segunda-feira, 2 de março de 2020

Monteiro Lobato (Noite de São João)


— A fogueira!

Confluem todos para ela. A palhaça de milho soto-posta à lenha miúda que lhe serve de intestinos vê-se ateada em fogo pelos quatro lados. O fogo pega e é a princípio indecisa crepitação acompanhada de leve e discreto fumegar. Depois, estrepitante, estala e de dentro da prisão de toros, que quatro espeques de jiçara mantêm em forma, escorados nos encruzes, rola em bojos um fumo espesso. Panos de labareda esgarçam-se, tentando seguir a fumaça faulhenta em seu vertiginoso arranco para o alto. Vermelho clarão ilumina o terreiro e chapeia os vultos de debruns de cobre polido. Barulham gritos, palmear de crianças, apupos e vivas, aos quais os bambus do recheio casam os seus estouros de bomba. A faiscalha ascendente galga o céu recamado de estrelas, qual invertido chuveiro.

O frio fino da noite atrai para a fogueira os fandanguistas, de mãos espichadas para o calor irradiante. Mãos e pés. Um dilúvio de pés entanguidos — pés de marmanjões, pés calçados e pés no chão, pezinhos de crianças, pés brancos, pés pretos e pés mulatos — das criadinhas e molecotes crias da casa — em alegre confraternizar apinham-se junto a ela nas mil atitudes do “aquentar fogo”.

As crianças furtam-lhe os tições a jeito, e guiadas pelas mais peraltas dividem-se em grupos para queimar traques da China ou bichas de rabear. O ar estreleja ao estalo daqueles, enquanto estas ziguezagueiam pelo chão, chiando faíscas, como buscapezinhos de Liliput. À porta da casa escorva-se o primeiro pistolão de cor.

— Caminho, gente! “Evai” fogo!

Abre-se uma ala por onde, num repuxo de faíscas, jorra a primeira bomba dum verde de doer nos olhos. O esverdeamento da cena atrai todos os olhares, seguido de espontâneo e sincero “Bonito!”. Vem outra mais forte, vermelha, e outra azul, e outra branca... A cada blaf há um volver geral de caras, e ao último um “Que pena! Outro! Outro!”. E os pistolões se sucedem, com rebuliços na molecada ao fim de cada um para a disputa do canudo.

Aqui o quadro perde a unidade. De cada lado cenazinhas pitorescas dividem a atenção.

— Mamãe, Zequinha queimou eu!

Um menino aparece berrando, a sacudir um dedo enegrecido pelo chamusco da bicha que o irmão, “de propósito”, lhe atacara em cima. Acodem mulheres, que rodeiam a criança com exclamações de piedade. Uma velhota lembra o querosene como o melhor porrete para queimadura. Surge a lamparina de petróleo às mãos duma criadinha, e conserta-se o dedo ao Jojoca, que, mal sarado, ainda fungando e soluçando, lá se volta às bichas, seguido de longe pelos olhares ressabiados do Zequinha, ao qual a mãe, estalando os dedos, ameaçou com um “amanhã você me paga!”.

Num grupo de taludotes conspira-se visivelmente. Tudo ali são meias palavras e cochichos: buscapés... no meio do povo... vai ser uma pândega!…

Noutro, de fedelhinhos, o Zequinha se faz centro de minuciosa atenção, e no silêncio só quebrado por um ou outro soluço do Jojoca, desmancha pistolões à cata das bombas, distribuindo a pólvora pelos amigos.

Nisto, rebentam palmas no grupo dos moços.

— Bravo! Viva a sanfona!

Era o Quim da Venda que chegava, a espremer um velho dobrado na sanfona fanhosa. Rodeiam-no; “inspiram-no” com uma vez de caninha, e cada qual vai pedindo a música da sua predileção. Quim sorri perguntando: “Mas afinal que é que meceis querem?”.

Teve maioria uma Não te esqueças de mim — “muito dançante”, na opinião de Sinhazinha Lopes —, a cujos primeiros acordes os pares se uniram de peito e iniciaram o giro valsado em torno à fogueira. Aos ouvidos das moças ressoam as eternas amabilidades do galanteio.

Em certo magote comenta-se:

— Parzinho jeitoso, a Miloca e o Lulu, não?

— E gostam-se desde meninos; ouvi dizer que ele já a pediu.

— Histórias. Quem foi pedida, um dia destes, foi a Nenê. Mas parece que o sujeitinho levou tábua.

— Bem feito! Tenho birra àquele coisinha. Pensa que é gente... Não viu o que andou dizendo de mim? Como coisa que eu era capaz de dar confiança a um moleque daquela marca...

A sanfona gemia cadenciada, com o Quim deitado sobre ela, alheio ao mundo. Tocava bem, o ladrão, sobretudo quando lhe graduavam o estro com sábias doses de pinga. Aqueles sons ritmavam o movimento dos pares, enlanguecidos num misto de amor e bem-estar físico. Perto deles inutilmente espocavam as bichas e chiavam fogos; nem sequer lhes atraía os olhos o puf! balofo dos derradeiros pistolões.

Súbito, chiou ao longe um buscapé de limalha que, qual raio epiléptico, enveredou pelo meio do povo aos corcovos, criando o pânico e a debandada. Os dançarinos fugiram espavoridos, com as damas penduradas ao peito, e a meninada prorrompeu em atroadora grita — meio medo, meio contentamento. Os velhos protestaram igualmente, que era uma patifaria, que aquilo não se fazia.

No meio da desorganização geral só não largou o posto o Quim, sempre deitado na sanfona, alheio ao mundo, absorto nas sonoridades fanhosas que sua alma de artista bárbaro ia arrancando ao instrumento querido.

Cessado o pânico com o estouro final do buscapé, surgiu um tio Pedro, de porretinho em punho, para “ensinar” o malvado.

Quem foi? Quem não foi?

Não fora ninguém; ninguém vira.

Ferviam ainda o comentário e a indignação, quando apareceram duas criadas carregando bandejas com xícaras e bules.

— A gengibrada! “Evem” a gengibrada!

Foi água na fervura. Todos se esqueceram do buscapé para só se lembrarem da garganta. Era a vez de consertar os gorgomilos e matar no ovo a possível constipação. Por minutos um soprar de xícaras e um chuchurrear com estalos de língua dominaram todos os barulhos.

— Está supimpa!

— Isto regenera o fígado.

— Corrobora, pois não.

— Mais uma xícara, dona Lulu?

— Ardidinha, mas boa que dói!

— Está d’apetite, como diz o Eça.

Este comentário saiu do literatelho da roda, Júlio da Silva de nome, Julius d’Altamira no pseudônimo com que desovava sonetos semanais nas folhas da terra. A Candoquinha, de há muito pelo beiço, encantou-se com a frase.

— É da pele, este seu Júlio!

Bem gengibrados, dispersaram-se de novo.

O Quim anunciou quadrilha, que foi organizada num ápice. Quem a marcava era o Júlio. Ah, o Júlio tinha tanta graça para marcar…

— “En avant turco I” — “Grande chaine!” — “Tour, à pas de ‘porca’!”

Gargalhadas, quiás, quiás, quiás. A Candoca fundia-se de gosto.

— Este seu Júlio tem cada uma!...

Certa ex-musa do poeta não se conteve:

— Credo, Candoca! Você está escandalosa.

— Deixe. Isto é pra quem pode... — “Joujou d’enfant!” — “Grande confusion!” — “Tour!”

— Seu Júlio, outra vez “Joujou d’enfant”!

— Arre, Candoca!

Para lá da fogueira enchia-se um grande balão. A criançada rodeava-o, acotovelando-se, na ânsia de ver melhor. O Zequinha era quem punha a mecha e distribuía tabefes aos atrapalhadores.

O bojo multicor encheu-se dum fumo sujo.

— Está pronto, pode largar!

— Ainda não, bobo! Falta gás…

— Agora!

Sentindo-o com força, o “segurador” largou-o, e o balão hesitante subiu a prumo. Rompeu o berreiro.

— Viva o balão! Viva Santos Dumont!

O Júlio, que nesse momento estilizava o décimo “tour” com sua “vis-à-vis” a Candoca, aproveitou a ensancha para poetar.

— O amor, dona Candoca, é como o balão: quanto mais rápido sobe, mais rápido desaparece.

— Adorável pensamento para um cartão-postal! — suspirou ingenuamente a menina, envolvendo-o num olhar de mel.

Nisto a fogueira desmoronou, golfando para o céu escuro bulcões de fagulhas vivíssimas.

— Bonito! Parece o Vesúvio!

O Júlio incontinênti “cascou” para a Candoca.

— Sabe como Deus criou as estrelas? Mandou que os anjos cortassem grandes florestas e armassem enorme fogueira da altura do Himalaia. Acendeua e, quando tudo estava em brasa, despegou um pedaço do céu e arremessou-o contra ela. Ergueu-se então um repuxo imenso de faíscas, que foram subindo, foram subindo, até se grudarem na abóbada negra do firmamento…

— Lindo! Há de escrever isso no meu álbum, esse lindíssimo pensamento, sim? O que é ter alma de poeta…

E Candoca lambuzou-o de um novo olhar de mel, onde não se sabia o que mais babava, se o amor, se a admiração pelo esteta…

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

Contos e Lendas do Mundo (Nação Taulipang: Konewó e a Onça)


Konewó é um índio que parecia ter nascido para disputar com as onças. Certo dia, ele estava sentado, encostado a uma árvore, quando uma onça chegou e perguntou:

– Por que está aí sentado, a escorar esta árvore?

– Para que ela não caia – respondeu Konewó, secamente. – Todas as árvores estão por cair. Por que não faz o mesmo que eu com aquela outra árvore ali?

A onça viu uma árvore que parecia prestes a ruir e achou que seria uma boa distração ficar escorando-a, pois não tinha nada melhor para fazer. Depois de encostar-se ao tronco, a onça fechou os olhos, sentindo-se vagamente virtuosa.

“De vez em quando é bom ser útil”, pensou, vaidosa da sua virtude. Mas a virtude logo transformou-se em sono, e, quando a onça começou a roncar, Konewó ergueu-se e, ligeirinho, amarrou-a ao tronco com cordas trançadas de cipó.

Konewó desapareceu, a reprimir o riso, e a onça só acordou algumas horas depois, completamente imobilizada.

Os dias se passaram e ela já estava quase morta de fome quando um macaco surgiu.

– O que faz aí, toda amarrada à árvore?

– Fui amarrada, não está vendo? – rugiu a fera. – Vamos, solte-me já!

– Ah, isso eu não faço, não! Se soltá-la, você me come!

