quinta-feira, 9 de maio de 2024

Vereda da Poesia = 2


Alfredo dos Santos Mendes
Lagos Algarve/Portugal

A ROSA

QUADRA:
A rosa que tu me deste,
Peguei-lhe, mudou de cor,
Tornou-se, de azul celeste,
Como o céu do nosso amor!
João de Deus

GLOSA:
 Muitos anos já passaram.
E muitas rosas murcharam,
Menos a que me trouxeste.
Ao vê-la tão delicada,
Penso estar enfeitiçada…
A rosa que tu me deste.
 
Tenho por ela ternura.
Pois sei que a sua frescura,
Simboliza nosso amor.
Hoje a prova me foi dada,
Por estar contigo zangada,
Peguei-lhe, mudou de cor.
 
As suas folhas mirraram.
Foram caindo e ficaram,
Perdidas no chão agreste.
Desesperada chorei.
E assim que a rosa beijei,
Tornou-se, de azul celeste.
 
Foram horas de magia.
E a partir daquele dia,
Foi-se o ciúme e a dor.
E logo nesse momento,
Ficou um céu luarento,
Como o céu do nosso amor.

(1º Lugar – Jogos Florais Elos Clube de Tavira)

Recordando Velhas Canções (Chão de Giz)


Compositor: Zé Ramalho

Eu desço dessa solidão
Espalho coisas sobre um chão de giz
Há meros devaneios tolos a me torturar
Fotografias recortadas
Em jornais de folhas amiúde

Eu vou te jogar num pano de guardar confetes
Eu vou te jogar num pano de guardar confetes

Disparo balas de canhão
É inútil, pois existe um grão-vizir
Há tantas violetas velhas sem um colibri
Queria usar, quem sabe
Uma camisa de força ou de Vênus

Mas não vou gozar de nós apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar, gastando assim o meu batom

Agora pego um caminhão
Na lona vou a nocaute outra vez
Pra sempre fui acorrentado no seu calcanhar
Meus vinte anos de boy, that's over, baby
Freud explica

Não vou me sujar fumando apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar, gastando assim o meu batom
Quanto ao pano dos confetes, já passou meu carnaval
E isso explica porque o sexo é assunto popular

No mais, estou indo embora
No mais, estou indo embora
No mais, estou indo embora
No mais
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Chão de Giz: Uma Viagem Lírica pelo Universo de Zé Ramalho
A música 'Chão de Giz', composta e interpretada pelo cantor e compositor paraibano Zé Ramalho, é uma das mais emblemáticas de sua carreira, marcada por letras poéticas e carregadas de simbolismo. A canção, lançada em 1978 no álbum 'Zé Ramalho', traz uma melodia envolvente que acompanha uma letra introspectiva e repleta de metáforas, refletindo sobre sentimentos de solidão, desilusão amorosa e a passagem do tempo.

O título 'Chão de Giz' sugere uma superfície efêmera e frágil, onde as coisas podem ser facilmente apagadas ou desfeitas, assim como os sentimentos e experiências do eu lírico. A expressão 'espalho coisas sobre um chão de giz' pode ser interpretada como a tentativa de dar sentido ou ordem aos pensamentos e emoções que são, por natureza, voláteis e transitórios. As 'fotografias recortadas em jornais de folhas amiúde' evocam memórias fragmentadas, talvez momentos que o narrador gostaria de esquecer ou que causam dor.

A canção também aborda a temática da juventude e suas desilusões, como evidenciado na linha 'Meus vinte anos de boy, that's over, baby'. A referência a Freud e o comentário sobre o sexo ser um 'assunto popular' podem indicar uma reflexão sobre a complexidade das relações humanas e a busca por compreensão psicológica dos comportamentos amorosos. Em suma, 'Chão de Giz' é uma obra que permite múltiplas interpretações, cada ouvinte pode encontrar um significado diferente nas entrelinhas da poesia de Zé Ramalho, o que torna a canção um clássico atemporal da música brasileira.

A. A. de Assis (Status puxa status)

Dá para entender que posar de bacana é imperativo de certos ramos de negócio. Faz parte do ofício. Quanto mais esnoba, mais impressiona. Quanto mais impressiona, mais portas consegue abrir. Quanto mais portas consegue abrir, mais dinheiro ganha

Um ilustre da cidade, tentando explicar na roda de amigos sua preocupação constante em bem-vestir-se, bem-morar e bem-rodar, quase chega a convencer os demais sobre as razões de ser ele assim. Não é que encontre prazer na esnobação, mas se sente forçado a isso porque o contexto profissional exige.

Poderia levar uma vida mais simples, utilizar automóvel menor e menos bebedor de combustível, morar numa casa que não exigisse tantos cuidados e tantos empregados, vestir roupas comuns, frequentar menos as reuniões sociais e políticas.

Isso tem hora que enche, diz ele. Mas não consegue viver modestamente. Sua posição impõe esmeros especiais.

Dá para entender que posar de bacana é imperativo de certos ramos de negócio. Faz parte do ofício. Quanto mais esnoba, mais impressiona. Quanto mais impressiona, mais portas consegue abrir. Quanto mais portas consegue abrir, mais dinheiro ganha.

