quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Arthur Thomaz (Quatro estações)

De repente, não mais que de repente, as estações climáticas começaram a se igualar, tanto 
no formato, quanto nas temperaturas, tornando difícil identificá-las separadamente.

Pânico geral com a mídia em polvorosa. Os políticos oportunistas discursavam demagogicamente, apresentando esdrúxulos projetos de lei para sanar o problema. Como chegamos a esse ponto e por que ninguém notou isso?, bradavam os “ambientalistas”, mais preocupados em preservar suas rentáveis ONGs, do que o próprio meio ambiente.

Perguntas no ar, e então, as quatro estações resolveram encontrar-se para debater “pessoalmente” esse terrível problema. Criou-se um impasse quase insolúvel. 

Inverno e Verão jamais haviam se encontrado, o mesmo acontecendo com a Primavera e o Outono. Inverno alegou que, se desse as mãos ao Verão, derreteria. Primavera, por sua vez, argumentou que Outono, ao tocá-la, poderia desfolhá-la totalmente.

Depois de inúmeras “acaloradas” discussões, optaram por um encontro remoto, cada qual permanecendo em sua condição habitual, mesmo que atualmente precárias, mas sem correr risco de agravamento.

No início da videoconferência, Primavera sussurrou aos seus assessores que não queria ficar com esse ar carrancudo do tal Outono, sem reparar que os microfones estavam ligados.

Verão, também, sem perceber que o microfone estava ligado, declarou aos assistentes que jamais ficaria gélido igual a esse triste ser, o tal Inverno.

Impropérios, discussões, ofensas recíprocas, quase inviabilizaram a conferência. Tornou-se imperioso encontrar um mediador para a situação fora de controle. O Sol foi imediatamente lembrado pela organização do evento, porque além de poderoso, participava ativamente das quatro estações.

Chateado por ter que sair de sua zona de conforto, mas entendendo que a vida humana corria perigo de extinção no planeta, cedeu aos insistentes apelos. Afinal, ele passava a maior parte do tempo assistindo às patacoadas dos humanos, divertindo-se a valer.

Na central de comando da videoconferência, ele, sentado confortavelmente em uma poltrona que mais parecia um trono, irritou-se porque os 732 aparelhos de ar-condicionado instalados na sala não conseguiam baixar a temperatura ambiente e vociferou ordens expressas para que todas as estações silenciassem e que todos os assessores se retirassem, pois exerciam apenas o papel de meros ciumentos alcoviteiros.

Concedeu a palavra à Primavera, para que sucintamente se autodescrevesse, relatasse os atuais problemas pelos quais estava passando e apresentasse suas ideias para saná-los.

Ela iniciou afirmando que aqui estava, feliz, acordando de um Inverno frio e sem cor.

— Orgulho-me das cores, pois através delas enfeito os lares, as estradas, as montanhas e os parques. Chego nas mãos das crianças, dos jovens, dos idosos e dos enamorados. Vocês certamente já ouviram dizer que “até nas flores se nota a diferença da sorte, umas enfeitam a vida, outras enfeitam a morte?”

Nesse ponto, o Sol solicitou que fosse mais concisa.

Ela continuou dizendo que agora daria lugar ao amigo Verão, onde também existe alegria e poderia ainda continuar mostrando suas cores e sensibilidade.

Afirmou gostar do Verão porque, juntos, sabiam trazer graça e beleza para todos. Prosseguiu falando que por tudo isso sentia-se bem de estar perto dele, mas no Outono suas folhas e flores caem e no Inverno adormecia.

Apupos dos seguidores de Outono e Inverno, pediram nova enérgica intervenção do mediador, afirmando que não cabia à palestrante a decisão de chamar o próximo conferencista. Solicitou que ela se retirasse e chamou o Verão para demonstrar autoridade.

Risos na plateia.

Verão iniciou agradecendo ao Sol, por ser o responsável pela temperatura alta em seus três meses de duração. Alardeou aos quatro cantos que era a estação preferida por todos. Nesse momento ouviram-se discretas vaias, protestando pela falta de modéstia.

Sol retomou as rédeas da situação com uma rígida admoestação e eles prosseguiram a sessão.

Verão afirmou que tudo era culpa de humanos sem consciência e de políticos inescrupulosos, mas sem dar nomes.

Nessa hora, mandatários das grandes potências remexeram-se em seus assentos. Verão encerrou mostrando apenas vagas e utópicas sugestões de soluções. Não se ouviu nem tímidos aplausos pela pífia apresentação.

Na sequência, Outono tomou a palavra, tentando desmistificar a pecha de estação aniquiladora de belezas naturais, afirmando que a situação da queda de flores e folhas era decorrente da ação de seu antecessor, o Verão, que secava o solo, obrigando as plantas a se desfazerem do que lhes consumia a pouca oferta de água. 

Ouviram-se alguns ruidosos protestos por parte dos assessores do Verão, que logo foram suprimidos pelo mediador.

Outono finalizou também com vagas soluções, solicitando mais oferta hídrica em seus três meses de duração. 

Não se ouviu nem um aplauso sequer.

Chegada a vez do Inverno se manifestar, iniciou em grande estilo, emitindo o som de um gélido vento, o que fez os participantes imaginarem uma sensação de baixas temperaturas com alguns chegando a sentir arrepios.

