sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 11: Irrefutável


PRISCILA CHEGA PARA O PAI e, na sua inocência dos dez  anos, manda a pergunta sem  pensar duas vezes no que poderá acontecer logo em seguida:

— Pai, paizinho... Posso lhe perguntar uma coisa?

— Claro, minha filha.

— O senhor me ama?

— Muito, Priscila.

— Me ama como ama a mamãe?

— Amo as duas da mesma maneira, ou melhor, amo de maneiras e formas iguais. Só que, embora sendo amores iguais, são amores com maneiras e sentidos diferentes.

— Como é lá isto, pai, se o senhor acabou de dizer que embora sendo amores iguais, têm sentidos diferentes?

— Vou tentar explicar de maneira bem simples. O meu amor por você Priscila, é um amor de pai para filha. É aquele amor fantástico, puro, sem manchas, que está guardadinho num cantinho oculto, escondidinho bem aqui dentro do meu peito. Que aflora no sopro do menor movimento que eu faça quando lhe beijo e lhe abraço. Já o que sinto por sua mãe não se descreve... É verossímil.

— É o que, pai? Não entendi...

— Verossímil é aquele amor que parece verdadeiro e, na verdade é.

— O senhor tem certeza disto, pai? É de fato verdadeiro ou não?

— Claro que é, filha. O amor que sinto por sua mãe é como o amor que você nutre por esta sua bonequinha Barbie. Você a ama incondicionalmente, ou seja, não fica sem ela. Onde você vai, a leva com você, como se fizesse parte do seu corpo. Tenho certeza que se você a perder, morreria  de tédio e de solidão. Diga sinceramente para seu pai: você ficaria sem a sua  bonequinha?

— Não, pai.

— Pois então, minha filha. Eu não ficaria sem o amor da sua mãe. Ela é essencial. É dela... Ou melhor, é dela que sai a minha felicidade e que me mantém vivo e respirando. Em outras palavras, é do coração dela que brota todo o amor incondicional que preenche a minha vida. Sem a sua mãe, seu papito não seria ninguém...

— O senhor sabe por que o pai da Débora foi embora?

— Ele foi embora? Desconhecia este fato... Acaso você sabe o motivo, minha princesa?

— Paizinho, o senhor sabe tanto quanto eu que ele foi embora...  

— Eu sei? De onde você tirou esta ideia maluca?

— Não é maluca, pai. O senhor sabe que ele foi embora e também sabe o motivo. A Debora me falou que foi por sua causa. Ela me segredou que toda noite, antes de ‘vim embora pra casa’, o senhor passa na lanchonete da mãe dela e bebe uma cerveja. Depois vocês vão lá para os fundos e trocam afagos, e se beijam...

O pai da garota quase teve um piripaque:

— Mentira, minha filha. Sua amiguinha Débora é uma grande mentirosa. E uma tremenda fofoqueira. Não dê ouvidos ao que ela lhe conta. Se esta desgraça de conversa fiada chega aos ouvidos da sua mãe... Jesus, Maria, José... Pelo amor de Deus, filha, esquece este assunto...

— Não tem como, pai. Assiste a estes vídeos que a Débora acabou de me mandar pelo meu whatsapp.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Prêmio Jabuti (Livros Premiados) – 2 –


Errata: Falha técnica. Na postagem anterior o livro “Galo, galo, não me calo” a autora é Sílvia Orthof. Cláudio Martins, como havia colocado é o ilustrador que ganhou o Prêmio Jabuti neste livro.

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Marina Colasanti
Antes de virar gigante e outras histórias


Mestra do ritmo e das palavras, Marina Colasanti transita por diferentes gêneros literários. Nesta coletânea, seu rico universo aparece em poesias, crônicas e contos. Narrativas emocionantes, animais protagonistas, memórias e situações insólitas levam o leitor a ter outras visões do mundo
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Ricardo Azevedo
Fragosas brenhas do mataréu


No século XVI, em Portugal, um garoto de 15 anos é condenado a trabalhar na frota portuguesa e embarcar para o novo mundo. A viagem acaba em naufrágio e, quando consegue pisar em terra firme, o menino sobrevive meses solitário, até encontrar um povoado. Entre paixões, perigos e descobertas, há o confronto das verdades estabelecidas e o desassossego de uma vida cheia de indagações
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Mário Teixeira
A linha negra


