domingo, 19 de maio de 2024

George Sand* (As moças de Berry)

 Eu tenho uma moça, então duas,
Que não tem boca nem olhos;
Tenho três, então quatro,
Eu bem que queria resisti-las.
Eu tenho cinco, então seis,
Quem não quer seus beijos?
Por trás veio a sétima,
Nunca vi a oitava.

Verso antigo relembrado por Maurice Sand.

As moças de Berry parecem-nos primas das Milloraines da Normandia, que o autor de “Fantasias da Normandia” descreve como seres de tamanho gigantesco. Elas ficam paradas e sua forma, muito pouco distinta, não permite discernir seus membros ou seu rosto. Quando nos aproximamos, elas fogem por uma sucessão de saltos irregulares muito rápidos.

Estas moças ou jovens podem ser de diversos países. Eu não acredito que sejam de origem gaulesa, mas sim francesa, da Idade Média. De qualquer forma, vou relatar uma das lendas mais completas que consegui através de um de seus relatos. 

Um senhor de Berry, chamado Jean de La Selle, que viveu no século passado em um castelo localizado nas profundezas da floresta de Villemort. O camponês, triste e selvagem, comemora um pouco na orla da mata, onde a terra seca, plana e coberta de carvalhos, desce em direção a prados que dão em uma série de pequenos lagos que hoje em dia estão mal cuidados.

Já no momento de que falamos, as águas ficavam nos prados do senhor de La Selle, o bom cavalheiro não tendo muito o que fazer para limpar as suas terras. Tinha uma extensão bastante grande, mas de qualidade escassa e de pouco valor. No entanto, ele viveu feliz, graças aos gostos modestos e um caráter sábio e alegre. Seus vizinhos estavam sempre à sua procura devido ao seu temperamento agradável, bom senso e paciência na caça. Os camponeses daquele domínio e arredores o consideravam um homem de bondade extraordinária e de rara delicadeza. Dizem que ele preferiria que sua camisa ficasse permanentemente grudada em seu corpo e seu cavalo entre suas pernas a prejudicar um vizinho.

No entanto, aconteceu que, uma noite, o senhor de La Selle tendo estado em Berthenoux para vender um par de bois, voltava tranquilamente, escoltado por seu meeiro, o grande Luneau, que era um homem fino e educado, carregando na garupa esguia de sua égua cinza a soma de seiscentas libras em grandes moedas planas com a efígie de Luís XIV. Era a soma pelo gado vendido.

Como um bom senhor do campo que era, o senhor de La Selle havia jantado na taberna e, como não gostava de beber sozinho, fez o grande Luneau sentar-se à sua frente e serviu-lhe o vinho sem poupar, a fim de deixá-lo à vontade.

Tanto é que o vinho, o calor e o cansaço do dia e, acima de tudo, o trote rítmico da égua cinza tinha adormecido Monsieur de La Selle, e ele chegou em casa sem saber por quantas horas havia andado ou o caminho que havia seguido. Cabia a Luneau conduzi-lo, e Luneau o dirigira bem, pois chegaram sãos e salvos; seus cavalos não tinham o lombo molhado.

Bêbado, o senhor de La Selle não estava. Em sua vida, ninguém o tinha visto sem fazer sentido. Assim que se levantou, disse ao criado que levasse a mala para o seu quarto, depois conversou muito razoavelmente com o grande Luneau, deu-lhe boa-noite e foi para a cama sem dificuldades para encontrá-la. Mas no dia seguinte, ao abrir a mala para pegar o dinheiro, encontrou apenas pedras grandes e, após buscas inúteis, foi forçado a perceber que haviam sido roubados.

O grande Luneau, chamado e consultado, jurou por sua crisma e seu batismo que tinha visto o dinheiro contado na mala, que ele carregou e amarrou nas costas da égua. Também jurou por sua fé e pela lei que ele não havia deixado seu mestre sozinho desde que entraram na estrada principal. Mas confessou que, ao entrar na floresta, sentiu-se um pouco sonolento e conseguiu dormir em seu cavalo por cerca de um quarto de hora. De repente, ele se viu perto da Gâgne-aux--Demoiselles e, desde aquele momento, não tinha dormido e não havia visto nenhuma alma cristã.

— Vamos — disse o senhor de La Selle —, algum ladrão deve estar rindo de nós. A culpa é ainda mais minha do que sua, meu pobre Luneau, e o mais sábio é não se gabar. O prejuízo é só meu, já que você não participou da venda do gado. Eu saberei como me decidir, embora o assunto me incomode um pouco. Isso vai me ensinar a não adormecer a cavalo.

Luneau queria em vão levantar suspeitas de alguns caçadores pobres que estavam no lugar.

— Não, não — respondeu o bravo escudeiro. — Não irei acusar ninguém. Todos na vizinhança são honestos. Não falemos mais nisso. Eu tive o que mereci.

— Mas talvez você esteja um pouco bravo comigo, mestre...

— Por ter dormido? Não, meu amigo; se eu tivesse lhe dado a mala, eu tenho certeza de que você teria ficado acordado. Eu só culpo a mim, e minha fé, não pretendo me punir por isso. É o bastante ter perdido o dinheiro, vamos guardar nosso bom humor e apetite.

— Se você acredita em mim, no entanto, mestre, você deveria procurar em Gâgne-aux-Demoiselles.

— Gâgne-aux-Demoiselles é uma vala que tem cerca de meio quarto de légua de comprimento; não seria fácil remexer toda aquela lama, e além disso, o que encontraria lá? Meu ladrão não teria sido tão tolo a ponto de atirar minhas moedas lá!

— Você pode dizer o que quiser, mestre, mas o ladrão talvez não seja como você pensa!