A seguir, vitimizou-se, afirmando ser discriminado pelas pessoas por não poderem exercer atividades normais por causa do enrijecimento dos músculos, imputando esse fato ao despreparo dos humanos em lidar com isso. Afirmou que agasalhos e uma boa calefação resolveriam isso. Sugeriu que novos projetos ambientais fossem criados e culpou o desvio de verbas pela corrupção dos governantes como causa maior dessa desregulação na temperatura planetária.

Aplausos intensos culminaram em sua apresentação, mas a sensação de inutilidade de suas propostas permaneceu.

Quase ao final da conferência, um hacker, que se autointitula defensor dos Direitos Humanos, invadiu o sistema, colocou imagens de desastres ambientais e, ao fim, postou uma mensagem, na qual afirmava estar defendendo as quatro estações, que segundo ele estariam sendo aviltadas e assediadas moralmente durante essa conferência, determinando que voltassem imediatamente às condições naturais antigas e que cada uma colaborasse e agisse por si própria para restaurar a normalidade ambiental.

Desligou todos os sistemas da rede, apagou toda a eletricidade e o fornecimento de água do local, encerrando inapelavelmente a sessão.

O Sol, contente por não ter que exarar nenhuma sentença decisória, voltou à zona de conforto e continuou a observar as idiotices humanas.

Não é necessário contar que a situação climática no planeta prosseguiu deteriorando-se progressivamente, com os humanos nada realizando para impedi-la. Em breve, o Sol não terá mais com que se divertir, aguardando solitário a hora de sua explosão derradeira.
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ARTHUR THOMAZ é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, úblicou os livros: "Rimando Ilusões", "Leves Contos ao Léu - Volume I, "Leves Contos ao Léu Mirabolantes - Volume II", "Leves Contos ao Léu - Imponderáveis", "Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios", "Leves Contos ao Léu - Insondáveis", "Rimando Sonhos" e "Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro".

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 
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Vereda da Poesia = 215

Soneto de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

PARA QUE SERVE A POESIA?

De servir-se utensílio dia a dia
utilidade prática aplicada,
o nada sobre o nada anula o nada
por desvendar mistério na magia.

O sonho em fantasia iluminada
aqui se oferta em módica quantia
por camelôs de palavras aladas
marreteiros de mansa mercancia.

De pagamento, apenas um sorriso
de nuvens, uma fatia de grama
de orvalho e o fugaz fulgor de astro arisco.

Serena sentença em sina servida,
seu valor se aquilata e se esparrama
na livre chama acesa de quem ama.
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Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/ Portugal

“MEU”

Não estás,
mas tenho-te em mim.

Não te vejo,
mas fecho os olhos e estás aqui.

Não te toco,
mas ainda sinto o toque da tua pele.

No meu inconsciente
e na minha consciência também,
nunca te deixei ir.

Chamo-te de ”meu”,
em surdina,
nos meus sonhos mais íntimos
em que mais ninguém
me consegue ouvir.

És meu,
naquele instante,
sem pressas ou outras desculpas
que me impeçam de te ter
perto ou distante.

E mesmo que não queiras aqui estar,
não te deixo ir,
este é o teu lar.

Porque no meu coração és meu,
mesmo que não seja dona de nada,
nem de ninguém.
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

NOS TRISTES OLHOS MAL SUSTENHO O PRANTO
(João Xavier de Matos, in "Cem Sonetos Portugueses", p. 50)

Nos tristes olhos mal sustenho o pranto
Por ver como é tão pobre e diminuta
A alma que no peito trago enxuta
De trovas que lhe tragam novo canto.

Não tem razão de ser um tal espanto
Que ser pequeno é fado que me enluta
E, aos poucos, vai matando, qual cicuta
Que tomo pela mão do desencanto.

Ser pouco talvez tenha uma virtude
Se a alma o reconhece e não se ilude
Com sonhos de grandeza bem fadada.

No concerto do mundo todos cabem:
Mais vale o que de nós outros não sabem
Do que nós deles não sabermos nada.
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Meus olhos atordoados de espanto
são como janelas embriagadas de luz

Buscando um poema que fale do silêncio
enquanto percorro os caminhos da jornada

Há uma mensagem de paz implícita
no gorjeio das aves em estuário,
como se nidificassem a paz na raiz da palavra

Acalma-me o todo onde a beleza se espelha
a visão a ocidente pintada de alvos fiapos
forrando o teto deste azul que me aconchega.
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Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

CONTRASTE

Tu és feliz, a vida é um paraíso,
onde há paz, ventura em profusão,
e a graça singular do teu sorriso,
– símbolo da Beleza e Perfeição!

Mas eu sou infeliz, pois já diviso
na luz do teu olhar, ingratidão,
e sem querer eu sinto que preciso
esquecer-te e viver na solidão.

