quarta-feira, 16 de abril de 2025

Voltaire (Os dois consolados)

O grande filósofo Citófilo dizia, certo dia, a uma dama desolada, que tinha muitas razões para estar assim:

— A rainha da Inglaterra, filha do grande Henrique IV, foi tão desventurada quanto a senhora: expulsaram-no do trono, esteve na iminência de perecer no oceano sob a fúria das tempestades e viu o seu marido no patíbulo.

— Lamento por ela — disse a dama.

E se pôs a chorar os seus próprios infortúnios.

— Lembre-se de Maria Stuart — atalhou Citófilo. — Ela amou com grande honestidade um elegante músico que tinha uma grande voz. O seu marido matou o músico em sua presença. E, depois, sua boa amiga Elisabete, que se dizia virgem, mandou-lhe cortar a cabeça sobre o cadafalso forrado de negro, após dezoito anos de cativeiro.

— Isso é muito cruel — respondeu a dama.

E novamente mergulhou em sua melancolia.

—Talvez a senhora tenha ouvido falar — disse o filósofo consolador — da bela Joana de Nápoles, que foi presa e estrangulada, não?

— Lembro-me confusamente — respondeu, aflita, a senhora.

— É preciso que lhe conte — acrescentou o outro — a aventura de uma soberana que em minha mocidade, depois de um jantar, foi destronada e faleceu em uma ilha deserta.

— Conheço toda essa história — replicou a dama.

— Pois bem: vou contar-lhe o que aconteceu à outra princesa a quem ensinei filosofia. Tinha um namorado, assim como todas as grandes e belas princesas. Seu pai penetrou na alcova e surpreendeu o namorado, que tinha o rosto ardente e os olhos resplandecentes como diamantes. A dama também tinha o rosto muito enrubescido. O rosto do jovem pareceu tão repulsivo ao pai da princesa que o velho monarca lhe aplicou a maior bofetada que se deu em sua província. O namorado, lançando mão de uma tenaz, partiu a cabeça do velho que, curada, ainda exibia a cicatriz daquela ferida. A namorada, consternada, saltou pela janela e quebrou uma perna; de maneira que, ainda hoje, coxeia visivelmente, por mais que o disfarce e a despeito de seu porte admirável. O namorado foi condenado à morte por haver quebrado a cabeça de tão alto príncipe. Imagine, agora, o estado da princesa quando levavam o seu amado à forca. Eu a visitei durante um bom tempo enquanto ele estava na prisão. Só falava nas suas desventuras.

— Por que não quer, então, que eu pense nas minhas? — disse-lhe a dama.

— É — respondeu-lhe o filósofo — porque não há razão para pensar em desventura, e porque, sendo tantas as damas infelizes, a senhora não deve desesperar-se. Pense em Hécuba, em Nicolice...

— Ah! — disse a dama. — Se eu tivesse vivido nos tempos dessas últimas mulheres,  ou na de tão formosas princesas, e se, para consolá-las, o senhor lhes contasse as minhas desgraças, acha mesmo que elas lhe dariam ouvidos?

No dia seguinte, o filósofo perdeu seu único filho e esteve na iminência de morrer de dor. A dama redigiu uma lista de todos os reis que haviam perdido os seus filhos e a levou para o filósofo. Este a leu, achou-a exata, completa e não deixou de chorar.

Três meses depois, encontram-se novamente  e ficaram surpresos de estar com tão excelente humor.

Fizeram, então, erigir uma estátua ao Tempo, com esta inscrição:

Àquele que consola.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 

VOLTAIRE (François-Marie Arouet) (1694-1778) Dramaturgo e filósofo francês, foi um dos mais proeminentes pensadores do iluminismo (movimento do século XVII). Inimigo das autoridades, foi preso várias vezes e escreveu mais de 2000 obras, entre livros, peças e panfletos políticos. Politicamente ativo e criador de polêmicas, as suas ideias eram críticas ao poder do clero católico, ao fanatismo religioso da população e à injustiça dos poderosos. As ideias de Voltaire sempre criticavam de modo irônico e satírico os reis que governavam a França e a corrupção da Igreja. Após o exílio na Inglaterra, o filósofo revolucionário se tornaria um ativista na defesa da liberdade de pensamento, do direito a um julgamento justo e da tolerância religiosa, além da separação entre Igreja e Estado. Voltaire contribuiu significativamente para os eventos que levaram às revoluções políticas e sociais do final do século XVIII na Europa, mesmo após a sua morte, em 1778.

Fontes:
Voltaire. Os dois consolados. Publicado originalmente em 1756. Disponível em Domínio Público.  
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Sangue de barata”

Dizemos que alguém que tem “Sangue de barata” quando a pessoa não reage a provocações ou situações desagradáveis, conseguindo ficar calma até nas horas mais difíceis. Trata-se de pessoa com "sangue frio", e olha que nem mesmo sangue essa bicha asquerosa tem.

