segunda-feira, 4 de junho de 2012

Sotero Silveira de Souza (O Trovador da Lira Triste) Parte 3, final


Dizem que a paixão é louca,
E os beijos de ternura,
Como o amor, tem vida pouca,
É eterno enquanto dura!

Os teus seios palpitantes,
Que afago com calor,
São dois coxins odorantes,
Onde durmo com amor!

As aves de grande porte,
Adejam sem sobressalto,
Se elas temessem a morte,
Não voariam tão alto!

Sempre a alma padece,
Quando no amor não há sorte;
tolice, ninguém merece,
O preço de nossa morte!

Agradeço o teu beijo,
Que me deste com calor,
Veio matar o meu desejo,
E aumentar meu amor!

Quisera ser passarinho,
Para bem alto voar,
Depois, pousar no raminho,
De laranjeira e cantar!

O teu corpo delicado,
Que demonstra perfeição,
Foi por Deus emoldurado,
Pra tentar meu coração!

Perdi-me no areal da vida,
Fraco, sedento de amor,
E ao encontrar-te querida,
Tornei-me um trovador!

Eu vi as garças voando,
Caçando junto à lagoa,
O pantanal enfeitando,
Sobressaltadas à toa!

Não sei dizer o que sinto,
Quando vejo o teu olhar,
É uma alegria, não minto,
Que vontade de casar!

Não sei porque tu me deixas,
Com orgulho, com desdém,
Escuta as minhas queixas,
Voltes de novo meu bem!

Diz que o passado não morre,
E não para de passar,
É como o rio que corre,
Tristonho, no rumo do mar!

Setenta e um anos vividos,
Com fé, saudade e amor,
Entre anseios, beijos e gemidos;
Hoje, só, frio, sem calor!

Por que a vida madrasta,
Quando se trata de amor;
O ciúme atroz nos desgasta,
Só fica tristeza de cor!

Para uns a morte é linda,
Para outras é querida,
É uma espera infinda,
pois ela é outra vida!

Recordo-me da cigana,
Que olhou na minha mão,
Olhei-a com tanta gana,
Beijando-a com emoção!

Como Deus, Jesus foi Santo,
sendo assim, jamais pecou;
Como homem, eu garanto,
Que Jesus também amou!

Jesus deve ter amado,
Com mente pura e sadia,
Como um lírio imaculado,
Na virente penedia!

Teus olhos verdes, luzentes,
Que jorram cintilação,
São quais estrelas cadentes,
Na noite de um coração!

Teus olhos verdes vagos,
Que às vezes tento mirar,
Tem o mistério dos lagos,
Na hora de crepuscular!

Teus olhos verdes, fulgentes,
Brilhando na solidão,
São esmeraldas pingentes,
Num rico colar de sultão!

Teus olhos verdes tristonhos,
Que nunca pude sondar,
São dois pedaços de sonhos,
São duas negas de mar!

Não vires as costas pra mim,
Pois o anjo não tem costas,
Quanto mais tu fazes assim,
Eu sei que de mim mais gostas!

Abracei teu corpo lindo,
Quando contigo dançava,
E vi, que estavas sorrindo,
Enquanto eu suspirava!

Eu sei que não mereço,
Mas vou tentar te amar,
Querida, eu te agradeço,
A bondade do teu olhar!

Feliz por te conhecer,
nasceu em mim esperança,
Jamais hei de me esquecer
Do teu corpo naquela dança!

Toda de branco catita,
Com rosa de rubra cor;
Não sei quem é mais bonita,
Se a mulher ou a flor!

Te implorei a vida inteira,
Que me desses um retrato,
Foste bela companheira,
Mas de coração ingrato!

A mãe que trabalha é nobre,
É um fato que consola;
Digna é a mão do pobre,
Aberta, pedindo esmola!

Há muita gente vaidosa,
Que o orgulho se consome;
Chega a sorrir prazerosa,
Vendo o pobre passar fome!

Teu rosto lindo, morena,
E o teu corpo encantador,
Faz-me lembrar de açucena,
Num ramalhete de flor!

Ao ver-te altiva, serena,
Com teu talhe sedutor,
Penso da deusa morena,
Fugida do templo do amor!

O preto velho chorava,
E sorria com emoção,
Ao ver que o neto brincava,
Liberto da escravidão!

É belo assistir nos campos,
A noite amena chegar,
A dança dos pirilampos,
Estrelas mil a brilhar!