Julgara que tu fosses, ó querida,
meu segredo, meu sonho, minha vida,
minha eviterna e santa inspiração…

Mas tu és assassina do meu sonho,
vives feliz e eu vivo tão tristonho,
sentindo que esta vida é uma ilusão!
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Poetrix de
JANAÍNA NEVES DIAS CESCATO
São Paulo/SP

CIÚME

Se nem sou mais seu lume
pra que prender num vidro
meu voo vagalume?
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Poema de
CRIS ANVAGO
Setúbal/ Portugal

Eu pensava que viver era correr
Correr para um objetivo
Mesmo não sabendo bem qual.
Depois vi que quando corremos,
Não vemos nada à nossa volta,
Nem ao nosso lado
Fica tudo veloz, desfocado…
Agora penso que viver é caminhar
E bem devagar…
Olhar os pequenos pormenores da caminhada
Sentir o cheiro das plantas
Ouvir os pássaros
Saborear os momentos…
Ver como correm ainda algumas pessoas…
Como eu já corri sem saber bem para onde…
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Hino de 
UMUARAMA/ PR

I
Quando em festa o futuro chegou
Com seu canto de luz sobre a mata
Toda agreste em beleza acordou
Qual semente que em flor se desata.

Um fremir de esperança ideal
Perpassou entre as nuvens e a rama
E se ergueu para a história, afinal,
Poderosa, a sorrir, Umuarama.

Estribilho
Umuarama, para frente, com trabalho e alegria.
Há nas mãos de tua gente fé, vontade e energias.
Essa força admirável que arrancou-te do sertão
Te impulsiona, insuperável, para a glória da Nação.

II
Umuarama, teu nome altaneiro,
É amizade num clima gentil
E transforma teu solo em celeiro,
Distribuindo fartura ao Brasil.

O esplendor de que o sol te reveste,
Um clarim sobre o mundo serás.
És bandeira triunfal que no Oeste
Abre a porta do teu Paraná.
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Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

CARÍCIA

Carícia recebida com amor,
é redenção do espiritual ser,
buscando esta essência superior,
para nessa plenitude viver.

Os anseios sonhados não vividos,
recuperando a esperança, o ardil,
de muitos anos de um amor contido,
no verdor desse peito juvenil.

Pelos cuidados de uma mãe zelosa
que carícias quase não recebia
e pra os filhos seus traumas transmitia.

Aquela experiência dolorosa,
daquele amor que não lhe garantia,
toda carícia que ela merecia.
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Lengalenga de Portugal
LAGARTO PINTADO

 Lagarto pintado, 
quem te pintou?
Foi uma menina 
que por aqui passou
 
Lagarto verde, 
que te esverdeou?
Foi uma galinha 
que aqui passou
 
Lagarto azul, 
que te azulou?
Foi a onda do mar 
que me molhou
 
Lagarto amarelo, 
que te amarelou?
Foi o sol poente 
que em mim pisou
 
Lagarto encarnado, 
que te encarniçou?
Foi uma papoila 
que para mim olhou
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

ASAS DE MADEIRA

Esculpido em mogno
O dragão, aos poucos desperta
E, suavemente, move suas asas
À  espera do vento…
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Casa da Mãe Joana”

A conhecida expressão "Casa da Mãe Joana", usada quando se quer evidenciar um ambiente marcado pela permissividade, daqueles onde se entra e sai sem controle, todo mundo manda e ninguém obedece, espécie de babel sem qualquer organização, carente de regras mínimas de convivência civilizada. Hodiernamente, trata-se de um local onde todos fazem o que bem entendem, em ambientes presenciais ou virtuais, como acontece, neste último caso, com certos grupos de WhatsApp, com suas postagens repetitivas e impertinentes, sem qualquer interesse para os demais que dele fazem parte.  

A expressão remonta à época de Joana I, rainha de Nápoles e Condessa de Provença (que viveu de 1326 até 1382, quando morreu assassinada), uma jovem linda, inteligente, endinheirada e com atitudes à frente de seu tempo, pois bancava do próprio bolso, boêmios, artistas e intelectuais, dos quais se arvorou ser uma espécie de protetora. Joana levou uma vida desregrada, vivendo de forma conturbada, tanto que foi uma das protagonistas da trama envolvendo o rei francês Felipe IV, que resolveu impor tributos aos bens da Igreja, que a ela também pertenciam - e por esse motivo foi excomungado pelo papa Bonifácio VIII.

Na flor da idade, ao completar seus 21 anos em 1347, Joana I achou por bem normatizar o funcionamento dos bordéis da cidade Avignon, onde vivia refugiada por ter sido acusada de participação no assassinato do seu marido, tendo criado regras para impedir que frequentadores violentos agredissem as prostitutas ou saíssem sem pagá-las. E num desses decretos, foi determinado que os prostíbulos deveriam ter uma porta única, por onde todos poderiam entrar sem pagar ingresso e sair quando quisessem. Tais locais de tolerância no país vizinho passaram a ser conhecidos também em Portugal com o nome de “Paço da Mãe Joana”, deixando claro o sentido afetivo concebido na cidade francesa, de pousada acolhedora e receptiva a qualquer um. 

Sua ousada iniciativa lhe rendeu a pena de exílio imposta pela Igreja, inconformada, em tempos de costumes tão austeros, com a vida publicamente permissiva que Joana I levava, demonstrando seu desprezo às convenções sociais de então, conduta que ela provocativamente nunca deixou de ostentar, até quando, em 1382, foi assassinada por seu sobrinho Carlos, movido pela cobiça de sua herança. Mesmo após a sua morte, seus feitos em Avignon continuaram na boca do povo, onde ela era tida, vista e considerada como  protetora dos seus prostíbulos e das suas meretrizes.