É que a barata, assim como a maioria dos insetos, não tem sangue e sim possui um nauseabundo fluido chamado hemolinfa, que é transparente e não apresenta pigmentos. Dizem que o sangue é o condutor da nossa sensibilidade ao coração e assim, a pessoa com "sangue de barata" é fria e insensível, já que o inseto não possui o sangue "tradicional" que corre quente em nossas veias.

Dentro desse contexto, após agredir um torcedor, um jogador de futebol procurou justificar seu reprovável gesto dizendo que foi insultado antes e depois do jogo e dentro do esperado, reagiu: 

- “Ele ofendeu minha irmã e eu parti para cima dele, pois não tenho sangue de barata”. 

Natural de Caracaraí em Roraima, Marília Tavares iniciou na carreira artística ainda criança, com quatro anos de idade, quando cantava em eventos religiosos e culturais em sua cidade natal. Veja-se o trecho do texto poético de uma de suas canções, denominada justamente de “Sangue de Barata”:


Eu não consigo
Tampar a boca da minha raiva
Mandar o olho devolver a água
Pra ser plateia do meu ex-te-amo
Tem que ter sangue de barata.
Uma coisa que eu não tenho é sangue de barata, viu?

“Sangue de barata” inspirou também o nome de duas outras obras literárias, sendo uma de Sandra Paterno e outra de Martha Medeiros, demonstrando que essa expressão cultural fez parada na literatura e na música, assim nos meios eruditos e populares.

Sandra Paterno, natural de Ariranha (SP), escritora, gestora digital, psicopedagoga clínica e educacional, especialista em educação especial, pedagoga, compositora, palestrante e artista, imprimiu em seus muitos livros fortes ingredientes de psicologia e humor. 

“Sangue de Barata” é um dos livros dessa magnífica autora paulista que explora a psique de quem afirma não ter sangue de barata, daquele tipo de gente que não levam desaforo para casa. O livro busca desvendar as camadas ocultas da personalidade e guiar o leitor para o autoconhecimento. 

Diferente da cantora de Caracaraí (RR), famosa por “não ter sangue de barata”, a gaúcha Martha Medeiros, escritora, poeta e uma das melhores cronistas brasileiras, com mais de um milhão de exemplares vendidos, notabilizou-se pelo inverso. Esclarece que "Sangue de Barata" significa que a pessoa não reage quando é ofendida, age sempre marcada pela apatia, pelo “deixa pra lá”, sentimentos recorrentes nos apreciados textos da versátil autora. 

Em sua prestigiada coluna literária no GZH, Martha é coerente e confessa: "Quase tudo que conquistei na vida (desconte o exagero) foi por ter sangue de barata". Ela cita como exemplos a confiança no fato de que as pessoas cansarão se ela não der corda para suas maluquices, a sua compaixão por quem não tem condição de expandir-se, a calma diante de provocações, a tolerância com os desaforos, a paciência para aguardar e a espera da hora exata de cair fora. 

Portanto, quando nos referimos a alguém com “sangue de barata”, é o mesmo que dizer que a pessoa tem o sangue gelado, não age impulsivamente, não pega corda por qualquer coisa, não reage de bate pronto, não tem o tal pavio curto. 

No Lago Grande da Franca e em todo o Baixo Amazonas no Pará, um marmanjo desafiado para resolver uma diferença pessoal “no braço” e não reage, mesmo quando palavrosamente ofendido, é inapelavelmente rotulado de “indigno”, que no exemplo dado, não tem nada a ver com falta de dignidade pessoal e sim, com a falta de disposição para a luta corporal, haja vista que naquela vasta aba de mundo, assim como no Marajó, todo moleque briga desde a mais tenra idade. E é reputado “indigno” porque tem “sangue de barata”...

Nas danças da Desfeiteira que antigamente alegravam as várzeas do Arapucú, oeste paraense, a conhecida expressão não passou despercebida dos versejadores durante os bailes juninos, em que jocosamente provocavam suas damas, para delas receber, em cima da bucha, a merecida e irreverente resposta.

O cavalheiro:
Cabocla estúrdia e gostosa
desse jeito tu me mata,
te imploro, casa comigo,
não tenho sangue de barata...

A dama:   
Te enxerga pirento...
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fonte:
Enviado pelo autor
Imagem criada com Microsoft Bing 

O “Folhetim”

O folhetim é uma narrativa literária, seriada dentro dos gêneros prosa de ficção e romance. Folhetins são publicados de forma seriada e sequenciada em periódicos (jornais e revistas), rádio e televisão.