Não é culpa dele, insiste. A culpa é do contexto. Seu ramo baseia-se no “ter”. E para “ter mais” é preciso ostentar, fazer de conta que já tem mais do que o necessário.

Se ele estacionar em frente ao escritório de um cliente caixa alta num carrinho classe média, talvez nem seja recebido. Chegando num reluzente carrão, vestindo terno de grife, com gravata, colete e algum escudinho na lapela, e além do mais com o rosto vistoso, perfumado, o grande cliente vem pessoalmente abrir-lhe a porta, sente-se homenageado com a sua presença, e fecha o negócio na hora. Coisas da vida.         

Aliás, há muita empresa graúda que paga adicionais a seus executivos para que eles possam frequentar lugares chiques, pagar almoços para clientes que possam render bons negócios, hospedar-se em hotéis caros onde se costuma encontrar gente poderosa; enfim dar o mais que possa alguma amostra de ascensão social e econômica. 

Status puxa status. O mundo é assim, o homem é assim, e não será ele quem vai mudar coisa nenhuma. Seu papel é multiplicar lucros, não discutir costumes.

Se é preciso rodar num carangão invocado, ele roda. Se é preciso vestir ternos de nobre aparência, ele veste. Para ele não se trata de vaidade, trata-se de investimento.

Os amigos contra-argumentam sugerindo que tudo isso é uma bobagem. Mas o distinto não está a fim de dar corda a digressões filosóficas. Realista por fora e por dentro, lembra que “ostentação é ferramenta de trabalho”, especialmente para quem lida com clientela abonada. Optar pela simplicidade seria arriscar-se a perder excelentes oportunidades.

Mas como é domingo, e o papo é num botequim, o “esnobador por dever de ofício” esquece as etiquetas, deixa de lado o costumeiro uísque, e manda vir uma cachacinha das boas. Com pastel de carne seca.

Fonte> enviado pelo autor.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Licença Médica por tempo indeterminado

 Prezados leitores do blog


Devido a uns problemas de saúde (dores no ciático) estarei de repouso, com pausa nas publicações do blog por mais tempo que esperava, sem previsão de retorno.

Obrigado pela compreensão.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “14”

 

Mensagem Na Garrafa = 116 =

Juçara Medeiros Lasmar 
Belo Horizonte/MG

SOMBRINHAS

Sombrinhas, assim se chamavam pois eram usadas para que as mocinhas e senhoras, cujas peles eram alvas primando sempre pela brancura, se cobrissem do sol em seus passeios vespertinos.

Hoje, quando o bronzeado é a característica de beleza, elas, as sombrinhas, continuam tendo a sua utilidade, porém diferente. Sombras, não fazem mais, apesar de continuarem a ter este nome.

Olhando de minha janela a chuva que cai sem cessar, vejo várias parecendo um desfile interminável de cores. Lindas, coloridas, com estampas variadas de flores, geométricas, algumas bem humoradas em seus desenhos, outras mais clássicas, de uma só tonalidade.

Elas cobrem sim, cobrem os rostos, os corpos de quem olha, como eu, com curiosidade, tentando descobrir quem está passando nesta manhã chuvosa.

Que mistérios se escondem embaixo das sombrinhas que cobrem da chuva? Será que ainda se roubam beijos debaixo delas, como nos idos tempos de nossas avós?

Penso que não, os tempos são outros, os beijos são explícitos. Nada mais há para esconder. Estamos no século vinte e um onde tudo pode ser dito e mostrado. Nós, mulheres conquistamos nossa independência.

Mas... continuamos misteriosas... Escolhemos com esmero nossas sombrinhas, que vão nos cobrir da chuva, e talvez, de algum olhar furtivo, ao cruzarmos com alguém nas chuvas do caminho, num delicioso e clandestino flerte.

Aparecido Raimundo de Souza (Como um barquinho de papel navegando em águas procelosas)

 (Com carinho, para Heitor Melo Magalhães )

EM UMA PISCINA de plástico retangular de três mil litros de água cercada pela calmaria de um quintal de muros altos, uma simplória réplica de um bote feito pelo avô do pequeno Heitor (de seis anos) à custa de uma simples folha de papel arrancada às escondidas do caderno de sua mãe, a jovem Luana Cristina, o guri terrivelmente travesso lança à agua de um azul límpido e transparente, com muito cuidado e uma pitada enorme de esperança o seu frágil brinquedo construído pelo pai de sua mãe. Essa embarcação pintada com vários lápis coloridos (ele não sabe, não entende, mas cá entre nós), é extremamente franzino e raquítico. Em razão desse evento, o brinquedo de folha de papel se acha depauperado (debilitado), quase sem forças. Se projeta aos olhos do piá como um paquete (embarcação pequena) ágil e cauteloso, soberbo e indestrutível. Ele foi construído à base de sonhos e fantasias, se fez conhecido por carregar muitas histórias de sua dona nas antigas aulas da faculdade de enfermagem. 