Quando passo pela estrada,
Descanso, à sombra do ipê,
Com sua copa dourada,
Que me viu beijar você!

É triste de ouvir na roça,
A pomba rola arrulhar,
No colmo de uma palhoça,
Quando a noite vai chegar!

Mirando o tom azulado,
Dos tão lindos olhos teus,
O céu é mais desbotado,
Que obra prima de Deus!

Que importa se a rima é pobre,
Se o nome termina em ão;
Existe coisa mais nobre,
Que a palavra do coração!

Quando passa o cavaleiro,
Nas picadas do sertão,
O burro trota ligeiro,
Sem medo da escuridão!

Ana Lúcia Santana (Romance Policial)


O Romance Policial é uma categoria literária estruturada em torno da ocorrência de um assassinato, das indagações, pesquisas, inquirições de testemunhas e, finalmente, da descoberta do criminoso. Todo o enfoque do autor recai sobre o mecanismo de desvendamento dos segredos envolvidos no crime, levado a cabo normalmente por um detetive profissionalizado ou de natureza amadora.

Este gênero literário deixa claro que não há atividade criminosa perfeita, e que não deve haver espaço para tolerância à criminalidade nem para carência de punição. Geralmente o indivíduo que comete o crime é descrito psicologicamente como uma criatura inusitada, à margem da racionalidade que move os mecanismos da vida social.

A ficção policial é povoada por ingredientes como o temor, o inexplicável, a pesquisa dos dados que cercam o crime, a inquietação intelectual diante dos fatos, a perplexidade, a sede de descobrir o criminoso e os motivos que o impulsionam a cometer o ato ilícito, todos convenientemente combinados nas devidas proporções, conforme o estilo de cada escritor e seu contexto. O modelo tradicional se apóia na total verossimilhança, o que leva investigadores como Sherlock Holmes a buscarem a contribuição da própria Ciência em sua obsessiva procura da verdade.

A história deste gênero tem início com a obra Assassinatos na Rua Morgue, do renomado Edgar Allan Poe, lançado há mais de um século; este clássico determinou as principais qualidades estéticas do romance policial. Poe praticamente dita as regras que serão seguidas por seus sucessores; quase todos adotam a figura do parceiro do detetive, que lhe vale como suporte. Também não faltam a aparência austera e a solidão que acompanha o investigador.

Muitas destas obras apostam igualmente na caracterização psicológica dos personagens; são seres normais, como qualquer um, mergulhados em seus dramas pessoais, repletos de aflições, tristezas, ansiedades, pavores e expectativas. Seu público-alvo devora todos os livros de seu escritor dileto, não estão enquadrados em gêneros ou faixas etárias definidas e geralmente navegam pelo romance de uma única vez.

Boa parte dos escritores deste gênero escreve em língua inglesa, confirmando a tradição desta ficção, nascida nos Estados Unidos; são nomes como Arthur Conan Doyle, Aghata Christie, Rex Stout, Raymond Chandler, Dashiell Hammett, Denis Lehanne, P.D. James, Patricia Cornwell, entre outros.

A galeria de detetives famosos também é vasta e conhecida; dificilmente alguém habituado a viajar pelas páginas de um livro irá desconhecer personagens como Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Maigret, Sam Spade, e outros tantos. São figuras de destaque no imaginário de cada leitor.

No Brasil a ficção policial vem ganhando impulso com escritores como Luiz Alfredo Garcia-Roza, um mestre na arte de caracterizar psicologicamente seus personagens, e em retratar cenários cariocas, onde são ambientadas suas narrativas, protagonizadas pelo detetive Espinosa; e Patrícia Melo, autora, entre outros, de Inferno, vencedor do Prêmio Jabuti em 2001, especialista em mergulhar na mente dos criminosos. Em São Paulo o campo de ação é de Joaquim Nogueira e seu investigador Venício. É impossível deixar de lado a clássica obra de Rubem Fonseca, ex-policial que se vale da própria experiência na criação de suas tramas, nas quais desfilam os velhos colegas de profissão.

Monteiro Lobato (O Drama da Geada)


Junho.

Manhã de neblina. Vegetação entanguida de frio. Em todas as folhas o recamo de diamantes com que as adereça o orvalho.

Passam colonos para a roça, retrancidos, deitando fumaça pela boca.

Frio. Frio de geada, desses que matam passarinhos e nos põem sorvete dentro dos ossos.