O folhetim surgiu na França no início do século XIX. Chegou ao Brasil logo depois, fazendo sucesso na segunda metade do século XIX. Eram publicados diariamente em jornais da capital do Império (Rio de Janeiro) e jornais do interior.

Originalmente (no século XIX) o termo folhetim (do francês feuilleton) designava uma seção, geralmente no rodapé da primeira página do jornal, onde um escritor publicava uma coluna com uma crônica (folhetim-crônica), um artigo avulso (por exemplo, de crítica literária) ou um romance em capítulos (romance folhetinesco, que poderia depois ser lançado em livro). 

Neste último sentido, nas novas mídias do século XX, deu lugar à “novela” de rádio e televisão.

Autores brasileiros como José de Alencar, Machado de Assis, Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto e Joaquim Manuel de Macedo tiveram obras suas publicadas em folhetins para depois serem editadas em livros. 

O romance urbano A Moreninha de Joaquim Manuel de Macedo é considerado o exemplo de folhetim mais popular da história do Brasil, tendo sido sucesso de vendas numa época em que a maioria da população do país ainda era analfabeta.

No final do século XIX, o formato alcançou seu apogeu. Foi publicado à exaustão, como forma de aumentar a venda dos jornais e auto-afirmar a presença do então novo veículo de informação. Apesar da boa demanda, o papel do folhetim como disseminador de cultura de massa e entretenimento não sobreviveu ao surgimento do Rádio.

O Rádio, por sua vez, também aproveitou-se da linguagem folhetinesca para auto-afirmar-se como veículo de comunicação. Dramatizações de folhetins deram origem às radionovelas, e o sucesso gerou a demanda por autores do gênero. Surgiram os primeiros grandes autores de radionovela, que anos depois migrariam para a produção televisiva.

A Televisão também deve sua afirmação como veículo de comunicação ao formato folhetinesco, na medida em que usou da mesma estratégia que os jornais e o rádio para conquistar seu espaço. As telenovelas utilizam a linguagem narrativa dos folhetins: técnica de utilização de ganchos ao final dos capítulos, abordagem de temas populares e polêmicos. Esses acabaram se tornando pontos pacíficos de qualquer narrativa que se proponha popular e destinada às grandes massas.

O Romance policial era publicado em periódicos jornalísticos no século XVIII e XIX, no século XX, passou a ser publicado em revistas pulp e livros de bolso, que herdaram características folhetinescas como o texto envolvente, o papel de herói do detetive, a luta do bem contra o mal, a verossimilhança e atualidade informativo-jornalística. Além disso, possui uma temática semelhante aos Faits divers e à cobertura policial.

No Brasil, nos anos de 1940, sob o pseudônimo feminino de Suzana Flag, o escritor Nelson Rodrigues escreveu alguns romances em formato de folhetim para os Diários Associados Chateaubriand. Com o primeiro folhetim; Meu destino é pecar, o sucesso foi tal que os leitores acreditavam que Suzana Flag existia de verdade. Saboreando tal sucesso Nelson escreve ainda: Escravas do Amor, Minha Vida, Núpcias de Fogo, O Homem Proibido e A Mentira. 

Em 1954, A MURALHA também foi editada no formato romance pela editora José Olympio. E esse foi o caminho de muitas obras publicadas em folhetins, como os livros de Machado de Assis e José de Alencar. O formato, aliás, influenciou muito a escrita desses dois autores, “quase todos os grandes escritores brasileiros do século XIX passaram por jornais. Podemos citar alguns que entraram para o cânone, como Joaquim Manoel de Macedo, Raul Pompéia, Aloísio de Azevedo e Euclides da Cunha”. (Luís Roberto de Souza Júnior)

O folhetim ajudou muito na popularização da leitura no Brasil, já que o acesso à livros era, bem, reservado às classes mais altas da sociedade. Mas lá naquelas páginas cheias de notas, notícias, reportagens, tinha sempre um pouquinho de ficção para encantar os leitores no rodapé das páginas.

No início da década de 1970, na tentativa de aumentar a venda da sua revista feminina "Grande Hotel", a Casa Editora Vecchi lançou alguns folhetins traduzidos supostamente de autores franceses, sob os títulos: Sublime Sacrifício (Mario D'Anconne - G.H. 1209 a 1236), Escrava de um Juramento (Geraldine Aubry - G.H. 1243 a 1270), Sepultada Viva (Geraldine Aubry - G.H. 1270 a 1300) e ainda Expulsa na Noite de Núpcias e O Inferno de um Anjo (Henriette de Tremière - G.H. 1301 a 1343 / 1343 a 1384). As edições eram encartadas em fascículos na citada revista que tinha edição semanal, depois a editora oferecia as capas para encadernação. Eram belos romances açucarados endereçados aos adolescentes.(Fonte: Revista Grande Hotel enumeradas acima - Paulo Sena: detentor de acervo com 4 destas obras completas e parte de Escrava de um Juramento)