– Não comerei, dou-lhe minha palavra!

O macaco não foi muito atrás da onça, e ela precisou insistir várias vezes para que ele finalmente se decidisse a arriscar o pelo. Com toda a cautela, ele desamarrou a onça, e só por isso escapou vivo. Atento, assim que viu a pata peluda eriçar as unhas na sua direção, deu um pulo para longe. O macaco desapareceu dentro da mata, enquanto a onça ficou maquinando a sua vingança contra o índio que a aprisionara.

Depois de andar muito, farejando o rastro de Konewó, ela finalmente encontrou o seu desafeto, desta vez escorado numa rocha.

– Ah! Aí está você! – disse ela, pulando à frente do índio. – Desta vez você me paga!

Konewó olhou serenamente para a onça.

– O que quer? – disse ele, friamente.

– Vingança!

Ao observar, porém, a calma do índio, a onça não pôde deixar de perguntar-lhe:

– Ei! O que faz escorado aí nesse pedregulho?

– Estou impedindo que ele caia. Todos os rochedos estão por cair.

Konewó, então, olhou para o lado e apontou outro rochedo dez vezes maior.

– Se você fosse uma onça realmente útil, faria como eu, impedindo que aquele rochedo caia.

Uma espécie de nuvem estúpida desceu sobre a mente da onça, obrigando-a ir tomar o seu lugar, mas assim que ela o fez, o índio ergueu-se.

– Espere aí, sabichão, onde pensa que vai? – gritou ela.

– Tive uma excelente ideia para poupar-me trabalho. Vou procurar um tronco para fazer uma escora e assim livrar-me de ficar o resto da vida escorando a minha pedra.

A onça sentiu o pedregulho chacoalhar às suas costas e deu um grito:

–Traga uma escora para mim também!

Konewó sumiu e nunca mais apareceu com escora alguma. Quanto à onça, das duas uma: ou está lá até hoje, escorando o pedregulho, ou terminou sepultada viva pelo desabamento.

Fonte:
A. S. Franchini. As 100 melhores lendas do folclore brasileiro.

domingo, 1 de março de 2020

Varal de Trovas n. 195


Rachel de Queiroz (Caramuru)

    

É um homem que gosta de conversar, aquele. Sempre que tem oportunidade defende a teoria de que existem homens em quase todos os planetas e seus satélites, homens assim como nós, diferentes talvez na estatura e na cor da pele, mas essencialmente homens — nem humanóides ele concede.

Na Lua vivem — ou pelo menos andam — homens; em Vênus vivem homens, de evolução moral superior à nossa; em Marte vivem homens — brutos, cruéis, porque Marte é um mundo de provação. Em Júpiter os homens são de essência tão alta que a existência deles suscitou em nós da Terra a crença nos anjos e nos deuses antropomórficos. E em Saturno nascem os altíssimos espíritos; tanto que os anéis de Saturno não são absolutamente o que pretendem os físicos — são na verdade a auréola coletiva daqueles seres que já alcançaram a perfeição ...

A gente tenta objetar:

“— Mas meu amigo, e as sondas russas que registraram temperaturas de 400 graus em Vênus que vida seria possível lá?” (o homem abana a cabeça com um sorriso superior) ... “e as sondas americanas que alcançaram Marte ... (ele mantém o seu sorriso de esfinge sabedora) ... e afinal — explodi —, os quatro americanos que pisaram no solo da Lua e só descobriram lá desolação total?

Ele, com a mão erguida, pacientemente deixou que eu me acalmasse:

— Aí é que está. Tudo faz parte de uma conspiração internacional. Farsa posta em cena pelas duas superpotências que fingem desacordo para fins de domínio. No caso se entendem muito bem e combinaram essa comédia monstruosa …

— Mas com que fim? Com que fim?

— Com o fim de manter aterrorizados os povos satélites de ambos os lados. Deslumbrar pelo avanço técnico os povos inferiores, que tremem ante o poderio dos superdesenvolvidos, capazes de mandar cérebros eletrônicos a Vênus e homens de carne e osso à Lua ...

Não se lembra de Caramuru? Eles são Caramuru com o bacamarte fumegante, nós somos os índios ajoelhados, gritando pelo Filho do Trovão ...

Aí ele explica: a suspeita da impostura lhe foi sugerida logo ao lançamento do primeiro Sputnik: um jornalista declarou não acreditar na existência real do satélite soviético, explicando que o blip-blip identificador do novo corpo celeste poderia ser emitido fraudulentamente pelos russos. Aquilo a princípio o abatera; convencido que era da habitabilidade dos outros mundos, recebera alvoroçado aquele primeiro passo na direção dos nossos irmãos exteriores. Mas era plausível a teoria da mistificação: o clima natural dos soviéticos é a mentira. Então os satélites começaram a se reproduzir como coelhos — e ele concede que alguns — não todos foram talvez postos em órbita e giraram um pouco ao redor da Terra, mas em altura muitíssimo mais baixa do que eles pretendiam, e a velocidade muitíssimo menos espetacular — senão o atrito os derreteria imediatamente.

— Mas e a cadelinha Laika? E Gagarin?

— Bem, a Laika pode ter sido jogada para cima e jamais recuperada, por cair no mar ou na estepe. Ou foi recuperada e escondida.

Quanto ao Gagarin — olhe, com o Gagarin a princípio até voltei a sentir algumas esperanças. Mas havia sempre uma nota falsa: no caso, foi aquela estúpida mancada de dizer que Deus não existia, “já que não abalroara com Ele, lá em cima”. Um herói, um enviado da ciência, jamais soltaria uma piada tão grosseira. Estou certo de que se tratou de uma farsa completa: mandaram para o ar um foguete vazio, esperaram uns dias, depois apresentaram Gagarin “de volta”. Não viu como tudo foi feito em mistério?

— Mas e o Sheppard? No vôo dele não houve mistérios.

— Bem, depois do “triunfo” dos russos, chegava a vez dos americanos. E como do lado “democrático” as coisas têm que ser mais abertas, armaram a farsa com mais cuidados. Sheppard subiu no foguete, voltou de paraquedas, foi escondido e, na data marcada, jogaram-no dentro da cápsula de bordo de um avião supersônico, que voa a mais de 30 mil metros de altura, E desde então é assim que são feitas as ‘‘viagens espaciais”, Os “astronautas” sobem no foguete, descem ocultamente em paraquedas e, ao cabo, são “recuperados” espetacularmente no meio do oceano ou tundra russa.

— Mas e a Lua, meu senhor, todos testemunhamos, acompanhamos pela TV, vimos com os nossos próprios olhos o homem botar o pé no chão da Lua!

— Perdão, o que todos vimos foi uma imagem na televisão. Ver, atualmente, ninguém viu. E já pensou como é fácil de trucar imagem e som na TV? Fazer um filme num deserto qualquer, no Gobi ou lá mesmo na América, e depois “retransmitir” a imagem como tendo vindo da Lua?

— Mas se teria descoberto, detectado ...

— Quem? Se são eles mesmos — americanos e soviéticos — que controlam as transmissões por satélite — americanos para a banda ocidental, russos para a banda oriental? Eles ficando de combinação, quem pode desmentir a farsa? Aliás, tenho uma prova concreta de que pelo menos a última viagem à Lua foi filmada em terra americana. Numa das fotos ampliadas que eles distribuíram, descobri ao lado direito, sobre o que deveria ser o solo lunar, uma pequena e estranha forma oblonga: parecia um efeito de luz e sombra, mas me intrigou, insisti no exame, usando uma lente fortíssima — e imagine só! a tal forma oblonga era uma garrafa de coca-cola! Ora, não consta que os visitantes da Lua tenham levado consigo garrafas de coca-cola ...

E nesse gosto o homem ainda falou por horas. Mas o essencial do que disse está aí, Que é que vocês acham?

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Silmar Böhrer (Gamela de Versos n. 5)


Carlos Drummond de Andrade (Noiva de Pojuca)


Quando Caubi veio de Pojuca, trazia na cabeça a decisão de casar com Lucineia. Só não trouxe Lucineia consigo porque ele não é de avançar sinal. Primeiro, vencer no Rio de Janeiro. Depois, chamar a noiva e, unidos sacramentalmente, serem felizes para sempre.

Vencer no Rio, para quem sai do Recôncavo Baiano, onde o petróleo distribui riqueza global, mas que não chega para os pobres, até que é simples. Emprego de porteiro em edifício da Zona Norte constitui vitória digna de ser contada em carta aos que ficaram e não ousam. A fraternidade dos porteiros baianos, igual à dos cearenses ou paraibanos, não precisa de estatuto para funcionar: logo lhe arranjou o cargo que dá direito a uniforme, cadeira à porta, leitura descansada de jornal à tarde, além do mais gratificante de todos os direitos: o de “assistir”, radinho de pilha ao ouvido, aos gols do Flamengo no Maraca. Mas há vitória e vitória. Caubi verificou que o ordenado não dava para chamar Lucineia e casar. Ou antes, daria, a longo prazo. A solução era economizar cigarro, cafezinho, batida, jornal, até pilha de radinho. E dar duro na lavagem de carros, pela madrugada.

Enquanto isso, mulheres passavam diante dele, acenando-lhe com casamentos à mão. Rapaz empregado, boa-pinta, que morena o recusaria? Mesmo sem ser de papel passado. Ele, entretanto, resistia. Mulher carioca exige coisas demais, desde geladeira a TV em cores, é um tal de cabeleireiro, de festas, de não sei o quê, de dia e de noite, que pega mal, e acaba, Deus sabe lá como acaba. Caubi passava a mão na testa, alisava-a, determinado: “Comigo não, Serapião”.

Com setecentos cruzeiros na Caixa Econômica, achou que era hora de agir. Alugou um quarto em Queimados, por quarenta mensais, para o lar, e mandou à noiva o dinheiro da passagem de ônibus. Viesse em companhia de seu Severino, amigo da família e homem de respeito, que mora na Ilha do Governador e estava de passeio em Pojuca: seria padrinho do casório.

Lucineia chegou com todos os pertences de uma noiva que se preza. Para conhecer o Rio, antes de se instalar em casa de Padim Severino, passou três dias de favor no apartamento de um casal amigo de Caubi, no edifício em que este trabalha. Foram três dias de esplendor, de ver vitrina e letreiro luminoso, de andar a pé e conhecer todas as praças da Tijuca. O noivo arranjou folgas esparsas, para mostrar-lhe o que é a cidade grande, nos limites do bairro.

