terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Carlos Leite Ribeiro (Um conto de Natal)

Naquela véspera de Natal, o senhor Freitas regressava a casa, sozinho como sempre, pois, já há muito tempo que não convivia com ninguém, pois tinha um feitio muito especial que afastava os amigos.

Um saco de plástico na mão esquerda, chapéu-de-chuva no braço direito, uma gabardina muito comprida e muito usada; botas gastas e a “comerem” a bainha das calças já muito coçadas; óculos encarrapitados no seu grosso nariz, e uma boina muito velha na cabeça. Corpo vergado pelo peso de muitos anos – era assim o senhor Freitas!

O dia estava a findar e, o movimento nas ruas era enorme, pois, toda a gente queria chegar a casa o mais cedo possível, com os presentes para os seus familiares e amigos. Chuviscava.

Ninguém parecia reparar naquela personagem, nem este, parecia notar a presença de outros.

Uma criança se abeirou dele:

– Senhor, uma esmolinha por favor… Senhor, uma esmolinha por favor…

– Eu não dou nada a ninguém – vai-te embora daqui!” – Respondeu-lhe com maus modos o velhote.

Mas a pequena insistia

– Hoje é Natal – dê-me uma esmolinha por favor…

– O Natal é só para os outros, garota! O Natal para mim é um dia igual aos outros… … Ai, ai que eu caio, ai…aiii…

E o senhor Freitas escorregou numa casca de banana e caiu mesmo. Logo a criança, muito aflita, gritou-lhe:

– Cuidado, senhor…

– Ai…ai, meu braço. Maldita casca de banana!…

– O senhor machucou-se? Terá algum osso partido? Coitadinho… – Não se cansava de perguntar, muito aflita, a garotinha.

O velhote parecia que nem a ouvia:

– Ai, o meu braço que me dói tanto… Ó garota, apanha-me essas maçãs e também o pão. Ajuda-me a levantar. Mas cuidado, cuidado… Ai, ai o meu braço…

– Tenha calma, eu ajudo o senhor a levantar-se… Vá lá, com muito cuidadinho; vá, vá, pronto. Agora, vou levá-lo ao hospital.

O senhor Freitas, teimosamente, tentava prescindir dos seus préstimos:

– Não preciso de nada, garota! Eu vou sozinho… Mas, ai, ai… O meu braço…

Carinhosamente, a garota tentava convencê-lo a ir tratar-se:

– Está a ver?… o senhor precisa da minha ajuda. Não seja teimoso, nem mauzinho. O senhor até tem cara de homem bom!

– Eu cara de homem bom? Eu bom? Tu estás enganada – ou pretendes enganar-me… Ai…

– Olhe que é preciso ter uma grande paciência para lidar consigo! Você tem cara de homem bom e pronto – é a minha opinião!

Como sempre, o senhor Freitas estava desconfiado:

– Deixa-te disso garota, que a mim não me consegues convencer com essa cara de anjo. Tu queres é o meu dinheiro, nada mais. Ai, o meu rico braço que cada vez me dói mais!

Já revoltada, a garota respondeu-lhe:

– Sou muito pobrezinha e não tenho ninguém que me dê de comer, mas juro que não quero o seu dinheiro, como diz…

– Tretas! É só lérias, pois todos que de mim se abeiram, só querem o meu dinheiro! E vens tu agora, com falinhas mansas, a dizeres que não o queres! E isto só por eu ter cara de homem bom!… Ai… O meu braço que me dói tanto…

A garota revoltada e já com lágrimas nos olhos, retorquiu-lhe:

– O senhor está a ser injusto para comigo!… Por acaso nunca ouviu falar em solidariedade humana?

Embora com muitas dores, o senhor Freitas não desarmava:

– Puuff, sei lá o que é que isso! A única coisa que conheço é o valor do dinheiro!

Mas não ficou sem resposta:

– Então, meu senhor, enrole todo o seu dinheiro em volta do seu braço que deve estar partido, e, talvez assim fique sem dores e com o braço curado! Por acaso o senhor não compreende o significado do Natal?!

– Lá jeito para discursos, tens tu, garota! – comentou o velho “resmungão”.

– Vou-me embora. Como vê, eu não quero o seu dinheiro. Simplesmente, estava a tentar ajudá-lo.

Dando meia-volta, ia-se a afastar, deixando o senhor Freitas muito estupefato.

– Como assim?! Vais-te embora? Tens coragem de me deixares aqui sozinho? Finalmente tu és como os outros que por aqui passam, sem repararem neste pobre velho – que até tem um braço partido…

Ao ouvir isto, a garota parou e respondeu-lhe:

– Mas o senhor é que não quer a minha ajuda!

O velhote ouviu e “engoliu em seco”. Mas, logo continuou:

– Aonde está a tal tua solidariedade que ainda há pouco apregoavas? Sim, aonde é que ela está? Ao deixares aqui sozinho um pobre velho, doente e com um braço partido? Ai, ai que me dói tanto!

A garota sorriu e já mais confiante, retorquiu-lhe:

– Meu senhor, enrole todo o seu dinheiro em volta do seu braço. Talvez assim se cure…

Já em tom quase suplicante, o velhote pediu-lhe:

– Mas o dinheiro não me vai curar! Preciso da tua ajuda! Eu pago-te o que tu quiseres, mas, por favor, ajuda-me a ir ao hospital! Pois preciso de me curar. Ajuda-me, garota!… Por favor!