Ainda nos anos de 1970, a antiga revista Capricho, aquela em antigo formato, publicava o folhetim Terra do Sol, da novelista Janete Clair, em suas últimas páginas. A trama era bem ao estilo de suas novelas da TV. Continha fotos coloridas com algumas cenas dos capítulos em evidência que eram belíssimas. Mais tarde, já no decorrer dos anos 80, a revista Manchete encartava os fascículos de Nenê Bonet, também da divina criadora Janete Clair. Era uma trama localizada no Rio antigo, trazendo à tona a época do glamour

Tentativa de retorno ao folhetim no Brasil da Confeitaria Colombo. Depois este folhetim foi editado em livro que, embora com edição esgotada, pode ser encontrado ainda em sebos espalhados pelo Brasil. (Paulo Sena - Vivências de leitura e manuseio na época, e presença das obras que dão testemunho dos escritos de Janete Clair). 

Algumas obras famosas que nasceram nas páginas de revistas e jornais:

O Guarani, de José de Alencar
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
O Ateneu, de Raul Pompéia
Casa de pensão, de Aluísio Azevedo
Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas
Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Folhetim&oldid=69416732
https://suminstante.substack.com/p/ah-os-tempos-dos-folhetins   10 jun 2022.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Asas da Poesia * 4 *


 Poema de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, — restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
= = = = = = = = =  

Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba / PR

As imagens do tempo
Ficaram encalacradas
No velho espelho 
E o sorriso sem jeito
Ficou imperfeito pela mancha no aço
No corredor semi-escuro
Com ladrilhos em mosaico
Desfilam lembranças 
Com chinelos de veludo
E o espelho
Com olhar cansado 
Já não guarda mais segredo 
Com silêncio centenário 
O relógio de parede
Assiste a tudo
Pois já os seu ponteiros 
Parados
Marcam um tempo indefinido.
= = = = = = = = =  

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

À janela do meu quarto de alfazema
(Augusto Nunes in "Os Espelhos da Água", p. 16)

À janela do meu quarto de alfazema
Vem a lua, de leve e a sorrir
Indagar se eu estou mesmo a dormir
Ou se namoro ainda o meu poema.

E vendo que eu hesito no fonema
Que a voz do coração há de exprimir
Um raio de luar vem redigir
A frase que me solta do dilema.

De miradouro faz esta janela
E em muitas noites saio através dela
Levado por estrelas e miragens.

E quando me levanto, de manhã
Sinto que a alma está mais pura e sã
Depois de eu regressar dessas viagens.
= = = = = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Dizem que amas de mentira,
mas gosto de acreditar,
e até que um dia eu confira,
vou-me deixando enganar.
= = = = = = 

Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Última página

Primavera. Um sorriso aberto em tudo. Os ramos
Numa palpitação de flores e de ninhos.
Dourava o sol de outubro a areia dos caminhos
(Lembras-te, Rosa?) e ao sol de outubro nos amamos.

Verão. (Lembras-te, Dulce?) À beira-mar, sozinhos,
Tentou-nos o pecado: olhaste-me... e pecamos;
E o outono desfolhava os roseirais vizinhos,
Ó Laura, a vez primeira em que nos abraçamos...

Veio o inverno. Porém, sentada em meus joelhos,
Nua, presos aos meus os teus lábios vermelhos,
(Lembras-te, Branca?) ardia a tua carne em flor...

Carne, que queres mais? Coração, que mais queres?
Passam as estações e passam as mulheres...
E eu tenho amado tanto! e não conheço o Amor!
= = = = = = 

Trova de 
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

A saudade não me poupa,
desenhando, fio a fio,
o perfil da tua roupa
no guarda-roupa vazio...
= = = = = = 

Soneto de
AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN, 1876 – 1901, Natal/RN

A minha avó

Minh' alma vai cantar, alma sagrada!
Raio de sol dos meus primeiros dias...
Gota de luz nas regiões sombrias
De minha vida triste e amargurada.

Minh 'alma vai cantar, velhinha amada!
Rio onde correm minhas alegrias...
Anjo bendito que me refugias
Nas tuas asas contra a sina irada!

Minh 'alma vai cantar... Transforma o seio
N'um cofre santo de carícias cheio,
Para este livro todo o meu tesouro...