Saímos cedo a ver cafezais, e ali paramos, no viso do espigão, ponto mais alto da fazenda. Dobrando o joelho sobre a cabeça do socado, o major voltou o corpo para o mar de café aberto ante nossos olhos e disse num gesto amplo:

- Tudo obra minha, veja!

Vi. vi e compreendi-lhe o orgulho, sentindo-me orgulhoso também de tal patrício. Aquele desbravador de sertões era uma força criadora, dessas que enobrecem a raça humana.

- Quando adquiri estar gleba – disse ele - , tudo era mata virgem, de ponta a ponta. Rocei, derrubei, queimei, abri caminhos, rasguei valos, estiquei arame, construí pontes, ergui casas, arrumei pastos, plantei café – fiz tudo. Trabalhei como negro cativo durante quatro anos. Mas venci. A fazenda está formada, veja.

Vi. vi o mar de café ondulado pelos seios da terra, disciplinado em fileiras de absoluta regularidade. Nem uma falha! Era um exército em pé de guerra. Mas bisonho ainda. Só no ano vindouro entraria em campanha. Até ali, os primeiros frutos não passavam de escaramuças de colheita. E o major, chefe supremo do verde exército por ele criado, disciplinado, preparado para a batalha decisiva da primeira safra grande, q que liberta o fazendeiro dos ônus da formação, tinha o olhar orgulhoso dum pai diante de filhos que não mentem à estirpe.

O fazendeiro paulista é alguma coisa no mundo. Cada fazenda é uma vitória sobre a fereza retrátil dos elementos brutos, coligados na defesa da virgindade agredida. Seu esforço de gigante paciente nunca foi cantado pelos poetas, mas muita epopéia há por aí que não vale a destes heróis do trabalho silencioso. Tirar uma fazenda do nada é façanha formidável. Alterar a ordem da natureza, vencê-la, impor-lhe uma vontade, canalizar-lhe uma vontade, canalizar-lhe as forças de acordo com um plano preestabelecido, dominar a réplica eterna do mato daninho, disciplinar os homens da lida, quebrar a força das pragas...
– batalha sem tréguas, sem fim, sem momento de repouso e. o que é pior, sem certeza plena da vitória. Colhe-a muitas vezes o credor, um onzeneiro que adiantou um capital caríssimo e ficou a seu salvo na cidade, de cócoras num título de hipoteca, espiando o momento oportuno para cair sobre a presa, como um gavião.

- Realmente, major, isto é de enfunar o peito! É diante de espetáculos destes que vejo a mesquinharia dos que lá fora, comodamente, parasitam o trabalho do agricultor.

- Diz bem. Fiz tudo, mas o lucro maior não é meu. Tenho um sócio voraz que me lambe, ele só, um quarto da produção: o governo. Sangram-na depois as estradas de ferro – mas destas não me queixo porque dão muita coisa em troca. Já não digo o mesmo dos tubarões do comércio, esse cardume de intermediários que começa ali em Santos, no zangão, e vai numa até ao torrador americano. Mas não importa! O café da para todos, até para a besta do produtor... concluiu, pilheriando.

Tocamos os animais a passo a passo, com os olhos sempre presos ao cafezal intérmino. Sem um defeito de formação, as paralelas de verdura ondeavam, acompanhando o relevo do solo, até se confundirem ao longe em massa uniforme. Verdadeira obra d’arte em que, sobrepondo-se à natureza, o homem lhe impunha o ritmo da simetria.

- No entanto – continuou o major - , a batalha ainda não está ganha. Contraí dívidas; a fazenda está hipotecada a judeus franceses. Não venham colheitas fartas e serei mais um vencido pela fatalidade das coisas. A natureza depois de subjugada é mãe; mas o credor é sempre carrasco...

A espaços, perdidas na onda verde, perobeiras sobreviventes erguiam fustes contorcidos, como galvanizadas pelo fogo numa convulsão de dor. Pobres árvores! Que destino triste verem-se um dia arrancadas à vida em comum e insuladas na verdura rastejante do café, como rainhas prisioneiras à cola de um carro de triunfo.

Órfãs da mata nativa, como não hão de chorar o conchego de outrora? Vende-as. Não têm o desgarre, o frondoso de copa das que nascem em campo aberto. Seu engalhamento, feito para a vida apertada da floresta, parece agora grotesco; sua altura desmesurada, em desproporção com a fronde, provoca o riso. São mulheres despidas em público, hirtas de vergonha, não sabendo que parte do corpo esconder. O excesso de ar as atordoa, o excesso de luz as martiriza – afeitas que estavam ao espaço confinado e à penumbra sonolenta do habitat.