– Dê cá o saco e o guarda-chuva: Agora, encoste-se ao meu ombro e vamos ao hospital…

E era bonito de ver.

Um velho sovina, curvado pelo peso de muitos anos, encostado ao corpo frágil de uma criança, a caminho do hospital onde ia ser tratado.

Naquela noite de Natal, o senhor Freitas, finalmente, devia de ter compreendido a mensagem de Deus: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”
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Carlos Leite Ribeiro nasceu em Lisboa/Portugal, em 1937 e faleceu em Marinha Grande/Portugal, em 2018.

Fonte:
Texto enviado pelo autor
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

José Feldman (O Menino e o Natal)

Numa cidade pequena, a véspera de Natal trazia consigo um misto de alegria e consumismo. As lojas estavam repletas de pessoas, as vitrinas decoradas com presentes brilhantes e árvores de Natal exuberantes. Enquanto a cidade se enchia de luzes e risos, um garoto de rua, chamado Lúcio, caminhava pelas calçadas, observando tudo com um olhar distante.

Ele tinha apenas doze anos e, desde muito pequeno, aprendera a sobreviver nas ruas. A vida não lhe oferecera muitas opções; a família se desfez e ele se viu sozinho, enfrentando a frieza do asfalto e a indiferença de quem passava. No entanto, o espírito do Natal ainda conseguia penetrar em seu coração, mesmo que de forma tímida.

Naquela tarde, enquanto caminhava pela rua principal, Lúcio parou em frente a uma loja de brinquedos. A vitrine estava repleta de jogos, bonecas e carrinhos, todos brilhando sob a luz artificial. Ele se lembrou de quando era pequeno e sonhava em ter um carrinho de controle remoto, um presente que nunca pôde ter. Observando as crianças rindo e escolhendo presentes, sentiu uma pontada de tristeza, mas também um fio de esperança.

Enquanto pensava nisso, um grupo de crianças ricas passou perto dele, rindo e falando sobre suas expectativas para o Natal. Lúcio tentou não ouvir, mas as palavras chegaram até ele como um eco distante. "Eu quero uma bicicleta!", disse uma menina. "Eu quero o último modelo do console!", gritou outro. Ele apenas suspirou, lembrando-se de que, para ele, o Natal era apenas mais um dia, a não ser pelo cheiro de comida que emanava das casas.

Decidido a não se deixar abater, se afastou da loja e caminhou até a praça central, onde um grande pinheiro estava enfeitado. As luzes piscavam, e havia um ar de celebração no ar. Ele se sentou em um banco, observando as pessoas que passavam, algumas com sacolas cheias de presentes, outras abraçando seus entes queridos. O menino se sentiu um intruso, mas algo dentro dele não queria sair dali. Queria, pelo menos, sentir um pouco da magia do Natal.

Enquanto estava ali, uma mulher idosa se aproximou. Ela carregava um grande saco de presentes e parecia estar em busca de algo. Ao vê-lo sentado sozinho, parou e sorriu.

— Olá, meu jovem! — disse ela com uma voz suave. — O que faz aqui sozinho na véspera de Natal?

Lúcio hesitou, mas a bondade daquela mulher o encorajou a falar.

— Eu só estou... olhando — respondeu ele, tentando esconder a tristeza.

A mulher percebeu a sinceridade e a tristeza em seus olhos. Com um gesto gentil, ela se sentou ao seu lado.

— Sabe, querido, o Natal é uma época de compartilhar. Você não gostaria de ter um presente? — perguntou, com um brilho nos olhos.

Lúcio ficou surpreso. Para ele, a ideia de ganhar um presente parecia um sonho distante. A mulher, percebendo sua hesitação, continuou.

— Todos merecem um pouco de alegria nesta época. Venha, vamos encontrar algo para você. 

Ela se levantou e puxou Lúcio, que, após um momento de dúvida, a seguiu. Juntos, eles foram até uma pequena barraca que vendia doces e lanches. A mulher comprou um pacote de bolachas e um suco para o garoto.

— Aqui, isso é para você! — disse ela, com um sorriso caloroso.

Lúcio agarrou o pacote, os olhos brilhando de gratidão. Nunca pensou que alguém faria algo tão gentil por ele. Enquanto comia, a mulher começou a contar histórias sobre seus Natais passados, sobre a importância da generosidade e do amor. Ele ouvia atentamente, sentindo-se acolhido por aquelas palavras.

Após um tempo, a mulher olhou para ele e disse:

— Você sabe, meu querido, o Natal é mais do que presentes. É sobre estar junto, sobre compartilhar momentos e espalhar amor. Você tem alguém com quem passar o Natal?

Lúcio balançou a cabeça, sentindo a solidão pesar sobre ele. A mulher sorriu com tristeza, mas logo teve uma ideia.

— Que tal você passar o Natal comigo e minha família? Nós sempre temos um lugar à mesa para alguém que precisa de companhia.

Lúcio ficou sem palavras. Aquela oferta era um presente que jamais esperava ganhar. Ele nunca imaginou que poderia ter um Natal com uma família. O coração dele se encheu de esperança e alegria.

