sábado, 7 de março de 2020

Contos e Lendas do Mundo (Suécia: As Três Avozinhas)


Era uma vez um príncipe e uma princesa que se amavam muito. Ela era terna, linda e muito estimada por todos, embora mais propensa à diversão e ao jogo que às atividades do lar.

O fato parecia não ser do agrado da velha rainha, pelo que declarou que não queria ter como nora uma mulher que não fosse tão ativa como ela fora na juventude, e opôs-se de todas as formas e maneiras possíveis ao casamento do príncipe.

Como a rainha não queria voltar com a palavra atrás, o príncipe procurou-a e pediu que o deixasse pôr a noiva à prova, para verificar se era tão ativa no trabalho como ela tinha sido. O pedido pareceu a todos muito arrojado, pois a mãe do príncipe continuava a ser uma mulher infatigável, que passava dia e noite a fiar, coser e tecer, de tal modo que ninguém a conseguia igualar. No entanto, consentiu finalmente que se cumprisse a vontade do príncipe. Assim, conduziram a bela princesa à sala das mulheres e a rainha enviou-lhe vinte libras de linho para que o fiasse, tarefa que devia estar concluída antes do amanhecer, de contrário nem pensar na possibilidade de receber o príncipe por esposo.

Quando ficou só, a princesa sentiu-se muito mal. Sabia perfeitamente que não poderia fiar o linho da rainha e, por outro lado, não queria perder o jovem príncipe, que tanto a amava. Por conseguinte, dava voltas pela sala, chorando ininterruptamente. De súbito, a porta abriu-se devagar para dar passagem a uma velha muito pequena, de aspecto assaz estranho, com uns pés enormes que causariam estranheza a quem a visse. Saudou a princesa com as palavras:

- Paz de Deus!

- A paz de Deus seja contigo!

- Porque está tão triste esta noite a bela donzela?

- Não hei de estar, se a rainha me ordenou que fiasse vinte libras de linho? Se não terminar o trabalho antes do amanhecer, perderei o meu amado príncipe!

- Consola-te, bela donzela! Se é apenas isso, posso ajudar-te. Mas tens de me conceder o desejo que passo a comunicar-te.

Ao ouvir isto, a princesa sentiu-se invadida por uma enorme alegria e perguntou em que consistia esse desejo.

- Bem, chamo-me Storfota-mor e a única recompensa pela minha ajuda limita-se a estar presente na tua boda. Não assisto a uma desde que a rainha, tua futura sogra, foi a noiva.

Concedeu-lhe de bom grado e a seguir separaram-se. A princesa deitou-se, mas não conseguiu pregar olho em toda a noite, que lhe pareceu eterna.

De madrugada, antes que rompesse o dia, a porta abriu-se e a velha reapareceu, para se aproximar da princesa e entregar-lhe um novelo de fio tão branco como a neve e fino como uma teia de aranha.

- Não fiava um novelo tão lindo como este desde que o fiz para a rainha, quando ia casar - informou. - Mas já lá vai muito tempo.

Em seguida, retirou-se e a princesa mergulhou num sono leve e reparador. Mas não tinha passado muito tempo, quando a rainha a acordou a perguntou se havia completado a tarefa. Ela respondeu que sim e entregou-lhe o novelo. Assim, a rainha teve de se considerar satisfeita, embora fosse evidente que o fazia com relutância.

Quando amanheceu, a rainha disse que queria submetê-la a outra prova. Enviou o novelo à sala das mulheres, juntamente com o tear e todos os apetrechos necessários, e ordenou à princesa que o tecesse. O tecido devia estar terminado antes do nascer do Sol, de contrário escusava de pensar sequer em casar com o jovem príncipe.

Quando ficou só, a princesa voltou a sentir-se amargurada, pois sabia que não conseguiria cumprir a nova tarefa, apesar de não querer perder o príncipe, que tanto amava. Desmoralizada, movia-se de um lado para o outro, chorando amargamente, quando a porta se abriu para dar passagem a uma velha muito pequena, de aspecto estranho e semblante ainda mais invulgar. Além disso, o seu traseiro era tão grande que quem o visse teria forçosamente de ficar abismado. Saudou-a com as palavras:

- Paz de Deus!

- A paz de Deus seja contigo!

- Porque está tão triste e preocupada a bela donzela?

- Não hei de estar, se a rainha me ordenou que tecesse este novelo? Se não o fizer antes de raiar o dia, perderei o príncipe, que tanto me ama.

- Se é apenas isso, posso ajudar-te. Mas com a condição que passo a comunicar-te.

Ao ouvir isto, a princesa foi invadida por uma enorme alegria e perguntou em que consistia esse desejo.

- Bem, chamo-me Storgumpa-mor, e a única recompensa pela minha ajuda limita-se a estar presente na tua boda. Não assisto a uma desde que a rainha, tua futura sogra, foi a noiva.

Concedeu-lhe de bom agrado e a seguir separaram-se. A princesa deitou-se, mas não conseguiu pregar olho em toda a noite, que lhe pareceu eterna.

De madrugada, antes que rompesse o dia, a porta abriu-se e a velha reapareceu, para se aproximar da princesa e entregar-lhe um tecido tão branco como a neve e tão delicado como uma pele.

- Não tinha voltado a tecer nada como isto desde que o fiz para a rainha, quando se ia casar. Mas já lá vai muito tempo.

Com estas palavras, a velha retirou-se e a princesa reconfortou-se com um sono agradável, embora de curta duração, pois não passara muito tempo quando a rainha a acordou e perguntou se concluíra a tarefa.

A princesa respondeu que sim e entregou-lhe o lindo tecido. A rainha viu-se forçada a considerar-se satisfeita pela segunda vez, embora fosse evidente que o fazia com relutância.

A princesa supunha que não teria de se submeter a mais provas, porém a rainha não era da mesma opinião. Um pouco mais tarde, mandou entregar o tecido à sala das mulheres, com a recomendação de que confeccionasse com ele camisas para o noivo. Deviam estar prontas antes do nascer do Sol, de contrário a princesa escusava de pensar em casar com o príncipe.

Quando voltou a encontrar-se só, a princesa sentiu-se muito amargurada. Sabia que não conseguiria completar o encargo, mas não queria perder o príncipe, que tanto amava. Desmoralizada, movia-se de um lado para o outro, chorando copiosamente, quando a porta se abriu para dar passagem a uma mulher muito pequena e velha, de aspecto assombroso e um semblante ainda mais singular, com um polegar tão incrivelmente grande que deixaria qualquer observador estupefato.

- Paz de Deus! - saudou.

- A paz de Deus seja contigo! - replicou a princesa.

- Porque está tão triste e só a bela donzela?

- Não hei de estar, se a rainha me ordenou que cosa com esta tela de linho camisas para o príncipe? Se não o faço antes de amanhecer, perco o meu noivo que tanto me ama.

- Consola-te, bela donzela. Se é só isso, posso ajudar-te. Mas com uma condição que passo a expor.

Ao ouvir estas palavras, a princesa alegrou-se enormemente e quis saber qual era a condição.

- Bem, chamo-me Stortumma-mor e apenas quero a recompensa de assistir à tua boda. Não presencio nenhuma desde que a rainha, tua sogra, foi a noiva.

A princesa concedeu-lhe de bom grado o desejo e a seguir separaram-se e ela deitou-se e dormiu tão mal que nem sequer sonhou com o noivo.

De madrugada, antes do nascer do Sol, a porta abriu-se e surgiu de novo a velha, que se aproximou da princesa, acordou-a e entregou-lhe umas camisas, cosidas e bordadas com tanta arte, que seria impossível encontrar outras iguais.

- Não cosia camisas tão boas como estas desde que o fazia para a rainha - declarou a mulher. - Mas já lá vai muito tempo.

Posto isto, desapareceu, pois acabava de chegar a rainha para saber se as camisas estavam prontas. A princesa respondeu que sim e entregou-lhas. Em face disso, a rainha enfureceu-se tanto, que os olhos emitiram chispas, mas reconheceu:

- Está bem, ele é, teu! Não pensei que pudesses ser tão rápida.

E retirou-se, batendo com a porta tão violentamente, que o som retumbou em todo o palácio.

O príncipe e a princesa podiam finalmente casar, como a rainha prometera, pelo que se iniciaram os preparativos dos esponsais.

No dia estipulado, a princesa não estava especialmente contente, pois não sabia se as suas singulares convidadas apareceriam. Chegado o momento, a boda celebrou-se, segundo a antiga tradição, com prazer e alegria, mas por mais que ela olhasse para todos os lados não descortinava nenhuma mulher idosa. Por fim, quando os convidados tinham de se sentar à mesa, deu-se conta da presença das três, que ocupavam outra a um canto da sala. Ao avistá-las, o rei perguntou de quem se tratava, pois via-as pela primeira vez, e a mais velha informou:

- Chamo-me Storfota-mor e tenho os pés tão grandes pelo muito que fiei na minha vida.

- Nesse caso - replicou o monarca -, é conveniente que a minha nora não tenha de voltar a fiar.

A seguir, dirigiu-se à segunda mulher e perguntou-lhe o motivo do seu singular aspecto.

- Chamo-me Storgumpa-mor e tenho o traseiro tão grande pelo muito que teci na minha vida - foi a resposta.

- Nesse caso - decidiu o rei -, é também conveniente que a minha nora não tenha de voltar a tecer.

Quando se voltou para a terceira velha e lhe perguntou quem era, Stortumma-mor levantou-se e explicou que tinha um dos polegares tão grande devido ao muito que cosera ao longo da sua vida.