Fazendeiros desalmados – não deixeis nunca árvores pelo cafezal... cortai-as todas, que nada mais pungente do que forçar uma árvore a ser grotesca.

- Aquela perobeira ali – disse o major – ficou para assinalar o ponto de partida deste talhão. Chama-se a peroba do Ludgero, um baiano valente que morreu ao pé dela estrepado numa juçara...

Tive a visão do livro aberto que seriam para o fazendeiro aquelas paragens.

- Como tudo aqui há de falar à memória, major!

- É isso mesmo. Tudo me fala à recordação. Cada toco de pau, cada pedreira, cada volta de caminho tem uma história que sei, trágica às vezes, como essa da peroba, às vezes cômica – pitoresca sempre. Ali... – está vendo aquele toco de jerivá? Foi por uma tempestade de fevereiro. Eu abrigara-me num rancho coberto de sapé, e lá em silêncio esperávamos, eu e a turma, o fim do dilúvio, quando estalou um raio quase em cima das nossas cabeças.

- “Fim do mundo, patrão!” – lembrou-me que disse, numa careta de pavor, o defunto Zé Coivara... E parecia!... Mas foi apenas o fim de um velho coqueiro, do qual resta hoje – sic transit... esse pobre toco... cessada a chuva, encontramo-lo desfeito em ripas.

Mais adiante abria-se a terra em boçoroca vermelha, esbarronada em coleios até morrer no córrego. O major apontou-a, dizendo:

- Cenário do primeiro crime cometido na fazenda. Rabo-de-saia, já se sabe. Nas cidades e na roça, pinga e saia são o móvel de todos os crimes. Esfaquearam-se aqui dois cearenses.

Um acabou no lugar; outro cumpre pena na correição. E a saia, muito contente da vida, mora com o tertius. A historia de sempre.

E assim, de evocação em evocação, às sugestões que pelo caminho iam surgindo, chegamos à casa de moradia, onde nos esperava o almoço.

Almoçamos, e não sei se por boa disposição criada pelo passeio matutino ou por mérito excepcional da cozinheira, o almoço desse dia ficou-me na memória gravado para sempre. Não sou poeta, mas se Apolo algum dia me der na cabeça o estalo do padre Vieira, juro que antes de cantar Lauras e Natércias hei de fazer uma beleza de ode à lingüiça com angu de fubá vermelho desse almoço sem par, única saudade gustativa com que descerei ao túmulo...

Em seguida, enquanto o major atendia à correspondência, saí a espairecer pelo terreiro, onde me pus de conversa com o administrador.

Soube por ele da hipoteca que pesava sobre a fazenda e da possibilidade de outro, não o major, vir a colher o fruto do penoso trabalho.

- Mas isso – esclareceu o homem – só no caso de muito azar – chuva de pedra ou geada, daquelas que não vêm mais.

- Que não vêm mais, por quê? - porque a última geada grande foi em 1895. Daí para cá as coisas endireitaram. O mundo, com a idade, muda, como agente. As geadas, por exemplo, vão-se acabando.

Antigamente ninguém plantava café onde o plantamos hoje. Era só de meio morro acima. Agora, não. Viu aquele cafezal do meio? Terra bem baixa; no entanto, se bate geada ali é sempre coisinha – um tostado leve. De modo que o patrão, com uma ou duas colheitas, apaga a dívida e fica o fazendeiro mais “prepotente” do município.

- Assim seja, que grandemente o merece – rematei.

Deixei-o. dei uma voltas, fui ao pomar, estive no chiqueiro vendo brincar os leitõezinhos e depois subi. Estava um preto danado nas venezianas da casa a última demão de tinta. Porque será que as pintam sempre de verde? Incapaz por mim de solver o problema, interpelei o preto, que não se embaraçou e respondeu sorrindo:

- Pois veneziana é verde como o céu e azul. É da natureza dela...

Aceitei a teoria e entrei.

À mesa a conversa girou em torno da geada.

- É o mês perigoso este – disse o major. – O mês da aflição. Por maior firmeza que tenha um homem, treme nesta época. A geada é um eterno pesadelo. Felizmente a geada não é mais o que era dantes. Já nos permite aproveitar muita terra baixa em que os antigos, nem por sombras, plantavam um só pé de café.