E agora, do nada, a folha à imagem de um navio, desliza suavemente enlevado pela brisa amena que sopra sem pressa e parece dançar sorridente na sua lerdeza, sobre as ondas diminutas que se formam por baixo de seu casco quase todo encharcado. Bem sabemos, Heitor desconhece o futuro da criação que lhe foi dada de bom grado. Nem sempre o destino aos nossos olhos é um lago sereno, ou uma piscina de plástico retangular com capacidade para três mil litros de água no escondido de um quintal de muros altos. Às vezes, um diminuto vapor de papel pintado pode se encontrar em águas de traços estranhos, ou em situações perigosas e caóticas, onde o risco de naufragar no próximo minuto se faz cada vez mais presente –, ou melhor –, cada vez mais flagrante e iminente. As cálidas águas tranquilas da piscina, num repente podem dar lugar às correntezas impetuosas. Sendo assim, o que deveria ser um divertimento caseiro para um inocente sem visão do agora, menos ainda do porvir, pode se tornar em uma luta ferrenha pela sobrevivência. 

Nessas águas, o transatlântico de Heitor enfrenta tempestades inesperadas. Se depara com chuvas torrenciais invisíveis, e se vê colhido por ventos fortes que o fazem bater perigosamente contra a borda da piscina e também em decorrência da sua frágil construção delicada. Para piorar o quadro, ondas gigantescas açoitadas pelas batidas das mãozinhas do pirralho ao encontro das águas, ameaçam engolir a tenra folha a cada novo milésimo de segundo. Entretanto, apesar das intempéries, a piroga segue lisonjeira e destemida pervagando em frente. Peleja com o fôlego de um leão indomável e não se entrega aos percalços da má sorte que ronda a sua trajetória. Aos tapas e beijos, sopapos e petelecos, a débil folha de caderno transformada numa espécie do lendário Titanic, navega trôpego aos olhos do seu dono e senhor, com a coragem indômita de um Sansão, de um Super-Homem, de um herói afoito e peitudo, invencível, aguerrido e resoluto, que sabe e mesmo se conscientizando pequeno, possui a força hercúlea de continuar avançando, tentando não soçobrar. 

Cada sopapo que o atinge, é um desafio novo. Cada vento que sopra, um teste de resistência. Apesar dos pesares, a minúscula nau de papel segue altaneira e feliz. Vai capengando aos trancos e barrancos, desviando daqui e dali entremeado por uma imensidão de pedras submersas, não vistas à olho nu, porém, evitando os redemoinhos que tentam, a todo custo, arrastá-lo de sua rota para os recônditos de um fundo profundo e medonhamente colossal, ainda que daquele mar abarbarado (barbarizado) e mavórcio (bélico) que lhe parece indomável. O navegante do pequeno menino é uma espécie de metáfora transladada da vida. Apesar de inválido, sequioso por pleitear açambarcando uma margem segura, é capaz de encarar sem medos ou receios, as diversidades com resistência e determinação. Essa simples réplica do gigante dos sete mares do pequeno Heitor, a bem da verdade, nos ensina uma lição impecável e grandiosa: mesmo circundado nas ondas mais ebulitivas (ferventes) e irrequietas (ainda que de uma piscina montada num fundo de quintal) podemos apreciar a beleza e o arroubo escondidos, e não só ver, mas sentirmos a primazia e a esperança brotarem do nada em toda a sua elegância e formosura. 

Há a chance de navegar, bem ainda, de contrapeso, o desafio imperturbável de explorar e de chegar a destinos nunca antes visitados ou imaginados. Mesmo uma simples réplica de papel colorida pode realizar grandes viagens, obviamente se o seu comandante tiver a coragem de desacatar e afrontar o obscuro, ou aquilo que não está visível e palpável aos sentidos e mais, igualmente é e se faz, se mostra superior e, como tal, pugna a insultar o acaso e a vencer contrastando o anônimo. O heteróclito (eclético) não é um bicho de sete cabeças. O funambulesco (ridículo) ou o desconhecido não é o fim da linha; tampouco o ponto final; menos ainda o término da viagem. Representa, acima de nossa visão, a venustidade (graça), a força motriz, a galhardia que nos impulsiona, ou a sapiência que nos leva (ainda que a toque de caixas, a imaginar, como o pequeno Heitor) ou dito de forma mais clara e concisa, para nos lembrarmos sempre... haja o que houver, nunca devemos desistir, notadamente jamais abandonarmos os nossos sonhos e objetivos. 

Fonte: Texto enviado pelo autor

Carmem Andrea Soek Pliessnig (Carmemnatureza) (Poemas avulsos)


ESPONTANEIDADE

A nascente do rio das suas lágrimas 
lavam a alma com a beleza da sua face
que cada vez mais encanta a formosura
do seu pensamento através 
de um olhar que chora louvando
a felicidade por apreciar a vida
comparando a chuva como um banho
de revestimento surpreendente do céu,
transforma suas corridas divertidas 
para esconder-se deste clima brincalhão
feito criança.
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LUXO

Toda alma é revestida de um sentimento 
que ilumina a vida proporcionando 
ao exterior o vigor das emoções 
entrelaçadas aos olhares físicos e mentais. 

A força dos sonhos são o respirar 
das intenções que a todo instante 
é moldado por um fio dourado feito 
a luz do sol e o prateado da lua. 

Tece a arte de acomodar a alma, 
o ser que faz da calmaria 
o mais sublime artesanato vital. 

