo homem tem seu preço.

Economia: poupar os tostões.

Sociologia: o povo não sabe o que quer.

Filosofia: o seguro morreu de velho.

O homem perfeitamente infeliz ama os seus de um amor incômodo ou francamente insuportável.

Considera-se dono de excelente bom humor; em família, porta-se com severidade, falta de graça e convencionalismo; cita provérbios edificantes e ditos históricos; sua glória é poder afirmar, diante de alguém em desgraça: "Bem que te avisei!"

Arrola o futebol, o samba e a cachaça entre as vergonhas nacionais.

Não diz "minha mulher", mas "minha esposa"; a esposa do homem perfeitamente infeliz é muito mais perfeitamente infeliz do que ele, que nada percebe.

O mal profundo do homem perfeitamente infeliz é julgar-se um homem perfeitamente feliz.
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Notas do Blog:
* Rui: Rui Barbosa (1849-1923).
** Enfiteuse: A enfiteuse é instituto do Direito Civil e o mais amplo de todos os direitos reais, pois consiste na permissão dada ao proprietário de entregar a outrem todos os direitos sobre a coisa de tal forma que o terceiro que recebeu (enfiteuta) passe a ter o domínio útil da coisa mediante pagamento de uma pensão ou foro ao senhorio. Assim, pela enfiteuse o foreiro ou enfiteuta tem sobre a coisa alheia o direito de posse, uso, gozo e inclusive poderá alienar ou transmitir por herança, contudo com a eterna obrigação de pagar a pensão ao senhorio direto. (fonte: JusBrasil)
*** Pignoratício: pertinente ao contrato do penhor.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Homenzinho na Ventania. Publicado em 1962.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) – 6 –


Abraça-me como se teu mar eu fosse
Brinca com minhas cores
Na morenice do teu ser
Descansa na esteira dos meus versos
E a ansiedade numa rede preguiçosa faça adormecer
À sombra das nuvens
Refresca o teu olhar no horizonte
De mãos dadas com o agora, sem promessas, sem depois
Silencia meus desejos em tua boca
Que a voz rouca em teus ouvidos seja uma inspiração
Deixa o nosso cheiro ir com o vento
E que nossos corpos se tornem em um só templo
Ao som do sino entre canções
Acredita que eu sou o teu amor pra vida inteira
E não somente uma paixão passageira
Ou quem sabe um simples deslize de verão.
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Ela
Entregou o seu coração
Mas ele
Não tinha onde guardar.
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… E tem umas horas boas
Na vida da gente,
Que dá vontade de pausar o tempo
Com muitas vírgulas,
Saboreando gole a gole,
Sem pressa alguma
De que chegue o ponto final.
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Havia tanta doçura em seu olhar
Que até os beija-flores
Faziam fila.
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Muitos caminhos a seguir
Mas meus pés viciados e desobedientes,
Até nos sonhos,
Só sabem percorrer o teu.
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Na escuridão
Estrelas brilham
Nos olhos do gato.
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Na sua trilha
Sempre parto
Na chegada
Me reparto
Pra caber em mim
Mais um pouquinho de você.
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Na tempestade dela
Fui amor
Fui calmaria
Mas quem diria
Na minha tempestade
Foi-se até a amizade
E ela foi dor
Foi furacão.
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O apito longínquo no passado
Ainda estremece o peito.
Fecho os olhos
E o trem estacionado na memória
Parte devagarinho
Carregado de lembranças.
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Platônico

Ela dizia
Que gostava do mar
Porque o mar era tanto, imenso...
Mal sabia ela
Que o meu amor por ela
Era ainda muito mais.
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Quando nasci
Um anjo me disse:
Vá! Seja feliz.
E foi o que fiz
Não fiquei juntando pedras
Corri atrás do vento.
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Sou abelha
Borboleta
Beija-flor.
Comigo
Levo de ti um pouco
Mas te deixo
Todo o meu amor.

Fonte:
Facebook do poeta.