Em 1865, o brasileiro Casimiro é mandado para lutar na Guerra do Paraguai. O jovem vive terríveis experiências de combate e, nas noites de lua cheia, enfrenta um descontrole que deixa cicatrizes em seu corpo. Como se tudo isso não bastasse, ele se apaixona pela bela Francisca, a favorita do ditador paraguaio. Porém, o rapaz não fica muito tempo junto de sua amada, pois é enviado a uma perigosa trincheira: a linha negra. É então que sua jornada fica mais perigosa e imprevisível.

Em 2015, o livro Linha negra ganhou o prêmio Jabuti na categoria juvenil e o prêmio Glória Pondé de Literatura Juvenil, da Biblioteca Nacional.
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Gilles Eduar
Alfabeto de histórias


Para cada letra do alfabeto, Gilles Eduar criou uma história engraçada e cheia de brincadeiras. Os textos curtos trazem o máximo de palavras com a letra em questão, sempre mostrando bichos em situaçõesfora do comum. Além disso, o autor propõe atividades para o leitor interagir com o livro e relacionar texto e imagem.
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Mariana de Mello e Souza
África e Brasil africano


Este livro traz um consistente panorama da formação do continente e das sociedades africanas, o comércio de escravos para a América e a integração de seus descendentes à nossa sociedade, até a contemporaneidade. A obra apresenta ainda rica iconografia.
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Marcelo Xavier
Festas: o Folclore do Mestre André


Agora também com CD de áudio, o livro aborda as origens e características das festas populares brasileiras; os vários tipos de festas populares; as influências e adaptações que as festas receberam ao longo dos anos; as crenças, a fé e a alegria que movem essas festas; o folclore brasileiro: origens, manifestações, influências no nosso cotidiano etc.; modelagem e escultura; criação e construção de cenários.
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Raquel Coelho
O Teatro


Num texto fluente, gostoso, criando um clima de proximidade e cumplicidade com o leitor, Raquel Coelho desfila importantes informações sobre o teatro, fundamentadas com cuidado e seriedade, mostrando cenários, personagens, objetos, fatos relativos a essa manifestação artística. Seu texto, acompanha do de belíssimas ilustrações, também de sua autoria, feitas de retalhos, pequenos objetos, bonecos e sucata, leva o leitor, seja ele criança ou adulto, a percorrer os caminhos do teatro, saboreando cada página com prazer. Um livro que fala de arte feito com arte.
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Sílvia Orthof
A vaca Mimosa e a mosca Zenilda


Mimosa é tão linda que Zenilda decide ficar por perto para ver se fica bonita também. Mas a mosca incomoda demais! Zune na orelha e deixa Mimosa vesga ao parar bem no meio do nariz dela!
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Marcelo Xavier
Asa de Papel


Personagens e objetos de cena, moldados em massa plástica, montados em pequenos cenários e fotografados, mostram uma sucessão de quadros bem-humorados, líricos, intrigantes, surrealistas neste que é um dos livros mais premiados de Marcelo Xavier. O tempo todo a personagem, sempre a mesma em situações variadas, está lendo um livro que, na verdade, é a grande personagem, a asa de papel que nos transporta, sempre apresentado como fonte de prazer, de alegria, de informação, de sabedoria, como companhia, como refúgio. O texto curto, exato, poético, sem narrar propriamente uma história, conduz o leitor em um passeio cada vez mais repleto de expectativa, para um final inesperado
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Moacyr Scliar
Ciumento de carteirinha


Capitu traiu ou não? Numa disputa entre dois colégios, estudantes devem debater a questão e encenar o julgamento da personagem de Dom Casmurro.

Fonte:
Ebook da Equipe Coletivo Leitor.
https://www.coletivoleitor.com.br

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Rachel de Queiroz (O Vendedor de Ovos)


O DELEGADO — ... Bem, mas o senhor há de confessar que isso não é coisa que se faça a homem...