Cria uma peça brilhante 
com a transparência da íris 
e das lágrimas quando convém 
manifestar-se de uma alegria 
tão expressiva que somente 
um profundo suspiro proporciona 
a função de instrumento de enlaces. 

E assim, representa o próprio eu 
passeando com destino sem parada, 
pois os mistérios bordados não têm fim. 
Os lados entre aqui e lá geram 
a imersão do pensamento sábio 
sem precisar de perguntas 
e respostas diante de quem somos.
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OUSADIA

Um dia, tomei banho de chuva 
Era verão intenso, mergulhei
Sorrindo na felicidade molhada
Senti o sabor da água. Sorri!

Inesquecível instante, quero mais,
O tempo passa e lembramos 
Das inocentes aventuras 
Faz bem experimentar, ousar-se

Tudo é um crescimento, avanço,
É feito tatuagem na alma, sonhos,
A realidade  encoraja a sinestesia 
Alegria, explosão no coração 

Não existe o medo nesta hora
Por muitas vezes foi planejado 
Quietinho no pensamento…
Surpresa boa a nós mesmos 

Hoje, tomei banho de chuva 
Fase adulta, coração de criança 
Nenhuma preocupação, doce paz
Páginas da vida que voltamos
Ao livro antigo e nos descobrimos 
Somos o reflexo da doce infância
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VIDA

Vida! Receba o meu sublime 
despertar de todas as manhãs. 
Acordo com o coração repleto de paz, 
ternura que brota em meu olhar 
com o florescer do bem-estar. 
A noite me proporciona tranquilidade 
sem pensar como será meu futuro. 
Aqui estou para ser um especial presente 
divino que me ilumina 
e me identifica com o amor.
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Carmem Andrea Soek Pliessnig (Pseudônimo: Carmemnatureza), nasceu em 1976,em Telêmaco Borba/Pr. Poetisa e professora graduada em Português/Espanhol. Pós-graduada - Língua Portuguesa/Estrangeira e Neuropsicopedagogia. Foi radialista com mensagens espirituais. Membro da Banca Examinadora Literária Projeto Chá da Vida por Hupomone Vilanova. Convidada especial da Galeria 50 + em Curitiba para criar poemas das obras da artista plástica Vivien Zanlorenzi no evento: Metamorfose. Atuante de antologias poéticas, principalmente, do novo estilo poético SPINA.  Membro da cadeira 111 da ALBAP/ Academia Luso Brasileira de Artes e Poesias. Participante de contos pela Revista Multiverso. Administradora especialista da Comunidade Literária Intercontinental de Poesias Cantinho do Amor. 

Recordando Velhas Canções (Retalhos de Cetim)


Compositor: Benito di Paula

Ensaiei meu samba o ano inteiro
Comprei surdo e tamborim
Gastei tudo em fantasia
Era só o que eu queria
E ela jurou desfilar pra mim

Minha escola estava tão bonita
Era tudo o que eu queria ver
Em retalhos de cetim
Eu dormi o ano inteiro
E ela jurou desfilar pra mim

Mas chegou o carnaval
E ela não desfilou
Eu chorei na avenida, eu chorei
Não pensei que mentia a cabrocha, que eu tanto amei

Minha escola estava tão bonita
Era tudo o que eu queria ver
Em retalhos de cetim
Eu dormi o ano inteiro
E ela jurou desfilar pra mim

Mas chegou o carnaval
E ela não desfilou
Eu chorei na avenida, eu chorei
Não pensei que mentia a cabrocha, que eu tanto amei

Mas chegou o carnaval
E ela não desfilou
Eu chorei na avenida, eu chorei
Não pensei que mentia a cabrocha, que eu tanto amei

Mas chegou o carnaval
E ela não desfilou
Eu chorei na avenida, eu chorei
Não pensei que mentia a cabrocha, que eu tanto amei

Mas chegou o carnaval
E ela não desfilou
Eu chorei na avenida, eu chorei
Não pensei que mentia a cabrocha, que eu tanto amei
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Desilusão em Festa: A Dor do Amor no Carnaval
A música 'Retalhos de Cetim', composta e interpretada por Benito Di Paula, é uma expressão melancólica que contrasta com a alegria habitualmente associada ao carnaval. A letra narra a história de um homem que se dedicou durante um ano inteiro preparando-se para o carnaval, investindo tempo e recursos em seu samba, instrumentos e fantasias, movido pela promessa de que sua amada desfilaria com ele.

A repetição do verso 'Ela jurou desfilar pra mim' ressalta a confiança e a expectativa do narrador na palavra da 'cabrocha', termo carinhoso e antigo para se referir a uma mulher jovem e bonita, geralmente associado ao universo do samba. A escola de samba, descrita como 'tão bonita' e adornada com 'retalhos de cetim', simboliza o sonho e a paixão do narrador, que se vê despedaçado quando a promessa não é cumprida.