Figueiredo Pimentel (A Onça e o Cabrito)


No tempo em que os animais falavam, nesse mesmo tempo chamado do Onça, em que se amarravam os cachorros com linguiça, achava-se uma onça dormindo a sesta, enganchada num galho de árvore, quando exclamou:

– Qual! isto assim não tem jeito! Estou há longo tempo a procurar cômodo neste pau, e nada de poder dormir! Vou fazer uma casa para morar.

Foi a um lugar da floresta, e depois de procurar bem, disse:

– É aqui mesmo; melhor lugar não poderia encontrar.

Roçou o mato que ali havia, capinou tudo muito bem.

Mestre Cabrito também andava com vontade de fazer casa de moradia. Saindo, uma vez, em busca de local apropriado, deu com o roçado que dona Onça tinha feito horas antes, e disse:

– Bravo! Que belo sítio este aqui! Parece feito de propósito para uma casinha!

Dizendo isso, pôs-se logo a cortar grossos paus para servirem de esteios à casa; fincou no chão, e foi descansar.

No dia seguinte chegou dona Onça, e vendo os esteios já fincados, exclamou:

– Com certeza é Deus quem me está ajudando. Ontem, apenas limpei o mato, e hoje já venho encontrar os esteios da casa!...

Cortou mais paus; fez a cumeeira; pôs as travessas e retirou-se.

Quando o sr. Cabrito chegou, e viu aquele progresso na construção, exclamou:

– “Qual! Decididamente Deus Nosso Jesus Cristo está me ajudando! Estou encantado de graça... Não pode ser outra coisa. Por isso, mãos à obra, sr. Cabrito, quanto mais depressa melhor.

Então colocou caibros* na casa, e nesse dia deu por findo o serviço, achando que havia trabalhado muito.

Quando dona Onça veio, ainda mais admirada ficou. Nada disse, todavia. Pregou as ripas e os enchimentos, e foi-se embora.

O cabrito pôs as varas, os portais e as janelas, e saiu.

A onça cobriu a casa de telhas.

O cabrito assoalhou, e fez o teto.

Um dia, um, outro dia, outro, trabalharam sucessivamente os dois animais, sem no entanto jamais se encontrarem, cada um pensando que era Deus que o protegia.

Ficando pronta a casa, dona Onça fez a cama e deitou-se.

Ainda não tinha ferrado no sono, quando chegou também o cabrito, que, vendo a onça, disse:

– Não, comadre onça; esta casa é minha. Fui eu que finquei os esteios, pus os caibros, os portais, as janelas, etc.

Depois de muita discussão, a onça, que já estava com vontade de comer o cabrito falou:

– Bem, compadre, não é preciso fazer questão; vivamos juntos, como bons amigos.

O cabrito, embora com muito medo, aceitou a proposta da onça, mas, por precaução, armou a cama longe, perto da janela, para poder escapulir ao primeiro sinal de perigo.

Achava-se ainda na cama, aos primeiros albores da madrugada, quando a onça se virou para ele, e lhe disse:

– Vou dizer-lhe uma coisa, compadre Cabrito: quando estou zangada, começo a franzir o couro da testa. Tome cuidado.

– E eu, comadre Onça, – respondeu o outro, fazendo-se forte, mas, com verdadeiro pavor, – quando estou com raiva, começo a sacudir as minhas barbinhas, e se der algum espirro, então fuja, porque não estou para brincadeiras.

Vendo que o outro não fugia, a onça saiu, dizendo que ia buscar alguma coisa para comerem.

Meteu-se atrás de uma moita, num mato muito cerrado, pertinho de um regato, onde os outros bichos costumavam ir beber água.

Apareceram diversos animais, mas a onça não se mexeu. Quando, porém, chegou um cabrito grande, muito gordo, de um salto caiu-lhe ela em cima e matou-o.

Arrastou-o até a casa e, de fora, já vinha gritando;

– Abra a porta compadre Cabrito, para eu poder passar com a minha caça!

Mestre Cabrito, já desconfiado daquele barulho, imaginando ser alguma cilada que lhe armava ela, respondeu no mesmo tom:

– Está aberta, comadre; basta empurrá-la.