O PRESO — E agora pergunto eu ao senhor: e aquilo é homem? Será que pega em enxada, veste roupa de couro, monta a cavalo? Vai ver, nunca soube tirar o leite de uma vaca, nunca soube o que é limpar uma carreira de mato. Agora, viver desinquietando as famílias, comprando ilusão pras mulheres toda vez que vai na cidade — isso ele sabe. É trazer vidro de extrato, corte de estampado, lata de pó, até rede de fábrica! E ele não é nem galego, pra se fazer de mascate...

DELEGADO — Mas o homem não é negociante de ovos? Compra os ovos e paga com mercadoria.

PRESO — Ora, ovos, seu Delegado! Sei que os ovos estão muito caros — mas, do jeito que ele conta, nunca vi galinha nenhuma produzir assim. Lá em casa tem onze galinhas, mas botar o que as mulheres dizem, só cada uma botando três ovos por dia. E nenhuma choca nem levanta a postura. Faz meses que eu não vejo um ovo frito ou uma mal assada de toucinho no meu prato. Tudo é pro seu Anjinho! Até o nome dele, seu Delegado. Não quer se chamar nem José, nem Chico, nem Manuel, como qualquer homem... Como é o nome de Vossa Senhoria?

DELEGADO — Clodomir.

PRESO — Bem... Não é nome de santo que eu conheça... mas pelo jeito se vê que é nome de homem. Agora aquilo — diz que se batizou Ângelo, mas se as moças gostam de chamar de Anjinho, que é que se vai fazer? E fosse só o nome. Mas a vida dele é só, quer de baixo, quer de cima, pelos trens, comprando ovo aqui, vendendo ovo na cidade. Agora deu pra andar com um rádio, um radinho pequenininho, uma porqueira, canta fino como um danado, mas as mulheres acham a coisa mais linda. Chega pelas casas nas horas em que tudo que é homem saiu pro trabalho e já de longe o mulherio escuta o rádio estralando e botando a boca no mundo. No meu tempo, aquelas cantigas de beijo, com licença da palavra, só se cantava era em pensão de zona — mas agora o rádio ensina em qualquer casa de família... A gente, homens, conhece que seu Anjinho passou por ali porque, ao chegar em casa, só o que encontra é mulher andando pra dentro e pra fora e se esgoelando em samba carioca. E a meninada miúda pelos terreiros chutando pedra e gritando “Gol! Gol de Amarildo!”, porque naquele rádio ele também bota futebol. Aliás, esse negócio de mulher é tão medonho por rádio que uma moça nossa conhecida, que veio do Rio de Janeiro passar uns tempos com a mãe, trouxe um consigo e, até quando andava pelas casas, de visita, pagava um moleque pra ir na frente, carregando a caixotinha do rádio, cantando como um desesperado...

... Sim, seu Delegado, não estou fugindo do assunto, falar em rádio é o mesmo que estar falando no seu Anjinho. O senhor acha que ele está muito maltratado? Bem, também nunca foi bonito, um pouco mais amassado aqui ou ali, não faz alteração... A graça dele era aquele dente de ouro, mas isso ninguém arrancou. Pode ter amolengado um pouco, mas está lá, o beiço inchado é que não deixa ver direito. O cabelo? Ora, cabelo cresce. Diz que cabelo raspado, quando cresce, vem até mais cacheado...

... Seu Delegado, o senhor sabe qual era a outra mercadoria dele? Livreto de modinha! Achava pouco o rádio, ainda trazia o livreto pra ensinar as cantigas. Era botar o rádio tocando e as meninas em redor, de livreto aberto, acompanhando as letras. Deus que me perdoe, parecia até moça de coro aprendendo bendito! E pensar que mandei ensinar minhas filhas a ler pra semelhante resultado!

DELEGADO — E como é que você explica o braço quebrado?

PRESO — Quebrado? Aquilo é muito é dengoso! Seu Delegado, ninguém quebrou braço nenhum, não. Pode ter desmentido a junta, foi o mais que aconteceu: desmentiu. Ora, quebrar! Isso é parte daquele mimoso! Ninguém é perverso pra andar quebrando osso alheio. Sim, agora quebrar — quebrou foi a cesta dos ovos...

DELEGADO — Sessenta ovos.