A dor do protagonista é evidenciada pelo choro na avenida, lugar onde a festa acontece e onde ele esperava compartilhar a felicidade com sua amada. A traição e a mentira são reveladas no clímax do carnaval, momento de celebração que se transforma em palco de sua desilusão. A música, portanto, aborda temas como a expectativa, a traição e a dor do amor não correspondido, tudo isso emoldurado pelo cenário festivo do carnaval brasileiro.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Vanice Zimerman (Tela de versos) 34

 

Arthur Thomaz (Zorriso)

Cleyderson assistiu ao noticiário na TV em que o apresentador avisava que o uso de máscara seria obrigatório. Passou o dia trabalhando na fábrica sem conseguir esquecer a notícia.

Na saída, passou na loja e comprou a máscara. Antes de entrar no “buteco”, colocou-a no rosto.
Até hoje não é sabido se ele comprou uma máscara do Zorro por brincadeira ou por total ignorância a respeito do assunto pandemia. Ouviu dos amigos de bar uma sonora gargalhada após o olhar espantado de todos.

Um gaiato, lá no fundo, gritou, perguntando onde estava o Tonto. Outro perguntou onde está o Sargento Garcia. E ainda perguntaram se ele tinha deixado o cavalo Silver lá fora.

Cleyderson abriu um largo sorriso, o que foi suficiente para alguém dizer “Zorriso”, uma mistura de Zorro com sorriso.

Enquanto tomavam suas bebidas habituais, o assunto permaneceu o mesmo. Voltando para casa, o rapaz começou, inconscientemente, a incorporar o apelido em sua mente.

Pensou horas seguidas em como capitalizar esse fato. Pesquisou na internet tudo sobre o personagem herói. Não tinha um cavalo, não tinha um amigo índio chamado Tonto, tampouco sabia manejar uma espada ou um revólver. A única coincidência era o fato de também ser solitário como o cavaleiro herói dos filmes.

Com a ideia já inexoravelmente incutida em sua mente, passou dias seguidos tentando encontrar uma solução para esse desafio que o destino lhe impunha em ser um herói. 

Passando em frente a uma loja de esportes, observou um taco de beisebol no canto da vitrine. Pechinchou até conseguir um preço adequado às suas economias.

Assistiu alguns jogos para entender o manuseio do objeto e percebeu que poderia ser uma poderosa arma em suas mãos, já que era um rapaz de forte compleição física.

Revestiu a ponta do taco com espuma de um velho travesseiro, para amortecer o impacto porque não suportava ver sangue. Como era conhecido no bairro, resolveu agir em um local distante. 

Para isso, pintou sua bicicleta de branco e passou a chamá-la de Silver. Nas primeiras noites de ronda, não encontrou ninguém praticando atos ilícitos. Já quase desistindo de se tornar herói, certa noite deparou-se com dois meliantes roubando um carro.

Partiu como uma flecha em sua bicicleta na direção da dupla, gritando: “aiou Silver”, como no filme. Os bandidos ficaram tão surpresos com essa aparição, que nem esboçaram reação e foram atingidos com o taco.

Zorriso amarrou-os com a corda que trazia, e afastando-se do local, informou à polícia. Esta cena repetiu-se algumas vezes, causando-lhe a sensação de ser um verdadeiro herói. Sabendo que se contasse suas proezas no “buteco” seria zombado pelos amigos, jamais compartilhou seus heroicos feitos.

Determinada noite em ronda, localizou três pessoas em atitude suspeita na frente de uma loja. Sem titubear, entrou em ação, golpeando-os. Quando estava amarrando os bandidos, surgiu uma equipe da ROTA, que ordenou a ele que levantasse as mãos.

Zorriso abriu um imenso sorriso. Inadvertidamente, ao ver outros heróis, ergueu a mão com o taco para saudá-los, o que foi considerado pelos policiais um ato hostil.

Baleado, foi a óbito no local.

Conduziram seu corpo ao IML. O legista atestou a morte como anemia aguda, causada por perfuração de projétil de arma de fogo. Comentou com os outros profissionais nunca ter visto um cadáver estampando tão largo sorriso. Cleyderson não teve honras de herói em seu funeral.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (Oceano)


Compositor: Djavan

Assim que o dia amanheceu lá
No mar alto da paixão
Dava pra ver o tempo ruir
Cadê você? Que solidão!
Esquecera de mim

Enfim, de tudo o que há na terra
Não há nada em lugar nenhum
Que vá crescer sem você chegar
Longe de ti, tudo parou
Ninguém sabe o que eu sofri

Amar é um deserto e seus temores
Vida que vai na sela dessas dores
Não sabe voltar, me dá teu calor
Vem me fazer feliz, porque eu te amo
Você deságua em mim, e eu, oceano
E esqueço que amar é quase uma dor

Só sei viver se for por você

Enfim, de tudo o que há na terra
Não há nada em lugar nenhum
Que vá crescer sem você chegar
Longe de ti, tudo parou
Ninguém sabe o que eu sofri

Amar é um deserto e seus temores
Vida que vai na sela dessas dores
Não sabe voltar, me dá teu calor
Vem me fazer feliz, porque eu te amo
Você deságua em mim, e eu, oceano
E esqueço que amar é quase uma dor

Só sei viver se for por você
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Navegando pelas Emoções Profundas de 'Oceano' de Djavan
A canção 'Oceano', do renomado artista brasileiro Djavan, é uma obra que mergulha nas profundezas do amor e da paixão, explorando a intensidade e a complexidade dos sentimentos que acompanham um relacionamento amoroso. A letra da música utiliza metáforas náuticas para descrever a experiência de estar apaixonado, sugerindo uma viagem pelo mar agitado das emoções.