— Ah, meu grande Luneau, você também acredita nas jovens que são espíritos malignos que gostam de pregar peças!

— Eu não sei, mestre, mas eu estive lá uma manhã, em plena luz do dia, com meu pai, nós as vimos como vejo você agora; ao mesmo tempo, voltamos para casa com muito medo, sem chapéus, nem gorros em nossas cabeças, nem sapatos em nossos pés, nem facas em nossos bolsos. Elas são muito espertas! Parecem fugir, mas, sem te tocar, te fazem perder tudo que conseguem pegar e se beneficiam disso, porque ninguém encontra suas coisas outra vez. Sim, se eu fosse você, drenaria todo aquele pântano. Seria melhor para você e as jovens logo sairão de lá; já que é de conhecimento de todo homem de bom senso que elas não gostam de lugares secos e que vão de lagoa em lagoa, à medida que a névoa da qual se alimentam é removida.

— Meu amigo Luneau — respondeu o senhor de La Selle —, secar o pântano certamente seria um bom negócio para o prado. Mas, além das seiscentas libras que perdi, nunca tive nenhum motivo para desalojar as jovens. Não é que eu acredite nelas precisamente, já que nunca as vi, nem qualquer outra criatura parecida; mas meu pai acreditava um pouco nisso, e minha avó acreditava completamente. Quando conversamos sobre isso, meu pai disse: “Deixe as moças em paz; elas nunca me fizeram mal, nem a ninguém.” E minha avó costumava dizer: “Nunca atormente ou invoque as moças; sua presença é boa para a terra, e sua proteção é um amuleto de boa sorte para uma família”.

— Por isso mesmo — retomou o grande Luneau, acenando com a cabeça. — Elas lhe roubaram!

Cerca de dez anos depois desta aventura, senhor de La Selle voltou da mesma feira de Berthenoux, trazendo de volta a mesma égua cinza, já muito velha, mas ainda trotando sem vacilar, com uma soma equivalente àquela que lhe fora roubada de forma tão singular. Desta vez ele estava sozinho, o grande Luneau havia morrido há vários meses; e nosso senhor não dormiu a cavalo, tendo renunciado e perdido definitivamente este hábito importuno.

Quando ele estava na orla da floresta, ao longo da Gâgne-aux-Demoiselles, que está localizada na parte inferior de uma encosta bastante alta e toda coberta de arbustos, velhas árvores e grandes gramíneas silvestres, o senhor de La Selle foi tomado de tristeza ao se lembrar de seu pobre fazendeiro inquilino, sentindo sua falta, embora seu filho Jacques, alto e magro como ele, e assim como ele prudente e astuto também, parecia fazer o seu melhor para substituí-lo. Mas não podemos substituir velhos amigos, e o senhor de La Selle também estava envelhecendo.

Ele foi tomado por pensamentos sombrios; mas sua boa cabeça logo os dissipou, e ele começou a assobiar uma melodia de caça, dizendo a si mesmo que, como em sua vida e em sua morte, seria o que Deus quisesse.

Quando estava aproximadamente no meio do comprimento do pântano, foi surpreendido ao ver uma forma branca, que até então ele havia tomado por aqueles vapores com os quais as águas paradas são cobertas, mudam de lugar, depois saltam e voam para longe, dissipando-se por entre os galhos. Uma segunda forma mais sólida emergiu dos juncos e seguiu a primeira, estendendo-se como uma tela flutuante; depois uma terceira, depois outra e mais outra; e, ao passarem pelo senhor de La Selle, tornaram-se vultos tão visivelmente enormes, vestidos com saias longas e claras, com cabelos esbranquiçados arrastando em vez de esvoaçantes atrás delas, de tal forma que ele não conseguiu sair dali.

Estes eram os fantasmas sobre os quais ele tinha ouvido falar quando criança. Assim, esquecendo-se do que sua avó o recomendara, de que se algum dia se deparasse com elas deveria agir como se não as visse, passou a saudá-las como o homem educado que era. Cumprimentou a todas, e quando chegou à sétima, que era a maior e mais visível, não pôde deixar de dizer a ela: “senhora, estou ao seu dispor”.

Mal proferiu esta frase, a jovem alta apareceu na garupa atrás dele, abraçando-o com os dois braços, frios como o amanhecer, e a velha égua cinzenta, apavorada, saiu a galope, carregando o senhor de La Selle pelo pântano.

Embora muito surpreso, o bom cavalheiro não perdeu a cabeça. “Pela alma de meu pai”. Ele pensou. “Nunca fiz nada de errado e nenhum espírito pode me machucar”. Ele segurou firme as rédeas e forçou a égua para fora da lama. Lutou, enquanto a jovem parecia tentar detê-lo e desviar a égua.

O senhor de La Selle tinha pistolas em seus invólucros, e ocorreu-lhe a ideia de usá-las; mas, julgando que se tratava de um ser sobrenatural e lembrando-se além disso que seus pais o haviam recomendado não ofender as donzelas da água, contentou-se em dizer gentilmente: “Realmente, linda senhora, deveria me deixar seguir meu caminho, pois não cruzei o seu para incomodá-la, e se a cumprimentei, foi por educação e não por escárnio. Se você quiser orações ou missas, torne seu desejo conhecido e, palavra de um cavalheiro, você as terá!”

Então o senhor de La Selle ouviu uma voz estranha acima de sua cabeça dizendo: “Mande rezar três missas pela alma do grande Luneau e vá em paz!”

Ele pensou então que tinha tido uma visão; no entanto, ordenou as três missas. Mas qual não foi sua surpresa quando, abrindo a mala, encontrou ali, além do dinheiro que recebera na feira, as seiscentas libras em moedas planas, ostentando a efígie do falecido rei.