- Nesse caso - concluiu ele -, é igualmente conveniente que a minha nora não tenha de voltar a coser.

E assim foi. A bela princesa recebeu a mão do príncipe e ficou eximida para toda a vida de fiar, tecer e coser.

No final da boda, as avozinhas partiram. Ninguém viu que rumo tomaram, nem se sabia de onde tinham vindo. No entanto, o príncipe viveu satisfeito e feliz com a esposa e tudo decorreu com muito mais calma e tranquilidade, pois a princesa não era tão ativa como a exigente e severa rainha.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Varal de Trovas n. 200


Gilson Mendes de Góis (O Destino da Cobra Cega)


Desde seu nascimento, João despertou a atenção de todos que o conheceram. A começar por aquele tradicional tapinha nas nádegas. Assim que o médico lhe aplicou as palmadinhas, o então bebê, ao contrário de chorar emitiu um som que foi classificado por todos na sala de parto como uma gargalhada. Uma gargalhada irônica por sinal! Neste instante, começaram seus problemas. O médico não aceitou aquele fato e tornou a bater no recém nascido com mais força. João chorou. Não porque estava chocado por ter sido tirado do seu mundo de proteção que era o útero de sua mãe, chorou sim, de dor por ter sido agredido...

No dia do batismo, quando lhe foí jogada a água na cabeça, ele tomou a rir. João era o menino mais feliz que nascera no mundo até então. Ter nascido, para ele, não era como carregar um fardo; era como ir ao circo, ao teatro, ao jogo de futebol. A vida era o presente mais lindo que lhe foi confiado...

Mas João despertava a desconfiança de todos. Ninguém aceitava uma pessoa que fosse feliz vinte e quatro horas por dia. Sim, pois até dormindo, ele sorria. E seus irmãos mais velhos ficavam acordados para verem-no rindo nos sonhos e, para amaldiçoá-lo.

Muito raramente o menino encontrava amigos que se pareciam um pouco com ele. Então, a amizade era grande. Contudo, não demorava e até mesmo aquelas crianças que pareciam ser felizes se aborreciam com a felicidade de João. E ele voltava a ser só. Só mas nunca infeliz... E como tinha uma fé inabalável aquele garoto... uma fé indescritível para tudo o que fosse bom. Ele amava aos outros como poucos na história da humanidade tinham amado. Isso aumentou significativamente quando ele conheceu as religiões... além de muito feliz, João era um superdotado, entendia de tudo. Desde os primeiros dias que foi para escola, ele já debatia com os professores, que tinham que tentar mudar de assunto para não se verem desmascarados pela inocência sábia do garoto, Apesar de inocente, o menino sabia que existia a maldade na história dos homens. Mas ele procurava sempre um lado positivo para tudo o que via acontecer ou que acontecera. Ninguém jamais ouviu de sua boca um palavrão que fosse. Nem mesmo quando seus colegas o agrediam fisicamente.

Ele não entendia o porquê daquilo, mas dizia para eles: "um dia vocês verão que estão errados e eu não me importo em ser a pessoa que serviu para isso!"

Mas na adolescência, João descobriu que era diferente. Não mudou, mas aprendeu a usar uma máscara para não incomodar muito os outros. Pela primeira vez, pode-se dizer que João conheceu a tristeza, ele não conseguia aceitar o fato de as pessoas preferirem sofrer ao invés de tentarem serem felizes. O que mais o incomodava era saber e ver que todos que o rodeavam diziam procurar a felicidade. Esta foi a única incógnita que João não conseguiu decifrar. Porém, nunca abriu mão de ser feliz. As pessoas aprenderam a suportá-lo assim que o rapaz começou a agir assim, disfarçando que não era tão feliz.

Quando se esquecia disso, ele acabava por ouvir: “Ih, já tá ficando maluco de novo. Não tem jeito, louco é louco!”

João conseguiu sobreviver e chegar a idade adulta sem se corromper totalmente. Assim ele pensava, pois em sua pureza, ele não admitia o fato de fingir que não era feliz o tempo todo…

Ele gostava de ajudar aos outros. Assim, decidiu que seria médico para poder aliviar as dores dos que sofriam. Contudo, logo lhe explicaram que isso não ia dar certo não, pois ele não iria cobrar dos pacientes e seus colegas de profissão iriam contra ele por perderem seus clientes para um médico que não cobrava consulta... A cada profissão que João escolhia, alguém lhe mostrava que não daria certo, pois a bondade de João estragava tudo.

Depois de muito pensar, ele decidiu que seria enfermeiro. Enfermeiro não precisava cobrar para ajudar o paciente.

Desde que começou a trabalhar, João constatou o que já imaginava. As pessoas eram felizes em sofrer. Desta feita, ele resolveu se dedicar a desfazer isso na ideia das pessoas. Com muitos ele conseguiu. Estas pessoas jamais esquecerão os conselhos de João. Todavia, a grande maioria não aceitava nem de longe a possibilidade de uma vida sem sofrimentos e reclamavam do enfermeiro: "Aquele rapaz é meio besta. Não é que ele me disse que se eu quisesse eu ficava curado só pela minha fé! Se fosse assim Deus não tinha feito os médicos."

Num determinado momento de sua vida, ele decidiu que não mentiria mais. Era feliz e ponto final. Passou a ser tratado como um estranho de novo. Mas ele prometera a si mesmo que não voltaria atrás. Assim, aprendeu a conviver com o falatório dos outros às suas costas. As pessoas que desejavam ser como ele, tentavam compreendê-lo e isto lhe dava alento para continuar sua vida. E era feliz mesmo tendo que enfrentar quase todo mundo que conhecia.

João via seus colegas tentando derrubar uns aos outros, brigando por cargos, por poder. Mas ele não se Importava com isto, queria apenas fazer sua parte. Muitas vezes tinha projetos muito bons para seu trabalho, mas não tinha coragem de torná-los públicos ao pensar que todos imaginariam que ele estava jogando o jogo de todos. Isso o deixava um pouco triste, mas ele sempre procurava fazer aquilo que seu coração acreditava que fosse o certo e assim, não deixava de dormir por temer perder sua posição na empresa...

Contudo, vez por outra, ele ia até o chefe e lhe dava de presente seus pianos, pedindo que o mesmo guardasse segredo... o chefe era inteligente e sempre que aplicava os planos de João, recebia os elogios. A pureza de João não pedia nada em troca, assim, o que era dado, era com amor, o que é dado com amor não traz consigo o ranso da cobrança e a tendência de dar certo é muito maior. João ficava muito feliz ao ver seus projetos aplicados corretamente quando acarretavam o bem das pessoas e nunca se importava em requerer a autoria dos mesmos… o importante era vê-los acontecendo isso era felicidade para ele...

Com o passar dos anos João foi se tornando cada vez mais feliz. E quase todos os seus colegas e familiares achavam que ele estava louco.

Um certo dia, colocaram uma droga no refresco de João. Depois de tomar, ele ficou muito estranho. Começou a dizer xingamentos para aqueles que o importunavam e demonstrar toda sua ira por ser tratado como um louco... As pessoas adoraram aquele João... Levaram-no para casa. Na manhã seguinte, ao voltar para o trabalho, ele começou a ouvir elogios, pois todos acreditavam que ele ainda estava sob o efeito da droga: "Que bacana, colega, eu que cheguei a achar que você não fosse normal. Acho que aquele "remedinho" revelou sua verdadeira personalidade. Será que você não andava tomando alguma coisa que te transformava naquele chato e a nossa brincadeira serviu como antídoto e você voltou ao normal?”

Ao perceber o que acontecera, pela primeira vez na vida, João ficou deprimido. Também, ele não era de ferro! E ao ficar deprimido, as pessoas começaram a idolatrá-lo, a tratá-lo como um rei. As pessoas estavam felizes com João pela primeira vez em toda a vida do sujeito. Mas ele estava deprimido exatamente por causa disso, pela primeira vez ele percebeu seu deslocamento em relação a todos. E as pessoas estavam felizes, João também sofria...

Nesses dias, ele observou no terreno baldio que ficava atrás do hospital, uma aglomeração de meninos, ele foi até lá. Os garotos estavam se divertindo com uma cecília. João apesar de não estar bem não aceitou que maltratassem o anfíbio. Perguntou por que eles estavam fazendo aquilo. Eles responderam que era uma cobra e que por isso eles tinham que matá-la. Ele explicou que aquele animal não era cobra de forma nenhuma, mas sim um anfíbio e que por isso eles não precisavam maltratar o animal.

– Pode até ser, responderam eles, mas como se parece com uma cobra, tem de morrer, pois cobra é cobra, nem que seja só na aparência...

Ao ouvir aquelas palavras, João teve um acesso de ira, expulsou os meninos do terreno do hospital. Enquanto eles se retiravam, um deles ainda gritou, lugar de cobra é no mato, lugar de bicho é na selva e lugar de ET é no espaço. João, a princípio não entendeu, mas ao ouvir as gargalhadas de seus colegas que estavam nas janelas do hospital, ele se lembrou que todos o chamavam de extraterrestre antes de ele ter adoecido.

Com muito cuidado apanhou a cobra cega pela extremidade próxima a cabeça para que ela não o mordesse e a levou para um bosque que ficava a poucas quadras do hospital. Enquanto caminhava em direção ao bosque, ele pensava em tudo o que ouvira e em tudo que acontecera nos últimos dias; nas pessoas que eram infelizes com a felicidade que ele sentia e tentava transmitir antes e com a felicidade deles com a aparente infelicidade dele... refletia também nas palavras dos meninos.