Quando o cabrito viu o seu companheiro teve muito medo, e disse consigo mesmo:

– Se ela matou este, que é maior e mais que eu, como não procederá para comigo?

E protestou ficar cada vez mais alerta.

Ofereceu-lhe a onça um bocado de carne, mas o cabrito não aceitou, dizendo já ter almoçado.

No outro dia foi ele quem disse à onça:

– Agora, comadre, sou eu quem vai à caça. Vou arranjar alguma coisa para comermos.

Embrenhou-se pela floresta adentro, quando viu uma onça muito grande e gorda. Disfarçou, e começou a cortar cipós fortes.

A onça, chegando perto, indagou:

– Amigo cabrito, para que é que está você cortando tanto cipó?

– Oh! Amiga onça, não sabe do caso? Então não sabe que o mundo está para vir abaixo, que um grande dilúvio e grande ventania vem cá para a terra? Trate de si, que é o que deve fazer. Eu vou-me amarrar com estes cipós, porque não quero morrer já.

A onça, com medo, escolheu um pau bem grosso, e pediu ao cabrito por tudo quanto havia que a amarrasse.

O cabrito amarrou-a perfeitamente, com uma porção de cipós, e, quando a viu bem segura, matou-a.

Desatou o cipó que a prendia, e começou arrastá-la até à casinha. Quando chegou, disse à sua comadre, que ficara em casa:

– Comadre onça, trago comida para dois dias, venha ver, e vamos esfolar o bicho, que está gordo que faz gosto.

A onça, quando viu uma companheira sua morta pelo cabrito, teve muito medo, mas nada disse.
***

Começaram os dois a ter medo um do outro.

Um dia, o cabrito estava perto da janela tomando fresco, quando viu a onça com o couro da testa todo enrugado, o que nela era sinal raiva.

Teve receio. Começou a sacudir as barbinhas e deu um grande espirro.
A onça ouvindo-o e lembrando-se que era sinal da zanga do cabrito, pulou de cima da cama e começou a correr como uma desesperada, por este mundo afora.

O cabrito, por seu lado, fugiu também, em direção oposta, com medo da onça.

E os dois ainda hoje se evitam.
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Nota:
* Caibros
– Estrutura de madeira de um telhado, sobre o qual se colocam as telhas.


Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

Melo Morais Filho (Carnaval) Parte 1


Não é de hoje a história das vesânias humanas.

O carnaval, que é uma frenopatia, filia-se às mais altas civilizações, exibindo-se rudimentário entre os povos selvagens. As sanhas (vontade incontrolável) dos Querubins egípcios, das Saturnais romanas, das Bacanais gregas, da festa dos Inocentes e dos Loucos, de que falam as crônicas da Idade Média, é a mesma do carnaval de Veneza, de Roma, de Paris, do Rio de Janeiro e das tribos amazônicas.

Entre todos os povos encontram-se as mascaradas – desde o Indo – que, como pensa Volney, desfigurava o céu, o metamorfoseava, até os nossos tucanos, que tomavam máscaras de folhas e de cascas de árvores, de terra e de cabeça de animais, para as festas do Buianté. S. João Crisóstomo condenava os deboches e as mascaradas nas igrejas; e o Papa Inocêncio III as verberava por meio de uma decreto:

– “Dão-se algumas vezes nas igrejas espetáculos e divertimentos de teatro, e não somente introduzem nesses espetáculos e nesses divertimentos monstros mascarados, mas ainda em certas festas os diáconos, os padres e subdiáconos permitem-se a liberdade de fazer toda a casta de loucuras e palhaçadas...

“Eu vos conjuro a exterminar este costume...”

O carnaval implica o uso da máscara e dos disfarces; e a máscara era usada pelos trágicos gregos e romanos. Nos Bacanais e nos espetáculos haviam máscaras que exprimiam o ódio, a lubricidade, a sátira...

Em França, desde o século XIV, diz o bibliófilo Jacó, as máscaras foram adotadas: Filipe o Belo tinha o carnaval como o folguedo de sua predileção.