A expressão 'mar alto da paixão' evoca a ideia de um amor grande e profundo, mas que também pode ser turbulento e incerto, como o mar. O tempo que 'ruir' pode representar as dificuldades e os obstáculos que surgem em um relacionamento, enquanto a solidão sentida pelo eu lírico reflete a ausência da pessoa amada. A repetição da frase 'Enfim, de tudo o que há na terra' reforça a ideia de que nada tem significado ou pode prosperar sem a presença do ser amado.

A música também aborda a dor intrínseca ao amor, como expresso nos versos 'Amar é um deserto e seus temores' e 'E esqueço que amar é quase uma dor'. Essas linhas sugerem que amar pode ser uma jornada solitária e cheia de desafios, mas apesar disso, há um desejo ardente pelo calor e pela felicidade que apenas o ser amado pode trazer. A declaração final 'Só sei viver se for por você' é um testemunho da dedicação total do eu lírico ao seu amor, indicando que a vida sem a pessoa amada é inconcebível. Djavan, com sua habilidade lírica e melódica, consegue transmitir a profundidade e a paixão de um amor oceânico, onde o eu lírico se vê imerso e dependente da presença do outro para encontrar sentido na vida.

Humberto de Campos (Aparências)

Em toda a rua São Gabriel, naquele movimentado bairro operário, o assunto mais em evidência era, há muitos dias, aquele: a saída furtiva, a horas altas da noite, daquela rapariga tão linda, desde que morrera o marido.

— É uma falta de vergonha, D. Inácia, o que está fazendo aquela desalmada — informava, de janela para janela, a vizinha da direita. — Ainda ontem, à noite, eu fiquei de vigília aqui por dentro da rótula*, e vi tudo: a atrevida esperou que se fechassem todas as casas, abriu a porta, espiou para um lado e para outro, e, como não visse ninguém, pôs um xale, e saiu. Imagine o que ela não foi fazer por ali...

— Dizem que vai para um clube dançar o maxixe com o Manoel português, — adiantava D. Inácia.

— A Vitalina, outro dia, quando voltava do baile do Alfredo, alta madrugada, encontrou-se com ela, que saía de casa. A desnaturada ficou tão envergonhada que cobriu o rosto, para não ser conhecida.

— Que mulher cínica! — terminava uma.

— Que falta de vergonha! — confirmava a outra.

Divulgada a notícia do escândalo, toda a rua ficava, horas e horas, à espreita, aguardando, pelas frestas das janelas, a saída clandestina da viúva. E quando esta desaparecia, ao longe, na esquina, as rótulas se escancaravam, as cabeças emergiam, e começavam as observações!

— Viu?

— Vi!

— Sim, senhora! Quem diria?!...

— Que escândalo!

— Que horror!...

Certa noite, porém, instigados pelas mulheres, resolveram alguns operários acompanhar de longe a notívaga, fiscalizando-lhe os passos, para desagravo do morto. Pé ante pé, espiando de canto em canto, escondendo-se pelos portais, andaram os homens de rua em rua, até que foram ter a um campo deserto, em frente a um mercado. E ali viram, enxugando os olhos rasos de pranto: a "pervertida" saía todas as noites, embuçada na treva, para disputar aos porcos, no monturo, uma fruta podre, para a fome do filho!…
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* Rótula = Grade de madeira de certas janelas e portas que deixa entrar luz e ar pelo intervalo das ripas entrecruzadas de que é feita.

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Disponível em Domínio Público.

Vereda da Poesia = 1

Guibson Medeiros
Cabedelo/PB

CORDEL DE NOVELAS

Belíssima Despedida de solteiro
A próxima vítima O rei do gado
O profeta Roque santeiro
Sassaricando O bem amado 

Cabocla Da cor do pecado
A favorita Estrela guia
O astro Cordel encantado
A padroeira Eterna magia

Alma gêmea As três Marias
A sucessora Vereda tropical
Mulheres de areia Maria Maria
Selva de pedra Lua de cristal

Olho no olho Pecado capital
O amor está no ar
Salomé Fera radical
Escrava Isaura Livre para voar

Aquele beijo Toma lá da cá
Carinhoso Sabor da paixão
Corpo a corpo Direito de amar
Final feliz Explode coração

Pedra sobre pedra O casarão
Terra nostra O mapa da mina
Dancin days A próxima atração
Cambalacho Negócio da China

Feijão maravilha Gina
A gata comeu Marrom glacê
Anjo mau gente fina
Tiêta Voltei pra você

Roda de fogo Bambolê
Laços de família Esplendor
Começar de novo Renascer
Amor eterno amor

Mandala Vila Madalena
Torre de babel Escalada
Deus nos acuda Helena
Minha doce namorada

Eu prometo A viagem
Viver a vida Um sonho a mais
Vida nova Irmãos coragem
A sombra dos laranjais

América Pátria minha
Paraíso Tropicaliente
Gabriela a Moreninha
Por amor A vida da gente