Eu quero vê-lo, em desejada calma,
No rico santuário de tu' alma...
— Hóstia guardada num cibório de ouro!
= = = = = = = = =  

Haicai de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Os Ipês de Maringá

O show dos ipês.
Turistas gravam imagens
para o facebook.
= = = = = = 

Glosa de
ZÉ SALVADOR
São Gonçalo/ RJ

Mote:
O QUE SE FAZ COM AMOR
TEM UM SABOR DIFERENTE. 
ADEILZA PEREIRA
Serra Talhada/ PE
.
Eu faço arte popular,
na que faço, sou fiel,
sou amante do cordel
e jamais quis me casar.
Eu preferi me amigar,
decisão inteligente, 
foi conceituadamente
meu consenso sem impor 
o que se faz com amor
tem um sabor diferente. 
.
Planto uva vou colher uva,
fava planto e colho fava,
por isto aqui eu pensava:
cai água do céu é chuva
e a cortadeira é saúva
não é gente como a gente,
mas, ô “bichim” resistente 
e muito trabalhador,
o que se faz com amor
tem um sabor diferente!
.
A formiga cortadeira
na prevenção da invernada,
tem a labuta pesada
trabalha sem brincadeira,
mas a cigarra faceira
se diverte no presente,
canta no sol inclemente  
seja o futuro qual for,
o que se faz com amor
tem um sabor diferente.
.
A aranha tem seu emprego, 
ela é boa fiandeira, 
fia o fio a noite inteira
tem a roca no sossego,
isto não é subemprego
é um prazer referente,
não estardalha mas sente
a sua leveza ao expor
o que se faz com amor
tem um sabor diferente.
= = = = = = 

Hino de 
RIACHO DA CRUZ/ RN

Refrão
Riacho da Cruz, Brasil!
Nós te saudamos e te valorizamos – BIS

Parte I
Apesar de pequenina
Há fascínio e encantos mil
És retrato de formosura
Dentro dos encantos do Brasil.

Refrão
Riacho da Cruz, Brasil!
Nós te saudamos e te valorizamos – BIS

Parte II
A tua gente simples
Mais calorosa e gentil
Te saúda com orgulho
Este bom pedaço do Brasil.

Refrão
Riacho da Cruz, Brasil!
Nós te saudamos e te valorizamos – BIS

Parte III
Riacho, teu nome
É Riacho da Cruz
E o teu povo forte
Faz do Rio Grande do Norte
Sua terra mãe, de luz! Riacho da Cruz.

Refrão
Riacho da Cruz, Brasil!
Nós te saudamos e te valorizamos – BIS

Parte IV
Riacho, teu nome
É Riacho da Cruz
E o teu povo forte
Faz do Rio Grande do Norte
Sua terra mãe, de luz! Riacho da Cruz

Riacho da Cruz, BRASILLLLLLLLLL!
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

Esta noite

Nesta noite tão bela quero ter-te
Ao meu lado sorrindo e bem contente.
Aceitando o convite com meu flerte
Para jantarmos logo mais...  Consente!

Nós dois naquele barco, ao convés,
Não venha com recusa,  por favor!
Traga aqueles teus olhos cuja cor
Transmite essa beleza do que és.

Agora temos logo de tratar
Do que precisaremos nesta noite
Talvez alguma coisa pra levar.

Uma noite só nossa é o que prometo
Mesmo com tanto medo do pernoite
No  barco em alto-mar, mesmo em soneto.
= = = = = = = = =  = = = = 

Uma Lengalenga de Portugal
LENGALENGAS PARA TIRAR A SORTE
 
Um-dó-li-tá
Cara de amendoá
Um segredo colorido
Quem está livre
Livre está
***

Um, dois, três, quatro
A galinha mais o pato
Fugiram da capoeira
Foi atrás a cozinheira
Que lhes deu com um sapato
Um, dois, três, quatro…
***

 Nove vezes nove
Oitenta e um,
Sete macacos e tu és um
Fora eu que não sou nenhum!
***

A saquinha das surpresas
Ninguém sabe o que lá vem
Tão calada, tão quietinha
Vamos ver o que lá vem!
***

 Pim, pam, pum
Cada bola mata um
Da galinha pro peru
Quem se livra és tu!
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Se esta rua fosse minha
eu mandava ladrilhar,
com pedrinhas de brilhante, 
para meu amor passar.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Vida em verdes versos

Na imobilidade dos seus gestos
O Olhar intenso, atento.
Em total cumplicidade com a folha
Torna-se parte delas
Num mágico entrelaçar de vidas:
Louva-a- deus e folha
Ele, na solidão e expectativa de seus breves dias,
Uma vida plena...
Ela, a folha observa e o admira.
O mágico dos disfarces
Imita as cores à sua volta,
E, assim inspira poemas:
Vida em verdes versos...
= = = = = =

Monteiro Lobato (A raposinha)

Era uma vez um príncipe que saiu a correr mundo, em procura dum remédio para o rei, seu pai, que estava cego. Depois de muito andar, passou por uma aldeia, onde viu vários homens dando uma surra num defunto.