Elas queriam dizer que o grande Luneau, arrependido na hora da morte, havia pedido para que seu filho Jacques fizesse essa restituição, e que este, para não manchar a memória de seu pai, havia solicitado que as jovens o fizessem. O senhor de La Selle nunca permitiu que nenhuma palavra fosse dita contra a probidade do falecido, e quando essas coisas eram faladas sem respeito em sua presença, ele costumava dizer: “os homens não podem explicar tudo, talvez seja melhor aqui estar sem censura do que sem fé”.
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* Biografia
George Sand (pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa de Dudevant) nasceu no dia 1 de julho de 1804, filha de Maurice e Sophie Dupin. Seu pai faleceu quando ela era ainda criança, após uma queda de cavalo, quando acompanhava o príncipe Murat em campanhas armadas. Amandine é então mandada para Nohant, aos cuidados de sua avó, Marie-Aurore de Saxe. Sua avó era neta do célebre Marechal de França, o conde Maurício de Saxe, sendo este, filho bastardo de Augusto II, rei da Polónia e de Saxe, e da sua amante, a condessa Maria Aurora von Königsmark.

Durante sua infância, ao lado de sua avó, Amandine passava os dias brincando e descobrindo cada canto da propriedade de Nohant com seu meio-irmão Hippolyte Chatiron (filho do seu pai com uma amante da região), companheiro e parceiro em todas as suas aventuras e travessuras. Os dois estudavam em casa com um preceptor, quando não desapareciam nas profundezas da região. Sua avó preocupada com a educação e o comportamento de sua neta, a matriculou no Couvent des Anglaises em Paris e enviou Hippolyte para uma grande escola de cavalaria de uma cidade vizinha. Acontece que a menina se apaixonou pela vida silenciosa e introspectiva que levava dentro das paredes de pedra do convento e desejou ser freira. Lá, se interessou também por música e teatro e para alegrar suas amigas, decidiu criar pequenas peças de teatro e montar um grupo de meninas para representá-las.

As peças eram um sucesso, e Amandine gostava cada vez mais da vida no convento. Sua avó sabendo disso, levou a neta de volta a Nohant. De volta ao convívio com Aurore de Saxe, ela começou a compreender e amar cada vez mais a sua avó e quando esta morreu, pouco tempo depois, Amandine sofreu muito. Para que herdasse Nohant seria preciso que se casasse, assim, pouco tempo depois, ela se casou com François-Casimir Dudevant, em 1822. Desse casamento nasceram dois filhos - Maurice e Solange. Essa união, devido a infidelidades e alcoolismo de Casimir, desencadeou incontáveis problemas, culminando com o divórcio - fato incomum para a época - em 1836.

George começou a escrever para o jornal Le Figaro, com a colaboração de Jules Sandeau. Usavam, então, o pseudônimo de Jules Sand – inspirado no nome de Sandeau. Em 1831, lançaram o livro Rose et Blanche. Passou a usar o pseudônimo de George Sand em 1832, quando escreveu, sozinha (obrigada a usar um pseudônimo masculino, para ser aceita no meio literário), o romance Indiana, seu primeiro livro, seu primeiro sucesso. De 1832 a 1837, escreveu muitos outros romances, que invariavelmente eram publicados, primeiramente, como folhetins no jornal. Esses romances refletiam seus próprios desejos e frustrações, advogando o direito da mulher de ter um amor sincero e dirigir sua própria vida.

Além de seus comentados relacionamentos, Sand também tinha outros hábitos incomuns para sua época. Vestia-se com roupas masculinas por diversão ou praticidade e comodidade (como dizia). Também tinha o costume de fumar em público num tempo em que isso era inaceitável para uma mulher. Comentava-se, ainda, sobre a grande quantidade de obras que produzia como sendo uma característica pouco feminina.

George Sand teve uma vida amorosa agitada, com paixões que a influenciaram consideravelmente, como o escritor Jules Sandeau, que lhe deu o pseudônimo literário, o poeta Alfred de Musset, o advogado Michel de Bourges (entre 1835 e 1837), que a converteu aos ideais republicanos e socialistas, o músico Frédéric Chopin, a quem esteve ligada entre 1838 e 1847 e seu último amante Alexandre Manceau, gravador e dramaturgo. Depois de Jules Sandeau e antes de Alfred de Musset, teve também uma breve aventura com o escritor e arqueólogo Prosper Mérimée.

De 1838 a 1845, Sand expressou suas preocupações com os problemas sociais em romances como Consuelo (1842-1843) e O Companheiro da Viagem pela França (1840). Sonhava com um mundo em que o amor fraterno unisse as classes sociais. Teve participação ativa na revolução de 1848. De 1846 a 1853, escreveu romances leves, idealizando a vida nas províncias francesas. Estes incluem Francisco, o Bastardo (1847-1848), A Pequena Fada (1849) O Charco do Diabo (1846), Mauprat, 1837, entre tantos outros de igual sucesso. Finalmente, de 1854 a 1876, escreveu contos simples, à maneira das histórias de fadas. Desse período destaca-se Contos de uma Avó (1873), com histórias que ela escreveu para seus netos.

Os personagens de George Sand e suas histórias são invariavelmente repletos de ingenuidade, poesia e otimismo. Como dizia a escritora: "O romance não precisa ser necessariamente a representação da realidade." Ela faz parte também dos escritores políticos, contando em sua obra mais de 70 títulos, entre novelas, contos, peças de teatro e textos políticos. Suas memórias constituem suas obras de maior interesse, especialmente A História de Minha Vida (1854-1855) e Ela e Ele (1859), referência à sua ligação com Alfred de Musset

George Sand faleceu no dia 8 de junho de 1876, em Nohant, na França. Alguns dos seus romances se transformariam em filmes e séries de tv, como: Mauprat (1926), Mauprat (1972), os belos cavalheiros da Floresta Dourada (1976), A pequena fada (2004), O charco do diabo (1972), As crianças do século (1999), entre outros. Seus romances continuam a serem versionados para o teatro e realizados muitos filmes e livros sobre sua vida, assim como grupos de estudo sobre ela, seu tempo e sua obra.