Daquela retrógada Portugal do século XIV, o “Paço da Mãe Joana” chegou naturalmente ao Brasil, só que ligeiramente modificado, pois sendo a palavra “paço” pouco usual, por força da praticidade foi aos poucos sendo substituída por “casa”, consagrando-se assim a expressão “Casa da Mãe Joana” em definitivo, representativa de um lugar onde cada qual faz o que bem entende, sem respeitar nenhuma convenção social, uma casa onde impera a bagunça, o hedonismo, o desregramento, a farra sem limites e a pândega. De tão utilizada na linguagem cotidiana, ganhou até música interpretada pela saudosa cantora Marília Mendonça, com que lhe atribuiu esse mesmo título: 

“Meu coração 
não é Casa da Mãe Joana
pra você bagunçar igual
cê faz na minha cama
respeita quem te ama
cê acha que me ilude
ou vaza ou me assume” (...)

Em 2008, referida expressão idiomática batizou uma comédia de sucesso (da Globo Filmes) sob a direção de Hugo Carvana com um elenco espetacular, integrado pela nata do humor e da dramaturgia brasileira, como José Wilker, Agildo Ribeiro, Juliana Paes, Pedro Cardoso, Laura Cardoso, Mièle, Cláudio Marzo, Paulo Betti, Arlete Salles e Malú Mader, abordando situações inusitadas, com suspense e muita expectativa. Traduzido para o espanhol como “La Casa de la Madre Joana”, o filme conta a história de três amigos de longa data que dividem um amplo e velho apartamento de classe média, do qual precisam sair por dívida hipotecária, impasse cuja pretensa solução ocorreu do modo mais atabalhoado possível. 

No Brasil existem dezenas de lanchonetes, pizzarias, "fast-foods", dançarás, pousadas e mafuás ostentando em suas fachadas essa famosa expressão idiomática, como ponto de referência para deleite da população local. 

Dentre eles, uma acanhada baiúca numa cidade da região do nordeste paraense, inaugurada há alguns anos com o tosco nome de “Bucho Cheio”, que mudou mais tarde para “O Moscão” (enfatizando sua falta de compromisso com a higiene) e finalmente passou a se chamar de “Casa da Mãe Joana” talvez por coerência pois lá, dezenas de pescadores se reúnem nos finais de semana para comer e encher a cara, quando correm soltos os jogos de purinha e o bilharito, as piadas indecentes, a troca de sopapos pelas rivalidades no futebol, as fofocas generalizadas, sendo que ao fim e ao cabo, a exemplo de Avignon, ninguém é impedido de sair mesmo deixando as contas penduradas, que são quitadas somente na semana seguinte, isso quando a sorte torna a pescaria farta e altamente promissora para todos eles...
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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Enviado pelo autor
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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 18 *

 
   

Silmar Bohrer (Croniquinha) 128

O verão tem os seus aromas, as delícias e as adversidades da vida. Constâncias e inconstâncias. Um azul de doer os olhos, de repente o horizonte escurece, ouve-se o ribombar de trovoadas.  Mudanças. 

A vida também é feita de variáveis no dia a dia para tantos viventes. Manhãs de sol, tardes nubladas, noites insólitas. Conquistas e vitórias envoltas nas dúvidas, nas incertezas, nos sucessos e insucessos. 
   
A crônica dos dias nos mostra que o verão e a vida são feitos do mesmo caldo - sóis e ventanejares, chuvas densas, júbilos, calmarias, amarguras, regozijos, dissabores, viveres altaneiros em qualquer circunstância.
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SILMAR BOHRER nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).
Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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Geraldo Pereira (Gostosas Saudades)

Aqui deste canto, onde me encanto, ainda, na antiga e paradisíaca praia de Pau Amarelo, onde os pássaros entoavam o cântico dos cânticos, posso parar nesta manhã de sábado e deixar que o imaginário ganhe as asas do tempo, reavendo minhas vivências e minhas convivências, meus convívios, enfim, de anos que se foram. O telefone celular que me acompanha, trazendo boas notícias e às vezes informações dolorosas, não faz ligação para o outrora e nem promove o desejado reaver das lembranças que me inquietam e que alimentam fantasias desses impossíveis retornos nas décadas e até no século. É irrealizável, então, à ciência do homem no presente das coisas essa viagem de volta. À infância – quem sabe? -, à adolescência ou à juventude! Fui feliz, creio firmemente, porque amei e fui amado!
  
Gostaria de me sentar, outra vez, no alpendre de casa, de fazer a arrumação dos brinquedos, os carrinhos de madeira e os apetrechos de guerra, de plástico já. Arranjar o batalhão de soldadinhos de chumbo no chão e prepará-los para a batalha de Monte Castelo, alguns com as armas aos ombros, poucos com o telefone de campanha e a maioria simplesmente em guarda, como deve convir mesmo às criaturas assim, resultantes da imaginação alheia. Sou nascido durante a beligerância mundial e criado no pós-guerra! Sonhar de novo, como fazia dantes, com a vizinha de defronte, bonitona e noiva. Mudar o conteúdo desses devaneios oníricos, como sucedeu, acompanhando o passar da idade, o evoluir dos sentimentos, num crescente apelo do inteiramente sensual.