Segundo o redator do Journal de Paris, citado pelo romancista dos Nouveaux romans de Paris, “uma singular mascarada teve lugar no reinado de Carlos VI, no cemitério dos Inocentes. Em uma ação fantástica, chamada Dança Macabra, indivíduos de ambos os sexos, disfarçados em gente de todas as condições, desfilavam ante a Morte, que impassível lhes ouvia as queixas. Pediam-lhe a prolongação da vida; uns para realizarem projetos de ambição, outros para gozarem de sua nova fortuna, todos para alguma quimera. A Morte, depois de chasquear em verso com os suplicantes, descarregava-lhes a foice”.

A mascarada da Dança Macabra esteve muito em voga na Alemanha e na Suíça.

Henrique III dispensava calorosa animação a esse regozijo público. À semelhança dos validos do rei, os nobres e as senhoras do tom mascaravam-se.

Acrescenta o historiador Lestoile que aquele soberano gostava tanto de fantasiar-se, que deitava-se de máscara, interiormente untuosa e pintada.

No Beppo de Lorde Byron, o poeta encarece o carnaval de Veneza: Goethe no Fausto é menos entusiasta pelo carnaval de Roma.

No tempo de Luís XIV as cortesãs e as mulheres da moda tatuavam-se exageradamente, e usavam de sinais pretos no rosto para fazerem-se mais lindas; muitas havia que sobre a alvura da face assentavam estrelas e meias-luas de tafetá, que concorriam para transformá-las.

A revolução acabou com as mascaradas em França, reaparecendo elas mais tarde nas ruas e teatros.

Uma coincidência: o carnaval francês agonizava, quando nascia o carnaval brasileiro.

O carnaval do Rio de Janeiro começou após a proibição do jogo do entrudo pelo desembargador Siqueira, único dos nossos chefes de polícia de quem a tradição repete o nome com segurança e respeito.

Muito antes, inauguraram-se os bailes mascarados, devido os primeiros à iniciativa da cantora Delmastro, que para aqui viera com a companhia lírica de Mme. Lagrange.

Estes bailes tiveram lugar onde é hoje o teatro da Fênix Dramática, que compreendia a grande chácara da Floresta.

Sucederam-se a estes os do Ângelo, na chácara da Rua do Conde, na Cidade Nova, e os do Nicola, no Largo do Rócio.

Ao crescente e inesperado favor do público corresponderam os teatros de S. Januário, Lírico Fluminense, S. Pedro e Ginásio, que para o mesmo fim abriram as suas portas, acompanhando-os o Clube Fluminense, que só admitia os sócios, e o Paraíso que aceitava a todos.

Em que consistia o nosso primitivo carnaval ao ar livre?
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Continua…

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Arthur de Azevedo (Um Don Juan de Província)


Quando fui pela primeira vez àquela patriarcal cidade de província, o Linhares, que eu chamava primo, por ser filho da primeira mulher de meu pai, não quis que eu ficasse no hotel, e levou-me para sua casa, onde havia um quarto de hóspedes.

Durante os dias que ali me demorei fui carinhosamente tratado, e ainda hoje sou reconhecido aos favores do primo Linhares e de sua família, senhora e cinco senhoritas casadeiras.

Eu não fazia outra coisa todos os dias senão passear pela cidade, e à tarde, depois de jantar, o primo Linhares mandava colocar sete cadeiras no passeio, à porta da rua, e ele, a senhora, as senhoritas e eu sentavam-nos ao ar livre, e conversávamos até ao escurecer. Era muito divertido.

Numa das tardes em que estávamos assim, perambulando sobre os mais variados assuntos, surgiu de uma esquina, a cem passos do lugar em que nos achávamos, o vulto esguio de um rapaz moreno, de grandes bigodes, envolto numa capa espanhola e com a cabeça coberta por um grande chapéu desabado.

O primo Linhares, mal que o viu, ergueu-se e disse imperiosamente às senhoritas:

- Meninas, vão para dentro: vem ali o Flávio Antunes!...

As cinco senhoritas levantaram-se e desapareceram, correndo no interior da casa.

E o primo Linhares explicou-me:

- Aquele Flávio Antunes é um patife, um sedutor de senhoras casadas, um Don Juan!... Não consinto que as pequenas olhem para ele!... Não há nesta cidade sujeito mais desmoralizado! Nenhum pai de família honrado o recebe em casa!