Considerada a maior escritora francesa e a primeira mulher a viver de direitos literários, sua propriedade em Nohant foi doada ao governo francês, por sua neta Auror e está aberta à visitação pública - Maison de George Sand. Seus restos mortais e de quase toda a sua família estão no pequeno cemitério ao lado de sua casa em Nohant. (https://pt.wikipedia.org/wiki/George_Sand

Fonte: George Sand. Lendas Rústicas. Publicado originalmente em 1858. 
Disponível em Domínio Público 

Recordando Velhas Canções (Travessia)


Compositores: Milton Nascimento e Fernando Brandt

Quando você foi embora
Fez-se noite em meu viver
Forte eu sou, mas não tem jeito
Hoje eu tenho que chorar

Minha casa não é minha
E nem é meu este lugar
Estou só e não resisto
Muito tenho pra falar

Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar?

Sonho feito de brisa
Vento, vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar

Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito o que viver

Vou querer amar de novo
E se não der, não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver

Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar?

Sonho feito de brisa
Vento, vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar

Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito o que viver

Vou querer amar de novo
E se não der, não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver
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Travessia: A Jornada de Superação e Renovação de Milton Nascimento
A canção 'Travessia', interpretada pelo icônico Milton Nascimento, é uma obra que se destaca no cenário da música popular brasileira. Composta em parceria com Fernando Brant, a música foi apresentada ao público no Festival Internacional da Canção de 1967, onde alcançou o segundo lugar, e desde então, tornou-se um dos clássicos da MPB. A letra da música reflete um momento de profunda tristeza e desolação, mas também de superação e esperança.

O início da canção revela um sentimento de perda e solidão, expresso pela partida de alguém importante ('Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver'). A casa e o lugar que não se sentem mais como próprios simbolizam a desorientação e o desamparo que acompanham o fim de um relacionamento ou a perda de um ente querido. A dor é tão intensa que o eu lírico menciona o desejo de terminar com a própria vida, uma metáfora para a profundidade do sofrimento experimentado.

No entanto, a música não se detém na dor. Ela evolui para uma narrativa de resiliência e reconstrução. O eu lírico decide seguir pela vida, esquecendo-se da pessoa que partiu e rejeitando a ideia da morte ('Eu não quero mais a morte / Tenho muito o que viver'). A mudança de perspectiva é marcante, pois passa da inércia dos sonhos para a ação ('Já não sonho, hoje faço / Com meu braço o meu viver'). 'Travessia' é, portanto, uma ode à capacidade humana de enfrentar adversidades, de se reinventar e de buscar novos amores e experiências, mesmo após ter passado por momentos de extrema vulnerabilidade.

sábado, 18 de maio de 2024

José Feldman (Versejando) 138

 

Francisca Júlia (O Avarento)

Compareceu perante o juiz um avarento e queixou-se, com expressões de lástima, de que um homem, há muitos anos, lhe devia uma certa soma, da qual só tinha pago os juros.

— Vai chamá-lo, – disse o juiz - traze-o à minha presença. Quero saber por que é que ele não te pagou ainda, e não posso condená-lo sem ouvi-lo.

O avarento saiu e, logo depois, trouxe o devedor pelo braço, insultando-o e maltratando-o com crueldade.

— Ei-lo aqui, senhor juiz. É um homem mau, um vizinho péssimo, que não tem nenhuma compreensão do dever, que não respeita as leis e que não me pagou ainda o dinheiro que lhe emprestei generosamente.

— Fala agora tu, devedor! - ordenou o juiz. – Por que é que não pagaste a este homem o que lhe devias?

— Senhor! – balbuciou o homem humildemente. – Eu devia-lhe cem sequins* que ele me emprestou. Paguei-lhe a metade. Depois, como não lhe pudesse pagar o resto, ele cobrou por suas próprias mãos, apropriando-se das minhas terras, vendendo os meus frutos, roubando o meu camelo e despojando-me das minhas roupas. Hoje nada mais tenho, senão estes andrajos que cobrem o meu corpo e estas mãos para pedir esmolas.

Então o juiz, compadecido pela miséria daquele pobre homem e revoltado contra a avareza do credor, voltou-se para este e perguntou-lhe;

— Que mais queres deste homem? Já o reduziste à mais negra miséria. Sê um pouco piedoso, desperta na noite de tua alma algum sentimento generoso. Deixa-o ir em paz.

— Não, senhor juiz.

— Mas de que modo queres que ele te pague?

— Quero que ele venha para minha casa, para servir-me como escravo, até pagar os juros que me deve.
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* Sequins = Antigas moedas de ouro fabricadas e utilizadas na Itália

Fonte> Francisca Júlia da Silva. Livro da infância. Publicado originalmente em 1899. 
Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Você é linda)


Compositor: Caetano Veloso

Fonte de mel
Nos olhos de gueixa
Kabuki, máscara
Choque entre o azul
E o cacho de acácias
Luz das acácias
Você é mãe do sol

A sua coisa é toda tão certa
Beleza esperta
Você me deixa à rua deserta
Quando atravessa
E não olha pra trás

Linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer
E diz

Você é linda
Mais que demais
Você é linda sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim

Você é forte
Dentes e músculos
Peitos e lábios
Você é forte
Letras e músicas
Todas as músicas
Que ainda hei de ouvir

No Abaeté
Areias e estrelas
Não são mais belas
Do que você
Mulher das estrelas
Mina de estrelas
Diga o que você quer

Você é linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer
E diz

Você é linda
Mais que demais
Você é linda sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim

Gosto de ver
Você no seu ritmo
Dona do carnaval
Gosto de ter
Sentir seu estilo
Ir no seu íntimo
Nunca me faça mal!