Ao chegar no bosque, escolheu um lugar que lhe pareceu seguro e soltou a cobra cega. Então, olhou em volta, sorriu e perguntou para uma pessoa que se aproximando pôs-lhe a mão sobre o ombros: "será que eu sou um ET mesmo?" Em resposta ele ouviu: "Não meu bom João, ET não. Você é um dos poucos seres humanos de verdade que já pisaram sobre este planeta. Os outros ainda não evoluíram!

Nunca mais se ouviu falar de João. Dizem que naquele dia avistou-se no bosque uma luz ofuscante que subiu. As pessoas que conviviam com João irritam-se com seu desaparecimento dizendo que logo quando ele estava se transformando numa pessoa legal, foi sumir...
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Gilson Mendes de Góis nasceu em Nova Cantu/PR, em 1964. Transferiu-se para Campo Mourão, em 1970. Ainda menino, apaixonou-se pela leitura e, consequentemente, pela literatura. No antigo ensino primário, ao se observarem suas redações escolares, notava-se que, ainda menino, já demonstrava certo "dom" no trato com as letras. Vencendo alguns concursos de redação e muito bem estimulado por seus primeiros professores,  esse lado escritor foi se materializando. Dentre as pessoas que o incentivaram, faz questão de citar a Professora Vera Alice de Oliveira Basso. Afirma que sua vida escolar e, até mesmo, literária era uma e tornou-se muito mais palpável depois de ter sido aluno da referida mestre. Dessa forma, seguiu os passos rumo ao sonho de se tornar um bom escritor. Participando de concursos literários (de contos e poesias), consolidou-se a cada dia a certeza de que escrever era o seu norte.

É graduado em Letras Anglo-portuguesas e especialista em Literatura Brasileira pela Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão. Escreve romances, contos e poesia. Em 2002, teve sua primeira vitória, que foi a publicação de seu primeiro romance. Isto se deu através de um concurso estadual promovido pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, intitulado Livraria Paraná, onde seu trabalho "A coruja e a lagarta" obteve a classificação para ser publicado. Depois disso, foi convidado a fazer parte da Academia Mourãoense de Letras, da qual é fundador da cadeira número 11.

É autor do livro "História de Filhotes" e publicou trabalhos em antologias, tanto de contos quanto de poesias, no Paraná.


Fontes:
– Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras.  Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
– Biografia in Academia Mourãoense de Letras

Américo Gonçalves de Sousa (Poemas Diversos)


A LUA É TESTEMUNHA

Passei de noite pela tua rua,
e demorei-me um pouco à tua porta,
mas não te vi... eu vi somente a lua,
que se escondia, que era noite morta…

Fiquei bem triste... e, como quem flutua
sobre um mar tenebroso; algo me importa...
É que tenho a minha alma presa à tua;
se as separar, o que é que me conforta?...

Disse-me a lua: Vinhas ver a amada?
Tu vais embora, que ela está deitada...
É muito tarde... está a amanhecer...

Não imaginas como eu vim pra casa...
O corpo todo me queimava em brasa,
que eu cheguei a pensar que ia morrer.
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DEPOIS DE TUDO CONSUMADO

Entristeci só em pensar que um dia
eu tenha muita pena de morrer,
e talvez, cheio de melancolia,
queira encontrar alguém pra me valer…

Como suportarei essa agonia,
vendo começar tudo a escurecer,
e eu envolvido numa névoa fria,
sentindo pouco a pouco falecer…

Ó que triste hora deve ser aquela...
Talvez... que nem acendam uma vela,
para ficar a alumiar meu rosto...

Quisera, quando tudo consumado,
morrer, mas não morrer amargurado...
morrer tranquilo sem sentir desgosto.
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DESVENTURA

Vi passar mendigando, pela rua,
uma pobre mulher, quase trapilha!
Descalça, esfarrapada, quase nua,
levava pela mão a sua filha.

Já era noite e não havia lua.
Fazia frio, e não tinham mantilha...
Vivendo o drama da miséria crua,
iam caminhando na espinhosa trilha.

Desalentadas pelo seu cansaço...
A mãe e filha sentam-se no chão
e a mãe sentou a filha no regaço.

Não podendo conter sua emoção,
estreitou sua filha num abraço,
e disse-lhe a chorar: "Não temos pão…”
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FAUSTA

Vês esta cruz aqui no cemitério?...
Aqui repousa alguém, que muito amou.
Depois que ela morreu, nada mais sou,
e vivo por viver,., caro Rogério.

Sei que acreditas de que falo sério.
Ela, ao ver que morria, me abraçou...
no seu rosto, uma lágrima rolou,
e tudo se acatou como um mistério!

Deixa que eu desabafe a minha dor...
Oh!, Fausta, Fausta, meu querido amor,
ajuda-me a sofrer esta amargura…

Sabes como é tremendo o meu desgosto...
Oh!, quisera poder beijar-te o rosto...
Já que eu não posso, beijo a sepultura.
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O AMOR DE MÃE

Como eu me lembro, quando me beijavas...
Era sempre em desvelos, sem cansaço...
Os meus cabelos, tu acariciavas,
sentando-me depois no teu regaço.

Meu peito, junto ao teu, aconchegavas,
não ficando, entre nós, qualquer espaço...
depois, o meu pescoço entrelaçavas
com muito amor, num carinhoso abraço.

Hoje, eu quero tomar o teu lugar.
Ao ver-te já cansada, e já velhinha...
Vem cá, no meu regaço, te assentar.

Encosta no meu ombro a cabecinha,
que eu quero com carinho te estreitar,
fazendo igual a ti... Santa Mãezinha.
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 POBREZA

Tu jamais te envergonhes da pobreza,
se por acaso em tua casa entrou.
Saibas que o pobre também tem nobreza...
Já houve um rico, que Deus condenou.

Se te conformas, não terás tristeza,
quando algo te faltar, ou já faltou.
Caso a comida falte à tua mesa,
ou até mesmo o pão, já se acabou…

Pode haver muito, que sem Deus é nada..
O pouquinho, que houver, com Deus é tanto,
que a gente fica toda impressionada!

Não admira causar um certo espanto;
A pobreza, em fartura transformada!
Ah!, mas Deus tudo pode, porque é Santo...
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Américo Gonçalves de Sousa nasceu na cidade do Porto, Portugal, no dia 6 de junho de 1919. Filho de Joaquim José de Sousa e Ana Gonçalves Pires. Completando os primeiros estudos com a admissão para o Liceu, seguiu a carreira da música e da escultura, trabalhando em diversos monumentos, principalmente na gigantesca estátua de Cristo Rei, que se encontra no planalto na serra do Pilar, em Poços de Ferreira, Portugal. Apaixonado pela música, cursou solfejo, seguindo o estudo do instrumento de sua predileção: Órgão. Talvez inspirado pela música e com o dom de poeta, cedo começou a escrever as primeiras poesias. Radicado no Rio de Janeiro, afastou-se dos trabalhos de escultura, dedicando-se à música e poesia. Pertenceu à União Brasileira de Trovadores. Colaborou com a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, na coluna: A Caixinha da Trova, de Heráclito de Oliveira Menezes. Vários trabalhos poéticos publicados em jornais e revistas. Em concursos foi premiado diversas vezes com classificações honrosas.

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – 3. Volume. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1980.

Chico Anysio (Impossibilidade)


— Quer ir ao circo?

O filho pula de alegria. Achou que o pai simplesmente adivinhava seu desejo.

— Peça à sua mãe pra lhe vestir.

A mãe enfeita o menino. Ele põe uma roupa mais à vontade.

— Vamos na geral. Circo é bom é na geral.

O menino concorda.

Saem de mãos dadas. Gérson tem sete anos. Há sete espera a irmã que lhe prometem. O ônibus está vazio. Podem escolher lugar. O menino muda de banco seguidamente. De uma janela para outra, atrás, na frente, perturba o motorista.

— Fica bonzinho aí.

— Vem pra cá, Gérson.

O garoto senta ao seu lado. Está inquieto, excitado pelo circo que o espera e que ele tanto esperava.

— Tem fera?

— Não sei. Lá a gente vê.

— Tem trapézio?

— Deve ter, deve ter...

O menino levanta, anda pelo corredor esfregando a mão no encosto dos bancos vazios. Esbarra nas costas do motorista.

— Fica quieto, oh garoto!...

— Vem cá, Gérson, não atrapalha o moço.

Ele vai, mas não consegue ficar sentado mais do que cinco minutos. Já enfia a cabeça pelas janelas, desliza no corredor, mexe na caixa de colocar as fichas.

— Oh, garoto chato.

O motorista reclama e bate na mão do menino. O garoto chora e olha o pai.

— Não bate no meu filho, não.

O pai e o filho são, agora, os únicos passageiros. O mo­torista diz um palavrão, em resposta à advertência. O menino olha o pai. É sua única defesa. Ele sabe que o menino sabe disto. O motorista, um crioulo forte, não se arrepende do tapa que deu na mão do menino.

— Vê se fica quieto aí.

O menino já não olha o pai. Limita-se a sentar no banco da frente, humilhado, cerceado, proibido.

Ele levanta e caminha inseguro pelo corredor. Senta junto do filho e lhe segura a mão, estreitando-a, forte, entre suas mãos suadas. Percebe, nas costas da mão do menino, a marca dos dedos. O motorista o olha pelo retrovisor. Ele percebe um sorriso no rosto do crioulo.

— Covardia, bater no menino.

— Não aporrinha!

O menino vira o rosto, fazendo de conta que espia a cal­çada. Nada percebe, porém, da paisagem que vai passando. Ele nota que o filho chora.