— Que é isso? — perguntou o príncipe.

— É que este homem nos devia dinheiro e morreu sem pagar. O costume da aldeia manda meter a lenha no cadáver.

O príncipe revoltou-se contra a brutalidade, e pagando a dívida do morto deu ordem para que o enterrassem.

Seguiu caminho. Adiante encontrou uma raposa que lhe perguntou para onde ia. O príncipe contou que andava atrás dum remédio para a cegueira do rei, seu pai.

— Pois sei de um remédio — disse a raposinha. — Basta esfregar nos olhos do rei um pouco de "unguento de papagaio", mas de um certo papagaio lá do reino dos Papagaios. Vá lá, meu príncipe, entre à meia-noite no lugar onde estão esses pássaros e não olhe para os bonitos, os que moram em gaiolas douradas. Pegue o mais velho de todos, o mais depenado e sujo, que está a um canto, num poleiro imundo. Esse é o bom.

O príncipe foi. Quando entrou no reino dos Papagaios, ficou de boca aberta com tantas aves lindas que viu, em gaiolas de prata e ouro, e até cravejadas de diamantes. Esquecido da recomendação da raposinha, pegou a gaiola do mais bonito e foi saindo. Mas o papagaio deu um berro. Os guardas acordaram e prenderam o príncipe.

— Que queres com este papagaio? — disseram. — Vais morrer, gatuno!

O príncipe, com muito medo, explicou do que se tratava. Os guardas então lhe disseram:

— Pois muito bem: damos-te o papagaio se fores ao reino das Espadas e nos trouxeres uma delas — e soltaram-no.

O príncipe saiu muito triste porque não sabia onde era o tal reino. A raposinha apareceu-lhe de novo.

— Então, meu príncipe, que tristeza é essa? — e depois de saber do acontecido falou assim: — Eu bem recomendei que pegasse o papagaio mais velho e feio. Agora o que tem a fazer é o seguinte: vá ao reino das Espadas (e contou onde era) e entre lá à meia-noite. Encontrará espadas de todos os jeitos, de ouro e prata, muitas cravejadas de pedras preciosas — mas não pegue nenhuma dessas. Pegue uma velhinha e enferrujada, que está num canto. Essa é a boa.

O príncipe foi, e lá no reino das Espadas ficou de boca aberta diante de tantas maravilhas que viu. Mas não teve coragem de pegar na espada mais velha e enferrujada; escolheu, ao contrário, a mais rica de todas. Quando ia saindo, fez barulho sem querer, os guardas acordaram e o prenderam. Iam levá-lo ao rei de Espadas.

O príncipe, porém, contou sua triste história de modo a comover os guardas, os quais disseram: "Bem. Perdoaremos o seu crime, se for ao reino dos Cavalos e nos trouxer um."

O príncipe saiu em procura do reino dos Cavalos. Logo adiante encontrou a raposinha. "Para onde vai tão triste o senhor príncipe?" — perguntou ela.

O príncipe contou tudo.

— Bem feito — disse a raposinha. — Por que não fez como eu disse? O remédio agora é um só — ir ao reino dos Cavalos (e contou onde era) e lá entrar à meia-noite. Encontrará muitíssimos cavalos de todas as cores e raças, cada qual mais lindo. Mas não pegue nenhum desses. Escolha o mais velho e feio. Esse é o bom.

O príncipe foi, mas tão lindos animais viu no reino dos Cavalos que não teve ânimo de pegar no mais velho e feio. Escolheu, ao contrário, o mais lindo de todos. Ao sair, o cavalo relinchou, acordando os guardas, que o prenderam.

Houve explicação e por fim os guardas disseram:

— Pois bem, nós o perdoaremos se você furtar a filha do rei.

O príncipe prometeu e saiu. Logo adiante encontrou a raposinha que lhe disse:

— Príncipe, saiba que sou a alma daquele defunto que levou a surra por causa das dívidas. Ando a protegê-lo por todos os modos, mas nada tem adiantado. Você nunca faz o que eu digo. Vamos ver se agora me atende. Arranje um cavalo e vá à meia-noite ao palácio do rei; entre, agarre a moça, ponha-a na garupa e dispare no galope. Passe pelo reino dos Cavalos e pegue o que eu disse. Depois passe pelo reino das Espadas e pegue a que eu disse. Depois passe pelo reino dos Papagaios e pegue o que eu disse. E dispare a toda velocidade para a casa de seu pai, porque o velho está morre, não morre. Mas nunca entre por veredas, nem dê atenção a coisa nenhuma antes de chegar em casa. E adeus!