Ah, que saudades de minha adolescência, de minhas paixões impossíveis e de meus amores plausíveis, das minhas férias e de meu futebol, dos meus canários abrindo as asas e entoando o pranto meloso das perdas! Que saudades das festas de rua, das quermesses e das quadrilhas, dos flertes e dos encontros furtivos, dos beijos roubados num girar qualquer de um carrossel dos ares. Lembranças gostosas do tempo dos tempos, do viço da idade que se esvai mais e mais, da leveza d’alma e do levitar do espírito, dos dias e das noites daqueles inícios! Esperanças a povoarem a força do pensamento, promessas vãs, nunca cumpridas, vontades guardadas e desejos reprimidos, recalcados tantos! Descobertas mil, de sentimentos emergentes e de carícias bem cuidadas, de afetos e de afagos, da saudade que foi surgindo logo, logo!

E a minha juventude? Começo difícil da arte do existir ou do exercício do viver, recomeço, muitas vezes, reflexões impostas à consciência no julgamento pessoal, rigor nas interpretações dos gestos, dos atos e dos fatos! Contato com o bem e o mal, a saúde e a doença, a morte, enfim. Identificação pesarosa do caráter de outros, dos semelhantes que trazem a inquietação e o desamor, artífices das desuniões planejadas, que de nada gostam e por ninguém suportam nutrir o sentimento maior. Falsos e desleais! Empregos conseguidos às custas de um esforço enorme, salários em baixa sempre, inquietudes assim, de natureza pecuniária, as compras do mês comprometidas e as aquisições maiores adiadas! Sonhos desfeitos e devaneios perdidos entre os percalços sentidos! Talvez, nem queira voltar às experiências de jovem!

As minhas gostosas saudades são aquelas, as da infância e as da adolescência, quando o meu ser viveu a completude do tempo! Por isso, nesta nublada manhã de um sábado qualquer, em minhas férias regulares, retorno nas décadas e no século e vou pairar nos meados dos anos cinquenta ou nos inícios dos mágicos dias de sessenta, resgatando pretéritos e retomando passados. Sou um nostálgico, pois! Executo a sinfonia das voltas e tomo assento nos antanhos vividos. Viro menino de calças curtas e me visto, em seguida, com o velho brim coringa não encolhe, uso as alpargatas Rhodia dos agrados de minha tia velha. O grupo escolar e o colégio, a rua de casa e a festa do parque, os passeios no Quemmequer e as fantasias do cinema, um abraço e um beijo! Abro a caneta Compactor, vou escrever, afinal, as letras de meu futuro, que é o hoje dos meus dias.

Feliz século aos homens de boa vontade, aos que têm gostosas saudades!
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GERALDO JOSÉ MARQUES PEREIRA nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.

Fontes:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
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José Feldman (Textos & Trovas) Amores na Mocidade

Texto construído tendo por base a trova do Professor Garcia (Caicó/RN)

Amores na mocidade!...
Depois, a contrapartida:
cansaço, dor e saudade
na curva extrema da vida!

Numa pequena cidade , onde o sol sempre brilhava e as flores coloridas enfeitavam as ruas, vivia uma jovem chamada Lara. Em sua juventude, era conhecida por sua beleza radiante e sua risada contagiante. Ela sonhava com grandes amores, com aventuras que a levariam a lugares distantes e emocionantes. Ao lado de suas amigas, costumava passar as tardes discutindo sobre os romances que lia e imaginando o príncipe encantado que um dia surgiria em sua vida.

Certa manhã, enquanto caminhava pelo parque, Lara encontrou um jovem chamado Lúcio. Ele era diferente de todos que conhecia: tinha um olhar profundo e um jeito tranquilo que a encantava. Os dois logo se tornaram inseparáveis, compartilhando risadas, sonhos e promessas de um futuro juntos. Os dias se transformaram em meses, e aqueles momentos de amor intenso pareciam eternos. Eles faziam planos, falavam sobre construir uma vida juntos e acreditavam que a felicidade seria infinita.

Contudo, com o passar do tempo, a paixão que os unia começou a se transformar. As diferenças entre eles se tornaram evidentes, e as pequenas desavenças que antes eram insignificantes começaram a se acumular. Lúcio, que sempre fora sonhador, agora se via pressionado a assumir responsabilidades que não desejava. Lara, por sua vez, aspirava por aventuras e desafios, enquanto ele buscava segurança e tranquilidade. O amor que antes parecia inabalável começou a fraquejar sob o peso das expectativas e da realidade.

Após alguns meses de tentativas frustradas de resolver suas diferenças, eles decidiram se separar. 

O término foi doloroso, e ambos sentiram a perda de um futuro que acreditavam ser certo. Lara, em particular, sentiu uma onda de saudade que a envolveu como um manto pesado. As memórias dos momentos felizes pareciam agora uma sombra do que poderia ter sido. A cidade que antes vibrava com as cores de sua juventude agora parecia mais cinzenta e solitária.

Com o passar do tempo, ela buscou consolo em novas amizades, mas a dor da perda permanecia. Ela percebeu que, apesar da beleza dos amores da mocidade, havia uma contrapartida que não se podia ignorar: o cansaço emocional, a dor da saudade e a sensação de que algo precioso havia sido deixado para trás. Ela começou a refletir sobre o que realmente significava o amor e como, muitas vezes, ele podia ser fugaz e decepcionante.