E como o tal Flávio Antunes se aproximasse:

- Olhe para aquele tolo! Veja! - o tipo completo do conquistador!...

E o transeunte, que era, efetivamente, um rapagão, passou fazendo ao primo Linhares um cumprimento, que não foi correspondido.
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Um ano depois, o primo veio ao Rio de Janeiro. Fui recebê-lo na estação da Estrada de Ferro, e tratei logo de perguntar pela família.

- Estão todos bons. A minha pequena mais velha foi pedida à semana passada.

- Por quem?

- Por um excelente rapaz - o Flávio Antunes.

- Perdão... mas o Flávio Antunes não era...

- Era sim! mas que quer você? Com aquela coisa de mandar as meninas para dentro todas as vezes que ele passava lá por casa, fiz-lhe um extraordinário reclame! Todas elas gostavam dele, e ele gostou da mais velha!

- Ora! Hão de ser muito felizes.

- Sim, mesmo porque, melhor informado, me convenci de que a má reputação do pobre rapaz era unicamente devida àquela capa espanhola e aquele chapéu desabado!

- Deveras?

- Eram mais as nozes que as vozes, e se algumas falcatruas fez ele, coitado, foi em consequência do reclame que lhe fazíamos, eu e outros pais de família.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Possíveis. Publicado em 1889.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 9


tanta maravilha
maravilharia durar
aqui neste lugar
onde nada dura
onde nada para
para ser ventura
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não fosse isso e era menos
não fosse tanto e era quase
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apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme
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que tudo passe

passe a noite
passe a peste
passe o verão
passe o inverno
passe a guerra
e passe a paz

passe o que nasce
passe o que nem
passe o que faz
passe o que faz-se

que tudo passe
e passe muito bem
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via sem saída
via bem

via aqui
via além
não via o trem

via sem saída
via tudo
não via a vida

via tudo que havia
não via a vida
a vida havia
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eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito

eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões

em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois
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a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa
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cansei da frase polida
por anjos da cara pálida
palmeiras batendo palmas
ao passarem paradas
agora eu quero a pedrada
chuva de pedras palavras
distribuindo pauladas
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já fui coisa
escrita na lousa
hoje sem musa
apenas meu nome
escrito na blusa
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o mestre gira o globo
balança a cabeça e diz
o mundo é isso e assim
livros alunos aparelhos
somem pelas janelas
nuvem de pó de giz

Fonte:
Paulo Leminski. Distraídos venceremos. Publicado em 1987.

Ivan Lessa (A casa)


Quando você me diz “lá em casa” eu vejo um bicho feito de ângulos, retas e paralelas, um animal composto de planos e perspectivas, feito bicho fotografado. Vejo uma porção de coisas, só depois vejo gente, quase como se fosse em detalhe. A casa fez o homem, depois descansou e recebeu gente para viver.

Ninguém sabe nada de casa. Assunto é quem nela mora. Mas as casas ‒ as casas são. Não só a decoração, o estilo e a disposição. Algo além, que não foi planejado mas começou a aparecer, desde os primeiros tijolos. A casa sente-se aos poucos, seus sinais de vida. Sua respiração é noturna e descompassada: tem algo de pássaro lidando com ninho. A casa ‒ principalmente à noite quando a gente dorme.

De noite, você range e a casa tem medo. De noite, certos ratos que você não conhece se nutrem. De noite, pessoas parecidas com você passam de um canto para outro e não são notadas. De noite, o estranho no sótão (mesmo que seja apartamento há esse estranho no sótão) sai para brincar. Anões percorrem as estantes, um azulejo muda de lugar, mas se recompõe. Todas essas coisas lógicas e esperadas da casa a sós. A casa se mal assombra, nós apenas nos assombramos. Há uma porta que não empena depois das 23h. Um alçapão que você não conhecia engole bloco de cimento. O mecanismo funciona perfeito. O curto-circuito é você: deitado. Casa não deita: levanta.