Na hora de ir para Governador, os táxis cobravam tanto que Caubi apelou para o motorista do dr. Norberto, baiano também e boa-praça. O rapaz topou levar a moça e seus badulaques no carro do patrão, que que tem? à base de camaradagem. Levou. Mas não entregou. A meio caminho, a caminhonete que vinha na contramão forçou-o a atirar contra o barranco o fusca do doutor. O estrago não foi grande, mas o conserto da lataria ficava exatamente em setecentos e cinquenta cruzeiros, e como o Caubi ia deixar o amigo pagar a despesa, além do vexame de ter de explicar ao dr. Norberto?

— Eu pago o prejuízo, taqui setecentas pratas, o resto dou no mês que vem, amigo velho.

Lucineia, que voltou de ônibus e machucada para o edifício, deixando no asfalto metade de seus trecos, empregou-se de copeira em casa do dr. Norberto.

O quarto em Queimados foi desalugado, e o casamento adiado para quando Caubi juntar, não setecentos, mas mil e quatrocentos cruzeiros, a julgar pela taxa de inflação. Desistir de casar com moça de Pojuca ele não desiste, nem que seja preciso, para tão longo amor, passar mais longa vida lavando carros de madrugada. Mas um temor começa a roê-lo, qual bicho em goiaba: se Lucineia, com o tempo, virar moça carioca, que exige tudo, e o casamento acabar, Deus sabe lá, daquele jeito?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Histoirnhas.

Laurindo Rabelo (Estragos de Amor)


I
Miseráveis insensatos,
Escravos da formosura,
Curvados a seu aceno,
Buscais vida no veneno
Que vos leva à sepultura!

II
Nos seus braços reclinados,
Beijando em ternos carinhos
Divinas faces mimosas,
Libais o néctar das rosas
Sem reparar nos espinhos!

III
“Oh! loucos, vede a verdade,
“Conhecei essa ilusão,
“Por que viveis seduzidos?”
Embalde contra os sentidos
Aflita brada a razão!...

IV
Nada alcança: tudo cede
Ao amoroso desmaio: —
Lumiando o par gentil,
Brilha amor como um fuzil,
Mas ao fuzil segue o raio.

V
Lá do monte da esperança
Cresta o fogo as verdes fraldas;
E de quanto possuía
Só conserva a fantasia
Secas, dispersas grinaldas.

VI
Suspeitas, tiranias serpes,
Nos peitos cravando os dentes,
Com seu sangue se alimentam;
Das chagas chamas rebentam,
Das chamas novas serpentes.

VII
Em furor e desespero
Começa o triste a chorar,
Vendo a estrada que seguiu;
Morde o laço em que caiu,
Mas não pode-o desatar!...

VIII
A razão, para vingar-se,
Mais aumenta o seu flagício,
Com semblante inexorável,
Muda, surda, imperturbável,
Assistindo ao sacrifício.

IX
Tudo é dor, tudo agonia,
E queixumes contra o fado;
Suspiros e pranto ardente,
Desespero no presente,
Saudades pelo passado!...

X
'Té que vai desabrochando,
Pelo pranto d’aflição
Regada continuamente,
Do desengano a semente
Nas cinzas do coração.

XI
Ergue a planta a fronte altiva,
Mas de tristonha aparência;
Folhas, tronco, é toda luto;
Tem mirrado raro fruto;
Esse fruto — é a experiência. —

XII
Das ruínas levantado,
Vê-se o espírito surgir;
Vem com passo fatigado,
Como guerreiro cansado,
À sua sombra dormir.

XIII
Presto acorda, e então, cedendo
Da fome aos cruéis assomos,
Alguns ramos segurando,
Vai colhendo, e vai tragando
Os amargos negros pomos.

XIV
Comeu, ergueu-se, é já outro!
Foi-se do rosto a meiguice!
Do tronco um ramo quebrado
Serve ao triste de cajado —
Eis a imagem da velhice.

XV
Está tudo terminado!
Está completa a sentença!
Aos fogos sucedem gelos,
Que anunciam nos cabelos
A idade da indiferença!

XVI
Lá vai o velho mesquinho,
Lá vai desacompanhado,
O caminho da existência,
Nutrido pela exp’riência,
Ao desengano arrimado.

XVII
Só seus pés tocam a terra,
Os olhos do céu na luz,
Entregue a culto profundo,
Lá vai, fugindo do mundo,
Cair nos braços da Cruz.

XVIII
Lá expira... mas dizei-lhe —
Amor! Vereis num transporte
Como seus olhos cintilam,
Como a um tempo se aniquilam
Todas as forças da morte!!...

XIX
É que amor inexorável
Nos seus planos iracundos,
Se os mortais torna cativos,
Nem minora o mal dos vivos,
Nem respeita os moribundos.

XX
Restaura as forças da vida,
Não nos consente morrer;
Porque lá nas sepulturas
Seus tormentos e torturas
Não se pode padecer.

XXI
Envenenados farpões
Nos manda em suspiros ternos;
Cinge aos olhos mago véu,
E pelos jardins do céu
Nos encaminha ao inferno.

XXII
Fugi, humanos!... fugi
De seu veneno traidor!
Sem culto, desamparados,
Sumam-se, ao tempo votados,
Altares, templos de Amor…

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Contos e Lendas do Mundo (França: O Pedaço de Galo)


Havia, uma vez, em La Chassoule, duas mulheres que eram irmãs - uma chamada Catherine e a outra, a mais jovem, Marie. O seu único bem consistia num galo que deviam compartilhar. A isso se resumia a herança deixada pelos finados pais, e cada uma ficou com metade.

- Comerei o meu pedaço - disse Catherine. - Servirá para cozinhar um excelente estufado, acompanhado por um copo de leite e, no final, castanhas assadas.

- Eu não - replicou Marie. - Guardarei o meu pedaço; que ele faça o que quiser com a ajuda de Deus e do bondoso São Martinho.

O conto prossegue revelando-nos que essa mulher, possuidora de bom coração, recebeu uma excelente recompensa pela sua louvável ação. Na verdade, o seu pedaço de galo soube mostrar-se grato, como a seguir veremos.

Um dia, quando esgaravatava, no quintal, em busca de uma toupeira, o pedaço de galo encontrou uma bolsa cheia de luíses de ouro, que se apressou a entregar à dona. Pelo caminho, porém, cruzou-se com um malvado, que lha arrancou do bico e guardou na algibeira.

- Devolve-me, ou temos luta - advertiu o pedaço de galo.

- Faz o que quiseres - retorquiu o ladrão. - Mas se pretendes lutar comigo, primeiro terás de me apanhar, pois sigo para casa, em Paris, e levo a bolsa.

- Pois bem, lutaremos em Paris.

O pedaço de galo foi comunicar a sua intenção à dona, que lhe perguntou:

- Para que queres ir, se não conseguirás nada?

- Quero a minha bolsa, e tê-la-ei - foi a resposta firme.

E partiu imediatamente. Pelo caminho, cruzou-se com o lobo, que lhe perguntou:

- Aonde vais, pedaço de galo?

- Aonde vou? Lutar em Paris. Acompanha-me, se queres.

- Que dizes, pobre diabo? Com as minhas quatro patas, chegaria muito antes que ti, pois andas ao pé-coxinho, por assim dizer.

- O primeiro a chegar espera o outro - desafiou o pedaço de galo.

O lobo tomou imediatamente a dianteira.

Um pouco mais tarde, o pedaço de galo cruzou-se com a raposa, a qual lhe fez a mesma pergunta e obteve idêntica resposta e convite.

- Não podes andar tão depressa como eu - lembrou a raposa. - Chegarei primeiro e esperarei por ti.

- Isso! O primeiro a chegar espera o outro.

A curta distância dali, o pedaço de galo encontrou um rio, que lhe perguntou:

- Aonde vais tão depressa, pedaço de galo?

- Lutar em Paris. Se queres vir, segue-me.

- Vou muito mais depressa do que tu.

- Como queiras. O primeiro a chegar espera o outro.

Mas, infelizmente, mais adiante, deparou-se uma montanha ao rio, que não pôde continuar.

- Vem para cima de mim, que eu levo-te - indicou o pedaço de galo.

E o rio assim fez.

Não tinham avançado muito, quando o pedaço de galo se cruzou com um enxame, cujas abelhas lhe perguntaram aonde ia.

- Lutar em Paris. Querem vir?

- Nem pensar! E muito longe. Desfalecíamos de cansaço pelo caminho.

- Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-as.

E as abelhas assim fizeram.

O infortunado pedaço de galo teve de continuar a caminhar durante muito tempo. Faltava pouco para chegarem a Paris, quando, numa sementeira à beira da estrada, avistou a raposa e o lobo deitados e a roncar profundamente.

- Que fazem aqui, se iam chegar muito antes de mim? - perguntou-lhes, depois de os acordar com algumas bicadas.

- Caímos extenuados. Não podemos dar nem mais um passo.

- Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-os.

Por fim, decorrido todo o dia, quando o Sol estava prestes a desaparecer no horizonte, chegaram a Paris. O pedaço de galo estava tão esgotado, que a sua única pata parecia dominada por um formigueiro. Dirigiu-se a casa do seu litigante, que lhe disse:

- Hoje já é tarde para lutarmos. Esperaremos que amanheça. Entretanto, jantarás conosco. Beberemos uma garrafa de vinho e oferecer-te-ei uma cama para passares a noite descansado.

- Muito bem - aprovou o pedaço de galo. - Dois bons litigantes podem brindar juntos.

Quando anoiteceu, o homem e a sua mulher, que queriam libertar-se do infortunado matando-o, mandaram-no dormir para o redil onde se encontravam as ovelhas, para que o esmagassem durante a noite. Com efeito, quando a porta foi fechada atrás dele, os animais começaram a investir.

- Lobo - ordenou o pedaço de galo. - Sai daí e come-as.

O lobo procedeu como lhe era indicado.

De manhã, o dono da casa surpreendeu-se ao descobrir todas as ovelhas mortas e que o único ser vivo que restava no redil era o pedaço de galo. Correu a informar a esposa, que replicou com malvadeza:

- Não te preocupes. Logo à noite, mandamo-lo dormir com as aves. As galinhas, perus e gansos hão de matá-lo a fogo lento, até que fique bem cozido.

Ele tratou de seguir o conselho. Quando o introduziram pelo teto da capoeira, todas as aves se lançaram sobre o pedaço de galo, com bicadas implacáveis.

Irritado com a indesejável recepção, ele indicou à raposa:

- Sai daí e mata todos estes imundos animais.

Foi dito e feito. Na manhã seguinte, quando a mulher se dirigiu ao galinheiro, ainda ficou mais surpreendida do que o marido na véspera. Rubra de cólera, procurou-o e determinou:

- Esta noite, fazemo-lo dormir no forno, que aqueceremos previamente. Garanto-te que amanhã o encontraremos assado.