Anos se passaram, e ela se tornou uma mulher mais madura. Ela viveu novos relacionamentos, cada um trazendo suas próprias lições e desafios. Aprendeu a valorizar não apenas os momentos de alegria, mas também as dificuldades que moldavam seu caráter. As cicatrizes emocionais que carregava se tornaram parte de sua história, e ela começou a aceitar que o amor, em suas diferentes formas, é uma jornada repleta de altos e baixos.

Um dia, durante um passeio pelo parque, encontrou Lúcio novamente. Ambos estavam mais velhos, com marcas de vida que contavam histórias de amores e perdas. Eles se cumprimentaram com um sorriso tímido, lembrando-se da intensidade da juventude. A conversa fluiu naturalmente, e logo estavam rindo das lembranças que compartilhavam.

“Você se lembra daquele verão?”, perguntou Lara, com um brilho nostálgico nos olhos. “Aquele em que prometemos que seríamos sempre felizes?” ele sorriu, mas havia uma tristeza em seu olhar. “Sim, eu me lembro. Mas a vida nos ensinou que a felicidade é feita de muito mais do que apenas promessas.”

A conversa se aprofundou, e os dois compartilharam suas experiências, seus erros e aprendizados ao longo dos anos. Ela percebeu que, apesar da dor e da saudade, havia algo belo na jornada que vivera. Cada amor, cada desilusão, havia contribuído para a mulher que se tornara. Ela compreendeu que, embora a vida pudesse ser desafiadora, cada capítulo era essencial para seu crescimento.

Ao final do encontro, Lara e Lúcio se despediram com um abraço sincero, cada um levando consigo uma sensação de paz. Ela percebeu que os amores na mocidade, com suas alegrias e tristezas, não eram em vão. Eles faziam parte dos retalhos da vida, cada tecido contribuindo para a imagem mais ampla de quem ela era.

E assim, com o coração mais leve, caminhou de volta para casa, sabendo que a vida, com suas curvas extremas, era uma jornada que valia a pena. A moral dessa história ficou clara em sua mente e coração: 

Os amores da juventude, com suas alegrias e dores, são fundamentais para moldar quem nos tornamos, e mesmo na saudade, há beleza e aprendizado.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Luiz Poeta (Nuvens de Sonhos) 10

 
  

José Feldman (Solidão: Ser e Estar)

A solidão é uma das experiências mais universais e, ao mesmo tempo, mais profundamente particulares da condição humana. Em um mundo hiperconectado, onde a comunicação flui instantaneamente através de telas e redes sociais, a ironia é que muitos se sentem mais sozinhos do que nunca. Esta contradição nos leva a refletir sobre o impacto da solidão no ser humano, suas nuances, suas dores, e, paradoxalmente, seus potenciais benefícios. 

Para alguns, a solidão é uma sombra que se estende, envolvendo o ser em um manto de tristeza e abandono. A ausência de companhia, a falta de diálogo e a desconexão emocional podem se transformar em um labirinto sem saída. Ao olhar ao redor, muitos se deparam com o eco de suas próprias vozes, e a vida se torna um monólogo onde cada pensamento se torna um peso. A perda de vontade de viver é uma consequência comum - a solidão, em sua forma mais crua, pode corroer a esperança e o desejo de mudança. 

Entretanto, a solidão não é apenas um estado de dor. Ela também pode ser um espaço de introspecção e autodescoberta. A solidão, quando bem administrada, oferece uma oportunidade ímpar de reflexão. Em momentos de quietude, o ser humano pode se voltar para dentro, questionar suas crenças, reavaliar seus valores e, quem sabe, encontrar um novo propósito. É nesse silêncio que muitos artistas, pensadores e filósofos encontraram sua voz. A solidão, nesse contexto, pode ser um terreno fértil para a criatividade e o crescimento pessoal. 

Diante desse quadro, a questão que se impõe é: como podemos ajudar aqueles que se encontram presos na solidão? A resposta exige empatia, compreensão e ação. O primeiro passo é a escuta atenta. Muitas vezes, aqueles que se sentem sozinhos apenas desejam ser ouvidos. Um simples gesto de atenção pode fazer toda a diferença. Conversas informais, um convite para um café ou uma caminhada no parque podem quebrar a barreira da solidão e reacender a chama da conexão humana. 

Além disso, é fundamental reconhecer que a solidão não é uma falha pessoal, mas uma condição da vida. Ajudar alguém a entender que não está sozinho em sua experiência é um presente poderoso. Compartilhar histórias, experiências e dificuldades pode criar um vínculo que transforma a solidão em uma jornada compartilhada. Muitas vezes, as pessoas se sentem mais confortáveis em abrir-se quando percebem que outros também enfrentam desafios semelhantes. 

Outro aspecto importante é a promoção de atividades comunitárias. Grupos de leitura, oficinas de arte, ou até mesmo clubes de caminhada podem oferecer oportunidades para que os solitários se conectem com outros e encontrem um senso de pertencimento. A socialização, quando feita de forma gradual e respeitosa, pode ajudar a reestabelecer laços e a confiança em relacionamentos. 