Mas ficou sem dormir no escuro: descobrirá como é circunstancial o dono da casa. A casa é história, nós somos cidadãos. Uma casa é um mecanismo que desandou e, de todos os seus ritmos, só oferece a você aquele que você precisa. Mas os outros, estão lá: fique acordado e veja. Nada é estranho. Estranho é você que não sabe parar, a casa é uma perfeição de paradas e freios. Pare, olhe e more.

Quando você dorme, a casa faz. Quando você sai, a casa fica. Na realidade vocês não se conhecem. São uma acomodação interesseira. Se você conseguir ‒ leva tempo ‒ vê-la acordada, vai ser duro para você. Vai querer nunca mais dormir e essa, não há dúvida, é a pior das mortes.

Fonte:
Diário Carioca. RJ. 7 dez 1965.

1° Concurso de Poesias Livres da ARLACS (Prazo: 28 de fevereiro)


1°- DEFINIÇÃO E OBJETIVOS

O Concurso consiste na valorização da arte poética. ARLACS é a sigla de Academia da Responsabilidade Literária, Artística, Cultural e Social, que é o braço sociocultural da Academia Internacional da União Cultural.

2° - NATUREZA DOS TRABALHOS

Pode-se participar com UMA poesia, máximo 20 versos (contando espaços entre estrofes).

Todos os trabalhos devem ser de autoria própria, escritos em língua portuguesa, inéditos (sem publicações seja por meio escrito, via internet ou outros).

3° - TEMA

O tema será LIVRE, sendo que os critérios analisados serão:
a) normas da língua portuguesa,
b) Criatividade,
c) originalidade,
d) estética e
e) exploração de recursos linguísticos.

4° - FORMA DE ENVIO e PRAZO

Os textos deverão ser enviados para o e-mail: 
 
auniaocultural@gmail.com,

no corpo do e-mail, sem arquivos anexos devendo constar, abaixo do poema, obrigatoriamente:
Nome,
endereço completo,
whatsApp,
e-mail e
autorização para divulgação em quaisquer meios, e
âmbito no qual concorre.


Prazo: Os trabalhos serão recebidos até o dia

28 de fevereiro de 2021, às 23h59 (horário de Brasília/Brasil).

5° - PÚBLICO-ALVO

Podem participar do concurso todos os poetas, maiores de idade, pertencentes ou NÃO a ARLACS ou a Academia Internacional da União Cultural.

6° - PREMIAÇÃO

A premiação constará de certificados, enviados de forma virtual, outorgados a critério da Comissão Julgadora, e poderão ou não ser concedidas menções honrosas e/ou especiais.

7° - DISPOSIÇÕES FINAIS

Casos omissos serão resolvidos pelas Comissões, sendo que, de antemão, fica resolvido que:

- as decisões das Comissões Organizadora e Julgadora terão caráter permanente, sendo soberanas e incorrigíveis;

- a partir do momento da inscrição, o autor autoriza a publicação de seus textos em eventuais livretos ou blogs, ou sites, ou facebook, ou outros redes sociais e meios de divulgação, ou por meio impresso, bem como a veiculação em vídeos e áudios;

- para informações adicionais ou para dirimir eventuais dúvidas, envie e-mail para:
auniaocultural@gmail.com ou

whatsApp (12) 97412-5806.


Taubaté-SP/Brasil. 7/fevereiro/2021
ARLACS - Academia da Responsabilidade Literária. Artística, Cultural e Social/ Academia Internacional da União Cultural


Fonte:
Therezinha D. Brisolla

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 479

 


Contos e Lendas do Mundo (O Erro do Burro)


Nas rodas sertanejas, antigamente se contava certa história de bichos, que ainda hoje não é esquecida. Vez por outra algum velho está a relembrá-la com todo os rique-fifes. História simples, sem maiores artifícios, não escondendo, entretanto, o fator moral como razão de ser da passagem pitoresca ocorrida entre animais que falavam, discutiam e agiam de conformidade com os seus interesses.