— Deixa, filho... educação não é todo mundo que tem. Cavalo é cavalo.

O motorista breca e se levanta. Tem os olhos avermelhados pela noite mal dormida, tem a alma moída pela briga de ontem com sua negra amante.

— Quem é cavalo?

O menino afasta-se para o canto do banco. Está tremendo. Ele levanta e se põe à frente do crioulo, menor e mais magro.

— É isso mesmo.

O tapa o derruba no chão do corredor. Ele se levanta com a ajuda do filho. Descem sem pagar. O motorista não se importa. Há coisas mais sérias com que se preocupar. Da calçada ele vê o ônibus sumir, dobrando na Avenida Suburbana. Tem sangue saindo do nariz. Enxuga com a manga da camisa. Quer coragem para olhar o filho. Andam sem saber para onde.

— Vamos pra casa, pai.

— E o circo?   

— No outro domingo a gente vai. Eu hoje nem estava com muita vontade...

Os dois choram enquanto cruzam a rua para esperar o ônibus de volta. Ele sabe que precisa falar, mas não consegue imaginar que frase deva dizer. Limita-se a pousar a mão no ombro do filho. Sente que um dente está abalado e que o nariz talvez tenha tido uma fratura. Resiste à dor física. Está chorando por causa de uma dor diferente. Pior. Pior. Muito pior.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Varal de Trovas n. 199


Dorothy Jansson Moretti (A Mangueira do Oswaldo)


Estive uma noite destas em casa de Oswaldo e Eva, e depois que eles me mostraram sua bela residência, por dentro, levaram-me também ao quintal.

Fiquei encantada! A grama verdinha, as lajes simetricamente dispostas, tudo tão bonito!

Mas aquela velha mangueira, carinhosamente preservada e toda cercada de flores… que coisa linda! Voltei para casa c fui dormir sem poder tirá-la da imaginação. É que me lembrei de uma coisa remota, dos meus tempos de menina de dez ou onze anos de idade.

Era o natalício de Seu Belizário (o querido e popular Coronel Belí, tio-avô de meu marido), e havia um churrasco em comemoração à data.

Bem ali onde está a casa do Oswaldo, havia um pomar de mangueiras copadas que forneciam uma sombra formidável, e esse foi o local escolhido para a churrascada.

Ai, aquelas festas de antigamente! Como eram gostosas! E que animadas! E como a gente se divertia! Sem falar no churrasco delicioso, de carne de primeira, quentinho, fumegando, sangrando…

Todo mundo estava lá; os grandes e nós, as crianças, que corríamos soltas, brincando de pegador ou de esconde-esconde, por detrás dos grossos troncos das enormes mangueiras.

Detalhe curioso: damas e cavalheiros vestiam-se com esmero. Naquele tempo ia-se a churrascos com roupa de domingo. Os homens de terno, chapéu e gravata, e as senhoras com lindos vestidos de seda e sapatos de salto alto. Raros eram os descontraídos que apareciam em mangas de camisa, uma ou outra mulher de lenço na cabeça, roupas mais simples e sapatos de salto baixo.

Eu mesma, apesar de pequena, usava meu querido vestido de sélis cor-de-vinho com entrelaçadinhos de veludo negro nas mangas e no cinto, um amor de modelo, criação de Dona Maria José, a modista preferida de mamãe. Os sapatinhos eram vermelhos, com flores perfuradas no couro da gáspea. Ainda conservo um retratinho de estúdio, tirado com esse traje. No meio de toda aquela correria, lembro-me do cuidado que eu tinha para não rustir os sapatos, nem manchar de gordura o lindo vestidinho.

Uma velha foto registra o acontecimento daquele dia, e ali estão, abrigando o pessoal com a sombra deliciosa, as belas mangueiras em todo o seu esplendor. E é justamente uma delas que reencontro agora no quintal do Oswaldo.

Que saudade! Quanta lembrança e quanto tempo! Muitas daquelas pessoas, como o próprio aniversariante, já não existem mais. Outras vivem - ou sobrevivem — revelando hoje nos traços os quarenta e tantos anos que as separam daquela festa. Como eu, que felizmente não apareço na fotografia, e assim ninguém irá poder prestar atenção à diferença...

(Tribuna de Itararé— 28/08/84)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 11 - Verdade e Mentira


O homem em princípio aspira à verdade. A humanidade busca a verdade, mas também pode asfixiá-la. Os poderosos procuram calar a verdade que os incomoda. Os de espírito lúcido querem descobrir a verdade, mas sempre haverão os mal-intencionados que querem a todo o custo encobri-la, em benefício próprio.

A verdade, deusa nua,
duas faces sempre tem;
e cada homem cultua
a face que lhe convém!
Moacir Figueiredo - SC

A mentira, bem vestida
anda orgulhosa na rua.
A verdade anda escondida
porque é pobre e vive nua. 
José Firmo Cavalcanti - PE

A verdade que redime
não viveria de luto
se a mentira fosse crime
e, enfim, pagasse tributo!...
Hermoclydes Siqueira Franco - RJ

Movido a farsas e engodos...
É assim que o Universo gira,
um mundo onde quase todos
sobrevivem da mentira,..
Darly O. Barros - SP

Se o barco imenso da vida
seguisse rumo à verdade,
alcançaria guarida:
- paz, amor, fraternidade,
Ione Arruda Gomes - CE

Não é possível construir a cidadania sem desvelar a verdade que se esconde por trás das intenções dos grupos mais diversos, seja de amigos, de profissão, de partido, de religião, de castas sociais. Os grupos dominantes procuram sempre encobrir os crimes praticados contra o povo, os crimes perpetrados para mantê-los no poder. Entretanto,

Uma verdade evidente
não há texto que distorça:
– Ante a imagem contundente,
a palavra perde a força.
Almerinda Fernandes Liporage - RJ

O lucro das aparências
que no mundo se arrecade,
só prevalece na vida
até que chegue a verdade,
Auta de Souza - RN

A verdade redentora
ante a farsa do vilão,
é chama íluminadora
dissipando a escuridão.
Pedro Grilo - RN

Uma verdade é verdade
antes de ser proferida,
e sempre em qualquer idade,
ela deve ser mantida.
Nadir Nogueira Giovanelli – SP

Às vezes o poeta põe em relevo o contraste entre a verdade e a mentira:

A verdade anda tão rara
que a mentira, ultimamente,
já nem sequer se mascara
para enganar tanta gente!
João Freire Filho - RJ

Como é engraçada a vida
que de contraste se tece:
a Verdade anda escondida,
a Mentira é que aparece,
Ascendino Almeida - RN


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.

Nilto Maciel (O Manuscrito de Yellah)


Por que o manuscrito de Yellah continua inédito? Não me refiro ao meu livro, mas ao documento deixado pelo astrônomo. Não ando à cata de glórias literárias, que certamente o livro me dará, nem sou um explorador do fantástico. Ora, o manuscrito se contém em umas trinta laudas apenas. Eu o teria publicado em jornais e revistas, sem uma só palavra a mais, não fossem as recusas dos editores. Foi esta minha primeira intenção, foi este meu primeiro ímpeto.

A princípio acreditei que as recusas de publicação do estranho escrito se devessem ao desinteresse da imprensa pelo assunto. Dias depois, porém, rememorando os fatos, lembrei-me do entusiasmo do primeiro editor ao ler o texto yellahiano, a emoção com que me agradeceu o fornecer-lhe matéria tão interessante. Prometeu-me boa recompensa, a tiragem do jornal sairia dobrada, podíamos preparar ou­tros textos, explorar o filão. Eu topava a parada? Sim, logicamente. Apareça mais tarde para uma entrevista. E bico calado, nada de procurar outros jornais. Deixasse logo cópia do manuscrito com ele.

Mais tarde, já munido de outras informações para a entrevista do século, custei a acreditar estivesse diante do mesmo editor. Desculpasse, mas o assalto ao banco, no fim da tarde, fato inesperado, não estava sabendo? Havia tomado o último espaço da edição. Ficava para outra oportunidade, ou, então, procurasse fulano, amigão do peito, do jornal tal.

De déu em déu, acabei por desconfiar de outras razões para tantas evasivas tão semelhantes entre si. Ora, mal eu me apresentava, já o sujeito, sem sequer ler o manuscrito, pedia desculpas e me deixava a ver navios.

Na minha ingenuidade, imaginei o mais lógico motivo para o ve­to dos jornais à publicação do documento: o público não iria enten­der neres de neres do texto, se publicado sem uma nota explicativa, uma advertência, um preâmbulo esclarecedor. E pus-me a rabiscar um perfil de Yellah, noções elementares de Astronomia, rápidos passeios pela História, sínteses das teorias dos sonhos, e cada vez me perdia mais nos corredores da informação e da suposição. Súbito, havia escrito um longo texto sobre o manuscrito. Que é meu livro recusado pelas editoras.

Minha luta pela sua publicação pode ser tida como a reedição da que travei pela divulgação do escrito de Yellah. Assim, deixei o primeiro editor cheio de esperanças. Ora, eu lhe fiz uma síntese do livro e o assunto lhe pareceu fadado a grande sucesso de público. Falou-me numa primeira edição de cinquenta mil exemplares. Não autorizava logo a publicação para não fugir à política da casa. Referia-se à leitura dos originais pelo conselho editorial. De qualquer forma, voltasse dali a três dias, para a assinatura do contrato. E deu-me palmadinhas às costas, ofereceu-me café, abraçou-me.

No dia aprazado, lá estava eu de novo diante do velhinho. Não o levasse a mal, compreendesse sua posição, não podia ser contra a opinião do conselho. E voltei às correrias e aos desenganos.