Por outro lado, é crucial respeitar o espaço do outro. Não se deve forçar a interação, pois isso pode resultar em mais angústia. Cada um tem seu tempo e seu modo de lidar com a solidão. O apoio deve ser oferecido, mas sempre de maneira sensível e atenta. 

A solidão, portanto, é uma condição ambivalente. Ela pode ser uma fonte de dor profunda ou um espaço para o florescimento pessoal. O desafio está em encontrar um equilíbrio, em reconhecer quando a solidão se torna um fardo e em buscar formas de transformá-la em uma oportunidade de conexão e crescimento. 

Viver sozinho pode ser um ato de resistência ou um convite ao autoconhecimento. A chave está em como cada um lida com essa experiência. Para muitos, a solidão é um estado transitório, um capítulo que pode ser escrito com novas histórias de amor, amizade e pertencimento. Para outros, pode ser um lugar de reflexão profunda, mas que, se não for cuidado, pode levar à ruína da vontade de viver. 

Assim, cabe a nós, enquanto sociedade, cultivar uma cultura de acolhimento, onde a solidão não seja estigmatizada, mas compreendida. Ao estender a mão para aqueles que se sentem sós, podemos juntos construir um mundo onde cada ser humano se sinta visto, ouvido e amado. A solidão, quando compartilhada, não precisa ser um fardo, mas pode se tornar um espaço onde todos aprendem a se conectar com a essência do ser humano: o amor e a empatia.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Aparecido Raimundo de Souza (O sapo ciclista e a bicicleta de pneu furado)

ZÉLIO DO PAPO COAXANTE era um autêntico sapo que embora não fosse cachorro, tinha pedigree por conta de sua consanguinidade familiar, ou seja, nascera em berço e lago cobertos de ouro. Pertencia a linhagem dos Bufos Marinus. Para início de conversa, a criatura não coaxava simplesmente. Ao fazê-lo, a sua voz não saia sensaborona (desengraçada). Pelo contrário, a sua dicção se propagava graciosa e aconchegante aos ouvidos de todos os demais moradores da deliciosa lagoa de Santa Bárbara do Barranco Morro Acima. Zélio do Papo Coaxante tinha um prestígio danado entre os demais de seu meio. Crescera e se tornara um anfíbio que trazia (não só trazia) orgulho a seus pais. Nascera, e logo que abrira os olhos, se perfilou o orgulho de dona Zica Namoradeira —, a mãe que adorava pedalar pela floresta. 

Zélio do Papo Coaxante puxara os dotes da rainha de seus dias e, ainda metido nas fraldas, saia a correr tresloucadamente desembestado, como se fugisse de um ramerrão (ladainha) montado numa bicicletinha de cor vermelha que ganhara de seu avô. Tal brinquedo, ele apelidara carinhosamente de “Fogueteira”. Todos os dias, explorava novos trilhos e veredas, sentindo o vento fresco e ouvindo o canto dos pássaros. Dessa forma, ele cresceu livre, leve e solto, enquanto os anos voavam ao redor da lagoa. Sua bicicleta de rodinhas, de repente, passou para uma Bike Kruiser S Plus de cor preta. Com marcha, motor e tudo o que tinha direito. De bicicleta nova, manteve o mesmo nome de batismo. Certo dia, enquanto pedalava alegremente, Zélio ouviu um som estranho vindo de sua bicicleta. “Pssssss…” O pneu dianteiro havia furado. 

Parou imediatamente e desceu para inspecionar o dano. Ele sabia que um pneu furado poderia arruinar a sua aventura, mas Zélio se desenvolvera num sujeito determinado e não se deixaria abater tão facilmente por um simples contratempo. Com a sua mochila sempre preparada, tirou dela um kit de reparo de pneus. Lembrou das instruções que seu amigo Cururu, o sapo mecânico havia lhe dado. Primeiro, Zélio retirou a roda da bicicleta com cuidado. Em seguida, usou uma espátula para remover o pneu do aro e encontrar o furo na câmara de ar. Depois de localizar o pequeno buraquinho, limpou a área ao redor e aplicou um remendo com cola especial. Esperou pacientemente até que a cola secasse, enquanto aproveitava para descansar um pouco e apreciar a beleza da floresta ao seu redor. 

Com o remendo bem fixado, recolocou a câmara de ar e o pneu no lugar. Encheu com sua bomba portátil e verificou se estava tudo em ordem. Estava. Satisfeito com seu trabalho, montou novamente na sua “Fogueteira” e continuou a sua jornada. Aquele pequeno contratempo não apenas ensinou a importância de estar sempre preparado para o que pintasse diferente. Também serviu para reforçar a sua paixão pelo ciclismo. Sabia que, como na vida, os desafios poderiam surgir a qualquer momento, porém, com determinação e um pouco de habilidade, não havia meio possível para desapontá-lo de seguir em frente. Com esse pensamento aflorado, Zélio do Papo Coaxante o sapo ciclista, reiniciou a sua jornada feliz se embrenhando mais a fundo pela floresta, atento e pronto para a próxima aventura, com a sua fiel bicicleta. 