Naquela noite, Lúcio foi para a casa da mulher. Ele se encontrou cercado por uma família calorosa, onde as risadas e as histórias fluíam. A mesa estava cheia de comida deliciosa, e ele se sentiu parte de algo muito maior do que ele mesmo. 

Os presentes foram trocados, mas o que mais tocou Lúcio foi a sensação de fazer parte de algo. Ele percebeu que, mesmo na solidão, havia esperança. O amor e a generosidade daquela mulher mudaram seu Natal para sempre.

Ao final da noite, Lúcio olhou para o céu estrelado e fez um pedido silencioso: que aquele espírito de amor e união pudesse acompanhá-lo não apenas no Natal, mas em todos os dias de sua vida. E, pela primeira vez em muito tempo, ele sentiu que não estava sozinho. O Natal, para ele, havia se transformado em um símbolo de renovação e esperança.
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José Feldman é de Campo Mourão/PR

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
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Vereda da Poesia = Especial de Natal


Trova de
MANOEL CAVALCANTE
Pau dos Ferros/ RN

Peço a “Noel”, com leveza,
que ao chegar do polo norte,
bote ao menos pão na mesa
dos que nasceram sem sorte.
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Soneto de
JOSÉ ANTONIO JACOB
Juiz de Fora/MG

Natal dos Meus Sonhos

Se não houver partilha de bondade
Não há Natal na vida que amenize
A dor profunda da desigualdade
Entre os irmãos de casa e de marquise.

Que a ceia repartida simbolize
O pão sagrado da fraternidade
E que consagre a paz e realize
Esse Natal de fato e de verdade.

De não ter criança pobre numa esquina
A olhar brinquedos dentro da vitrina,
Onde “Papai Noel” sorri contente…

Natal é muito mais, e mais seria,
Se a gente retribuísse o dia a dia
Que a vida nos concede de presente.
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Trova de
JOSÉ MESSIAS BRAZ
Juiz de Fora/ MG

Meu Natal, hoje, é melhor,
pelo conforto e os bons tratos,
mas o sonho era maior,
quando eu não tinha sapatos!
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Soneto de
FRANCISCO NEVES MACEDO
Natal/ RN, 1948 – 2012 

Novo Natal

Eu fiz um soneto falando da dor,
de pobres crianças, em mais um Natal.
Carentes de tudo, de pão e de amor,
um sonho maior, que se fez sazonal.

Eu quero dizer ao Noel, ”parcial”:
lembrai cada filho do trabalhador,
querendo somente um olhar paternal,
recebe uma noite, sem luz e sem cor!

Você, Pai Noel, sem amor pelos pobres,
desfila o trenó pelos bairros mais nobres,
esquece, no morro, a criança infeliz.

Em nome dos pobres, eu tenho uma queixa:
você, velho ingrato, retorna e não deixa,
sequer um brinquedo, que um rico não quis. 
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Trova de
VERA MARIA BASTOS
Juiz de Fora/ MG, 1934 – 2006

É Natal! A casa cheia
e a família reunida
no amor de Deus faz a ceia,
dividindo o pão da vida!
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Poema de
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

Sempre Natal

Pelas voltas do tempo, houve mudança
nos festejos da data do Natal,
mas não me esqueço quando era criança,
e tudo era mais simples afinal.

Papai montava caixas, lá no canto
da sala tão modesta e pequenina.
Mamãe armava o presépio. E que encanto
fascinava minha alma de menina!

Os três magos, em fila, meio sérios,
olhavam Jesuzinho no seu berço.
À luz da vela eu via mil mistérios,
e então a minha mãe puxava o terço.

Papai partiu. Depois, mamãe também.
Hoje, tudo se fez modernidade.
Mas eu conservo o amor, a luz e o bem
do Natal do meu lar, que hoje é saudade.

Se o mundo ao meu redor parece novo,
persiste o verdadeiro, o essencial.
Seja quando e onde for… na alma do povo
nasce Jesus! Natal sempre é Natal.
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Trova de
THALMA TAVARES
São Simão/ SP

Peço a Deus, neste momento,
no fervor de minha prece,
um natal sem sofrimento
pra todo irmão que padece.
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Poema de
IEDA LIMA
Caicó/ RN

A família reunida
dividindo o pão à mesa
será sempre, com certeza,
a melhor coisa da vida.
Adotando esta medida,
de maneira natural,
todo mundo é visto igual
festejando o Deus-criança;
minha casa é só bonança,
numa noite de Natal.
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

O Natal é uma beleza:
tem presentes, festa e luz…
Mas vejo que em cada mesa
falta um lugar pra Jesus!
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Poema de 
LUIZ DUTRA
Natal/RN

No barraco da favela,
não existe luz acesa;
lá na noite de Natal,
falta luz, sobra pobreza;
Natal, lá, é o mesmo drama,
falta presente na cama,
e pão em cima da mesa.
= = = = = = 

Trova de
MIGUEL RUSSOWSKY
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC

Deus com seu saber profundo,
para nos trazer a paz,
mandou o seu filho ao mundo
há dois mil anos atrás.
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Poema de
OLGA DIAS FERREIRA
Pelotas/RS

Prece de Natal

Ouço bem longe, doces tons divinos,
a penetrar-me a alma com fulgor,
diviso sons, suaves, cristalinos,
a propagar a vinda do Senhor.