Mas, apesar disso, um que facilitou, como eu, está sempre com a pulga atrás da orelha. Virá? Não virá? Deus sabe!...

Seu olhar mergulhou pela janela, numa sondagem profunda ao céu límpido.

- Hoje, por exemplo, está com jeito. Este frio fino, este ar parado...

- Não vale a pena pensar nisto. O que tem de ser está gravado no livro do destino.

- Livra-te dos ares!... – objetei.

- Cristo não entendia de lavoura – replicou o fazendeiro sorrindo.

E a geada veio! Não geadinha mansa de todos os anos, mas calamitosa, geada cíclica, trazida em ondas do sul.

O sol da tarde. Mortiço, dera uma luz sem luminosidade, e raios sem calor nenhum. Sol boreal, tiritante. E a noite caíra sem preâmbulos.

Deitei-me cedo, batendo o queixo, e na cama, apesar de enleado em dois cobertores, permaneci entanguido uma boa hora antes que ferrasse no sono.

Acordou-me o sino da fazenda, pela madrugada. Sentindo-me enregelado, com os pés a doerem, ergui-me para um exercício violento. Fui para o terreiro.

O relento estava de cortar as carnes – mas que maravilhoso espetáculo! Brancuras por toda parte. Chão, árvores, gramados e pastos eram, de ponta a ponta, um só atoalhado branco. As árvores imóveis, inteiriçadas de frio, pareciam emersas dum banho de cal. Rebrilhos de gelo pelo chão. Águas envidradas. as roupas dos varais, tesas, como endurecidas em goma forte. As palhas do terreiro. Os sabugos ao pé do cocho, a telha dos muros, o topo dos mourões, a vara das cercas o rebordo das tábuas – tudo polvilhado de brancuras, lactescentes, como chovido por um saco de farinha. Maravilhoso quadro! Invariável que é a nossa paisagem, sempre nos mansos tons do ano inteiro, encantava sobremodo vê-la súbito mudar, vestir-se dum esplendoroso véu de noiva – noiva da morte, ai!...

Por algum tempo caminhei a esmo, arrastado pelo esplendor da cena. O maravilhoso quadro de sonho breve morreria, apagado pela esponja de ouro do sol. Já pelos topes e faces de batedeira andavam-lhe os raios na faina de restaurar a verdura. Abriam manchas no branco da geada, dilatavam-nas, entremostrando nesgas do verde submerso.

Só nas baixadas, encostas noruegas ou sítios sombreados pelas árvores, é que a brancura persistia ainda, contrastando sua nítida frialdade com os tons quentes ressurretos. Vencera a vida, guiada pelo sol. Mas a intervenção do fogoso Febo, apressada demais, transformara em desastre horroroso a nevada daquele ano – a maior de quantas deixaram marca nas embaubeiras de São Paulo.

A ressureição do verde fora aparente. Estava morta a vegetação, dias depois, por toda parte, a vestimenta do solo seria um bureli imenso, com sépia a mostrar a gama inteira dos seus tons ressecos, pontilhá-lo-ia apenas, cá e lá; o verde-negro das laranjas e o esmeraldino sem-vergonha da vassourinha.

Quando regressei, sol já alto, estava a casa retrancida do pavor das grandes catástrofes. Só então me acudiu que o belo espetáculo, que eu até ali só encarara pela prisma estético, tinha um reverso trágico: a ruína do heróico fazendeiro. E procurei-o ansioso.

Tinha sumido. Passara a noite em claro, disse-me a mulher: de manhã, mal chegara, fora para a janela e lá permanecera imóvel, observando o céu através dos vidros. Depois saíra, sem ao menos pedir o café, como de costume. Andava a examinar a lavoura, provavelmente.

Devia ser isso mas como retardasse a voltar – onze horas e nada – a família entrou-se de apreensões.

Meio-dia. Uma hora, duas, três e nada.

O administrador, que a mandado da mulher saíra a procurá-lo, voltou à tarde sem notícias.

- Bati tudo e nem rasto. Estou com medo dalguma coisa... vou espalhar gente por aí, à cata.

D. Ana, inquieta, de mãos enclavinhadas, só dizia uma coisa:

- Que será de nós, santo Deus! Quincas é capaz duma loucura...

Pus-me em campo também, em companhia do capataz. Corremos todos os caminhos, varejamos grotas em todas as direções – inutilmente.