PRESO — Está vendo o que eu disse? Sessenta ovos! O senhor já pensou que arraso nas capoeiras! Ora veja! Sessenta ovos! De onde terá saído?

DELEGADO — E, fora os ovos, ele ainda pede indenização pelas fazendas extraviadas.

PRESO — Extraviadas? Aqueles panos que ele carregava num saco? Seu doutor Clodomir, ninguém ficou com fazenda dele, não! Ora, pra que a gente queria as chitas dele? O que os meninos fizeram foi arrumar uma saia nele... com os panos mais floridos... Vossa senhoria me desculpe, mas todo mundo achava graça, e agora só de me lembrar ainda me dá vontade de rir... Os meninos tocando sanfona e obrigando o seu Anjinho a dançar, arrastando a saia... Era ver uma cigana. Ele diz que era à força — mas o diabo é tão sem sentimento na cara que assim mesmo requebrava…

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do Morro Branco. Publicado em 1999.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 5 –

A ave presa, quando voa
de volta ao seu velho ninho...
Canta feliz e perdoa,
por ser poeta e passarinho!
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Ao palhaço velho e manco
no picadeiro é preciso,
disfarçar um riso franco,
por trás de um triste sorriso!
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Aos pés, da Virgem Maria,
enquanto a cega rezava...
Rezava, e nem percebia
que a Virgem também chorava!
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Canarinho, nossos cantos
têm semelhanças demais...
Fazes preces de teus prantos
e eu, orações dos meus ais!
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Como modelar meu sonho
que fala de amor e paz,
se bem cedinho, é risonho
e, ao por do sol, se desfaz?...
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Das juras que nós fizemos
o que resta se resume,
em falsas juras sem remos,
nos mares do teu ciúme!
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De joelhos, mantendo a calma,
sinto na velha abadia
que, o sino também tem alma,
quando bate ao fim do dia!
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Deus põe o ventre do amor,
até na planta que gera.
Por isso, a roseira em flor,
eclode na primavera!
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Do fogo antigo apagado
na silhueta de um fogão,
quantas cinzas do passado
sobre as cinzas do meu chão!
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Não reclames do teu pranto
nem de alguma hipocrisia,
que há uma gota, em cada canto,
na aridez de cada dia!
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Não sei por que me receias,
se estou com outras mulheres;
se a mim, dizes que me odeias
e aos outros, que tu me queres!
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No silêncio, em que medito,
nas horas de solidão,
penso na luz do infinito
e esqueço a luz da razão!
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O melhor conselho, filho,
busca na voz do mais velho,
que tem sempre o intenso brilho
da luz do santo evangelho!
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Ó, velho mar, tu traduzes,
de qualquer ponto ao teu cais...
A dor de incontáveis cruzes,
nos disfarces de teus ais!
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Para o teu sonho indiscreto
e, o meu sonho, inconsequente,
peço ao Sublime Arquiteto
que inverta os sonhos da gente!
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Passa a procissão na rua.
No meio da multidão...
A solidão continua,
sendo a mesma solidão!...
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Por mais pedinte que seja,
e insista com tanto ardor;
mesmo assim, não se apedreja
quem mendiga o pão do amor!
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Quando a noite, de surpresa,
apaga a luz do luar;
a luz da paz fica acesa
nas luzes do teu olhar!
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Quanto mais ando sozinho,
mais em ti, penso e medito;
como quem traça um caminho
no caminho do infinito!
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Quem contempla o mar, nem sabe
que, essa voz que não se cansa;
pede aos céus, que não se acabe
a voz de nossa esperança!
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Quem espalha flor a esmo,
sem fazer mal a ninguém,
deixa das mãos de si mesmo,
perfume nas mãos de alguém!
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Se o velho mar, não declina,
reclama da vida dura.
É sempre a mesma rotina,
dentro da mesma clausura!
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Sou ave presa e canora,
que embarga a voz na garganta,
fingindo a paz quando chora
chorando a dor quando canta!
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Toda tarde escuto vozes,
depois que, o sol diz adeus!...
Já são das dores atrozes
do outono dos dias meus!
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Velha beata, de joelhos,
em silêncio e, à meia luz,
decifra santos conselhos
que há no silêncio da cruz!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Rubem Braga (Valente menina)


Debruçado cá em cima, no 13.° andar, fiquei olhando a porta do edifício à espera de que surgisse o seu vulto lá embaixo.