Linda
Mais que demais
Você é linda sim
Onda do mar do amor
Que bateu em mim
Você é linda
E sabe viver
Você me faz feliz
Esta canção é só pra dizer
E diz
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A Celebração da Beleza e do Amor em 'Você É Linda' de Caetano Veloso
A música 'Você É Linda', composta e interpretada por Caetano Veloso, é uma verdadeira ode à beleza e ao encantamento amoroso. Lançada no álbum 'Uns' de 1983, a canção se destaca pela suavidade de sua melodia e pela riqueza lírica que exalta a beleza de uma mulher de maneira poética e intensa. Caetano, conhecido por sua habilidade em mesclar poesia e música, cria uma atmosfera de admiração e reverência à figura feminina que é o foco da canção.

A letra da música é repleta de imagens que evocam a beleza e a força da mulher, utilizando referências culturais como a gueixa e o kabuki, elementos tradicionais da cultura japonesa, para realçar a delicadeza e a expressividade da amada. A canção também faz uso de metáforas naturais, como 'fonte de mel', 'onda do mar do amor' e 'mina de estrelas', para ilustrar a profundidade e a riqueza da beleza e do amor que o eu lírico sente. Essas imagens poéticas servem para ampliar a sensação de que a mulher descrita transcende a beleza comum, elevando-se a um patamar quase mítico.

Além de ser um elogio à beleza feminina, 'Você É Linda' também é uma celebração do amor e da vida. A música transmite uma mensagem positiva e alegre, onde o eu lírico se sente pleno e feliz pela presença dessa mulher em sua vida. A repetição do verso 'Você é linda, mais que demais' funciona como um refrão que grava na memória do ouvinte a força desse sentimento. Caetano Veloso, com sua voz suave e interpretação emotiva, consegue transmitir a sensação de que cada palavra é sentida e vivida, tornando 'Você É Linda' uma canção atemporal que continua a tocar corações por sua simplicidade e verdade.

Aluísio de Azevedo (A Serpente)

João Brás foi jantar à Santa Teresa com o seu amigo Manuel Fortuna, como costumava fazer invariavelmente todos os domingos.

Eram ambos do comércio: João guarda-livros e o outro estabelecido com uma loja de alfaiate. Grisalhando já entre os quarenta e os cinquenta, não tinham eles todavia vinte anos quando se conheceram, e essa longa amizade jamais fora perturbada pelo menor atrito de caráter.

– A paz dos anjos seja nesta casa! – exclamou João Brás, no tom risonho e tranquilo com que, ao chegar os domingos à casa do velho amigo, dizia sempre e sempre essa mesma frase.

– Bons ventos o tragam, compadre! - respondeu Manuel, estendendo-lhe a mão. – Como tem passado? E minha afilhada como vai?

– Sem novidade, graças a Deus. Lá foi mais o marido e os filhos visitar a sogra, na Piedade. Naturalmente só voltam amanhã no trem das nove e meia.

– D. Maria, já sei, está lá dentro?

– Está. Vá entrando compadre.

E o guarda-livros enfiou sem cerimônia até à cozinha para ir entregar à Dona Maria, que lá estava as voltas com o jantar e com a cozinheira, os pacotes de doces e frutas que ele trazia pendurados da mão esquerda.

Abraçaram-se formalmente, entre as palavras e os risos do costume.

João Brás era viúvo já pela segunda vez. Do primeiro matrimônio ficara-lhe uma filha, que, pelo batismo, o fizera compadre de Manuel, e depois, dezoito anos mais tarde, lhe dera um lindo casal de netos, agora constituídos no alegre enlevo da sua velhice.

Aqueles jantarzinhos domingueiros em casa do amigo tinham para ele o irresistível encanto do mais velho hábito de sua vida. Mal cumprimentava os donos da casa, trocava a sobrecasaca por um rodaque de linho branco e estendia-se numa cadeira de balanço, sob as árvores do jardim, à espera que o chamassem para a mesa. O cozido, o vinho virgem e os motivos da conversa entre os três eram quase sempre os mesmos. Depois do café, os dois compadres armavam sobre as pernas o tabuleiro do gamão e enfiavam partidas até às dez e meia da noite, enquanto D. Maria se arranchava lá fora com as famílias da vizinhança fazendo roda à porta da chácara ou passeando pelas redondezas da casa.

Manuel todavia não era casado com a sua companheira. Tendo, aos trinta anos, a recolhido como empregada para lhe tomar conta da casa, da despesa e das roupas brancas, deixou-se afinal entrar passivamente no inventário dessas coisas, e ela acabou por tomar conta também dele.

Quando deram por si, estavam unidos pela mais legítima ternura e estavam conviventes no mais perfeito pé de igualdade.

D. Maria era honesta por índole, era sadia e limpa; o negociante sentiu-se bem ao lado dela e deixou-se ficar.

Terminado o jantar, Manuel foi, como de costume, buscar o gamão, e assentados um frente ao outro, dispuseram-se os dois amigos à pachorrenta campanha, trocando logo as primeiras facécias (chacotas) e as primeiras risadas de todas as suas inumeráveis partidas.

– Mas então, compadre, i– nterrogou João, armando o jogo - afinal que me diz você do que falei outro dia a respeito de D. Maria?… Está resolvido a…

– Aí mau! Já aí vem você com a mania! Tardava-me essa cantiga! Ora para que lhe havia de dar!