Pobres pastores, rumam campesinos,
na atmosfera de cadeia em flor,
escutam forte badalar de sinos,
em grandes festas para o Salvador.

Os três Reis Magos, com prazer intenso,
transportam joias, o mais raro incenso,
com vestes santas, para um festival…

Brilhando o sol, com o raiar mais denso,
formulo prece, com amor imenso:
bendito sejas, Pai, neste Natal!!!
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Trova de
CAROLINA RAMOS 
Santos/ SP

Noite excelsa… A Ti, Jesus,
guiou a Estrela os pastores!
É Natal!… Que a Santa Luz,
guie agora os Trovadores!
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Poema de 
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/ CE

Natal Moderno.

É dezembro, mês de festa,
Festejamos o Natal,
Não existe festa igual!
Festa simples e modesta,
Não há festa tal qual esta!
Tem anjo, tem querubim,
Tem arcanjo e serafim,
Tem rei mago com presente;
O coral canta dolente
O chegar do “meninim”!

Mas também tem muita gente
Correndo, daqui pra ali,
Num terrível frenesi,
Atrás de comprar presente;
Êta Natal diferente!
Nesse “fuxico” infernal,
De cunho comercial,
Vê-se o povo em “agonia”,
Falsificando alegria;
Nem parece que é Natal!
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Trova de
POMPÍLIO O. VIEIRA
São Vicente/SP

Natal da minha velhice…
não sinto qualquer revolta:
– Papai Noel… ah! quem disse
que, em nós, o sonho não volta?
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Olivaldo Júnior (Um Menino e seu Natal)

Na janela sem luzinhas lá de casa, um menino fica à espera de um amigo que não vem. Passa um dia, passam dois, passam três, e nada!... Inquieto, o menino da minha história fica insone, sem graça, sem gosto pela vida, sempre à espera do amigo ausente que não vem.

Podia vir de trem. Podia vir de carro. Podia vir até de avião a jato, de foguete!... Nada. Nem um resquício de sua vinda até à janela do velho menino que só quer o velho amigo a seu lado. Podia vir por bem. Mas não virá, nem mesmo por mal. É um amigo que nunca vem.

É Natal, sim, é Natal!... Os meninos querem mais do que um colinho, um "Durma bem", um beijo doce da mulher que os trouxe ao mundo. Uns querem bola; outros, bike; mas um menino, à janela de sua casa, num bairro periférico da city em que mora, quer o amigo.

Amanhã, quem diria, é vinte e seis de dezembro. O Natal será história, memória, vitória do tempo sobre o homem, que só se lembra do que se foi quando o presente se desfez e já não pode ser mudado. Mudo, um menino, sem Noel, nem Jesus Cristo, sem amigo, reza.
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Olivaldo Júnior é de Mogi-Guaçu/SP.

Fontes: Texto enviado pelo autor. 
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Dorothy Jansson Moretti (Natal do meu tempo)

Quando eu tinha seis anos, o Natal era realmente o maior acontecimento.

Duas semanas antes, em casa era uma reviravolta. Fazia-se uma faxina especial, em que além da limpeza ordinária, engomavam-se toalhinhas e cortinas, poliam-se objetos de enfeite, e estendia-se na mesa uma bonita toalha bordada com motivos de Natal.

Nosso jardim era grande e fornecia as flores para embelezar nossa casa e até as de alguns vizinhos.

Na cozinha preparavam-se os doces. Lembro-me da grande tábua de estender massas e de minha irmã Sílvia cortando nela gostosas bolachinhas de formatos variados: bichinhos, estrelinhas, cometas, Papai Noel...

Mamãe, com um lenço amarrado nos cabelos, temperava as massas dos cuques e bolos de chocolate e nozes. Fazia também docinhos de leite cortados em losangos, e deliciosas balas de leite e mel que eu e meus irmãos Gustavo e Linéa, ajudávamos a embrulhar.

Tudo pronto, guardava-se em grandes latas quadradas com tampo de dobradiças (Biscoitos Aymoré).

Chegava o grande dia. Ganhávamos vestidinhos novos e brinquedos. Que festa! Lavávamos o gato para ele também ficar limpo e bonito para o Natal.

Durante o dia todo, que movimento! Todo mundo queria aproveitar a roupa nova para tirar fotografia. Vendiam-se filmes o dia inteiro.

À tarde vinham visitas e as gulodices eram oferecidas acompanhadas de um licorzinho ou café.

À noite havia festa na Igreja Presbiteriana. Dona Dirce e Domitila nos ensaiavam durante um mês para as apresentações. Cantávamos "Deitado em mangedoura", "Nasce Jesus", "Meu presente de Natal", "Na gruta da Belém"...

Havia também muitas declamações, e ao final distribuíam-se às crianças docinhos acondicionados em vistosos saquinhos coloridos de papel-crepom.

Não havia televisão...

E no meu tempo de mocinha, também não havia televisão. A festa era a mesma, com poucas alterações. O vestido novo, a casa enfeitada e os doces continuavam mantendo as posições, mas à noite, além da Igreja, a gente ia também ao jardim e à Rua Quinze, encontrar as amigas e os amigos para fazer o footing tradicional,

Tra-di-ci-o-nal... Que palavra remota! Algum dicionário ainda a define? Ou os modismos do tempo a absorveram, como absorveram o meu Natal de antigamente, tão doce, tão ingênuo, mas tão... tão... tão Natal!...
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(Tribuna de Itararé 24/12/1992)
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Dorothy Jansson Moretti nasceu em Três Barras/SC, 1926 e faleceu em Sorocaba/S`, 2017.