Caiu a tarde, caiu a noite – a noite mais lúgubre de minha vida -, noite de desgraça a aflição.

Não dormi. Impossível conciliar o sono naquele ambiente de dor, sacudido de choro e soluços. Certa hora os cães latiram no terreiro, mas silenciaram logo.

Rompeu a manhã, glacial como a da véspera. Tudo apareceu geado novamente.

Veio o sol. Repetiu-se a mutação da cena. Esvaiu-se a alvura, e o verde morto da vegetação envolveu a paisagem num sudário de desalento.

Em casa repetiu-se o corre-corre do dia anterior – o mesmo vaivém, o mesmo “quem sabe?”, as mesmas pesquisas inúteis.

À tarde, porém – três horas -, um camarada apareceu esbaforido, gritando de longe, no terreiro:

- Encontrei! Está perto da boçoroca!...

- Vivo? – perguntou o capataz.

Vivo, sim, mas..

D. Ana surgira à porta e ao ouvir a boa nova exclamou, chorando e sorrindo:

- Bendito sejas, meu Deus!...

Minutos depois partimos todos de rumo à boçoroca e, a cem passos dela, avistamos um vulto às voltas com os cafeeiros requeimados. Aproximamo-nos.

Era o major. Mas em que estado! Roupa em tiras, cabelos sujos de terra, olhos vítreos e desvairados. Tinha nas mãos uma lata de tinta e uma broxa – broxa do pintor que andava a olear as venezianas. Compreendi o latido dos cães à noite...

O major não se deu conta da nossa chegada. Não interrompeu o serviço: continuou a pintar, uma a uma, do risonho verde esmeraldino das venezianas, as folhas requeimadas do cafezal morto...

D. Ana, estarrecida, entreparou atônita. Depois, compreendendo a tragédia, rompeu em choro convulso.

Fonte: 
Portal São Francisco

Ellis Avery (A Casa de Chá)


Artigo por Ana Lucia Santana

A saborosa obra A Casa de Chá revela o olhar de uma mulher estrangeira, que adota a identidade japonesa aos nove anos, sobre o Japão do século XIX. Aqui se revela a visão de uma alteridade que não se assume enquanto tal, de uma exilada que antecipa a condição pós-moderna.

Aurelia Bernard, filha de uma francesa, nascida em Nova York, ainda menina sozinha no Japão, não tem mais lar ou pátria; ela vive o dilema da busca ansiosa de uma definição sobre si mesma, pois se esforça para nem mesmo se lembrar que um dia foi uma estrangeira em território japonês, mas, ao mesmo tempo, não pode impedir que o olhar do outro sobre ela a represente, pouco a pouco, como uma forasteira.

O leitor, página após página, vê a história do Japão deste período se desenrolar justamente através da percepção deste ser sem raízes, que disseca sem complacência o implacável processo de ocidentalização deste país. Quando a menina, órfã de mãe, segue para as terras japonesas, que recentemente haviam discretamente aberto as portas para o Ocidente, ao lado de seu tio Charles, padre aspirante a missionário, esta nação ainda estava mergulhada no regime feudal, sob o comando do Xogum. Era uma terra considerada selvagem, e seus habitantes deveriam ser compulsoriamente convertidos ao Cristianismo.

Assediada pelo tio, Aurelia foge e, após um incêndio que destroi a casa de Charles e boa parte do bairro da cidade de Kyoto, quando ainda era conhecida como Miyako, ela se refugia na casa de chá Baishian e dá início a uma metamorfose interior quando é aceita, finalmente, pela família de Yukako. Neste instante ela ganha inclusive um novo nome, Urako, que marca sua transformação e a profunda assimilação do universo cultural japonês.

A partir de então, os caminhos destas duas mulheres seguem, por muito tempo, linhas convergentes, que se cruzam constantemente com o Chado ou Caminho do Chá, cerimônia tradicional perpetuada há séculos pela família Shin, a quem Urako irá servir por muito tempo. Desta forma ela acompanha os desenvolvimentos paralelos do Temae – ritual do Chá  praticado milenarmente por este grupo familiar, que se confunde com a própria história do clã – e do próprio Japão.

O patriarca dos Shin, intitulado como Montanha pela garota adotada para ser a dama de companhia de Yukako, é o mestre de chá mais importante de sua terra. Filho de samurais, ele mesmo foi acolhido pelos Shin quando o antigo chefe da família, pertencente à casta dos comerciantes, ficou sem herdeiros.