O príncipe lá se foi. Chegando ao palácio do rei, furtou a moça; chegando ao reino dos Cavalos, pegou o mais velho e feio; chegando ao reino das Espadas, levou a mais velha; chegando ao reino dos Papagaios, pegou o mais feio — e seguiu a galope na direção de sua casa.

Pelo caminho, porém, encontrou seus irmãos que tinham saído à procura dele, mas que ao verem aqueles objetos ficaram com inveja e resolveram matá-lo para roubar. Para isso convenceram-no de que devia deixar a estrada e seguir por um atalho, porque indo pelo atalho estaria livre de ser assaltado por ladrões.

O moço caiu na esparrela; seguiu pelo atalho. Logo adiante os maus irmãos assaltaram-no, roubaram-no e jogaram-no num buraco, certos de que estava morto. E voltaram para casa com os despojos. 

Aconteceu, porém, uma porção de coisas. A moça não queria comer nem falar; o papagaio enfiou a cabeça sob a asa e não disse uma só palavra; a espada ficou mais enferrujada ainda e o cavalo pendeu a cabeça como se fosse morrer.

Quando o moço, lá no buraco, acordou do longo desmaio, viu diante de si a raposa, a qual o tirou dali e o botou no caminho. Ele seguiu para casa manquitolando. Assim que chegou, a espada perdeu a ferrugem, ficando novinha em folha; o papagaio criou penas novas e foi sentar-se em seu ombro; a moça deu uma gargalhada gostosa e falou pelos cotovelos; o cavalo ergueu a cabeça e engordou num instante.

O príncipe, então, dirigiu-se ao quarto do pai cego e esfregou-lhe nos olhos um pouco de "unguento de papagaio" — e o rei imediatamente recobrou a visão e a saúde.

Foi uma grande alegria na corte. O bom príncipe casou-se com a moça e os maus irmãos foram expulsos do reino. E acabou-se a história.

Fontes:
Monteiro Lobato. Histórias de Tia Nastácia. Publicado originalmente em 1937. Disponível em Domínio Público.  
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Aparecido Raimundo de Souza (Trajetória de planeio)

O TEMPO é um tecelão habilidoso, entrelaçando os fios da vida com a destreza de um mestre. Ele tece memórias, sonhos e desejos em um padrão único e nós, meros observadores, assistimos enquanto o pano de fundo se forma majestoso. Corre uma tarde bonita e calma, dessas em que o sol se esconde tímido atrás das folhas douradas. Na praça principal, aliás, a única aqui deste lugarejo, bancos de cimento acalentam histórias de amor. Lembram risos e choros. Festejam os idos de casais namorando. Os pombos esfomeados não são os mesmos, tampouco os passarinhos. Nem os bebês em seus carrinhos e babás. Eu estou sentado em um desses bancos sujos, olhando o tempo passar. 

Uma senhora de idade, ossos e células longínquas, as vestes estropiadas, os cabelos em desalinho, se aproxima. Endereça-me uma boa tarde e pergunta se pode se sentar a meu lado. Respondo com um sorriso largo no rosto fechado. Seus olhos carregam a sabedoria de quem viu muitas outras e não aproveitou nenhuma. Ela se acomoda, olha para o céu e diz: 

— O tempo se esvai, meu jovem. Por vezes, rápido demais. Em outras, devagar, quase parando, como um rio, de passos cansados, trazendo águas de muito longe... de repente, seu leito se queda preguiçoso dormitando exausto ao sabor de uma das margens.

Ela me conta, após esta introdução criativa, sobre a sua juventude. Fala dos amores perdidos. Descreve os sonhos realizados e os que ficaram pelo meio do caminho, como cachorros que por algum motivo caíram dos caminhões de mudanças e jamais foram encontrados: 

— Tudo passa – repete três vezes tais palavras, como se recitasse um mantra. As estações, como as de um trem, mudam. As pessoas embarcam ou desembarcam, se transformam.… Todavia, o que cria raízes, são as memórias póstumas. Automaticamente elas também se decompõem.  Vem e vão. As horas correm. Na verdade, voam. Perceba que os ponteiros são “incansáveis”. O que vemos estático, são as lembranças. 

Eu olho discretamente para o relógio da torre da igreja do outro lado junto ao coreto. Os ponteiros dançam marcando o compasso da vida. O vento sussurra segredos em meus ouvidos. E a senhorinha ali, falando pelos cotovelos:

— Tudo se esvai, meu prezado. As dores, as alegrias, os momentos de solidão, os abraços apertados dos que nos sãos caros. Os choros dos recém-nascidos, a voz da nossa mãe chamando para o café, o pai saindo para o trabalho... as crianças afoitas em direção a escola, em suntuosas algazarras...