Fontes:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012. Enviado pela escritora.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Carolina Ramos (Natal Feliz)

“Ele terá um Natal feliz! Ah, sim! Custe o que custar, o meu moleque há de ter neste ano, um Natal igualzinho ao dos outros!" — Zé Pedro apertava as mãos com vigor, como a transmitir força à decisão. O olhar severo diluía-se em ternura ao pousar sobre o vulto tristonho da criança, que, através da vidraça (opaca de pó, olhava os companheiros de folguedos, a lhe ignorar o afastamento, mal iniciada a discussão dos projetos e preparativos natalinos. Aqueles tinham mãe. Tinham lar. Teriam Natal!

Mas, o seu Betinho, desta vez também teria um Natal! O primeiro Natal, e, talvez, o mais feliz de toda a sua vida!

Logo ao nascer, a morte roubara ao menino a doçura dos carinhos maternos. Crescera aos trambolhões. O pai a desvelar-se. Viril, no trabalho diurno. A noite, premido pelas circunstâncias, a bipartir-se, fazendo o impossível, para dar ao filho a flexível austeridade de um pai e a tépida ternura dos braços maternos. Dupla missão, visando a um fim comum: a felicidade do filho. Atrapalhava-se, sem dúvida. As crianças, por vezes, tornam-se um bocado difíceis de serem entendidas. Mormente, por alguém que no trabalho pesado se embrutecia, calcando ao fundo da alma um cortejo sem fim de ressentimentos, a desfilar tristemente entre as ruínas dos seus pobres sonhos. Sonhos! Que seria isso? Há tanto deixara de sonhar! Sonhos, são para aqueles que ainda pretendem vê-los realizados um dia. Ele nada esperava. Bem... nada, propriamente, não. Queria fazer do filho um homem de valor! Ah! Mas, isto não era um sonho. Era pré-realidade. Palpavelmente concreta? Faria do filho, um homem! Por todos os santos, que o faria! Haveria de estudar, de ser alguém. Nem que o pai não passasse, como até agora, de um sofrido burro de carga.

"Dr. Alberto Celso da Silva!" — "Bom dia, doutor." "Obrigado, doutor!" — Como soava bem! Parecia ver-lhe a placa reluzindo à entrada de uma casa moderna! Casa de gente. Não aquela espelunca!

Zé Pedro desceu à terra. Olhos úmidos, percebeu que andara sonhando. Passou a mão calosa pelo rosto rude, curtido de sol. O certo, é que seu filho teria um Natal feliz!

Olhava a casa modesta, em desalinho, clamando pelos desvelos femininos. Nem de longe, assemelhava-se a um lar! Só as mulheres, com seus filtros mágicos, conseguem dar vida e graça, às coisas sem vida e sem graça alguma! Tentaria repetir o milagre. Pediria até umas férias. Não, nem seria preciso tanto. Uma licença de uns poucos dias, bastaria.

E, assim, tudo começou: "— o encardido das paredes foi escondido por uma camada de cal azul turquesa, talvez um pouco escura demais, mas, sempre azul! " A cor que sua finada Maria tanto apreciava. Casa limpa, tudo pareceu mais fácil. As vidraças, agora transparentes, permitiam que o sol jogasse confetes dourados nas tábuas foscas do assoalho. Zé Pedro exultava! O entusiasmo era tão grande, que o mulherio da vizinhança, sempre pronto ao zelo pelo garoto, em horas de expediente do pai, sentiu uma vez mais o problema, e, uma vez mais, cooperou. A velha Joana, até mesmo a velha Joana, mais dada às críticas e queixas, chegou a enviar-lhe um ramalhete de flores, fresquinhas, colhidas num jardim doméstico, igualzinho àquele que sua Maria esboçara, alguns meses antes que a condição de futura mãe lhe impedisse tais excessos. Maria! Tépida onda de saudade banhou-lhe o corpo, quase a saltar-lhe pelas janelas do olhar. Onze meses de ternura conjugal! E que onze meses felizes! Por que será que a felicidade acaba tão depressa?! Em troca, o infortúnio custa tanto a ir-se! — Uma leve, leve... qualquer ventinho a dissipa; o outro, pesado... pesado demais! Por isso mesmo, talvez nem todo um tufão de boa vontade consegue remove–lo de cima da gente. Ora, Senhor!, lá estava ele, caminhando com os pés virados para atrás, mergulhado no passado! E o presente, combalido, a exigir tantos cuidados!

Quase de mau humor, tentou ajeitar, numa velha leiteira, as flores recebidas. Já rachada, a vasilha partiu-se. A água espalhada por sobre a mesa tosca, arrefeceu o ânimo do homem. Roubou-lhe também um pouco mais do humor.

Fazia falta uma mulher em casa. Por todos os demônios, que fazia! Seis anos de viuvez! Por que não se casava outra vez? — Pergunta que lhe faziam amiúde e que, a si mesmo, repetia com frequência, principalmente, quando certos olhos castanhos ganhavam maior brilho, mal o viam passar. Mas, isso não! Jamais daria madrasta ao filho! A vida, roubando ao seu pequeno o carinho materno, já fora madrasta, e das piores! Não viesse a outra completar-lhe a obra. Tudo se arranjaria, aos poucos, com a graça de Deus.