Para uns, todo o meu livro, inclusive o texto de Yellah nele inserido, é pura ficção e, por só publicarem obras científicas ou de informações, se me editassem, estariam enganando o público. Para as editoras de obras de ficção, O Manuscrito de Yellah não passa de um amontoado de pseudo-informações. Existem aquelas, porém, que publicam de tudo. E estas têm também suas razões: não investem em autores desconhecidos, andam às voltas com crises financeiras, seus cronogramas editoriais já estão elaborados para os próximos cinco anos.

Decepcionado com a nossa indústria editorial, fiz das tripas coração e fui bater às portas de editores estrangeiros. E até lá minha má fama já chegou. Ou não se trata disso?

O tal manuscrito que ninguém ousa publicar e mais um telescópio foram encontrados por um camponês de Solenhofen junto às cinzas de Yellah. Adquiri-os por uma ninharia.

Em fins de 1945, muitos camponeses morreram fuzilados na Alemanha. Apesar da rendição dos governos fascistas, atrocidades como estas davam prosseguimento à matança iniciada nos anos anteriores. Famílias inteiras desapareciam ao fogo do desespero nazista. Só por extremos atos de heroísmo, um ou outro conseguiam escapar à morte. Como Elizabeth Stengel. Grávida de oito meses, correu quilômetros da fúria de seus compatriotas ensandecidos. Para trás deixou os cadáveres do marido e dos filhos. E alcançou a França, onde deu à luz um menino, que batizou com o nome de Yellah. Por que não de Peter, Thomas, Karl? Ou de Pierre, Charles, Paul? Nem alemão nem francês.

Não durou muito Elizabeth e a criança terminou num asilo para menores abandonados.

Em 1960, o jovem Yellah sonhou com a própria morte. No sonho, estávamos em 1970 e milhares de monstros alados saltavam de um cometa para a Terra e massacravam a humanidade.

Daí por diante, passou a interessar-se por astronomia e fenomenologia. Descobriu as inexplicáveis coincidências existentes entre Halley e ele mesmo. Seu nome, escrito de trás para a frente, era o do astrônomo inglês. Sua mãe havia nascido em 1910, ano da aparição do cometa de Halley. Ela, sim, poderia ter se chamado Yellah.

Em 1682, aos 26 anos de idade, Edmund Halley viu o cometa que recebeu o seu nome. Em 1970, ano da passagem do cometa de seu sonho, Yellah estaria também com 26 anos de vida.

O cometa de Halley reapareceu em 1758, ou seja, 16 anos após sua morte. Em 1986, reaparecerá o cometa, ou seja, 16 anos após a morte de Yellah.

Segundo o inquieto filho de Elizabeth Stengel, no dia 30 de janeiro de 1970, milhões de seres humanos sonharam com a invasão da Terra pelos superarqueoptérix. Estes monstros alados habitavam o cometa de seu sonho apocalíptico há milênios, quando fugiram da Terra. De volta ao berço natal, devoravam os homens, tomando-lhes o lugar de reis da criação.

Para Yellah, o sonho coletivo de 1970 se concretizará em 1986.

Quem se lembrará de um sonho comum dos anos 1970? Nos apontamentos dos psicanalistas talvez se encontrem versões destes sonhos. Ou todos eles preferiram queimar seus cadernos, a terem de depor como inquisidores?

Na opinião do prodigioso alemãozinho, o sonho está para a realidade como a ficção está para o leitor. Um romance, consoante ele, é um ser de palavras. Cada leitor, no entanto, o lê à sua maneira, de acordo com sua capacidade. Uma realidade em si mesma é imutável, embora os homens a vejam em sonho à maneira de cada um. E vai mais longe: o sonho é sempre mais grandioso do que a realidade, da mesma forma que um romance se enriquece à medida que é lido.

Pela teoria de Yellah, para ele verdade irrefutável, enquanto os homens sonhavam, os superarqueoptérix rondavam a Terra.

Para se defender das acusações de charlatanice filosófica ou científica, o pequeno sábio fundamenta sua afirmação assim: os milhões de seres humanos que não dormiam e, portanto, não sonhavam no momento da passagem do cometa, foram ocasionalmente hipnotizados. E também sonharam. Em hipnose ou sono natural, a humanidade estaria desarmada para qualquer resistência.

O tempo de duração da hipnose coletiva estava previsto para algumas horas, suficientes para o ataque a todos os rincões do planeta. De fato, porém, não passou de segundos. Desentendimento entre os invasores? Arrependimento? Decisão de última hora de adiamento do golpe? Na verdade, segundos após a aspersão do narcotizante sobre a Terra, os estranhos nos bombardearam com outra substância de efeito neutralizante.

Yellah teria sido o único ser humano a ver o cometa pelo telescópio e ao mesmo tempo em estado de hipnose ou sonambulismo. Escrevia a parte final e mais importante de sua pequena obra – justamente a narração do aparecimento do cometa e do ataque dos monstros – quando o raio da morte o fulminou.

Ao texto de Yellah não cabe a mim nem a ninguém chamar de ficção. E se for, por que esse medo deles? Ao manuscrito não compete a ninguém indicar seu autor. Se eu, sou quem? Se Yellah, ele existiu?

Fonte:
Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986.

Silmar Böhrer (Gamela de Versos n. 6)


quarta-feira, 4 de março de 2020

Varal de Trovas n. 198


Rubem Braga (Os Jornais)


Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:

- Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na Índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um  sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira.  Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. Vejamos a história desse crime.

"Durante os três primeiros anos o casal viveu imensamente feliz. . ." Você sabia disso? O jornal nunca publica uma nota assim:

"Anteontem, cerca de 21 horas, na rua Arlinda, no Méier, o sapateiro Augusto Ramos, de 28 anos, casado com a senhora Deolinda Brito Ramos, de 23 anos de idade, aproveitou-se  de um momento em que sua consorte erguia os braços para segurar uma lâmpada para  abraçá-la alegremente, dando-lhe beijos na garganta e na face, culminando em um beijo na orelha esquerda. Em vista disso, a senhora em questão voltou-se para o seu marido, beijando-o longamente na boca e murmurando as seguintes palavras: "Meu amor", ao que  ele retorquiu: "Deolinda". Na manhã seguinte, Augusto Ramos foi visto saindo de sua residência às 7,45 da manhã, isto é, dez minutos mais tarde do que o habitual, pois se demorou, a pedido de sua esposa, para consertar a gaiola de um canário-da-terra de propriedade do casal".

A impressão que a gente tem, lendo os jornais - continuou meu amigo– é que "lar" é um local destinado principalmente à prática de"uxoricídio". E dos bares, nem se fala. Imagine isto:

"Ontem, cerca de 10 horas da noite, o indivíduo Anafias Fonseca, de 28 anos, pedreiro, residente à rua Chiquinha, sem número, no Encantado, entrou no bar "Flor Mineira", à  rua Cruzeiro, 524, em companhia de seu colega Pedro Amâncio de Araújo, residente no  mesmo endereço. Ambos entregaram-se a fartas libações alcoólicas e já se dispunham a deixar o botequim quando apareceu Joca de tal, de residência ignorada, antigo conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado. Dirigindo-se aos dois   amigos, Joca manifestou desejo de sentar-se à sua mesa, no que foi atendido. Passou então a pedir rodadas de conhaque, sendo servido pelo empregado do botequim, Joaquim Nunes. Depois de várias rodadas, Joca declarou que pagaria toda a despesa. Ananias e Pedro protestaram, alegando que eles já estavam na mesa antes. Joca, entretanto, insistiu,  seguindo-se uma disputa entre os três homens, que terminou com a intervenção do referido empregado, que aceitou a nota que Joca lhe estendia. No momento em que trouxe o troco, o garçom recebeu uma boa gorjeta, pelo que ficou contentíssimo, o mesmo acontecendo aos três amigos que se retiraram do bar alegremente, cantarolando sambas. Reina a maior paz no subúrbio do Encantado, e a noite foi bastante fresca, tendo  dona Maria, sogra do comerciário Adalberto Ferreira, residente à rua Benedito, 14,  senhora que sempre foi muito friorenta, chegado a puxar o cobertor, tendo depois sonhado que seu netinho lhe oferecia um pedaço de goiabada".

E meu amigo:

- Se um repórter redigir essas duas notas e levá-las a um secretário de redação, será chamado de louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão  banal  de  que ninguém se lembra: a vida...

Fonte:
Rubem Braga. A Borboleta Amarela. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956.

Juana de Ibarbourou (Poemas Recolhidos)


A PROMESSA

... E todo o ouro do mundo parecia
diluído na tarde luminosa.
Apenas um crepúsculo de rosa
a alta copa das árvores tingia.

Súbito amor, a minha mão unia
à tua mão morena, carinhosa...
Éramos Booz e Ruth ante a formosa
terra que aos nossos olhos se estendia.

- Me amarás? perguntaste. Lenta e grave
veio-me aos lábios a promessa suave
da amante moabita, tão querida;

e foi como um “Amém!”  que neste instante
se ouviu, num toque de oração, vibrante
bater o sino da pequena ermida!

(Tradução de J. G. de Araujo Jorge)
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AMEMO-NOS

Sob o róseo dossel deste loureiro em flor,
amemo-nos. O velho e eterno lampadário
da luz reacendeu seu clarão milenário
e este recanto de erva é um ninho, em seu calor.

Amemo-nos. Talvez haja um fauno escondido
junto do tronco do loureiro, solitário,
a chorar, sem amor, o seu triste fadário,
olhando nosso amor no prado adormecido.