Depois de um dia cheio de pedaladas, Zélio decidiu que queria experimentar algo novo. Ouvia falar quase diariamente, das maravilhas da floresta à noite. Nunca teve a oportunidade de explorá-la sob a luz das estrelas. Sem mais delongas, certa tarde, preparou a sua mochila com uma lanterna, um mapa e alguns lanches e refrigerantes. Esperou o sol se por totalmente. Quando a noite chegou, montou em sua amiga “Fogueteira” e deu início à tão sonhada aventura noturna. A floresta, ao seu redor, parecia um lugar completamente diferente à noite. As árvores lançavam sombras misteriosas, e os sons dos animais noturnos criavam uma sinfonia encantadora. Pedalou, sem pressa de voltar. Se embrenhou por trilhas e desvãos que conhecia muito bem durante o dia. 

Contudo, em plena escuridão da noite, pareciam coisas novas e emocionantes. Avistou vagalumes brilhando como pequenos astros ao seu redor e ouviu admirado o canto suave dos grilos. Em um momento, estancou para observar uma coruja majestosa pousada em um galho. Seus olhos grandes e brilhantes refletiam a luz da lanterna de uma maneira exuberante que ele jamais havia visto. Enquanto explorava, o local, encontrou um pequeno lago iluminado pela mesma lua que o acompanhara por todo o trajeto. Decidiu fazer uma pausa e se sentar à beira da água, apreciando a tranquilidade daquele momento que lhe pareceu único e indescritível. O fulgor da constelação, na superfície do lago se fazia hipnotizante, e ele sentiu uma paz profunda. Depois de comer, beber e descansar, resolveu continuar a sua jornada. 

Assim fez. Descobriu, logo adiante, novas sendas e apreciando a beleza da floresta noturna, desejou ter uma câmera fotográfica ou uma filmadora para registrar aqueles momentos espantosos e colossais. Sabia que essa aventura seria transformada em uma das suas favoritas. As trilhas por onde passou, lhe descortinou um lado da mata que ele nunca havia visto antes. Quando finalmente voltou para casa, estava exausto e apesar do cansaço, imensamente feliz. Tinha consciência de que a floresta guardava em seu interior muitos segredos e mal podia esperar para descobrir outras novidades em suas próximas façanhas. Não deu outra. Enquanto explorava aquele bosque denso, em uma outra noite, ouviu um som suave de canto vindo de uma clareira próxima. Curioso, seguiu o som e encontrou, sentada numa pedra enorme, uma linda perereca*.

O nome dela, Banja. A beldade se fazia sentada à beira de um minúsculo riacho. Banja, de posse de um violão, cantava uma canção do Roberto Carlos e a sua voz parecia se harmonizar perfeitamente com os ruídos nascidos do seio da terra. Encantado, ou melhor, embasbacado pela voz e pela beleza daquela estonteante sapa, a mente de Zélio foi perdendo o fio das ideias, ao tempo em que dela se aproximava pé ante pé. Foi se achegando timidamente e a cumprimentou. Ela sorriu e sem demonstrar um pingo de medo, percebeu que naquele momento havia perdido o tom de uma possível emergência em vista do recém-chegado. Sem receio algum, o convidou para se sentar ao seu lado. Nesse momento cresceu dentro dela uma emoção impossível de dominar. 

Começaram a conversar e papo vai, papo vem, descobriram que tinham muito em comum, especialmente no amor incondicional pela natureza e claro, pelas aventuras. Nesse chove não molha, passaram a noite explorando juntos, compartilhando histórias e risadas. Zélio mostrou à Banja alguns de seus lugares favoritos e a prestimosa, por sua vez, o levou para conhecer um campo de flores estonteantes que brilhavam sob a luz cálida da lua. Ambos se divertiram tanto, que perderam a noção do tempo. Quando a noite chegava ao fim, os dois perceberam que não queriam mais se separar. Decidiram que, embora cada um tivesse a sua própria lagoa, poderiam se encontrar frequentemente naquele mesmo lugar, para novas proezas. Selaram, pois, esse compromisso com um longo aperto de mãos e beijos quentes, quase perspirando (transpirando). 

Sem falar nos olhares prolongados e carinhosos, entrelaçados em sorrisos efusivos. Prometeram explorar juntos outros pontos daquele paraíso sempre que pudessem. Não cabendo em si de contentamento, Zélio regressou para a sua lagoa com o coração cheio de alegria e expectativa pelas próximas andanças e aventuras com a Banja. A pequena diva, por sua vez, em dias posteriores, voltou para a sua lagoa, ansiosa para contar às suas amigas sobre o sapo ciclista bonitão que havia conhecido. A partir daquele dia, Zélio do Papo Coaxante e Banja se tornaram grandes amigos e companheiros de muitas peripécias, sempre prontos para descobrirem os segredos insondáveis daquele lindo e flamejante pedaço de chão, agora ricamente aconchegante ou melhor, importante e repleto de mil galhardias e incontáveis magnificências. 
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* Perereca = origem na palavra do tupi pere'reg (“ir aos saltos”), passam mais tempo na água do que os sapos, sendo considerados animais semiaquáticos.
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APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro "O menino de Andirá," onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal "Municípios em Marcha" (hoje "Diário de Osasco"). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista "QUEM" (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal "O Dia, no Rio de Janeiro." Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

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Texto enviado pelo autor.
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