— "Casa sem flores, pode ser casa, nunca um lar." dissera-lhe, certa vez, a companheira, quando, ao vê-la colocar à mesa, entre os pratos, um vaso cheio de flores, pilheriara: — "Vamos comê-las com sal, ou com açúcar?" Em resposta, haviam rido juntos. A esse tempo, já era possível sentir a presença irrequieta do filho, por sob a bata franzida, da mãe.

Ah! Maria, Maria... sempre Maria!

Zé Pedro enfiou as flores da velha Joana num bule de café. À volta do trabalho, trazia um vaso debaixo do braço. Seu filho teria um Natal feliz! Faltava ainda tanta coisa! E a verba andava curta! Quanto, para que uma casa se transformasse num lar!

O Natal batia à porta. Poderia vender algo. Aquele relógio que lhe dera Maria. Guardava-o com tanto carinho!... Quebrado mesmo, já o farmacêutico lhe oferecera por ele um bom cobre. Era um caso a estudar. Não tinha tempo para estudos. Acariciou o relógio uma última vez... reservava-o para o filho. Bobagens! Até que fosse gente para poder usá-lo, dar-lhe-ia outro melhor e mais bonito. E Maria? — não ficaria, acaso, magoada, se lá de cima visse tudo? Ora, claro que não! As mães compreendem tudo! E tudo não era para que o filho tivesse um Natal feliz?

O relógio ganhou novo dono. O menino, roupa nova. Terninho azul, como tanto desejara. Azul! Sempre o azul presente. Seria azul a cor dos sonhos? Se assim fosse, não seria de estranhar que, uma vez realizados, conservassem algo a lhes lembrar a primitiva cor. Santo Deus, por que pensava em tais tolices?! Aquele Natal lhe estava deixando miolo mole e coração, também. Devaneios de poeta! Olhou-se no espelho que pendia torto da parede. Endireitou-o. — "Toma jeito, Zé Pedro!" murmurou, mastigando um sorriso.

E vieram as frutas secas! Importadas! As amêndoas, as nozes e as avelãs. Um bocadinho de cada. E os bolsos ficando leves! As passas, os figos. Mania de copiar os outros! Por que não festejarmos o nosso Natal à brasileira, com as nossas próprias castanhas, os nossos pinhões, os nossos tão gostosos amendoins? Não são por acaso, frutos secos? E as peras d'água, as laranjas, os abacaxis de coroa na cabeça, e as uvas deliciosas, nossas, tão nossas?! Qual! — o mundo é assim mesmo! Quem sabe lá, se nas mesas europeias mais aristocratas, não haveria uma banana dourada, pintadinha, envolta em papel de seda, à espera de ser parcimoniosamente servida em fatias?

E veio a árvore de Natal. Pequenina, galhos rijos de arame recoberto de crepom verde. Maria não gostava de nada artificial. Maria tinha gosto! Tivesse paciência desta vez. Artificial, o pinheiro era mais econômico, não requeria tantos cuidados, servindo para o próximo ano, ou mesmo, para muitos mais.

Pai e filho: duas crianças iluminadas pelo ingênuo prazer de engalanar a primeira árvore de natal! Qual a mais feliz?

— "E a estrela, pai?"

— "Bolas! — tantas bolas comprara, e esquecera da estrela! A arvorezinha enfeitada, parecia pequenina, ricamente vestida... e lhe esquecera a coroa!"

— "Sabe, pai, se eu pudesse ia roubar aquela estrela bonita que brilha lá em cima, no céu!"

Zé Pedro desgostou-se. Que fascinação tinha o filho por esse verbo maldito! Roubar! A própria palavra causava-lhe irritação! Era pobre, mas, honesto. Tivera ao alcance oportunidades sem conta de melhorar de condição. Jamais manchara o nome, que, aliás, já nem considerava seu, mas, do filho. E o seu pequeno... sim, o seu pequeno, com que facilidade lançava mão do alheio! Não havia sido uma, nem duas vezes! Ontem, uma bola furada, sem aparente utilidade. Hoje um velho bodoque e quiçá uma estrela, caso a tivesse ao alcance. E amanhã?... Oh! Deus de misericórdia! — como podia gerar tão monstruosos pensamentos, comprometendo o futuro do futuro Dr. Alberto Celso da Silva?! O tempo, os conselhos e, principalmente, o exemplo paterno, se encarregariam de solver o problema. Coisas de criança! De uma criança que já entrara no mundo baseada em seu maior tesouro!

— "Amanhã, sem falta, terás a tua estrela".

— "E o presépio?"

— Estrilou. “Já estás querendo demasiado, não?" "Insaciáveis as crianças! Mais têm, mais querem!

- "No próximo ano, teremos um presépio bem bonito! Com pastores, carneiros e a Virgem Maria ninando um Menino de cabelos encaracolados. Iguaizinhos aos teus!"

— "E anjos, também?"

— "Anjos também. Muitos anjos!"

E o Natal chegou. Cheio de luzes! Bimbalhando sinos e sugerindo Paz e Amor.