Amemo-nos. A noite, encantada, harmoniosa,
tem não sei que de uma doçura misteriosa...
Somos deuses e estamos sós na paz dos campos.

E, brilhando, por entre os meus e os teus cabelos,
em trêmulos clarões, fugazes, a acendê-los,
joias verdeluzindo, amam-se os pirilampos.

(Tradução de  Mello Nóbrega)
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MONJA NOITE

Monja Noite é gentil, misteriosa, calada,
e traz, no hábito negro, um fulgente rosário.
Monja Noite padece uma pena ignorada
sem saber a razão de seu próprio calvário

Faz o milagre bom de suavizar as dores
com o gesto divinal de pôr as mãos em cruz.
Monja Noite compreende os mórbidos amores,
as misérias da vida e o sofrer de Jesus.

Sempre a espero a sorrir, pois acalma esta pena
de um amor infernal com a piedade serena
que a minha alma compreende, alma enferma e infeliz.

Monja Noite suaviza a aflição do calvário,
com seu hábito negro e o seu lindo rosário,
Monja Noite é uma irmã de Francisco de Assis.

(Tradução de Othon Costa)
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REBELDE

Caronte, quando eu for em teu barco sombrio,
que escândalo eu farei nessa triste romagem!
Temerosas, talvez, do teu olhar tão frio,
outras sombras irão a rezar, como a aragem.

Mas eu irei cantando, alegre pelo rio
e em teu barco porei meu perfume selvagem.
A brilhar me verás nesse arroio sombrio,
como lanterna azul que ilumina a viagem.

Por mais que faças tu, por mais gestos de horror
desses dois olhos teus tão destros no terror,
Caronte, em tua barca, eu serei um escândalo.

E, já farta de sombra e cansada de frio,
quando fores deixar-me à outra margem do rio,
tu me farás descer, qual conquista de vândalo.

(Tradução de Rosália Sandoval)
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VIDA SIMPLES

Iremos pelos campos, mão na mão,
por entre os bosques e os pradais de trigos,
junto aos rebanhos de candura antigos
por sobre a verde maciez do chão.

Comeremos o doce fruto são
das rústicas videiras, os bons figos
que coroam as moitas. Como amigos
partiremos a ceia, o leite, o pão.

E nas mágicas noites estreladas
sob a calma do azul, entrelaçadas
as mãos, lábios em frêmito, ardorosos,

renovaremos nosso morto idílio
que será como um verso de Virgílio,
vivido em frente aos astros luminosos.

(Tradução de Murilo Araújo)
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Juana de Ibarborou
De solteira seu nome era Juana Fernández Morales, porém é mais conhecida como Juana de Ibarbourou, sobrenome de seu marido, o capitão Lucas Ibarbourou,com quem se casou quando tinha vinte anos. Nasceu em Melo, Cerro Largo, Uruguai, a 8 de março de 1895 e faleceu em Montevidéu, em 14 de julho de 1979.

Poesia de notável expressão lírica, muitas vezes mística, luminosa e emotiva Sua poesia enriqueceu a literatura de América marcando-a com sua forte e delicada personalidade plena de amor. Talvez por esta razão o público de língua espanhola tenha lido sua poesia desde sempre com tanto entusiasmo.

Poetisa de grande expressão lírica, seus primeiros livros são de versos exaltados, sensoriais, apaixonados, e em linguagem clássica e pura. Nos últimos anos sua poesia ganhou certa expressão mística e até religiosa. Sua poesia conquistou tão rapidamente a atenção do público em geral e dos entendidos, que em 10 de agosto de 1929, no “Salón de los Pasos Perdidos” do Palácio Legislativo, um grupo de artistas e diplomáticos de diversos países encabeçados pelo célebre escritor Alfonso Reyes, lhe outorgou o título de “Juana de América”.

Outras condecorações:
– Orden Universal del Mérito Humano (em Genebra, 1931),
– Medalla de Oro de Francisco Pizarro (Perú 1935),
– Orden del Cóndor de los Andes (Bolivia, 1937)
– Orden del Sol (Perú, 1938),
– Ordem do Cruzeiro do Sul (Brasil, 1945)
– Primeiro prêmio del Ministerio de Instrucción Pública del Uruguay (medalha de ouro em 1945),
– Cruz de Comendador do Grande Prêmio Humanitário (Bélgica, 1946) etc.

Obras:
“Las lenguas de diamante”, “El cantaro fresco”, “Raiz salveja”, “La rosa de los ventos”, “Estampas de la Bíblia”, e “Su Mejores Poemas”, (coletânea).

Fonte:
J G de Araujo Jorge, Os Mais Belos Sonetos Que O Amor Inspirou. Poesia Universal - Européia e Americana  – vol. III. 1a ed, Rio de Janeiro, 1966.

Raul Pompéia (A Cruz da Matriz)


A igreja Matriz de *** está distante uns cinquenta passos do povoado...

É um edifício pobre de arquitetura, mas rico dessas arborizações cor de limo, que a humanidade pinta pelas paredes velhas, como que para suavizar o colorido deslumbrante de uma caiação primitiva. Tem por campanário uma espécie de sótão. Este sótão sobressai no vértice do ângulo de duas cornijas oblíquas, que sobem a unir-se aos pés de uma cruz de ferro escalavrado por uma oxidação antiga. À janela anterior dessa torre está suspensa uma sineta, que atira badaladas alegres aos ecos do sertão quando soa a hora da missa.

Galga três pedras amontoadas, como degraus, quem pretende ter ingresso no santuário. Vê-se então, em uma nave modestíssima, que os esforços dos fiéis conseguiram assoalhar sofrivelmente.

O altar-mor levanta-se fronteiro à entrada. Em nada destoa do aspecto geral da matriz. A cada lado desse altar existe uma portinha. A da direita dá para. um terreiro; a do lado oposto comunica com a sacristia. Triste sacristia que é! Calçada de ladrilhos desnivelados, tem por mobília dois bancos, a que o tempo tirou quase todo o verniz, e um armário, sobre o qual se vê uma imagem poeirenta da Virgem e dois castiçais azinhavrados, de cujas bordas pendem longas estalactites de cera amarela.

A sacristia tem uma janela e uma porta, que se abrem para um terreno plantado de girassóis.

Entre a janela e a porta está um dos bancos de que falei. É aqui que o velho vigário C... passava as suas manhãs e tardes. Manhãs e tardes de tranquila meditação, inspirada menos pelos segredos da ciência, que pelos mistérios da fé. Nesse lugar era visto, os olhos no chão e o pensamento no céu, deixando cair dos joelhos as mãos abandonadas, ou mergulhando os dedos por meio das franjas argentinas, que alguns dissabores e alguma idade lhe haviam feito brotar da fronte.

Ao lado do pároco aparecia às vezes o sacristão. Brício chamava-se ele. Era um rapazola travesso. Os seus treze anos nutriam nele pronunciada disposição para a brejeirada, que, conquanto inofensiva, desgostava bastante o bom do vigário. Diziam uns que o sacristão era afilhado do respeitável sacerdote; outros, porém, os maldizentes, em maior número certamente e, porventura, menos longe do verdadeiro, afirmavam que os afixos do qualificativo eram mero disfarce de um velho pecadinho do vigário.

Milhado, ou não, o certo é que Brício era paternalmente amado pelo padre. Este, não obstante o seu amor, via-se frequentemente forçado a apertar-lhe a orelha, quando o pequeno por qualquer forma fazia conhecer a decidida preferência que dava a um alçapão sobre a campainha. De fato, o menino gostava mais de espreitar, no mato, qualquer volátil do que responder ao Dominus vobiscum, no altar. Era mais passarinheiro do que sacristão. Isto causava certo desgosto ao pároco e o fazia murmurar:

- O brejeiro é levado.

Estes termos traduziam a irritação do sacerdote, pequena trovoada que, descarregando-se às vezes pelas orelhas do brejeiro, se desfazia logo no mais bonançoso esquecimento.

As vezes que as travessuras de Brício ficavam impunes, devia-as ele a um refúgio que possuía, inacessível às punições, pelo menos às do vigário. O refúgio era a torre, ou antes, o sótão da Matriz. Com efeito, o padre C... não era muito idoso, mas... sofria de um reumatismo, que não consentia que ele, na torre, ouvisse de mais perto o repicar do bronze. Uma vez, pois, no campanário, tinha Brício as orelhas livres dos dedos do vigário.

Pela manhã, quando aparecia o padre na sacristia, se o sacristão era detido, passava este os mais desagradáveis instantes da sua existência. Além da missa, que ele ajudava com alguma paciência, outros tormentos lhe eram marcados. Ora, eram dois pombinhos que chegavam a ligar-se perante Deus, ora, um pequeno candidato a um lugar na arca da salvação... E Brício era forçado a postar-se estupidamente ao lado dos pombinhos e ao lado do candidato.

O sacristão vingava-se. Resmungava contra matrimônios e batismos, que tanto tempo lhe roubavam à caça de passarinhos. Se lhe metiam nas mãos alguma vela, partia-a em pedaços, que só o pavio não deixava cair. Estas vinganças eram as brejeiradas com que o vigário menos simpatizava. Eis porque, depois de qualquer ato religioso, uma cabecinha esperta mostrava-se nas janelas do campanário... Lá estava o sacristão esperando que o padre C... esquecesse o seu delito. E pouco esperava.

À tarde, já feitas as pazes com o vigário, Brício o deixava no banco da sacristia. Trocava então o ambiente de flores em decomposição, que tresandavam as melancolias da Matriz, pelo ar puro dos descampados, tão cheio desse perfume indefinível das últimas como das primeiras horas do dia. Ia para o campo armar esparrelas aos pássaros ou rachar taquaras e fazer gaiolas para os íncolas miúdos das selvas.