O fato é que o burro se encontrava muito de seu, pastando nos campos, comendo panasco verde – e a sua atitude pacata até despertava inveja dos próprios homens. Aquilo sim é que era felicidade sem perturbações incômodas. Se chegava a hora de trabalhar, o burro trabalhava no duro, sem pedir misericórdia, sustentando o peso do serviço de carregamento e, ainda pior do que isso, sob o chicote dos moleques condutores ou boiadeiros malvados. Também do boleeiro, pois puxava o cabriolé do senhor e, diziam, fazia-o com uma competência ajudada pela carícia e pela ternura de servir. embora o sangue mau do condutor.

Realmente, o burro era detentor de bondade extraordinária: não fazia nada de cara fechada, era sempre alegre que costumava enfrentar o serviço. Pois, em compensação, os instantes de folga eram compridos por demais, às vezes duravam dias e semanas. Comia o panasco e bebia no tanque de pedra. Andava gordo, sereno e venturoso. De que se queixar? A vida lhe sorria. Não era assaltado por nenhuma aspiração que não fosse sossego e paz, tranquilidade e bonança, trabalho e repouso, boa mesa e sono solto. A liberdade era tudo. Ela rodava-lhe em torno. Os homens falavam em democracia. Democracia deveria ser mais ou menos aquilo: liberdade e abastança, barriga cheia e despreocupação pelo que venha a suceder.

Mas, de repente, quando se achava pensando nessas coisas amáveis, surge pela frente a raposa (a comadre raposa é sempre a mesma figura, no litoral, na mata e no sertão: age astuciosamente e, de ordinário, com requintes de perversidade criminosa) que, desde muito, espiava aquela beleza de existência retirada, sem imprevisto, sem qualquer sinal a mais ou a menos, sem a nota de altos e baixos. Que coisa? Aquilo precisava de sangue novo. Estava reclamando mais movimento, mais ação e, portanto, mais intimidade com a vida. Pois esta andava monótona para os espíritos inquietos e inteligentes, requerendo novidade e que, neste sentido, se fizesse o maior esforço de criação.

Pensou indagando de si mesmo:

- Perto daqui não existe chiqueiro de galinhas?

Então a raposa dispôs-se à luta, procurando o burro, com ele mantendo longa conversação, fazendo-lhe sentir a necessidade de entrar por outros caminhos menos insípidos.

– Olhe, eu conheço a onça pintada que vive na Furna da Alegria. É um prazer visitá-la. Tem vivido muito e passado pelo que o diabo jamais imaginou. Nos meus momentos de angustia é para lá que rumo os meus passos.

– Mas eu não sofro nada, disse o burro. Tenho saúde perfeita. E não me queixo de coisa alguma.

– Isso não significa nenhuma novidade. Também quando me sinto feliz vou bater à porta da amiga. Ouço-lhe a voz carinhosa dos conselhos. Fico ainda mais alegre e cheia de felicidade. A tristeza vai-se embora.

Perversa, a raposa não desanimava na cantada, tudo fazendo para demover o burro do lugar onde se encontrava, pois não tinha ofício nem obrigação, se saía era sempre a passeio e, à noite, os galinheiros estavam à disposição de suas garras. Vagabunda, faladeira, mexeriqueira. Gostava e alimentava a perversidade como estigma da espécie a que pertencia.

Enquanto falava naquele tom, no íntimo bem sabia que a onça pintada era velha e encarquilhada, má, vivendo faminta e assaltando os bichos que tinham o topete de andar por perto de sua morada.

– Vou fazer essa visita que me pede.

E, decidido, largou-se o burro para o lugar em que vivia a onça tão boa, como afirmava a raposa, pacífica e generosa. Chegou às imediações da Furna da Alegria. Viu a bicha cheia de pintas pretas, saindo com um ar de mansidão, se arrastando, com os olhos fuzilando e, dando salto ágil, procurou atingir o limite onde estava o burro. Este desconfiou da parada. E pernas para que te quero, danou no mundo, a galope, regressando num fôlego aos pastos de sua deliciosa mansão. Não sairia mais dali. E comentando com os botões:

- A onça queria me botar no papo. Faminta como quê. Essa cachorra da raposa que me apareça para eu lhe dar o troco merecido.