– Mania não, homem de Deus! É tudo que há de mais razoável e de mais justo! D. Maria é uma senhora séria… você não tenciona separar-se dela… por que, pois não se casam logo?…  Seria mais bonito!

– Mas por que diabo hei de me casar, se somos felizes assim como vivemos há treze para quatorze anos… Nunca até hoje nenhum de nós pensou em semelhante coisa… As nossas relações de amizade não podem ser mais limitadas e modestas. Ela não tem pretensões e eu, cá pelo meu lado, nada espero nem desejo fora do meu canto, onde vivo em boa paz, graças a Deus! Quando queremos sair, saímos! Vamos ao teatro! Vamos ao Passeio Público! Vamos à toda a parte! Ninguém repara em nós! Por que então hei de eu agora tirar-me dos meus cuidados e casar?!… Não me dirá você?!…

– Seria mais bonito!…

– Ora deixe-se disso, compadre!

– É uma questão de moral!…

– Então, seu João, eu sou um homem imoral?… Por quê?

– Não digo isso, mas…

– Se tivéssemos filhos, vá! Convenho que seria de vantagem o casamento… mas, se até hoje eles não vieram, é natural que nunca mais venham.

– Não, compadre, o seu casamento com D. Maria não é só um ato de moralidade, é também um dever de gratidão e é bom cumprimento de justiça! Pois então uma mulher uma senhora, dedica-se durante quatorze anos a um homem, procedendo sempre com a mais severa honestidade, ajudando-o na vida, tratando dele, aturando-o enfim e, ao cabo de todo esse tempo, ele se não resolve a fazer por ela um pouco mais do que no primeiro dia das suas relações!… Não! não é justo, seu compadre! Tenha paciência, mas não é justo!

– Homem! Sabe de uma cousa? Não falemos mais nisto! Você quando mete a cabeça para um lado não há meio de tirá-la daí!

– Pois não falemos! Não falemos! O meu protesto, porém, fica de pé! Não falemos, não falemos. – mas no domingo seguinte, durante o joguinho, o compadre João Brás voltou à carga e acrescentou às novas escusas do amigo:

– É! Nas suas condições dizem os homens geralmente a mesma coisa e afinal acabam sempre casando à última hora, quando a mulher está a despedir-se da vida e já nada aproveita por conseguinte com a tardia resolução do seu ingrato companheiro; ao passo que esse mesmo ato de justiça praticada antes, em pleno gozo da existência, seria honroso motivo de verdadeira felicidade para ela!

– Ora, deixe-me em paz, compadre! Deixe-nos viver como vamos vivendo e preste mais atenção ao jogo, se não prego-lhe um gamão cantado.

– Pois vivam, continuem a viver seguros pela mão esquerda, mas eu cá ficarei com o direito de revoltar-me, se um dia, em caso extremo, resolver-se você a coonestar (dar aparência honesta) à sua união com D. Maria!

Manuel soprou com mais força e arregaçou as sobrancelhas, dando silenciosa cópia de quanto fatigava aquela torturante catequese. E continuou a jogar sem dizer palavra. 

O outro prosseguiu, distraído do jogo:

– Além disso, é que pode você morrer de um momento para outro, sem ter tido tempo de pôr em ordem os seus negócios, e a pobre senhora ficar por aí desamparada no mundo! Você tem parentes em Portugal, até irmãos se me não engano, pois saiba então que mesmo com testamento, esta casa e o que você possui no banco há de tudo parar em poder deles arriscando ficar D. Maria sem ter onde cair morta e precisando na velhice andar pelas esquinas a pedir por amor de Deus um bocado de pão para matar a fome! Vamos lá! Isto lhe parece justo, seu compadre?!

– Oh! Não diga isso, criatura, que você me aperta o coração! Ora já se viu?!

– Pois é cumprir com o seu dever, homem. Case-se por uma vez!

E, como D. Maria nesse momento entrava do passeio, o moralista levantou-se, deixando o tabuleiro do gamão sobre as pernas do parceiro, e foi ter com ela, para lhe dizer à queima roupa:

– Estive até agora conversando com o compadre a seu respeito, D. Maria! Mas isto é um cabeçudo de marca! Pergunte-lhe pelo que lhe falei e ajude-me também pelo seu lado!

Manuel soltou uma gargalhada.

– Sabes tu qual é agora a mania do João?… disse ele, voltando-se para a companheira. É casar-nos! Ora já se viu para que lhe havia de dar?… E não me larga, o teimoso! Não me fala noutra coisa!

– E não lhe parece que eu tenho razão? – perguntou João Brás, dirigindo-se por sua vez a D. Maria, que os escutava imóvel, sorrindo em silêncio.

– Ah! – respondeu ela com doçura. – Eu estimaria… isso com certeza… Para que negar?… Casada sempre é outra coisa: Pode uma mulher andar de cabeça erguida e pode mandar em voz alta, porque manda no que é seu! Mas cá por mim, em boa hora o diga! Dou-me por muito feliz em ter Deus me chegado para um homem como seu compadre, e nada exijo nem reclamo, porque muito já é o que ele faz por mim e pelos meus!

– E não dói a você a consciência, seu Manuel ? – exclamou João Brás com a voz tragicamente comovida, estendendo o braço e derreando para um lado a cabeça. – Não dói a você a consciência ao ouvir estas palavras, que são a expressão pura da virtude e da resignação?

– Pois bem! Pois bem! – rosnou Manuel, quase vencido. – Havemos de ver! Havemos de ver!

– Não! – replicou o outro energicamente –  “Havemos de ver” é uma promessa de caloteiro! Você o que não quer, já sei, é incomodar-se, pois eu me encarrego de tudo! Amanhã mesmo trato dos papéis. Está dito?