Uma vez, era ao decair de um belo dia. As cambiantes roxo-negras do crepúsculo vinham ganhando o anilado celeste. As tintas de ouro do Ocaso expiravam afogadas em róseos vapores...

Nessa hora alguns campônios contentes seguiam pela estrada de.... Iam da povoação para a matriz. Havia entre eles duas mulheres, uma das quais carregava risonha uma criança nos braços. A criança ia batizar-se.

O préstito caminhava... De repente parou... Uma exclamação de raiva partira do meio dos silvados, que margeavam o caminho.

Os campônios olharam em redor, talvez assustados. Um menino lhes apareceu então, mergulhado até a cintura em montes de mato rasteiro.

- Ora! dizia ele irado. Espantaram o meu passarinho!

Os rústicos que, sem o saber, haviam afugentado uma avezinha, no momento em que se ia deixar prender pela armadilha do pequeno caçador, riram-se da exclamação e seguiram para a igreja.

Entretanto, o menino aproximou-se da sua armadilha. Estava intacta; porém o passarinho, prestes a cair, voara embora.

Franziu o cenho e pôs-se a olhar alternadamente para o seu alçapão vazio e para o grupo de camponeses, que seguia para a matriz.

Ah! uma boa pedrada!... murmurou ele, com os dentes cerrados.

- Mas não! disse, depois de refletir. Vão batizar o filhote. Não é assim?... Muito bem... Ficarão sem sacristão.

Brício, pois o caçador não era outro, tinha formado o seu plano. Na ocasião em que o batizado chegava à igreja, o sacristão entrava no povoado.

Encaminhou-se este para a casa onde moravam ele e o vigário. Não quis entrar. Assentou-se na soleira da porta e aí ficara alguns minutos, quando um seu amiguinho chegou correndo e gritou-lhe.

- Brício, fuja! O Sr. vigário está lá em casa a perguntar por você e provavelmente virá aqui, vá esconder-se... Ele está furioso... Diz que você o deixou sem sacristão...

Brício soltou uma gargalhada franca e ruidosa:

- Ah! disse ele. Não tiveram sacristão. Nada mais justo...

O amiguinho do sacristão arregalou os supercílios com um ar pasmado.

- Não me entende. Não é?... Eu te explico... Um passarinho, antes de recolher-se ao ninho, pousou no meu alçapão... lá no caminho. Estava a cair, quando uns tratantes apareceram, levando um pequeno para batizar-se. Espantaram-me o passarinho e riram-se de mim... Agora eu rio-me deles... Espantando o passarinho, espantaram o sacristão... Bem feito! Não acha?

- Bem feito! Bem feito... Mas o mau é que os tais do batizado brigaram com o Sr. vigário, por faltar o sacristão, e juraram que se haviam de mudar da freguesia para não voltar a uma igreja tão...

- Oh! oh! Que logro!

- Sim! mas o Sr. vigário está seriamente zangado por isso... com você... E fuja, Brício! Aí vem gente!

Brício sumia-se por um lado, quando por outro mostrou-se o padre C... voltando uma esquina.

Ao ver o amigo do sacristão, o sacerdote dirigiu-se a ele:

- Você viu o Brício?

- Não, senhor, respondeu o menino.

E se afastou do padre, que ficou mordendo o beiço, ante a mentira do pequeno.

- Este é outro, disse ele, a meia-voz. Pensa que eu não ouvi-lhes a conversa...

Tinha já Brício chegado à igreja e se acomodara na torre.

Dentro em pouco avistou, caminho da matriz, o vigário

Vinha devagar, por causa da sua moléstia. Brício teve então umas das suas lembranças... E com elas havia várias vezes apaziguado o sacerdote.

- Bom, disse consigo, ele me há de avistar... Se me mandar descer, eu direi que apanhei um reumatismo que não me deixa andar quase... Ótima razão!

É a mesma que ele tem para não subir. O reumatismo que não o deixa subir, porque não me impedirá de descer?... Mais tarde descerei sem receio...

No princípio de uma cólera, qualquer coisa que devera fazer rir, irrita mais ainda. No fim sucede o contrário: extingue-a de todo.

Parece que o sacristão sabia disto, que cuidou em preparar-se no campanário. Saltou pela janela da frente curvando-se para não esbarrar na sineta, e passava para cavalgar no ângulo das cornijas do frontispício da Matriz, onde seria facilmente visto, apesar da noite que entrava...

Então, debaixo da estrada, se fez ouvir um grito de terror.

Era o vigário C...

Sucedera uma coisa horrível.

O pobre sacristão escorregara para fora e, fiando-se demasiado na segurança da cruz de ferro, agarrara-se a ela. O ferro oxidado vergou, inclinando-se para a frente, e depois abaixando-se.

Brício, com as mãos pregadas na cruz com uma energia desesperada, pedia socorro... suspenso no ar.

A cruz se ia entortando lentamente. Se Brício fosse pesado, o seu suplício não duraria tanto.

O ferro começou a rachar-se.

O menino, aterrado, via como avançava a morte, e ouvia os gritos do pároco abaixo dele...

O mísero vigário estava fora de si. Tinha querido subir ao campanário. Não pudera. Colocara-se então por baixo de Brício e, com os braços abertos, esperava neles recebê-lo.

- Brício! Brício! gritava.

E o ferro da cruz, primeiro devagar... depois, rápido... partiu-se.

Daí a pouco estava no adro da Matriz de*** um pequeno cadáver... A cabecinha, descansada nas lajes da escada, pendia um pouco para trás, com os cabelos a nadar em sangue... O corpo estendia-se inerte sobre a terra, uma das mãos encostada aos olhos, a outra segurando-se a uma cruz de ferro... Era o sacristão Brício.

A porta da igreja estava aberta. A noite enchera de trevas o santuário... Apenas no fundo luzia o clarão baço da lâmpada, com essa expressão sepulcral e triste que se descobre no olhar do moribundo... E este clarão, flutuando naqueles negrumes, deixava ver no meio da nave uma sombra negra.

Dir-se-ia um espectro...

Mas o espectro falou:

- Malfadada criança!

E depois com entonação soturna.

- Eu pecara, meu Deus... E tu me puniste!

Estas vozes perderam-se pelos recantos do templo, e a luz da lâmpada tremulou como em soluços.

Fonte:
Biblioteca Virtual

terça-feira, 3 de março de 2020

Varal de Trovas n. 197


Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 1


UM CORAÇÃO EM TERNURA

Eu trago dentro do peito,
na Ventura ou Desventura,
sem nunca mudar de jeito:
— Um coração em ternura...

Um coração emotivo,
pueril, para muita gente;
mesmo assim, com ele vivo,
feliz, tranquilo e contente.

É um jardim com muitas flores,
de tanta ternura cheio,
que além de ter suas dores,
também sofre o mal alheio…

Vai assim, meu coração,
sentindo dores e provas,
que por um milagre então,
vão se transformando em trovas.

Bendigo pois, satisfeito,
este dom, esta ventura,
de trazer sempre no peito:
— Um coração em ternura…
* * *
 
CANTIGAS COM PROVÉRBIOS

"Recua quem não avança…"
Eu fui avançar, recuei...
Tu me tiraste a esperança
quando um beijo te roubei...

"O cardo que há de picar,
logo nasce com espinhos..."
— Teu amor me fez penar,
e nasceu com mil carinhos...

"Pode se atrever a tudo,
quem tudo sabe sofrer…"
— Não sei sofrer e contudo
me atrevi a te querer…

"Não dá erva o chão pisado..."
Mas no amor não é assim...
Quanto mais sou desprezado,
tu mais versos tens de mim...

"Quem espera sempre alcança.
O que se alcança não sei...
Pois eu de tanto esperar,
só desespero alcancei...

Teu amor é leve, leve...
Longe estás!... — Vais me olvidar
"Barco pequeno não deve
navegar em alto mar..."
* * *

A UM POVO

(Povos felizes e cheios de paz, são arrastados no turbilhão da Guerra. O poeta, neste
verso, tenta traduzir, o que vai n'alma de um homem livre e poeta, ao ver a Guerra se aproximar de suas fronteiras.)


Também terás a tua fase incalma,
cheia de dor e de melancolia…
Para ganhares da vitória a palma,
terás que te bater com energia!

E perderás, esta invejada calma,
que sempre tu tiveste noite e dia...
Por isso deves preparar tu'alma
pois grande Temporal já se anuncia...

E sofrerás por veres tua terra,
cheia de Paz e tão feliz outrora,
lançada assim no turbilhão da Guerra!

Verás Escravidão em cada canto!
— E é por ser livre que já sofro agora…
E é por ser poeta que prevejo tanto!…
* * *

SUPONHAMOS

Suponhamos...
(Vamos apenas supor…)
— que sós assim como nós dois estamos,
estivesse também com meu amor…

Vamos imaginar ainda,
que ela fosse assim como você:
encantadora e linda… muito linda…

Com muito receio...
Trêmulo de emoção...   
Havia de encontrar um meio
para fazer a "minha declaração”…

Suponhamos que estivesse também
a noite fria… muito fria…
Eu pediria a ela então,
para aquecer na sua mão esguia,
a emotiva algidez de minha mão…

E assim tão perto dela eu ficaria,
que oscilar do meu coração,
ela na certa notaria
quando eu pedisse a "sua mão".
…………………………………………

Suponhamos agora
que eu deixasse de supor...
……………………………………….