De repente, do nada, ela se levanta. Sem se despedir, vira as costas e vai embora. Se afasta numa lentidão carente, como se o peso da sua idade fosse o principal motivo dos seus pés descalços se fazerem demasiadamente lentos e sem um destino pré-estabelecido. 

Naquela tarde, ao voltar para minha casa, prometi a mim que viveria cada instante com mais intensidade. Que não deixaria o tempo escorrer por entre meus dedos como a areia fina. Que abraçaria o efêmero sabendo que no fim, o que importava, o que realmente fazia a diferença não é outra coisa senão as histórias que vivemos e as almas que tocamos ou que nos abordaram. 

Na praça silenciosa, sei que o tempo continuará o seu trabalho. As folhas cairão, o vento soprará e as memórias se entrelaçarão num amplexo indescritível. Após ela ter se levantado, eu fui também. Bati a poeira da sujeira do banco. E segui. Os demais que encontrei durante o trajeto até chegar ao meu destino, eram pessoas que iam ou vinham de algum lugar. Engraçado: umas ao cruzarem comigo, educadas e gentis, resmungam um “boa noite”; outros somente um “olá” insosso. Como os passantes avulsos, segui meu trilhar. No rosto, lágrimas insistentes turvam a visão da vida que me contempla silenciosa. Sem parar, passo pela birosca do Alfredo. Sempre cheia! 

Lá dentro, uma chusma de frequentadores em pé, ou encostada às paredes, bebe com força e manda para dentro, (com sorrisos mostrando dentes cariados), uns tira-gostos acondicionados numa vitrine enorme de vidros sujos sobre o balcão repleto de garrafas, latinhas e copos vazios. Cruzo pelo salão da barbearia do Edgar, àquela hora, vazio. Ele cochila sentado na cadeira à espera de um freguês retardatário. Logo adiante, na padaria de dona Nicete, as moscas ensandecidas disputam espaços em mesas ociosas. 

Apenas a lindíssima e encantadora dra. Simária, a dentista (a única da cidade), se farta bebendo um refrigerante e comendo um sanduiche de pão dormido com mortadela. Em contíguo , o salão da Lisandra, cabelereira, se vê fechado. O mercado do Aristides Abreu (onde se vende de tudo) as três moças dos caixas esperam bater as vinte horas. Enquanto isso, fofocam em gritos pictóricos, um amontoado de estridências obscenas vividas com seus namorados em finais de noite alta na plataforma da estação de trem. Neste curso, ora riem, fazem gestos, ora tiram fotos e exibem nos celulares as filmagens, disputando competitivamente quem havia aprontado mais na noite anterior. 

Na verdade, cada uma delas, em particular, granjeia chamar a atenção para si mesma, demonstrando, na maioria, fatos que não iam além de quimeras envoltas em invenções mentirosas. Em suma, apenas o gosto saboroso de chamar a atenção. Pois bem! Antes de chegar ao portão da minha residência, prometo a mim mesmo (os dedinhos cruzados), asseverando que daquele dia em diante, sempre que saísse do meu universo particular, viveria em cada esquina, em cada pedra que topasse, em cada rosto que me endereçasse um olhar mais delongado, enfim, em cada instante que me fosse permitido, com a intensidade que recebo do Pai Maior, agradecer por estar literalmente vivo. 

Do mesmo modo, desfrutaria, saborearia, apeteceria a sucessão das graças recebidas e viveria. Viveria, viveria, viveria. Deixaria de ser um estabanado átomo fugidio, um desgostoso fantasma insone, tipo um sujeito encolhido atrás de uma muralha, negando a visão da própria realidade. Tomo consciência que preciso, sem mais delongas, me desavergonhar da sucessão dos meus janeiros vividos. Desvencilhar-me do cara quadrado, imbecil e atoleimado que eu sou agora. Desgarrar-me de uma vez por todas da consciência pesada que me subjuga, que me agrilhoa, e que me oprime aflitivamente, com uma avidez tresloucada e enlouquecedora. 

Levanto a cabeça. Sempre faço isso, quando retorno. Espio demoradamente para o infinito. Sorrio. Em seguida, faço o sinal da cruz, e entro. Ai então, não paro mais. Desembesto, afoito, direto e sem me deter em direção ao meu cantinho. No portal que acessa a minha varanda, a mãe colocou um retrato meu. Uma foto esmaecida pelo tempo. Um mimo, a bem da verdade. Ao lado dele, um enorme vaso com rosas vermelhas que ela sempre mantém colhidas do jardim do seu olhar. Eu moro, faz dez anos aqui. Meu endereço? Anota, por favor. Avenida dos Ipês, quadra dezenove, jazigo perpétuo, sepultura de número mil novecentos e cinquenta e três.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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