Durante o jantar, o homem anunciou ao pedaço de galo:

- Também não podemos lutar, hoje. Estou muito triste por ter perdido os meus animais.

- Como queiras. Não tenho pressa. Posso esperar.

A noite, após o jantar, os donos da casa disseram ao hóspede:

- Decerto passaste frio, nas noites anteriores. Hoje, vais dormir no forno, onde estarás mais quente.

- Como queiram - respondeu ele. - Não sou exigente. Sinto-me bem em qualquer parte.

Quando se encontrou no forno e notou que a pata começava a chamuscar-se, ordenou ao rio:

- Sai daí e refresca-me a cama, que está demasiado quente.

O rio encheu o forno de água, que se comunicou igualmente aos fogareiros, tina, barril de lixívia, caldeira e grande parte da casa. Arroios caudalosos precipitaram-se para o exterior, e dir-se-ia que estivera a chover durante uma semana.

- Que vamos fazer com este patife? - perguntou a mulher, que tinha os pés imersos em água até meio das pernas.

- Temos de o pôr a dormir conosco, aos pés da cama - decidiu o marido. - Reduzimo-lo a papas com pontapés.

- Boa ideia. Tens alma de anjo. Assim, não nos poderá escapar.

Quando se encontraram os três na cama, o homem e a mulher começaram a mover os pés e a atingir o infortunado pedaço de galo. A princípio, este pensou que apenas o queriam desfrutar, fazendo-lhe cócegas. Mas quando principiou a sentir-se mal, ordenou às abelhas:

- Saiam daí e piquem-nos.

Só queria que vissem a prontidão com que o casal se levantou e começou a percorrer a casa e depois a rua, em camisa de dormir!

Por fim, as abelhas deixaram marido e mulher em paz. Ela, totalmente sufocada, bradou:

- Aquilo não é um galo, mas um papão! O diabo! O Anticristo! Entrega-lhe a bolsa para que nos deixe em paz. De contrário, ainda acaba por nos matar!

Por conseguinte, o dono da casa apressou-se a seguir o conselho. Restituiu a bolsa ao pedaço de galo, que se pôs de novo a caminho em direção a casa, a fim de entregar o dinheiro à dona. Com ele, compraram uma fazenda excelente e, daí em diante, viveram felizes a trabalhar as terras. O pedaço de galo passou o resto da vida sem problemas nem a ter de se preocupar com o dia de amanhã, pois a dona, agradecida, nunca permitiu que lhe faltasse trigo, milho ou cânhamo.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999. In Contos Tradicionais da França

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 194


Lima Barreto (Numa e a Ninfa)


Na rua não havia quem não apontasse a união daquele casal. Ela não era muito alta, mas tinha uma fronte reta e dominadora, uns olhos de visada segura, rasgando a cabeça, o busto erguido, de forma a possuir não sei que ar de força, de domínio, de orgulho; ele era pequenino, sumido, tinha a barba rala, mas todos lhe conheciam o talento e a ilustração. Deputado há bem duas legislaturas, não fizera em começo grande figura; entretanto, surpreendendo todos, um belo dia fez um "brilhareto", um lindo discurso tão bom e sólido que toda a gente ficou admirada de sair de lábios que até então ali estiveram hermeticamente fechados.

Foi por ocasião do grande debate que provocou, na câmara, o projeto de formação de um novo estado, com terras adquiridas por força de cláusulas de um recente tratado diplomático.

Penso que todos os contemporâneos ainda estão perfeitamente lembrados do fervor da questão e da forma por que a oposição e o governo se digladiaram em torno do projeto aparentemente inofensivo. Não convém, para abreviar, relembrar aspectos de uma questão tão dos nossos dias; basta que se recorde o aparecimento de Numa Pompílio de Castro, deputado pelo Estado de Sernambi, na tribuna da câmara, por esse tempo.

Esse Numa, que ficou, daí em diante, considerado parlamentar consumado e ilustrado, fora eleito deputado, graças à influência do seu sogro, o Senador Neves Cogominho, chefe da dinastia dos Cogominhos que, desde a fundação da república, desfrutava empregos, rendas, representações, tudo o que aquela mansa satrápia possuía de governamental e administrativo.

A história de Numa era simples. Filho de um pequeno empregado de um hospital militar do Norte, fizera-se, à custa de muito esforço, bacharel em direito. Não que houvesse nele um entranhado amor ao estudo ou às letras jurídicas. Não havia no pobre estudante nada de semelhante a isso. O estudo de tais coisas era-lhe um suplício cruciante; mas Numa queria ser bacharel, para ter cargos e proventos; e arranjou os exames de maneira mais econômica. Não abria livros; penso que nunca viu um que tivesse relação próxima ou remota com as disciplinas dos cinco anos de bacharelado. Decorava apostilas, cadernos; e, com esse saber mastigado, fazia exames e tirava distinções.

Uma vez, porém, saiu-se mal; e foi por isso que não recebeu a medalha e o prêmio de viagem. A questão foi com o arsênico, quando fazia prova oral de medicina legal. Tinha havido sucessivos erros de cópias nas apostilas, de modo que Numa dava como podendo ser encontradas na glândula tireóide dezessete gramas de arsênico, quando se tratam de dezessete centésimos de miligrama.

Não recebeu distinção e o rival passou-lhe a perna. O seu desgosto foi imenso. Ser formado já era alguma coisa, mas sem medalha era incompleto!

Formado em direito, tentou advogar; mas, nada conseguindo, veio ao Rio, agarrou-se à sobrecasaca de um figurão, que o fez promotor de justiça do tal Sernambi, para livrar-se dele.

Aos poucos, com aquele seu faro de adivinhar onde estava o vencedor - qualidade que lhe vinha da ausência total de emoção, de imaginação, de personalidade forte e orgulhosa -, Numa foi subindo.

Nas suas mãos, a justiça estava a serviço do governo; e, como juiz de direito, foi na comarca mais um ditador que um sereno apreciador de litígios.

Era ele juiz de Catimbau, a melhor comarca do Estado, depois da capital, quando Neves Cogominho foi substituir o tio na presidência de Sernambi.

Numa não queria fazer mediocremente uma carreira de justiça de roça. Sonhava a câmara, a Cadeia Velha, a Rua do Ouvidor, com dinheiro nas algibeiras, roupas em alfaiates caros, passeio à Europa; e se lhe antolhou, meio seguro de obter isso, aproximar-se do novo governador, captar-lhe a confiança e fazer-se deputado.

Os candidatos à chefatura de polícia eram muitos, mas ele, de tal modo agiu e ajeitou as coisas, que foi o escolhido.

O primeiro passo estava dado; o resto dependia dele. Veio a posse. Neves Cogominho trouxera a família para o Estado. Era uma satisfação que dava aos seus feudatários, pois havia mais de dez anos que lá não punha os pés.

Entre as pessoas da família, vinha a filha, a Gilberta, moça de pouco mais de vinte anos, cheia de prosápias de nobreza, que as irmãs de caridade de um colégio de Petrópolis lhe tinham metido na cabeça.

Numa viu logo que o caminho mais fácil para chegar a seu fim era casar-se com a filha do dono daquela "comarca" longínqua do desmedido império do Brasil.

Fez a corte, não deixava a moça, trazia-lhe mimos, encheu as tias (Cogominho era viúvo) de presentes; mas a moça parecia não atinar com os desejos daquele bacharelinho baço, pequenino, feio e tão roceiramente vestido. Ele não desanimou; e, por fim, a moça descobriu que aquele homenzinho estava mesmo apaixonado por ela. Em começo, o seu desprezo foi grande; achava até ser injúria que aquele tipo a olhasse; mas, vieram os aborrecimentos da vida da província, a sua falta de festas, o tédio daquela reclusão em palácio, aquela necessidade de namoro que há em toda a moça, e ela deu-lhe mais atenção.

Casaram-se, e Numa Pompílio de Castro foi logo eleito deputado pelo Estado de Sernambi.

Em começo, a vida de ambos não foi das mais perfeitas. Não que houvesse rusgas; mas, o retraimento dela e a gaucherie dele toldavam a vida íntima de ambos.

No casarão de São Clemente, ele vivia só, calado a um canto; e Gilberta, afastada dele, mergulhada na leitura; e, não fosse um acontecimento político de certa importância, talvez a desarmonia viesse a ser completa.

Ela lhe havia descoberto a simulação do talento e o seu desgosto foi imenso porque contava com um verdadeiro sábio, para que o marido lhe desse realce na sociedade e no mundo. Ser mulher de deputado não lhe bastava; queria ser mulher de um deputado notável, que falasse, fizesse lindos discursos, fosse apontado nas ruas.

Já desanimava, quando, uma madrugada, ao chegar da manifestação do Senador Sofonias, naquele tempo o mais poderoso chefe da política nacional, quase chorando, Numa dirigiu-se à mulher:

— Minha filha, estou perdido!...

— Mas que há, Numa?

— Ele... O Sofonias...

— Que tem? que há? por quê?

A mulher sentia bem o desespero do marido e tentava soltar-lhe a língua. Numa, porém, estava alanceado e hesitava, vexado em confessar a verdadeira causa do seu desgosto. Gilberta, porém, era tenaz; e, de uns tempos para cá, dera em tratar com mais carinho o seu pobre marido. Afinal, ele confessou quase em pranto:

— Ele quer que eu fale, Gilberta.

— Mas, você fala...

— E fácil dizer... Você não vê que não posso... Ando esquecido... Há tanto tempo... Na faculdade, ainda fiz um ou outro discurso; mas era lá, e eu decorava, depois pronunciava.

— Faz agora o mesmo...

— E... Sim... Mas, preciso ideias... Um estudo sobre o novo Estado! Qual!

— Estudando a questão, você terá ideias...

Ele parou um pouco, olhou a mulher demoradamente e lhe perguntou de sopetão:

— Você não sabe aí alguma coisa de história e geografia do Brasil?

Ela sorriu indefinidamente com os seus grandes olhos claros, apanhou com uma das mãos os cabelos que lhe caíram sobre a testa; e depois de ter estendido molemente o braço meio nu sobre a cama, onde a fora encontrar o marido, respondeu:

— Pouco... Aquilo que as irmãs ensinam; por exemplo: que o rio São Francisco nasce na serra da Canastra.

Sem olhar a mulher, bocejando, mas já um tanto aliviado, o legislador disse:

— Você deve ver se arranja algumas ideias, e fazemos o discurso.