Chega mais cama de gato
Beleza pura felicidade
Mico preto Bicho do mato
O dono do mundo celebridade

Um anjo que caiu do céu
Fina estampa sete pecados
Dona Xepa Barriga de aluguel
De corpo e alma Coração alado

Baila comigo Estúpido cupido
O amor é nosso Passione
O noviço O homem proibido
Tempos modernos O clone

Quatro por quatro Locomotivas
Louco amor Pecado rasgado
Como uma onda Água viva
Sol de verão corpo dourado

Sinhá moça Meu bem querer
Perigosas peruas Vira  lata
Senhora do destino Quem é você
Zazá Rainha da sucata

Fogo sobre terra Bang  bang
Porto dos milagres Araguaia
Jogo da vida Pacto de sangue
Era uma vez Saramandaia

De quina pra lua Brilhante
Marina Meu bem meu mal
Pai herói Coração de estudante
Cubanacan Paraíso tropical

Sinhazinha Flô Desejo proibido
O primeiro amor Hipertensão
Partido alto Sétimo sentido
Vale tudo insensato coração

O outro Anjo de mim
Morde e assopra Padre Tião
Pé na jaca terras do sem fim
Meu pedacinho de chão

O cravo e a Rosa Duas vidas
Te contei Que Rei sou eu
O semiDeus fera ferida
As três irmãs Sonho meu.

Lima Barreto (Esta minha letra...)

A minha letra é um bilhete de loteria. Às vezes ela me dá muito, outras vezes tira-me os últimos tostões da minha inteligência. Eu devia esta explicação aos meus leitores, porque sob a minha responsabilidade tem saído cada coisa de se tirar o chapéu. Não há folhetim em que não venham coisas extraordinárias. Se, às vezes, não me põe mal com a gramática, põe-me em hostilidade com o bom-senso e arrasta-me a dizer coisas descabidas. Ainda no último folhetim, além de um ou dois períodos completamente truncados e outras coisas, ela levou à compreensão dos meus raros leitores — grandeza — quando se tratava de pândega; num artigo que publiquei há dias na Estação Teatral, este então totalmente empastelado, havia coisas do arco-da-velha.

Aqui já saiu um folhetim meu, aquele que eu mais estimo, “Os galeões do México”, tão truncado, tão doido, que mais parecia delírio, do que coisa de homem são de espírito. Tive medo de ser recolhido ao hospício...

Que ela me levasse a incorrer na crítica gramatical da terra, vá, mas que me leve a dizer coisas contra a clara inteligência das coisas, contra o bom-senso e o pensar honesto e com plena consciência do que estou fazendo! E não sei a razão por que a minha letra me trai de maneira tão insólita e inesperada. Não digo que sejam os tipógrafos ou os revisores; eu não digo que sejam eles que me fazem escrever “a exposição de palavras sinistras” quando se tratava de “exposição de projetos sinistros”. Não, não são eles, absolutamente não são eles. Nem eu. É a minha letra.

Estou nesta posição absolutamente inqualificável, original e pouco classificável: um homem que pensa uma coisa, quer ser escritor, mas a letra escreve outra coisa e idiota. Que hei de fazer?

Eu quero ser escritor, porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras.

Não quero aqui fazer a minha biografia; basta, penso eu, que lhes diga que abandonei todos os caminhos, por esse das letras; e o fiz conscientemente, superiormente, sem nada de mais forte que me desviasse de qualquer outra ambição, e agora vem essa coisa de letra, esse último obstáculo, esse premente pesadelo, e não sei que hei de fazer!

Abandonar o propósito; deixar a estrada desembaraçada a todos os gênios explosivos e econômicos de que esses Brasis e os políticos nos abarrotam?

É duro fazê-lo, depois de quase dez anos de trabalho, de esforço contínuo e — por que não dizer? — de estudo, sofrimento e humilhações. Mude de letra, disse-me alguém.

É curioso. Como se eu pudesse ficar bonito, só pelo fato de querer.

Ora, esse meu conselheiro é um dos homens mais simples que eu conheço. Mudar de letra! Onde é que ele viu isso? Com certeza ele não disse isso ao Sr. Alcindo Guanabara, cuja letra é famosa nos jornais. Que o fizesse, com certeza, ele não diria ao Sr. Machado de Assis também. O motivo é simples: o Sr. Alcindo é o chefe, é o príncipe do jornalismo, é deputado; e Machado de Assis era grande chanceler das letras, homem aclamado e considerado; ambos, portanto, não podiam mudar de letra; mas eu, pobre autor de um livreco, eu que não sou nem doutor em qualquer história — eu, decerto, tenho o dever e posso mudar de letra.

Outro conselheiro (são sempre pessoas a quem faço reclamações sobre os erros) disse-me: – Escreva em máquina. – Ponho de parte o custo de um desses desgraciosos aparelhos, e lembro aqui os senhores que aquilo é fatigante, cansa muito e obrigava-me ao trabalho nauseante de fazer um artigo duas vezes: escrever a pena e passar a limpo em máquina.