Zé Pedro chegava da rua. Braços pesados, sobrecarregados com os últimos pacotes. A alma leve, leve! Vinha com ele a desejada estrela. A mais bela que encontrara!

Viu gente à porta. Muita gente! Não estranhou. Betinho estaria exibindo o seu lar. Os seus presentes. Andava prosa, ultimamente! Lá chegava a Joana com nova braçada de flores. E não tinham outro vaso!

Contudo, ao chegar, Zé Pedro, em vez da esperada alegria, captou tristeza e dor em cada olhar. Ninguém falava! Abriu caminho até o quarto, já pressentindo algo de funesto. Lá estava ele estendido na cama. Parecia dormir! Muito limpinho, estreando seu terno azul, um quase sorriso nos lábios sem cor.

— "Foi um carro..." gaguejou alguém.

— "Ele atravessava a rua correndo... ia contar ao filho do farmacêutico, que o seu Natal ia ser bonito... o mais bonito de todos!"

As lágrimas brotavam devagarinho dos olhos cansados de Zé Pedro. Pingos grossos e quentes, caiam mansamente sobre o corpo inerte do menino.

Seu filho... sim, sabia, seu filho fora roubar uma estrela do Senhor! Lá por cima, encontrara a mãe! Maria, por certo, não o deixara voltar. As mães são assim mesmo... Egoístas como ninguém! — quando conseguem prender os filhos nos braços, se pudessem, não os largariam nunca mais!

O caso é que seu filho agora tinha mãe! Tinha um lar! - um lar belo e azul! Muito mais belo, muito mais azul, do que aquele que lhe pretendera dar!

Ah! e tinha também, ao seu alcance, anjos para brincar e não apenas uma, porém, milhares e milhares de estrelas, sem precisar nunca pensar em roubá-las!

Não... não se enganara! Seu filho teria um Natal feliz! Feliz como jamais tivera! — bem mais do que ele próprio lhe poderia dar!
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Carolina Ramos é de Santos/SP

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015. Enviado pela autora.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 05

 

José Feldman (A solidão no coração da cidade)

PRÓLOGO
A linha entre a solidão como um refúgio e como uma prisão é tênue. Para aqueles que se sentem abandonados, a solidão pode rapidamente se transformar em um estado de desespero. O que começa como um momento de paz pode se transformar em uma espiral de tristeza, onde a conexão com o mundo exterior se torna cada vez mais difícil. A falta de interação social pode provocar sentimentos de inadequação e a crença de que não se é digno de amor ou amizade. Nesse cenário, a pessoa pode se isolar ainda mais, criando um ciclo vicioso que parece não ter fim. 
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Em um pequeno apartamento no coração da cidade, onde a agitação nunca termina, vive um homem chamado Luca. O espaço é modesto, mas acolhedor, decorado com quadros de paisagens que ele mesmo pintou em momentos de inspiração. Ao seu lado, sempre, está a fiel companheira, uma cadela chamada Bolota, que se tornou sua única fonte de amor e alegria. 

A rotina de Luca é marcada pela solidão. Os dias começam com o sol tímido percorrendo suas janelas, e o primeiro som que ouve é o leve arranhar das patas de Bolota no chão de madeira. Ela se aproxima, balançando o rabo, e isso, por um breve momento, desvanece a nuvem que paira sobre seu coração. Com um carinho suave, Luca a cumprimenta, e, juntos, eles se preparam para mais um dia que se desenha no horizonte. 

Nos últimos anos, a vida de Luca tomou um rumo inesperado. A família, antes unida, se desfez em desentendimentos e distâncias. Os amigos, que não eram muitos, foram se afastando, cada um mergulhando em suas próprias rotinas e compromissos. A solidão se tornou a constante e, com o passar do tempo, ele aprendeu a conviver com essa dor. Mas a presença de Bolota, com seu olhar profundo e amoroso, trazia um pouco de luz a essa escuridão. 

As tardes se perdem em longas caminhadas no parque, onde Luca observa as famílias se reunindo, as crianças brincando, e os sorrisos compartilhados. Cada risada que ecoa ao seu redor é como uma flecha que fere seu peito. Ele vê pais segurando as mãos dos filhos, amigos se abraçando, e sente a ausência de tudo isso. A tristeza se torna uma companheira constante, uma sombra que caminha ao seu lado. Mas Bolota, com sua energia contagiante, faz com que ele sinta que ainda há vida em meio à dor. Ela corre livre, seu pelo brilhando sob a luz do sol, e Luca sorri, mesmo que por um instante, ao ver a felicidade simples que ela traz para si. 

À noite, quando a cidade se acalma e o silêncio domina o apartamento, o vazio se intensifica. As paredes parecem ecoar sua solidão, e os quadros, antes fontes de inspiração, agora lembram momentos de alegria tão distantes. Ele se senta no sofá, e Bolota se aninha ao seu lado, oferecendo a companhia que ele tanto necessita. O calor do corpo dela é um bálsamo para sua tristeza, e ele se perde nos olhos dela, que parecem entender sua dor. 

As conversas que antes compartilhava com a família se tornaram ecos em sua mente. Ele relembra os jantares em família, as risadas, as histórias contadas à mesa. Agora, as refeições são solitárias, e ele tem que cozinhar, mesmo que o apetite tenha diminuído. Bolota, sempre atenta, observa cada movimento, como se soubesse que ele precisa dela mais do que nunca. Ao lado dela, Luca encontra um propósito: cuidar, amar, e ser amado de volta. 