Gilberta pregou os seus grandes olhos na armação do cortinado, e ficou assim um bom pedaço de tempo, como a recordar-se. Quando o marido ia para o aposento próximo, despir-se, disse com vagar e doçura:

—Talvez.

Numa fez o discurso e foi um triunfo. Os representantes dos jornais, não esperando tão extraordinária revelação, denunciaram o seu entusiasmo, e não lhe pouparam elogios. O José Vieira escreveu uma crônica; e a glória do representante de Sernambi encheu a cidade. Nos bondes, nos trens, nos cafés, era motivo de conversa o sucesso do deputado dos Cogominhos:

— Quem diria, hein? Vá a gente fiar-se em idiotas. Lá vem um dia que eles se saem. Não há homem burro - diziam -, a questão é querer...

E foi daí em diante que a união do casal começou a ser admirada nas ruas. Ao passarem os dois, os homens de altos pensamentos não podiam deixar de olhar agradecidos aquela moça que erguera do nada um talento humilde; e as meninas olhavam com inveja aquele casamento desigual e feliz.

Daí por diante, os sucessos de Numa continuaram. Não havia questão em debate na câmara sobre a qual ele não falasse, não desse o seu parecer, sempre sólido, sempre brilhante, mantendo a coerência do partido, mas aproveitando ideias pessoais e vistas novas. Estava apontado para ministro e todos esperavam vê-lo na secretaria do Largo do Rossio, para que ele pusesse em prática as suas extraordinárias ideias sobre instrução e justiça.

Era tal o conceito de que gozava que a câmara não viu com bons olhos furtar-se, naquele dia, ao debate que ele mesmo provocara, dando um intempestivo aparte ao discurso do Deputado Cardoso Laranja, o formidável orador da oposição.

Os governistas esperavam que tomasse a palavra e logo esmagasse o adversário; mas não fez isso.

Pediu a palavra para o dia seguinte e o seu pretexto de moléstia não foi bem aceito.

Numa não perdeu tempo: tomou um tílburi, correu à mulher e deu-lhe parte da atrapalhação em que estava. Pela primeira vez, a mulher lhe pareceu com pouca disposição de fazer o discurso.

— Mas, Gilberta, se eu não o fizer amanhã, estou perdido!... E o ministério? Vai-se tudo por água abaixo... Um esforço... E pequeno... De manhã, eu decoro... Sim, Gilberta?

A moça pensou e, ao jeito da primeira vez, olhou o teto com os seus grandes olhos cheios de luz, como a lembrar-se, e disse:

— Faço; mas você precisa ir buscar já, já, dois ou três volumes sobre colonização... Trata-se dessa questão, e eu não sou forte. E preciso fingir que se tem leituras disso... Vá!

— E os nomes dos autores?

— Não é preciso... O caixeiro sabe... Vá!

Logo que o marido saiu, Gilberta redigiu um telegrama e mandou a criada transmiti-lo.

Numa voltou com os livros; marido e mulher jantaram em grande intimidade e não sem apreensões. Ao anoitecer, ela recolheu-se à biblioteca e ele ao quarto.

No começo, o parlamentar dormiu bem; mas bem cedo despertou e ficou surpreendido em não encontrar a mulher a seu lado. Teve remorsos. Pobre Gilberta! Trabalhar até àquela hora, para o nome dele, assim obscuramente! Que dedicação! E - coitadinha! - tão moça e ter que empregar o seu tempo em leituras árduas! Que boa mulher ele tinha! Não havia duas... Se não fosse ela... Ah! Onde estaria a sua cadeira? Nunca seria candidato a ministro... Vou fazer-lhe uma mesura, disse ele consigo. Acendeu a vela, calçou as chinelas e foi pé ante pé até ao compartimento que servia de biblioteca.

A porta estava fechada; ele quis bater, mas parou a meio. Vozes abaladas... Que seria? Talvez a Idalina, a criada... Não, não era; era voz de homem. Diabo! Abaixou-se e olhou pelo buraco da fechadura. Quem era? Aquele tipo... Ah! Era o tal primo... Então, era ele, era aquele valdevinos, vagabundo, sem eira nem beira, poeta sem poesias, frequentador de chopes; então, era ele quem lhe fazia os discursos? Por que preço?

Olhou ainda mais um instante e viu que os dois acabavam de beijar-se. A vista se lhe turvou; quis arrombar a porta; mas logo lhe veio a ideia do escândalo e refletiu. Se o fizesse, vinha a coisa a público; todos saberiam do segredo da sua "inteligência" e adeus câmara, ministério e - quem sabe? - a presidência da república. Que é que se jogava ali? A sua honra? Era pouco. O que se jogava ali eram a sua inteligência, a sua carreira; era tudo! Não, pensou ele de si para si, vou deitar-me.

No dia seguinte, teve mais um triunfo.

Fonte:
Biblioteca Virtual de Literatura

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) XIII


CANSEI DOS TEUS BEIJOS E DO TEU PERFUME
Hoje me separo de ti gentil senhora,
Cheia de caprichos e ciúmes,
Jamais vais obrigar-me a sofrer sem necessário ser.
Cansei dos teus beijos...
E do teu perfume!

Chega de viver na ilusão de teus carinhos,
E dos teus queixumes,
Pois já percebi que não adianta,
Pois mentes e não te redimes.
E desse jeito é melhor ficar sozinho.

Não quero mais saber dos teus clamores
Dos chamados em qualquer lugar,
Ou fora de hora.
O que me importa
É o que tu já sabes, o que mais quero.
É que vais embora

Isso porque já não me interessa
Os teus desejos ou lamentos em vão
O que mais quero é que partas hoje...
Para acalmar-me a alma e o coração

Partas contente, nesta triste noite!
E que não amanheças aqui e sejas feliz...
Onde estiveres, estejas contente!
E sempre te lembres, que hoje não te quero...
Mas ontem te quis.
****************************************

FALAR COM ALMA

Quando te vejo na rua!
Esperando a condução,
Com aquele olhar triste!
Dos que lutam...
E sofrem sem explicação.

Talvez seja a tua vida!
Um mar de desilusão,
Mas continuas vivendo...
Com mágoa no coração!

Com a alma em frangalhos.
Lembrando-se do que passou!
Em casa vendo o teu filho!
Implorando o teu amor.

Te ajoelhas de mãos postas...
Pedindo auxílio ao Senhor.

Falas com a alma,
E o coração!
Com os olhos a lacrimejar.
Mas espera com paciência,
Que esse auxilio chegará!
****************************************

RAJADAS FRIAS

A minha alma é triste como vento frio,
Que enregela o coração dos grandes marinheiros.
Os quais singrando os mares bravios,
Levam o progresso
Para o mundo inteiro.

E eu tristonho quase que parando,
Levando açoite ao decorrer da vida.
Que já não tendo onde se agarrar,
Espera a morte como uma saída.

Porque o vento singular revés,
Bate-me tanto com rajadas frias,
Porque o pranto em minha triste vida,
Porque um triste em noite já tão fria.
****************************************

SUAS FRASES

Como foi triste aquela despedida,
Quando chorando ela me disse adeus.
Não sei por que daquela atitude,
Sem se dar conta dos sofrimentos meus.

Ainda sofro com a sua falta,
Daquelas tardes de sol de verão.
Em que andávamos de mãos dadas...
Conversando e sorrindo,
Mostrando a todos nossa satisfação.

Faz tanto tempo que isso passou,
Tempos felizes que não voltam mais.
Ai! Que saudade do seu riso puro.
E de suas frases...
Que nas minhas horas de angustias
Trazia- me paz.
****************************************

TEUS OLHOS VERDES
Para Fá Butler Rodríguez

Teus olhos verdes, cor de esmeralda...
Teus lábios vermelhos, cor de carmim,
Expiram-me desejos dos mais tentadores,
Eu sei que não queres que seja,
Mas eu vejo assim.

És toda perfeita, de corpo atraente,
Tua pele clara te faz linda demais,
Faz que eu morra de amores por ti,
Pois nunca tinha visto alguém igual.

Tua simplicidade teu jeito de ser,
Faz-te não querer ser notada ou amada,
Mas quero que saibas que mesmo não tendo.
Este direito eu tive a felicidade de entrares,
No meu peito e fazeres morada.
****************************************

VIVO A LEMBRAR

Vivo há lembrar momentos divinos,
Em que nossos corpos vibravam no amor!
Era tanta a volúpia que o mesmo exercia...

Que nos excedia de tanto calor!
Como posso esquecer-me,
De tão belas lembranças...
Que estão toda hora na minha retina!
Eram momentos tão maravilhosos,
E horas tão divinas.

Por que ainda sinto e trago no peito...
Momentos assim,
Só sei que não posso viver deste jeito,
Mas como viver se não me esqueço de ti!
****************************************

VIVO CONDENADO

Ah! Que este amor!
Desencanta-me...
E me tira a alegria de viver.
É toda a causa do meu padecer!

Pois vivo a sofrer...
Desesperado!
Sem um alento, vivo condenado.
A amar!
Quem não nunca me quis...
Deixando-me toda vida infeliz.

Mas coração, por favor...
Pensa em mim!
Esquece ela,
Até porque fazes parte.
Do meu ser e não do dela!

Tenha pena de mim!
Por piedade.
Manda para bem longe,
Esta saudade...
Que em meu peito...
Se instalou!
Retira do meu coração este amor.

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

José de Alencar (Diva) Resumo da obra

Foi publicado em 1864. Não é uma continuação da obra Lucíola, ao contrário do que muitos pensam. A história de Lucíola se encerra na própria obra. O que liga as duas obras é um detalhe curioso. O narrador de Lucíola, Paulo, se torna amigo do narrador de Diva, Amaral, como é possível depreender da epígrafe de Diva. Então, o livro Diva é composto por cartas que Amaral teria enviado a Paulo, como confissões a um amigo. No final do Capitulo III, a personagem Emília é comparada a uma Vênus moderna, a diva dos salões, explicando assim o título do livro: Diva. (3)

No imaginário social do século XXI ainda predominam fortemente as características do amor-romântico. As antigas definições de amor, paixão e maturidade psicoafetiva (transição do afeto infantil para o adulto) ainda circulam nas atuais conversas íntimas, literaturas, novelas e meios de comunicação, por exemplo. Mesmo assim, sabe-se que tais definições tem sido modificadas pelas novas configurações dos relacionamentos na era pós-moderna. (2)

Lembrando que Augusto é o narrador e, portanto, mentor da visão idealizada de Emília (pois é ele quem afirma várias vezes a maturidade afetiva dela) é de se esperar que o arquétipo social feminino de Alencar, fale mais alto sobre um processo de amadurecimento, que na realidade, não ocorreu. (2)

Emília não progrediu psicoafetivamente só porque passou a amar Augusto, o que ela conseguiu foi o título de amadurecimento conforme o imaginário de maturação feminino do século XIX. (2)

RESUMO:


Quando doutor Augusto conheceu Emília ela era ainda uma menina por volta dos seus catorze anos, feia e recatada. Ele iniciava sua carreira de médico e ela recebeu toda sua dedicação, incluindo horas sem dormir para que a menina fosse curada do mal que quase lhe levou a vida. Mas desde esse período Emília tratava o médico com uma grande hostilidade. Ele, que se dedicara tanto ao caso, nem quis receber, afinal valia mais o mérito de ter salvado a vida da filha de uma, até mesmo, importante família. E assim o pai da menina deixou em aberto essa dívida que tinha para com Dr. Augusto.