– Sim, sim! Veremos amanhã.

– Não! não! Já daqui não saio sem autorização para correr os banhos! Quando me meto numa coisa, é assim! O caso é estar convencido da justiça e da razão!

– Mas que falta de sofrimento! Que sangria desatada! – exclamou Manuel. – Irra! Parece que você vai salvar o pai da forca!

– Nada, meu amigo! O que se tem de fazer, faz-se logo. – O pão endurece de um dia para outro! E lá a senhora, D. Maria, ajude-me a arrastar este egoísta! Segure-o pelos ombros, que eu o seguro pelas pernas, e despejemos com ele do terraço abaixo, se não nos autorizar já e já a tratar amanhã mesmo dos papéis do casamento!

– Pois com um milhão de raios! vociferou afinal o perseguido, fugindo ao terrível compadre, que por pilhéria o agarrava já pelas pernas. Arranje! Arranje você lá os papéis que quiser! Arranje o diabo! Mas deixe-me em paz e nunca mais me fale em semelhante coisa! Arre! Pode gabar-se, meu caro, de que é um serrazina de primeira força! Nunca vi coisa igual!

– Ora bravo! aplaudiu João, batendo palmas. Até que enfim você provou que é um homem de bem! Venha de lá este abraço! E, quanto à senhora, os meus parabéns de amigo sincero! Amanhã mesmo trato dos papéis!

– Mas olhe lá, seu João… – atalhou o outro, segurando-lhe o braço. – Observo-lhe que não estou absolutamente disposto a prestar-me ao ridículo nesta idade! Só consinto no casamento se este for coisa muito íntima, muito em segredo, sem festas sem convites e sem nada de barulho.

– Ó homem! – volveu João Brás .–  O casamento faz-se de madrugada, um dia destes, na competente igreja sem que ninguém tenha que meter lá o nariz! E depois ficam vocês casados e dignamente unidos para sempre! Podemos é jantar, nós os três juntos esse dia; o que, para não alterar a praxe, bem pode ser num domingo. Hein? Que lhes parece?…

– Bom… Assim vá lá! – cedeu Manuel.

– Fica então marcado para o domingo que vem?…

– Pois marquem lá para domingo! Irra!

E assim foi. No domingo seguinte Manuel levou D. Maria à igreja de sua freguesia e voltaram de lá marido e mulher, graças a João Brás que tinha tudo despachado, com uma expedição capaz de envergonhar ao mais ativo agente de casamentos.

O jantar, já se vê, foi melhor nesse dia e regado mais copiosamente. D. Maria mandou matar peru e recebeu de mimo um leitão assado. Fez doces e comprou frutas e flores. Manuel, à tarde, admirou-se de ver entrarem-lhe pela sala algumas vizinhas com trajes de festa, acompanhadas pelos parentes e não se pôde furtar a parabéns e abraços, que lhe faziam torcer o nariz.

– Aquele compadre João Brás era o diabo! Afinal de contas tudo aquilo estava fora do programa!

Manuel principiava a arrepender-se do que tinha feito e parecia já menos alegre que nos outros dias.

D. Maria, essa pelo contrário, estava radiante e mostrava-se mais empertigada mais dona de casa. À mesa falou aos convivas com um ar empantufado e senhoril, que ninguém, ainda menos Manuel, até aí lhe conhecera.

Contudo, o bom homem, apesar de deveras contrariado por sair dos seus velhos hábitos, não se queixou; e, mal terminados os fervorosos brindes da sobremesa, foi pachorrentamente buscar o tabuleiro do gamão e armou-o sobre os joelhos, no lugar do costume, assentado defronte do vitorioso compadre.

D. Maria acabava nesse instante de assomar à porta da sala, palitando os dentes. Ao ver o marido, que armava a primeira partida, exclamou:

– Também vocês são terríveis com esse infernal gamão! Oh! nem mesmo no dia de meu casamento e com visitas aqui deixam o diabo do jogo!

E arrebatou das pernas dos dois parceiros o tabuleiro, com os dados, as pedras e os copos de couro, que se espalharam pelo chão.

João Brás soltou uma risada supondo que aquilo era simples gracejo. 

– Mas, D. Maria! acrescentou de cara fechada e com voz dura: – Ó senhores! Que diabo, deixem-se dessa sensaboria (contratempo) uma vez ao menos! Tenham um pouco em conta o dia de hoje!

E afastou-se, muito escamada, sacudindo os quadris e abanando-se com o leque.

Os dois compadres, assentados um frente do outro, como se fossem agora jogar o sisudo, olharam-se sem ânimo de proferir palavra.

E assim que se pilharam a sós, Manuel segredou ao amigo:

– Você viu, compadre? Você viu o pano da amostra?

João não respondeu e Manuel murmurou, sacudindo a cabeça:

– Pode ser que me engane, e Deus o queira! Mas suponho que para sempre me fugiu de casa a tranquilidade!…

E tinha razão o pobre homem: tais coisas se foram sucedendo em casa dele que Manuel, meses depois, surgiu um dia no escritório do amigo, e atirou-se numa cadeira esbaforido de cólera.

– Que houve de novo, compadre? Que mais lhe aconteceu? – perguntou o guarda-livros.

– Foi você quem se encarregou dos papéis para casar-nos, não é verdade? – bramiu o negociante. – Pois, meu amigo, trate agora dos papéis do divórcio, porque este que aqui está nunca mais porá os pés na casa em que estiver aquela fúria! Nunca mais, ouviu!?

E aquele homem, até aí tão pachorrento, tinha agora uma catadura (feição) de tigre assanhado e dardejava ferozmente o guarda-chuva, ameaçando quebrar os globos das arandelas do gás.