Algumas noites, a solidão se torna insuportável. Ele se vê preso em pensamentos, questionando onde tudo deu errado, porque as pessoas que amava estão tão distantes. A tristeza é palpável, quase uma entidade que ocupa o espaço entre ele e o mundo. Mas, então, Bolota se levanta e coloca a cabeça em seu colo, um gesto simples, mas cheio de significado. A conexão entre eles é eterna; ela não precisa de palavras para expressar seu amor. E, por um momento, Luca percebe que, mesmo na solidão, não está completamente só. 

O tempo passa, e as estações mudam. O inverno traz o frio, e Luca se vê cercado pela escuridão mais intensa. As noites são longas, mas Bolota se torna seu cobertor, aquecendo seu coração. Ele aprende a encontrar beleza nas pequenas coisas: o jeito como ela corre atrás das folhas secas, como se cada uma fosse uma nova aventura. A vida, embora marcada pela solidão, ainda reserva pequenos momentos de alegria. 

Ele se dá conta de que a solidão não é apenas dor; é também um espaço para reflexão e crescimento. Com Bolota ao seu lado, ele começa a redescobrir a arte de viver. A cadela se torna sua musa, inspirando-o a escrever, a pintar, a capturar a essência do amor que ainda existe entre eles. Em cada traço, em cada palavra, Luca expressa sua gratidão por ter alguém que o ama incondicionalmente. 

E assim, dia após dia, Luca e Bolota continuam sua jornada. A solidão pode ser um fardo, mas também é um espaço onde o amor verdadeiro pode florescer. Ele sabe que, mesmo na ausência de pessoas, o amor se manifesta de formas inesperadas. Bolota, com seu olhar profundo e afetuoso, mostra que a felicidade pode ser encontrada mesmo nos momentos mais sombrios. 

Às vezes, enquanto observa a cidade adormecer pela janela, Luca sorri ao perceber que, apesar de tudo, ele não está completamente só. A solidão pode envolver seu ser, mas o amor de sua cadela ilumina até os cantos mais escuros de sua alma. E isso, ele sabe, é um presente que poucos têm a sorte de receber.
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José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Formado técnico de patologia clínica, não conseguiu concluir o curso superior de psicologia devido a situação financeira. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras e Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente escreve por Campo Mourão/PR. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura, organizador de concursos de trovas, gestor cultural, poeta, escritor e trovador. Dezenas de premiações em trovas e poesias.

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
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Sammis Reachers (Deambulações urbanas num domingo carioca)

São dezessete horas de um domingo de primavera. Cumprindo uma missão agora há pouco na UERJ do Maracanã, aquele monstro de concreto, ao sair me deparei com os vazios e desertos de uma cidade grande aos domingos de tarde. Foi instantâneo: me recordei de quando era rodoviário e solteiro e, ao trabalhar nos domingos, por vezes ao largar daquele “trampo” feito de sacolejar e de pessoas, saía sozinho pelos vazios urbanos de Niterói ou Rio, desarvorada, desavisada e destemidamente. Sem destino ou maiores objetivos. Que solidão especial, trotando lotada de melancolia e levando na carroça sua refém apaixonada-pois-adoentada da Síndrome de Estocolmo, a poesia... Sim, muitos poemas nasceram nessas andanças. Não, nunca fui assaltado ou indagado. Deus e minha cara de cana (e minha decana bolsa atravessada nas costas) talvez tenham me guardado.

Outro detalhe que me traz reflexão é que a melancolia de andar numa mata, campo ou descampado deserto é diferente da de andar num deserto urbano. Cada qual tem sua docilidade, mas o campo fala de sentimentos atávicos, instintivos ou transcendentes do que é puramente humano; já a urbe possui uma "linha de ansiedade" (é o melhor termo que pude) toda própria, o humano se celebra e exaure em seus próprios maquinários concretos e simbólicos, num jogo de topofilia*/ topofobia* que nos faz querer continuar o jogo do ver e do rever, do estar e do deixar de estar, enquanto somos acolhidos/ moídos pelo espaço que incessantemente nos ressignifica enquanto o ressignificamos. Jogo por sinal tão caro à corrente da Geografia que me apraz, a Geografia Humanista ou Fenomenológica.

Divagações livres, mas as deambulações (deambular é justamente andar à toa) hoje interditadas a um homem casado. 

Bem, melhor assim.
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* Vocabulário:
Topofilia = Preferência ou conexão sentimental que alguém apresenta em relação a determinados lugares.
Topofobia = Medo mórbido de um lugar ou localização específica.
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Sammis Reachers Cristence Silva nasceu em 1978, em Niterói/RJ, mas desde sempre morador de São Gonçalo/RJ, ambos municípios fluminenses. Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É autor de dez livros de poesia, três de contos/crônicas e um romance, e organizador de mais de cinquenta antologias.  Aos 16 anos inicia seus escritos e logo edita fanzines, participando do assim chamado circuito alternativo da poesia brasileira, com presença em jornais e informativos culturais. Possui contos e poemas premiados em concursos do Brasil, bem como textos publicados em antologias e renomadas revistas de literatura.

Fontes: Texto enviado pelo autor.
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