Anos mais tarde, Emília já se tornara uma moça e, por mais inesperado que fosse, era a mais bela da corte. Sua chegada no baile desanimava as demais moças que não podiam com a beleza dela e inspirava nos rapazes inúmeros galanteios. A família dela sempre insistia em uma reconciliação da menina com o seu salvador, no entanto, ela satisfazia-se em humilhar e constrangê-lo.

Se ele, por insistência dos demais, vinha lhe pedir o prazer de uma quadrilha, ela negava dizendo já ter parceiros para a quantia de danças que pretendia ter e seguidamente, ainda na frente dele, concedia a quarta ou a sexta valsa a outro cavalheiro.

Porém todo o desprezo da menina despertou no médico um grande amor. Mas ao mesmo tempo em que ele a amava, sentia seu orgulho muito mais que ferido... Entretanto ele continuava a lhe pedir valsas e ela a negá-las. Foi nesse contexto que ele, extremamente aniquilado pelos maus tratos da moça, decidiu por fim vingar-se e esquecê-la de vez.

A sua sorte foi que Geraldo, irmão de Emília, tinha que ajudar a uma órfã por pedido da irmã que tinha um bom coração tratando-se de caridades. Geraldo, sem ânimo nenhum para a boa ação, pediu ajuda ao doutor, que viu a sua chance e se disponibilizou a ajudá-lo.

O dinheiro para ajudar a menina era uma quantia pequena, e ele foi pedí-la ao pai de Emília como pagamento pela vez que salvara a vida da menina. Ele chegou a lhe oferecer maior quantia e até mesmo a recusar-se a pagar tão pouco, mas ali estava a vingança do médico. Visto que Emília estava presente afirmou que era aquela singela quantia que era merecida pelo seu trabalho, o que implicitamente era dar o mesmo valor à vida da moça.

Recebendo o dinheiro, foi embora satisfeito e decidido a abandonar de vez o convívio com aquela família. Mandou a ajuda à órfã no nome de Geraldo e assim concretizou sua ação. Porém logo depois desse ato foi chamado à casa de Emília. Surpreendentemente ambos e mais a tia da menina seguiram em um passeio que acabou mais cedo para a tia dela intencionalmente, por parte de Emília.

A sós a moça abriu-lhe o coração. Tratava-o com tamanho desprezo e indiferença por temê-lo. Desconhecia em seu coração o amor e o único sentimento que nutria era uma gratidão e admiração imensa pelo médico, mas o tratava de tal forma porque temia que o conhecendo pudesse frustrar o coração quanto a esses sentimentos. Mas quando notou o quanto o feria resolveu dizer-lhe toda a verdade.

Assim, de pazes feitas passaram ao convívio. Já nos bailes ela lhe concedia danças e até mesmo fazia da quadrilha com ele a última da noite. Ela ainda não o amava, ele só sentia o amor crescer-lhe e assim também o ciúme, este último fez em certa ocasião os dois brigarem, pois a ela não faltavam admiradores e declarações.

No entanto, eles acabavam por superá-las. Dr. Augusto chegou a se mudar para a vizinhança da moça e durante a noite os dois a sós se encontravam nos jardins e conversavam. Ele chegou a se declarar e ela pedia-lhe calma, pois ainda não o amava, mas o sentimento com o caminhar do tempo estava mais prestes a nascer do que nunca.

No entanto o amor de Emília que não nascia frustrava o médico, a essa altura os admiradores já haviam sido afastados e ela diferente da menina orgulhosa que era já se dobrava a uma submissão. No entanto um se submetia à vontade do outro trazendo para a relação, no ponto de vista dela, uma terrível monotonia.

Foi em uma tarde que o médico, chegando à casa dela, a encontrou pronta para uma ida ao teatro, o ciúme instantaneamente vibrou no peito de Augusto, e ele lhe pediu que finalmente, até mesmo para acalmá-lo, ela dissesse que o amava. Porém, segundo ela ainda era cedo, mas o doutor não suportou e rompeu definitivamente o romance – pelo menos era o que pensava.

Um mês depois se reencontraram e ela lhe questionou sobre o amor que ele tinha por ela, ele negou sua atual existência. Três dias depois estavam na chácara da família dela um grande grupo a passear, Emília se afastou e logo Augusto foi ter com ela. Ali tiveram sua conversa fatal.

Ele declarou a ela que todo o amor que afirmava sentir, crescera e apenas vivera devido ao sucesso econômico do pai de Emília e que só por isso ele se interessava por ela, nada mais que os benefícios que o ganhador da mão dela teria. Ela, depois de tal declaração, afirmou que aquilo não passava de uma confirmação do seu amor. Augusto, enfurecido, concordou, mas disse que o amor adorador que sentia agora tinha sido substituído por uma vontade de possuí-la contra a própria vontade dela.

Feito isso, a menina o desprezou. Ele tentou-lhe dar um beijo, mas ela esquivou-se e quando Augusto percebeu tinha posto a menina a seus pés. Vendo a sua ação pediu-lhe perdão e recebeu em troca uma declaração de amor. Sua resposta foi ir embora.

No dia seguinte recebeu de Emília uma carta afirmando todo o seu amor e devoção que só agora ela percebera. O médico ainda tentou resistir a ela, mas foi inútil. Amavam-se e naturalmente o passo seguinte foi o casamento.

Fontes:
– (1) Resumo por Rebeca Cabral, disponível em Brasil Escola
– (2) Rayssa Perreira Amorim (Univ. Estadual do Amapá), disponível em Academia.Edu
– (3) Wikipedia

IV Concurso da UBT Seção de São José dos Campos (Prazo: 30 de Maio)

Trofeu: Diva Ricco. Uma homenagem a Maria Diva Fontes Ricco

Biografia:
MARIA DIVA FONTES RICCO – Escritora, poetisa, trovadora; mãe de dez filhos, trocou o violino pela vida doméstica, mas não abandonou a poesia. Tem textos publicados em livros da Faculdade da 3ª Idade do Vale do Paraíba. Tem livro solo e em parceria com Mifori sua 3ª filha, publicados na Internet e, também impressos. Aos seus 92 anos, embora lúcida, já não escrevia mais, por motivos de saúde...
Veio a falecer em 02/08/2019 e foi sepultada 03/08/2019, dia em que completaria 94 anos.

TEMA: - VIOLINO

CALENDÁRIO: DE 01/O3/2020 à 30/05/2020

RESULTADO E ENTREGA DE DIPLOMAS: a partir de 01/08/2020


CRITÉRIOS:

TEMA: - VIOLINO - O Tema tem que constar no corpo da trova: ABAB, conforme regras da UBT Nacional Brasileira.

Uma trova inédita por trovador. Serão contemplados 10 trovadores. Os cinco primeiros receberão troféu e diploma. Os outros 05 receberão medalha e diploma.

A Inscrição pode ser por e-mail ou por envelope (dentro do envelope grande, endereçado ao responsável pelo recebimento, virá um envelope menor, lacrado, com os dados do trovador – “Endereço” - tendo na frente do envelopinho a trova colada)

Endereço:
Nome e Sobrenome e/ou nome artístico.
Cidade:
País:
E-mail;
( Só)

Não haverá separação entre veteranos e novos.

Será cobrada a taxa de R$ 50,00 (cinquenta reais) aos premiados, a título de ajuda de custo para o envio dos prêmios por correio.

Serão dois grupos:

Grupo 1: NACIONAL - em Língua Portuguesa;

Grupo 2: INTERNACIONAL - em Língua Espanhola

COORDENADORES:

A) LÍNGUA PORTUGUESA:

1)Inscrição por e-mail:
enviar para: fiel depositário =
Helio Castro: helio.castro@techsearch.com.br (helio sem acento)

2) Inscrição por envelope:
A/C de Glória Tabet Marson
Rua Major Dietrich Ott, nº 71 – Jardim das Colinas.
CEP: 12242-111 = São José dos Campos, SP.

 
B) LÍNGUA ESPANHOLA:
1) Inscrição por e-mail: enviar para:
Coordenadora e Fiel Depositária: Cristina Oliveira Chávez
<CoLibriRoseBeLLe@aol.com>

2) Inscrição por envelope:
A/C de Maria Luiza Walendowsky
Rua Clementina D. Sgrot, 110 – São Luiz
CEP. 88350-708 - Brusque, SC.


JULGADORES:
A Comissão de Julgadores é soberana. Serão três julgadores no mínimo por concurso. Os mesmos não participarão com suas trovas neste concurso em que for julgador.

1. Arlindo Tadeu Hagen
2. Therezinha Brizolla
3. Amilton Monteiro
4. Myrthes Mazza
5. Nadir Giovanelli
6. Lourice Saliba

JUECES CALIFICADORES EN ESPAÑOL
1. Jaime Hoyos Forero<hoyosforero@hotmail.com>
2. Andrik Bannack Alvarez<ILoveMyPlanetToo@aol.com>
3. Amayel Flores Rosas<Aquavelle@aol.com>

COORDENAÇÃO GERAL
Maria Inez Fontes Ricco
Presidente da União Brasileira de Trovadores
Seção de São José dos Campos - SP – Brasil

Fonte:
Mifori

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 193


Luiz Poeta (O Menino que Lia Olhos)



- Você pode parar de piscar, por favor ?

- Como ?

- Estou lendo seus olhos.

- Lendo meus olhos ? – Espantou-se.

- Só um instantinho... há uma frase que diz que você está triste.

- Triste ? Eu ? ...como sabe ?

- Pelo brilho.

- Brilho ?

- Sim, um brilho úmido.

- Úmido ?

- É. Você estava querendo chorar.

- Ora, seu...como é seu nome ?

- Não importa. Sou apenas um menino.

- Quantos anos você tem, menino ?

- Dez. Vou fazer onze amanhã.

- Você é muito novo.

- E o seu nome ? Como é ?