Os dias correram. Certa vez chega inesperadamente a comadre com toda delicadeza e a pedir desculpa. Aquilo fora um horror. Como obter o perdão de seu amigo? Não tinha direito a isso. Era uma pobre miserável, merecia a morte e, assim, lamentou-se até conseguir manifestações de ternura do burro. Animou-se a maliciosa hipócrita dizendo:

- A onça, eu sabia, estava doente há várias semanas e foi exatamente na ocasião em que você apareceu que ela, zangada e faminta, não o conhecendo, atirou-se com a violência que costuma empregar contra suas presas.

Adiantou cautelosa:

- Porém eu já fiz as necessárias recomendações e ela, agora ciente, pede-lhe mil desculpas, contrariada que está e, sendo possível, espera-o quando você quiser ou achar conveniente.

– Bem, neste caso irei mais tarde.

E, de fato, renovou a dose, isto é, seguiu o caminho já de seu conhecimento. Foi e não voltou. A onça banqueteou-se a semana inteira com mesa opípara. Fazia muito tempo até que não saboreava carne tão gostosa. Carne macia e cheia de vitaminas.

A raposa alcançou o que escondia. Os pastos precisavam ficar abandonados para o senhor da casa-grande, sem querer perdê-los (outro animal para soltar não possuía nas redondezas; o gado andava no cercado; apenas o burro estava privando de uma consideração excepcional; era privilégio forçado) e, ante a evidência, abrisse o chiqueiro e deixasse as frangas e capões invadi-lo para o mais gordo aproveitamento. E ainda teria dito consigo mesmo, apreciando os fatos em que fora figura principal:

- Vá ser burro assim no inferno, na casa do diabo que o carregue.

Fonte:
Ademar Vidal. Lendas e superstições: contos populares brasileiros. RJ: O Cruzeiro, 1950.

Mario Quintana em Prosa e Verso – 14 –


XIII

 
Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela, amarelada...
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! Desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!
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XIV

Gadêa... Pelichek... Sebastião...
Lobo Alvim... Ah, meus velhos camaradas!
Aonde foram vocês? Onde é que estão
Aquelas nossas ideais noitadas?

Fiquei sozinho... Mas não creio, não,
Estejam nossas almas separadas!
Às vezes sinto aqui, nestas calçadas,
O passo amigo de vocês... E então

Não me constranjo de sentir-me alegre,
De amar a vida assim, por mais que ela nos minta...
E no meu romantismo vagabundo

Eu sei que nestes céus de Porto Alegre
é para nós que inda S. Pedro pinta
Os mais belos crepúsculos do Mundo!…
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XV

Sobre a coberta o lívido marfim
Dos meus dedos compridos, amarelos...
Fora, um realejo toca para mim
Valsas antigas, velhos ritornelos.

E esquecido que vou morrer enfim,
Eu me distraio a construir castelos...
Tão altos sempre... cada vez mais belos!...
Nem D. Quixote teve morte assim...

Mas que ouço? Quem será que está chorando?
Se soubesseis o quanto isto me enfada!
E eu fico a olhar o céu pela janela...

Minh'alma louca há de sair cantando
Naquela nuvem que lá está parada
E mais parece um lindo barco a vela!...
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XVI
Para Reynaldo Moura

Que bom ficar assim, horas inteiras,
Fumando... e olhando as lentas espirais...
Enquanto, fora, cantam os beirais
A baladilha ingênua das goteiras.

E vai a névoa, a bruxa silenciosa,
Transformando a cidade, mais e mais,
Nessa Londres longínqua, misteriosa
Das poéticas novelas policiais...

Que bom, depois, sair por essas ruas,
Onde os lampiões, com sua luz febrenta,
São sóis enfermos a fingir de luas...

Sair assim (tudo esquecer talvez!)
E ir andando, pela névoa lenta,
Com a displicência de um fantasma inglês...
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XVII

Quando eu morrer e no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhum de vós!

Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão...
Que lindo a eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da expressão!...

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas...

E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...

Fonte:
Mário Quintana. A Rua dos Cataventos. Publicado em 1940.