O mais interessante é que a minha letra, além de ter-me emprestado uma razoável estupidez, fez-me arranjar inimigos. Não tenho a indiferença que toda a gente tem pelos inimigos; se não tenho medo, não sou neutro diante deles; mas isso de ter inimigos só por causa da letra, é de espantar, é de mortificar.

Já não posso entrar na revisão e nas oficinas aqui da casa. Logo na entrada percebo a hostilidade muda contra mim e me apavoro. Se fosse no cenáculo do Garnier ou em outro qualquer, seria bom; se fosse mesmo no salão literário do Coelho Neto, eu ficaria contente; entre aqueles homens simples, porém, com os quais eu não compito em nada, é para a gente julgar-se um monstro, um peste, um flagelo. E tudo isso por quê? Por causa da minha letra. Desespero decididamente.

De manhã, quando recebo a Gazeta ou outra publicação em que haja minhas coisas, eu me encho de medo, e é com medo que começo a ler o artigo que firmo com a responsabilidade do meu humilde nome. A continuação da leitura é então um suplício. Tenho vontade de chorar, de matar, de suicidar-me; todos os desejos me passam pela alma e todas as tragédias vejo diante dos olhos. Salto da cadeira, atiro o jornal ao chão, rasgo-o; é um inferno.

Eu não sei se todos nos jornais têm boa caligrafia. Certamente, hão de ter e os seus originais devem chegar à tipografia quase impressos. Nas letras, porém, não é assim.

Eu não cito autores, porque citar autores só se pode fazer aos ilustres, e seria demasia eu me por em paralelo com eles, mesmo sendo em negócio de caligrafia. Deixo-os de lado e só quero lembrar os que escreveram grandes obras, belas, corretas, até ao ponto em que as coisas humanas podem ser perfeitas. Como conseguiram isso?

Não sei; mas há de haver quem o saiba e espero encontrar esse alguém para explicar-me. 

De tal modo essa questão de letra está implicando com o meu futuro que eu já penso em casar-me. Hão de surpreender-se em ver estas duas coisas misturadas: boa letra e casamento. O motivo é muito simples e vou explicar a gênese da associação com toda a clareza de detalhes.

Foi um dia destes. Eu vinha de trem muito aborrecido porque saíra o meu folhetim todo errado. O aspecto desordenado dos nossos subúrbios ia se desenrolando a meus olhos; o trem se enchia da mais fina flor da aristocracia dos subúrbios. Os senhores com certeza não sabiam que os subúrbios têm uma aristocracia.

Pois têm. É uma aristocracia curiosa, em cuja composição entrou uma grande parte dos elementos médios da cidade inteira: funcionários de pequena categoria, chefes de oficinas, pequenos militares, médicos de fracos rendimentos, advogados sem causa etc.

Iam entrando com a “morgue” que caracteriza uma aristocracia de tal antiguidade e tão fortes rendimentos, quando uma moça, carregada de lápis, penas, réguas, cadernos, livros, entrou também e veio sentar-se a meu lado.

Não era feia, mas não era bela. Tinha umas feições miúdas, um triste olhar pardo de fraco brilho, uns cabelos pouco abundantes, um colo deprimido e pouco cheio. Tudo nela era pequenino, modesto; mas era, afinal, bonitinha, como lá dizem os namorados.

Olhei-a com o temor com que sempre olho as damas e continuei a mastigar as minhas mágoas.

Num dado momento, ela puxou um dos muitos cadernos que trazia, abriu-o, dobrou-o e pôs-se a ler. Que não me levem a mal o Binóculo e a Nota Chic e não deitem por isso excomunhão sobre mim! Sei bem que não é de boa educação ler o que os outros estão lendo ao nosso lado; mas não me contive e deitei uma olhadela, tanto mais (notem bem os senhores do Binóculo e da Nota Chic) que me pareceu, a moça o fazia para ralar-me de inveja ou encher-me de admiração por ela.

Tratava-se de álgebra, e as mulheres têm pela matemática uma fascinação de ídolo inacessível. Foi, portanto, para mostrar-me que ela o ia atingindo que desdobrou o caderno; ou então para dizer-me sem palavras: Veja, você, seu homem! Você anda de calças, mas não sabe isso... Ela se enganava um pouco.

Mas... como dizia: olhei o caderno e o que vi, meu Deus! Uma letra, um cursivo irrepreensível, com todos os tracinhos, com todas as filigranas. Os “tt” muito bem traçados — uma maravilha!

Ah! pensei eu. Se essa moça se quisesse casar comigo, como eu não seria feliz? Como diminuiriam os meus inimigos e as tolices que são escritas por minha conta? Copiava-me os artigos e...

Quis namorá-la, mas não sei namorar, não só porque não sei, como também porque tenho consciência da minha fealdade. Fui, pois, tão canhestro, tão tolo, tão inábil, que ela nem percebeu. Um namoro de... caboclo.

Seria, casar-me com ela, uma solução para esse meu problema da letra, mas nem este mesmo eu posso encontrar e tenho que aguentar esse meu inimigo, essa traição que está nas minhas mãos, esse abutre que me devora diariamente a fraca reputação e pouca inteligência.

Fonte> Publicada originalmente na Gazeta da Tarde, de 28.06.1911, posteriormente no livro Feiras e Mafuás, em 1953, em obra póstuma.