- Ué... você não sabe ler olhos ? ...deveria saber o meu nome.

- ...não cheguei a esse estágio ainda. É todo um processo visual, mas eu sou meio míope.

- Ora, mas você vê os olhos de perto. O míope não enxerga é de longe.

- É verdade, mas mesmo assim, não enxergo muito bem também de perto.

- Pois devia enxergar. Como descobriu que estou triste ?

- É uma história muito longa. Mas... como é o seu nome ?

- Marta.

- Puxa, quase que eu acerto.

- Como ?

- Até que eu tinha visto o M, mas acho que você foi esperta e não quis pensar com os olhos. Ficou meio embaçado. Eu ia até arriscar Maria. Acho que você piscou quando eu ia ler o resto.

- Você é muito espertinho. Como soube que eu ia chorar ?

- Tá vendo ? Você ia chorar. Eu acertei.

- Você é muito esperto mesmo. Mas não me respondeu. Como soube que eu ia chorar ?

- É fácil. Na verdade o livro engloba também os lábios.

- Que livro ?

- O livro da vida reflete-se nos olhos.

- Então...

- Então ele estava aberto no capítulo da página do choro.

- Está ficando interessante a nossa conversa. E o que os lábios têm a ver com isso ?

- É que quando você vai chorar, os lábios fazem a diferença porque você aprisiona o sorriso e a lágrima é comprimida. É como se você espremesse uma toalha molhada e as gotas caíssem.

- Interessante...mas porque você resolveu ler logo os meus olhos, com tanta gente nesta lanchonete ?

- Ué, porque você olhou para mim.

- E... quem ensinou isto para você?  Foi sua mãe, seu pai...ou alguma cigana dessas que andam por aí ?

- Ninguém me ensinou. Eu sou autodidata.

- Além do mais, você tem um bom vocabulário.

- É... eu leio muito.

- Eu sabia.

- Mas, voltando ao assunto: Vai me dizer que você não ia chorar ?

- Claro, isto é... bem...

- Tá vendo ?Você ia chorar.

- Está bem, ia. E daí ?

- Nada. Acho bom eu parar a leitura. Viu ? Agora você vai sorrir.

- Você está me sugestionando.

- Não disse ? Você sorriu !

Já sei – pensou – ele deve querer algum dinheiro. Afinal, chegou aqui do nada e puxou assunto.

- Espere aí um pouquinho.

Marta virou-se para a bolsa, revirou-a, pegou a carteira, examinou as cédulas, retirou dela dois reais e...

- Ué ? Cadê o garoto ?

Olhou cuidadosamente em volta e não viu mais o menino.

- Que coisa...

Dentro dos seus olhos, a toalha secava ao sol de um novo dia e não havia lágrimas para serem espremidas.

Ela agora sorria inefável e nebulosamente para o espelho dos olhos especialíssimos de um menino sem nome...sem casta... e sem endereço.
___________________
(Primeiro Lugar no concurso de contos da União Brasileira de Escritores – Rio de Janeiro - Concurso interno)

Fonte:
Recanto das Letras do escritor

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 3


CORES NA PRAÇA

Manacás floridos fazem companhia aos bancos vazios da praça...
O colorido das flores embeleza a manhã de quem passa…
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ESCRITO NO CORAÇÃO...

Na capa do disco antigo
escreveu uma declaração de amor.
O tempo, quase apagou as palavras, a data...
Mas, no coração ainda permanece lindo o amor!
****************************************

GOTAS DE EMOÇÃO

Em cada lágrima, retratos de emoção...
Em cada retrato:
um rosto, lembranças e sonhos,
desenhados pela saudade:
nas telas pequenas  e mágicas das lágrimas…
****************************************

HÁ DIAS ASSIM...

A lembrança do seu olhar,
Do perfume permanece.
A música da última dança...
E a saudade insiste!
Há dias assim
E noites também…
****************************************

JANELAS...

Das janelas vejo as estações dos anos...
A lua e as estrelas.
Admiro as gotas de chuvas...
Folhas secas, flores...
Da janela, ouço os pássaros.
Sonho...
De uma dessas janelas vi o Amor chegar!
Janela mágica que encantou e inspirou o brilho no olhar,
Com as cores da felicidade...
Da janela do Tempo veio a despedida
E com ela, a saudade a espreitar...
Fecho a cortina e finjo que não a vejo.
A Janela da Saudade, tento fechar...
Mas ela é intensa, e mais forte que minhas mãos,
Desisto e deixo-a entrar...
Empresto da janela da Primavera, às flores.
Enfeito a saudade, que iluminada  e decidida
Desenha lembranças nas janelas do meu coração…
****************************************

NUM PISCAR DE OLHOS

Num piscar de olhos...
Um amor se conhece,
Abraços e beijos...
Num piscar de olhos,
Sonhos são desenhados,
Aquarelados.
Num piscar de olhos,
A despedida acontece.
A saudade permanece...
Refletido nas lágrimas,
Vejo seu rosto,
Num piscar de olhos...
****************************************

O DESPERTAR DA NATUREZA

Os sons da casa ao acordar...
Indicam que um novo e belo dia irá começar!

O sol que entra pela janela,
Na sala, aquece três lindos  e sonolentos gatos...

E lá fora...
Deixa as flores das floreiras, mais belas!
****************************************

O ÚLTIMO OLHAR...

Impossível foi evitá-lo...
Não havia mais como fugir, fingir sua ausência.
O último olhar se fez necessário.

A despedida de cor cinza com gosto de saudade,
Como entender e aceitar o fim do amor,
A sensação de vazio, de tempo perdido...

De um amor  que não pode ser esquecido?
Como viver sem seu olhar?
****************************************

POSES DE GATO

    Atento
Sentado
    Brincando
  Deitado
   Dormindo
     Espreguiçando...
         Lambendo a patinha.
            Gato preto em sete poses
        deixa linda e misteriosa a caneca branca: encanta!
****************************************

REFLEXOS EM MEU OLHAR...

Ao olhar-me no espelho vejo um pouco dos seus olhos...
Ainda lembro-me do dia do seu aniversário, do seu signo,
Do seu doce preferido, de como gostava do café…
****************************************

TRAÇOS DA TUA AUSÊNCIA

Tua ausência tem nome, perfume e cor.
Além de senti-la posso até desenhá-la...
Às vezes, tão real é o desenho que quase acaricio teu rosto…
****************************************

TRISTE ROTINA

O relógio na parede marca as horas e observa silencioso,
o encontro dos camponeses à mesa,
depois de um dia exaustivo de trabalho, a rotina continua,
a vida prossegue sem a esperança de um futuro mais digno...

O cômodo rústico revela as poucas posses, poucos direitos.
As roupas escuras e gastas pelo constante uso, se completam
com as mãos grandes, ideais para trabalhar a terra...
Olhares sem brilho, revelando tristeza e conformismo.

Cada personagem perdido em seu próprio mundo: como se
seus destinos estivessem traçados muito antes de nascerem.
Olhares sem brilho, refletindo almas sem vida, sem cores,
faltando-lhes vontade e coragem de mudar.

Liberdade, alegria, dignidade para os trabalhadores da terra,
só em sonhos...

* Poesia inspirada no quadro “Os Comedores de Batata”, de Vincent Van Gogh (1885)

Fonte:
Recanto das Letras da Poetisa

Rachel de Queiroz (Os Passarinhos)

    

De manhã, com escuro, é o trocado da graúna, bem debaixo da janela. Canta cristalino, dobrado e redobrado, como polca de piano, daquelas do tempo de Chiquinha Gonzaga. Mas aí a graúna para e quem faz o solo são os cabeças-vermelhas que outros chamam de galos-de-campina. Eu disse solo mas não é um só que canta; são duetos e tercetos, com primeira voz, segunda e terceira. A graúna vem então e faz o contraponto e por trás de tudo os golinhas sustentam o coro.

Isso é a alvorada. Depois do primeiro café é a vez dos canários que fizeram ninho nos frechais da casa. São dois ninhos no frechal e outro no pé de jucá que dá sombra ao alpendre. Mas esses já são cantores líricos, não se metem com amadores. Esperam que haja silêncio, não toleram nem o rádio. Vem um, se acomoda no galho do jasmim-laranja, verifica a assistência, vira a cabeça para trás e solta o gorjeio. Os demais passarinhos raramente se metem — salvo outro colega canário. E aí temos desafio de tenores e só não tem soprano porque canário faz discriminação de sexo: fêmea não canta. Depois do desafio lírico eles saem mesmo para o duelo e brigam até fazer sangue; chegam a rolar feridos no terreiro. Uma vez apanhei um morto. Canário leva ópera a sério.

O rouxinol daqui que, segundo penso, é a garrincha daí, vem logo depois dos canários; tem uma cantiguinha afinada, mas leve, assim como quem trabalha assobiando. Esse rouxinol uma vez me quebrou um espelho com ciúme do sósia que lhe aparecia no vidro. Bicava o cristal com tanta fúria que ensanguentava o bico. Botei um pano por cima do espelho e ai o rouxinol vinha devagarinho, enfiava a cabeça por baixo do pano, espiava — e lá estava o desgraçado de olho arregalado para ele! O rouxinolzinho avançava para o espelho com uma fúria matadora; e de tanto bater deslocou o prego e o espelho foi se arrebentar no chão. E ele, do parapeito da janela, olhava os cacos de vidro, vingado.

Pelas dez e onze da manhã tem uma calma; a juriti aproveita e fica de longe: vu ... vuu ... vuuu ... ! ... E a rolinha fogo-pagou responde mas há sempre então um bem-te-vi mal-educado que interrompe e estraga a poesia das duas.

Na hora da sesta aparece, mas não é todo dia, um sabiá cantador. Vem por ali, senta no cajueiro, solta o canto. Mas assim que a gente se aproxima, embelezada, ele sai para mais longe, nas algarobas; esse tem temperamento e não gosta de estranhos,

Saindo pelo mato, depois que o orvalho enxuga, a gente vai descobrindo. Se tem sorte até avista corrupião, mas é raro. Os vem-vem são por toda parte: e um passarinho de cabeça encarnada e cantiguinha moderna, por nome abre-e-fecha. Papa-arroz toma voo do capim de lagoa em bandos tão compactos que chega o ar a ficar encaroçado deles; e o pai-luís não levanta do chão e enfrenta a gente zangado, resmungando.