Aos poucos, Urako se apega cada vez mais a Yukako, que a considera, por sua vez, como sua irmã caçula. Com o tempo, porém, ela desenvolve por sua senhora uma paixão proibida, a qual não pode de forma alguma ser saciada. A jovem sublima este sentimento com uma dedicação cada vez maior a sua amada, de quem se torna aliada na luta pela preservação da cerimônia do chá e pela afirmação feminina no interior deste ritual em uma cultura ainda fechada, que reserva as decisões mais importantes ao mundo masculino.

A cumplicidade entre as duas mulheres se intensifica à medida que o Xogunato é substituído pelo crescente poder do Imperador, o que culmina na instauração da Era Meiji. Este novo regime permite a crescente ocidentalização do Japão, a tradição e o novo se chocam, e Yukako e Urako se unem para não permitir que este processo, aparentemente irreversível, destrua o Caminho do Chá.

Ao mesmo tempo, a chegada dos estrangeiros no Japão, anteriormente conhecidos apenas por ilustrações distorcidas em alguns livros, abala a identidade de Urako, pois desta forma, contraposta aos novos seres que invadem o território japonês, sua alteridade se acentua, e o olhar dos japoneses sobre ela, nunca totalmente desprovido de cautela e preconceito, se transforma radicalmente, definindo-a cada vez mais como não-japonesa.

A discriminação se intensifica, despertando novamente em Urako a sombra de Aurelia, sua antiga identidade. Mais que nunca emerge sua condição de exilada, ameaçadora e voraz. Embora o Japão acolha cada vez mais o Ocidente em sua sociedade já não mais tão fechada, instaura-se o antigo paradoxo. Eles precisam dos estrangeiros, mas não os desejam. Resta saber o quanto este processo transformador refletirá sobre a antiga relação entre Urako e Yukako.

A autora, Ellis Avery, pesquisou durante cinco anos o Caminho do Chá em Nova York e em Kyoto. Ela escreveu diversos artigos para o Publishers Weekly, o The Village Voice e o Kyoto Journal. Algumas de suas histórias foram adaptadas para o teatro no New York’s Expanded Arts Theater. Ela reside, hoje, em Nova York.

Fontes:
Avery, Ellis. A Casa de Chá. Editora Record, Rio de Janeiro, 2010, 488 pp.
Artigo disponível em Infoescola http://www.infoescola.com/livros/a-casa-de-cha/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 568)


Uma Trova de Ademar  

Com insônia... Apaixonado,
sinto-me feliz porque...
Passando a noite acordado
eu penso mais em você!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional  

Feliz de quem, neste mundo,
faz de uma mágoa alegria,
pois faz milagre fecundo
mudando a dor em poesia.

Uma Trova Potiguar  

Qualquer inveja revela 
uma doença infinita, 
que deixa a maior sequela 
nos corações onde habita.

–MARCOS MEDEIROS/RN–

Uma Trova Premiada  

2010 > Bragança Paulista/SP
Tema > CAMINHADA > Venc.

Não condeno a caminhada,
culpo sim, meus passos falhos.
Bem larga era a minha estrada,
fui eu quem buscou atalhos.
–RITA MOURÃO/SP–

...E Suas Trovas Ficaram  

Na longa jornada estranha
onde os espinhos são tantos,
sinto que alguém me acompanha,
buscando enxugar meus prantos.
–VASQUES FILHO/PI–

Uma Poesia  

Só temos uma esperança
para que essa “coisa” mude,
leia mais, reflita, estude,
se você busca mudança.
Deus te outorgou confiança
e um Livre-Arbítrio a tomar,
você precisa aceitar
este poder tão profundo;
se queres mudar o mundo
você precisa mudar!
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Soneto do Dia  

Meu Conselho
–GILSON FAUSTINO MAIA/RJ–

Eu não gostei, amigo, do seu vício.
É fumaça demais na atmosfera.
Deixe o tempo correr, é primavera,
não lance o seu futuro em precipício.

Não use, em sua vida, um artifício
para matar o tempo enquanto espera
o fechar da cortina e da quimera
que envolve o nosso mundo, desde o início.

Viva a paz, viva o amor, a natureza!
Seja o seu corpo rocha, fortaleza,
dê, então, ao seu vício longas férias.

Com saúde não faça brincadeira.
Para que entupir, dessa maneira,
o caminho do sangue nas artérias?