– Arre! arre! – berrava ele –  Vá para o inferno e o diabo que a ature!

– Mas, compadre, reconsidere, escute! Você está fora de si, homem!

– Não! – berrou Manuel, esbugalhando os olhos e rilhando os queixais. – Não, com mil raios! Se me aproximar daquele demônio é para estrangulá-lo! Não volto a casa! Não quero ser assassino!

– Mas o que mais houve, compadre?

– Que houve?! – E o infeliz soltou uma gargalhada satânica. – Que houve?! Vá lá à casa e veja o estado em que deixamos tudo! Vá ver!

Fonte: Aluísio de Azevedo. Contos. Publicado originalmente em 1893. Disponível em Domínio Público 

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 46: Bem aventurado

 

Arthur Thomaz (No Tribunal)

Não tenho a mínima noção de onde me encontro. Pareço estar acordando de um sono pro fundo povoado de pesadelos. 

Esfrego os olhos na vã tentativa de afastar essas incômodas imagens. Vozes misturavam-se, até que consegui desembaraçá-las, e pude identificar iradas frases que vinham de uma figura com toga preta nos ombros e que parecia dirigir essas ásperas palavras a mim.

Desligo-me momentaneamente desse inóspito ambiente e tento lembrar de meus momentos anteriores a esse cataclisma. Recordo, imediatamente, das carícias suaves da minha Tereza no leito do motel, em que íamos uma vez ao ano para reacender o relacionamento que já perdurava há uma década.

Ou seriam os deliciosos carinhos da proibida Raquel, amante há algum tempo?

Eu pensei naquele dia em dizer a Raquel que o motel que ela escolhera era o mesmo em que eu ia com Teresa, mas, prudente, calei-me.

Embaralhando meus pensamentos, já não os distinguia neste momento, ainda mais com aquela voz irritante do togado citando insistentemente meu nome.

Culpado, premeditado, má conduta, falsidade, encontrado com a faca nas mãos. Cruéis palavras que me torturavam, explodindo em meu confuso cérebro. Será que fechando novamente os olhos, trocaria esse pesadelo por um sonho mais leve?

Novamente, gritos acusando-me de estar dormindo em pleno julgamento. Essa palavra soou como um míssil tentando explodir minha cabeça. 

Percebi, então, que algo grave estava acontecendo. Que estranho!. Deitado, eu dizia a Raquel para pararmos de beber, mas ela teimosamente pedia mais dois drinques.

De repente, uma estridente e raivosa voz adentra. Um barulho, um grito abafado e algo é colocado em minhas mãos.

Bêbado, deixei para ver depois o que era esse frio objeto. 

Em seguida, sirenes, gritos e algo gelado prendendo meus punhos. Estranhamente, minha doce Raquel nada dizia nessa hora.

Abro os olhos e vejo aquelas sete pessoas e seus 14 olhos perscrutando minha alma.

Parecendo dissecar meus pensamentos e com desejos de arrancar meu coração. Seria aquilo um júri?

Eu só queria voltar a dormir nos braços de uma delas.

Aquela toga levanta-se e pronuncia algo que foi comemorado por uma multidão, que só agora vejo sentada atrás de mim.

Gritos, novos empurrões, algo gelado volta apertando os meus punhos e sirenes. Enfim, me levam ao sossego de um local acolhedor, longe daquela incômoda balbúrdia.

Muitos anos depois, alguém de visível má vontade, escancara aquela porta gradeada e finalmente me encontro na rua.

Agora posso voltar aos braços da proibida Raquel. Em vão, eu a procuro. Aquela voz que algo fez para separá-la de mim continua tonitruante em meus ouvidos.

Repentinamente, reconheço a voz raivosa daquele dia.

Era a de Tereza. Grito desesperado e tardiamente que não fui eu. E nessa hora, nem os paralelepípedos da rua me escutam.

Fonte> Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (Carinhoso)


Compositores: João de Barro / Pixxinguinha

Meu coração, não sei por quê
Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim foges de mim

Ah, se tu soubesses
Como sou tão carinhoso
E o muito, muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim

Vem, vem, vem, vem
Vem sentir o calor dos lábios meus
À procura dos teus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim então serei feliz
Bem feliz
Meu coração
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Doçura e a Saudade na Melodia de 'Carinhoso'
A música 'Carinhoso', composta por Pixinguinha, um dos maiores compositores da música brasileira, é um clássico do choro e da música popular brasileira. A letra, escrita por João de Barro, o Braguinha, expressa um sentimento de amor e saudade, características marcantes da obra de Pixinguinha. A canção foi composta em 1917, mas só ganhou letra em 1937, tornando-se um dos sambas mais conhecidos e interpretados do Brasil.

A letra de 'Carinhoso' fala de um amor não correspondido, onde o eu lírico expressa sua alegria e emoção ao ver a pessoa amada, mesmo que esta não retribua seus sentimentos. A expressão 'meu coração não sei por quê, bate feliz quando te vê' revela a natureza involuntária e intensa do amor, que faz o coração reagir apenas com a visão da pessoa desejada. A repetição do 'vem' no final da música é um convite apaixonado, um clamor para que o amor seja correspondido e para que a paixão que consome o coração do eu lírico seja finalmente saciada.

A música 'Carinhoso' é um retrato da alma brasileira, com sua melodia que mistura tristeza e alegria, e sua letra que fala de amor de forma simples, mas profunda. Pixinguinha, com sua habilidade ímpar de compositor, criou uma obra que atravessa gerações, tocando o coração de quem a ouve. A canção é um hino ao amor e à delicadeza dos sentimentos, e permanece como uma das mais belas páginas da música popular brasileira.