De repente se escuta um tarrafeado, aquela zoada curiosa, meio estridente, meio abafada: é bando de cancão acuando bicho. Acuam cururu, cobra, cachorro. Ficam aos saltos em redor do inimigo, a pena azul furtacor, o bico cor de fogo, os olhos que são como uma joia amarela. Cancão é bonito mas é sem-vergonha. Ladrão de roçado e plantador de milho. Plantam de doidos, porque já no fim das águas, quando tem semente seca, é que eles plantam. Nasce tudo, chega a crescer dois palmos de altura, mas daí não medra, porque é o fim do inverno. Raro é o roçado que não tem pelas beiras de cerca suas carreiras de milho de cancão.

Agora, quando a tarde cai é que é triste. Do outro lado do açude a mãe-da-lua, que já foi moça, ainda espera pelo noivo embarcado e fica chamando e se lastimando:

— Paulo, ôô Paaulo! Foi-se! Foi-se! Foi-se!

E mais triste é a coã, que em outros lugares também chamam acauã, Minha ama me embalava com uma cantiga que imitava o cantar da coã; e ainda recordo um verso que dizia assim: “Adeus, coã, que me vou! / Saudades, coã, de amor!...”

Ah, são muitos passarinhos. E sempre tem um cantando, as mais das vezes nem se identifica qual é.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 192


Monteiro Lobato (O Pito do Reverendo)


Itaoca é uma grande família com presunção de cidade, espremida entre montanhas, lá nos confins do Judas, precisamente no ponto onde o demo perdeu as botas. Tão isolada vive do resto do mundo que escapam à compreensão dos forasteiros muitas palavras e locuções de uso local, puros itaoquismos. Entre eles este, que seriamente impressionou um gramático em trânsito por ali: Maria, dá cá o pito!

Usado em sentido pejorativo para expressar decepção ou pouco-caso, e aplicado ao próprio gramático, mal descobriram que ele era apenas isso e não “influência política”, como o supunham, descreve-se aqui o fato que lhe deu origem. E pede-se perdão aos gramaticões de má morte pelo crime de introduzir a anedota na tão sisuda quão circunspecta ciência de torturar crianças e ensandecer adultos.

O reverendo tomou do estojo os velhos óculos de ouro, encavalgou-os no batatão nasal e leu pausadamente a carta do compadre, que dava notícias, pedia-as, e comunicava a próxima ida para ali do doutor Emerêncio do Val, “nosso ministro em Viena d’Áustria, homem de muito saber e distinção de maneiras, um desses diplomatas à antiga, como já os não há nesta república que etc. etc.”, em viagem de recreio pelo interior, a matar saudades do país.

O reverendo coçou o toitiço com dedos sornas e releu a carta demorando o pensamento nos trechos que pintavam o alto figurão itinerante, em via de honrar-lhe a casa com a sua nobilíssima presença.

Verdade é que dispensava tal honraria, boa seca à pacatez do seu viver abacial, repartido entre missinhas de cinco mil-réis (mais um frango), cachimbadas de muito bom fumo de corda e os pitéus (senão ainda a ternura, como propalavam as más-línguas) da ótima caseira e afilhada, a Maria Prequeté. Culpa toda sua, aliás. Quem lhe mandara a ele possuir a melhor casa de Itaoca e ser, modéstia à parte, um homem de luzes notórias, autor de vários acrósticos em latim?

Já doutra feita hospedara um eloquente inspetor agrícola e, logo depois, o tal sábio que colecionava pedrinhas — grande falta de serviço! Um diplomata agora... Ahn! A coisa variava…

Que viesse, respondeu ao compadre, mas não esperasse encontrar na roça desses “confortos e excelências de vida que é de hábito nas grandes terras”.

Escrita a resposta, foi o reverendo à cozinha conferenciar com a caseira sobre a hospedagem e longamente confabularam sobre o pato a sacrificar-se (se o patão de peito branco ou aquele mais novo com que a viúva do João das Bichas lhe pagara a missa, a gatuna); sobre a toalha de mesa e a roupa de cama; sobre o tratamento a dispensar — Vossa Excelência, Vossa Senhoria ou Vossa Diplomacia.

Após longo bate-boca, salpicado de injúrias em calão e algum latim, assentaram no pato da missa, na toalha de renda e no Vossa Excelência. Combinadas essas minúcias, uma nuvem de nostalgia ensombrou a nédia cara do reverendo. Os olhos penduraram-se-lhe no vago, saudosos, e de lá só desciam para envolver, com ternura viciosa, o velho pito de barro que lhe fedia na mão.

Notou a Prequeté aquelas sombras e:

— Acorda, boi sonso! Amode que está ervado?...

O reverendo abriu-se. Era o pito. Eram já saudades do velho pito... Pois não ia privar-se desse amigo de tantos anos durante a estada do “empata”? Tinha educação. Não desejava impressionar mal a um homem de raro primor de maneiras. E o pito, se é bom, é também plebeu e, mais que plebeu, chulo.

Reconhecia-o, reconhecia-o…

Entretanto, três, quatro dias — sabia lá a quantos iria a seca? — de abstenção forçada, sem que a boca sentisse o bendito contato do saboroso canudo amarelo de sarro?... Doloroso…

E o reverendo sorveu com delícia uma baforada maciça. Tragou-a. Depois, recostada a cabeça ao espaldar, semicerrados os olhos, semiaberta a boca, deixou-se fumegar gostosamente, como piúca de queimada. Coisas boas da vida!...

Mas que remédio? O homem fora diplomata e em Viena d’Áustria!

Confabulara com arquiduques e cardeais. Homem de requintes, portanto. Era forçoso transigir com o pito, o rico pito, o amor do pito. Sim, porque a dignidade do clero antes de tudo! Lá isso…

Uma semana depois nova carta anunciava que “o tal das Europas” em tal data repontaria por ali.

Grande alvoroço de saia e batina. A Prequeté arregaçou as mangas — braços a Machado de Assis tinha a morena! — e pôs de pernas para o ar a casa. Varreu, esfregou, escovou tudo, demoliu teias de aranha, limpou o vidro do lampião, matou o pato e desfez com decoada os muitos pingos de gema de ovo que constelavam a batina do padrinho.

— Arre, que até parece uma gemada! — reguingou ela, entre repreensiva e caçoísta. Depois, relanceando-lhe o olhar pelo alto da cabeça:

— Chi!... A coroa está que é uma tapera! — exclamou.

E, expedita, zás! zás! deu nela uma alimpa de tesoura.

— E o breviário? — inquiriu de súbito o padre.

Andava de muito tempo sumido, o raio do livro; procura que procura, descobrem-no afinal no quarto dos badulaques, feito calço duma cômoda capenga. A Prequeté — maravilhosa caseira! — com uma dedada de banha pô-lo escorreito e envernizado, a fingir com tanta perfeição uso diário que nem Deus desconfiaria da marosca.

— Que mais? — disse ela depois, plantando-se a distância para uma vista de conjunto no seu restaurado padrinho. E como de alto a baixo tudo estivesse a contento: “Está mesmo pshut!”, concluiu, brejeira, borrifando-lhe por cima um chuvilho de Água Florida, para disfarçar o ranço.

Ficou o padre um amor de reverendo, liso e bem amanhado como cônego de oleografia. Ele próprio o reconheceu ao espelho e, nadando nas delícias daquele carinho sem par — e muito agradável a Deus, pois não! —, sorriu-se babosamente, acariciando-a no queixo:

— Esta marota!

Conclusa a arrumação, da coroa do padre à cozinha, postou-se a Prequeté de vigia à janela, indagando os extremos da rua, enquanto o reverendo, lindo como no dia da sua primeira missa, passeava pela saleta a chupar as derradeiras cachimbadas.

Súbito:

— “Evem” vindo o reis! — exclamou a atalaia.

O reverendo meteu o pito na gaveta, passou a mão no breviário e assumindo cara de circunstância rumou para a porta da rua. Instantes depois defrontava-o um cavaleiro. O padre correu a segurar-lhe a rédea e o estribo.

— Queira apear-se vossa excelência, que esta choupana é de vossa excelência. Sou o padre vigário de Itaoca, humilde servo de vossa excelência.

O diplomata, como que ressabiado com tão respeitosa acolhida, deixou-se descavalgar. Mas sem garbo, esquerdão e reles, como aí um pulha qualquer. Entrou. Trocaram-se rapapés, palacianos da parte do reverendo, mal achavascados (quem o diria?) da parte do cortesão que conversara arquiduques e cardeais. Houve etiquetas revividas, sempre claudicantes do lado diplomático. Houve cerimônia.

Mas o doutor não era positivamente o que se esperava. Já no físico desiludia. Em vez duma fina figura de mundano, saíra-lhes um magrela de barba recrescida, roupa surrada, chambão e alvar. Enfim, pensou lá consigo o reverendo, o hábito não faz o monge. Quem sabe, sob aquelas aparências vulgares e talvez rebuscadas, não luzia o espírito de um Talley rand ou as manhas dum Metternich?

Foram para a mesa e no decurso do jantar acentuou-se a desilusão. O homem comia com a faca, baforava no copo, chupava os dentes. Um puro pai da vida.

Observando-o por cima dos óculos, o reverendo piscava para a caseira, que, da cozinha, pela fresta da porta, torcia o nariz à pífia excelência excursionista. Ao trincar o pato, desastre. O doutor deixou cair no chão um osso, que logo apanhou, muito encalistrado. Depois, às voltas com a asa do palmípede, falseou-se-lhe a faca, resultando espirrar-lhe à cara um chuvisco de arroz. A Prequeté por sua vez espirrou lá dentro uma risadinha de mofa, acompanhada dum mortificante ché!...

O reverendo entrou-se de dúvidas. Era lá possível que o doutor Emerêncio do Val fosse um estupor daqueles?

À sobremesa caiu a conversa sobre a política, e o doutor desmanchou-se em bobagens graúdas. Enquanto asneava, o padre ia matutando lá consigo: “E eu com cerimônias, e eu com bobices, e eu querendo até privar-me do pito por amor a um cretino destes! Fumo-lhe nas ventas e já!”

Nisto veio o café. Enquanto o ingeriam, o doutor entrou a falar de remédios, farmácias e projetos de estabelecimento. O reverendo, decifrando o mistério, deteve a xícara no ar.

— Mas... mas então o senhor...

— Sou farmacêutico, e vim estudar a localidade a ver se é possível montar aqui uma botica. Portei em sua casa porque…

O padre mudou de cara.

— Então não é o doutor Emerêncio, o diplomata?

— Não tenho diploma, não senhor, sou farmacêutico prático...

O padre sorveu dum trago o café e refloriu a cara de todos os sorrisos da beatitude; desabotoou a batina, atirou com os pés para cima da mesa, expeliu um suculento arroto de bem-aventurança e berrou para a cozinha:

— Maria, dá cá o pito!

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.