Mas como você está tão nervosa e corada!
Olhe bem para mim
e não se zangue, por favor!…
…………………………………

— O que?! Não ficou mesmo zangada!?
Você é sublime, meu amor...    '
* * *

ROSAS...

Tão encantadoras rosas,
nunca mais observei,
como aquelas tão mimosas,
que nasceram no teu rosto
quando um beijo te roubei.
* * *

SANTA

Pálida e triste, suavemente bela,
de uma beleza fria, espiritual,
tal como num Crepúsculo, aquela
imagem de Maria num vitral...

… Pálida e triste, o seu olhar revela
candidez e pureza sem igual!
E um olhar ao fitar o rosto dela,
parece ver as santas de um Missal…

Por que trazes assim tristeza tanta,
num fundo misticismo que é de santa,
sem pressentir meu grande amor sequer?!

Tu não vês que a mính'alma te deseja?
— Se és santa, pois que fiques numa igreja.
Se não fores, que sejas mais mulher!...

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura. 1a. ed. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1947.

Aparecido Raimundo de Souza (Como Penso, não Sou)


Você me pergunta, minha amiga, como eu sou:

- Como quer realmente que eu seja? Ou melhor; como gostaria que eu fosse? Para que me não tome como um aventureiro, ou descortês, tentarei, em poucas linhas, responder traçando um tiquinho do meu perfil. Para início de conversa, devo dizer que sou viciado em computador. Embora não disponha de uma máquina em casa, para uso pessoal, quando vejo uma dando sopa em lojinhas especializadas, logo me vem a vontade incontida de sentar numa cadeira e colar os olhos de frente pra telinha. Nem que seja para digitar no braço da pessoa que estiver ao lado, o meu nome, endereço de e-mail e telefone para futuros contatos. Sou emotivo, pertinaz, obsessivo, teimoso, não como uma mula sem cabeça, mas como um garanhão selvagem e indomado. Costumo enfatizar que possuo um magnetismo animalesco, vez que, dependendo de como acordo, costumo dar coices em mim mesmo, ou relinchar a torto e a direito. Às vezes, no café da manhã, mando pra dentro uma boa quantidade de alfafa, noutras, me contento com um chumaço de capim fresquinho. Chorão? Você quer saber se sou chorão? Olha minha linda, não muito! Se não me falha a memória, chorei uma única vez. Havia batido com os burros n'água por conta de uma empreitada que não resultou no esperado. Em face desse deslize, quase me vi enjaulado numa delegacia de periferia, acusado por algumas senhoras donas de boutiques de roupas femininas, como ladrão de calcinhas. Faltou bem pouco para que eu acabasse no xilindró, e, pior, nos braços de um negrão duas vezes mais alto que o Sérgio Reis.

Amo a vida. De paixão! Adoro viajar para baixo e para cima. Já rodei o mundo todo nas asas dos meus sonhos junto com minha imaginação. Sou um pouco menino, e, como todo garoto sapeca, corro atrás de pipas, jogo dominó, dama, xadrez, paciência, chuto bolas nas vidraças dos vizinhos e mexo com as meninas. Também tenho mania de levantar as saias das moças que encontro pelas ruas só pra ver a cara de zanga que elas costumam fazer a admoestação desse meu gesto. Espio as minhas irmãs no banheiro lá de casa pelo buraco da fechadura, quando vão tomar banho, ou trocar de roupas, e roubo balas dos velhinhos nos pontos de ônibus. Como homem nunca me achei no caminho almejado. Naquele trilhar que verdadeiramente tracei quando ainda fazia planos e acreditava em Papai Noel. Tampouco me flagrei no lugar em que a tal da sorte me disse ter reservado assento numa cadeira cativa. Sou tolo, fugaz despropositado e desagradável. Às vezes, suponho saber tudo, de repente descubro que não enxergo um palmo adiante do nariz. Faço parte de uma família que não criou raízes, nem correu atrás de algo sólido. Daí, ser assim, destrambelhado, adoidado, tantã. Sem base, sem porto seguro, com um parafuso a menos.

No meu mundinho, amiga, meus pares vivem cada um por si, enclausurados dentro de quatro paredes escuras. Cada consanguíneo, isolado na sua redoma intransponível, procurando ser mais introspectivo que o outro. Todos, sem exceção, aparentam ser desprovidos das ideias (pelo fato de estarem presos a pesadelos mórbidos), perdidos como um bando de cegos em meio de um tiroteio, à cata de uma porta aberta que jamais será encontrada. Não sou feliz, também não sou triste. Não carrego mágoas, nem ódios ou rancores. Apenas vegeto num vazio muito grande que me mata, aos poucos e me definha a alma. Se me casei? Sim, amiga. Duas vezes. Tive uma infinidade de mulheres (amantes, nem se fala) que, por sua vez, me valeu uma penca de filhos espalhados pelos quatro cantos. Não fui um bom esposo, tampouco pai exemplar. E quem não é pai exemplar digno de ser copiado, jamais será considerado um modelo a ser seguido como padrão de comportamento ou de perfeição. Talvez seja por Isso que, nas vezes, em que visito mamãe, perceba que ela deixa transparecer certa contrariedade, como se minha presença a incomodasse de alguma forma. Noto claramente que fica distante, amuada, aborrecida, enfastiada e alheia. Se eu saberia o motivo? Sustento a teoria de que ela tem preferência por outro irmão mais novo. Não que ele seja um galã ou mais bem apessoado que eu. Contudo, quero crer, em vista de ter tido mais sorte, e, em razão desses ares benfazejos, logrado posição financeiramente mais afortunada. Dessa forma, nascido com a “bunda pra lua”, esse meu mano conseguiu dar a ela uma vida mais abastada e sem os transtornos e as correrias de um simples assalariado.

Apesar dos pesares, queria encontrar a felicidade que busquei a vida toda. Desfrutar dessa paz que as pessoas falam e que em nenhum momento se dignou sorrir para amenizar a minha angustia. Adoraria ter um porto amigo, um ombro onde pudesse deitar e falar como foi o meu dia. Sonho, ainda agora, com uma casa, mesmo pobre, uma mulher me esperando, uma criança sorrindo, um quadro na parede, um fogão velho na cozinha. Algumas panelas sobre ele, um prato de comida requentado, servido em cima de uma mesa sem toalha. Um bocado de arroz com um ovo frito não faria a menor importância. Queria, ainda, poder sentar num sofá caindo aos pedaços, ver um pouco de televisão em preto e branco e, depois, dessa via crucis, me dar ao luxo de dividir as alegrias e as tristezas com minha cara metade. Almejaria mais, nesta utópica insensatez; deitar a cabeça num travesseiro sem fronha e saber que dia seguinte, depois que ultrapassasse a porta da rua, nenhuma perspectiva de melhora estaria me esperando na esquina ou me sorrindo com ares de boas vindas. Mas assim mesmo, confesso, do fundo da alma, eu sairia feliz. Sairia de cabeça erguida, alegre, saltitante. Realizado e próspero. Seguiria para o batente como um sortudo afortunado e venturoso, que ganhou na loteria, porque atrás de mim... Atrás de mim havia deixado um lar, uma família, um amor de verdade, um sonho que se renovaria a cada volta no começo da noite.

Você me pergunta minha amiga, como sou. Sou isso, um trapo, um Zé Ninguém. Nem pobre, nem rico. Completamente desprovido do necessário para sobreviver condignamente. Vazio, oco, desiludido. Um idiota em busca de mim, um imbecil planejando ver a tal da esperança (mesmo que por alguns poucos minutos) diante de meus olhos. Sou isso tudo que acabei de dizer, talvez um pouco mais. No fundo, minha querida, um monte de lixo.

Resumindo minha triste existência, não sou nada. Nunca fui. Jamais serei. Na verdade, não existi. Não fiz história. Apenas vegetei uma existência medíocre e barata, me consumi em dissabores, em inconsequências, com gente a toda hora me virando o rosto, em carinhos não recebidos, em mãos acenando adeus. Minha aparência? Acho que nesta altura do campeonato, esse particular é o que menos importa. Não sou nenhuma estrela de televisão. Não tenho o corpo sarado, não trago piercing ou tatuagem que se possa dizer "nossa, que massa". De estatura mediana, não sou nem alto, nem baixo, nem magro, nem gordo. A cabeça sempre vazia, o bolso sem um tostão pra fazer um cego cantar... Na carteira um monte de contas vencidas. Não se iluda se lhe falar que me pareço um pouco com o Tom Cruise. Claro que não me refiro ao famoso ator e produtor americano, e sim ao Tom Cruz Credo que você encontra em qualquer sinaleira espalhada aí pelas ruas. Se fosse me comparar com alguém, diria que me sinto como um daqueles personagens que encantavam os reis e os nascidos em berços de ouro dos tempos de outrora. Lembra dessas figuras? Consegue materializá-las na mente? Pois então: uma miscigenação barata, aperfeiçoada, dos bufões de antigamente. Resumindo amiga, devo terminar num arrulho estrepitoso lhe confessando que me considero uma cópia fiel de Daniel melhorado, circulando por aí. e, a cada novo porvir, tentando não ser arremessado, ou jogado, como alimento, na cova dos leões para servir de tira gosto a jantares exóticos. Acredite minha amiga, adoraria esse negócio de ser devorado por inteiro. Dos pés a cabeça. Não pelos felídeos predadores de caudas longas e jubas felpudas, evidentemente... Ao contrário, me sentiria plenamente realizado se me visse acolhido pelos resguardos bem agasalhadores da vida plena.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo/SP: Sucesso, 2012.