Eu a levara até o elevador, ao mesmo tempo aflito para que ela partisse e triste com a sua partida. Nossa conversa fora amarga. Quando lhe abri a porta do elevador esbocei um gesto de carinho na despedida, mas, como eu previra, ela resistiu. Pela abertura da porta vi sua cabeça de perfil, séria, descer, sumir.

Agora sentia necessidade de vê-la sair do edifício, mas o elevador deve ter parado no caminho, porque demorou um pouco a surgir seu vulto rápido. Desceu a escada fez uma pequena volta para evitar uma poça de água, caminhou até a esquina, atravessou a rua. Vi-a ainda um instante andando pela calçada da transversal, diante do café; e desapareceu, sem olhar para trás.

“Valente menina!” — foi o que murmurei ao acaso lembrando um verso antigo de Vinicius de Moraes; e no mesmo instante me lembrei também de uma frase ocasional de Pablo Neruda, num domingo em que fui visitá-lo em sua casa de Isla Negra, no Chile. “Que valientes son las chilenas!” dissera ele, apontando uma mulher de maiô que entrava no mar ali em frente, na manhã nublada; e explicara que estivera andando pela praia e apenas molhara os pés na espuma: a água estava gelada, de cortar.

“Valente menina!” Lá embaixo, na rua, era tocante seu pequeno vulto, reduzido pela projeção vertical. Iria com os olhos úmidos ou sentiria apenas a alma vazia? “Valente menina!” Como a chilena que enfrentava o mar, em Isla Negra, ela também enfrentava sua solidão. E eu ficava com a minha, parado, burro, triste, vendo-a partir por minha culpa.

Deitei-me na rede, sentindo dor de cabeça e um certo desgosto por mim mesmo. Eu poderia ser pai dessa moça — e me pergunto o que sentiria, como pai, se soubesse de uma aventura sua, como essa, com um homem de minha idade. Tolice! Os pais nunca sabem nada, e quando sabem não compreendem; estão perto e longe demais para entender. Ele, esse pai de quem ela falava tanto, não acreditaria se a visse entrar pela primeira vez em minha casa, como entrou, com sua bolsa a tiracolo, o passo leve e o riso nervoso. “Como você pensava que eu fosse?” Lembro-me de que fiquei olhando, meio divertido, meio assustado, aquela mocetona loura e ágil que só falava me olhando nos olhos, e me fez as confissões mais íntimas e graves entremeadas de mentiras pueris — sempre me olhando nos olhos. Disse-me que a metade das coisas que me contara pelo telefone era pura invenção — e logo inventou outras. Senti que suas mentiras eram um jeito enviesado que ela tinha de se contar, um meio de dar um pouco de lógica às suas verdades confusas.

A ternura e o tremor de seu duro corpo juvenil, seu riso, a insolência alegre com que invadiu minha casa e minha vida, e suas previsíveis crises de pranto — tudo me perturbou um pouco, mas reagi. Terei sido grosseiro ou mesquinho, terei deixado sua pequena alma trêmula mais pobre e mais só?

Faço-me estas perguntas, e ao mesmo tempo me sinto ridículo em fazê-las. Essa moça tem a vida pela frente, e um dia se lembrará de nossa história como de uma anedota engraçada de sua própria vida, e talvez a conte a outro homem olhando-o nos olhos, passando a mão pelos seus cabelos, às vezes rindo — e talvez ele suspeite de que seja tudo mentira.

Fonte:
Rubem Braga. in Conto Brasileiro.

Prêmio Jabuti (O que é e Livros Premiados) - 1 -


O Prêmio Jabuti foi criado em 1958 pelos dirigentes da Câmara Brasileira do Livro (CBL), interessados em premiar aqueles do ramo literário que mais se destacassem em cada ano. A primeira edição aconteceu em 1959, onde o escritor Jorge Amado recebeu o prêmio maior na categoria romance com “Gabriela, cravo e canela” e a Editora Saraiva foi premiada Editora do Ano.

As categorias e prêmios foram alteradas ao longo dos anos. Em 2018, foi completamente repaginado buscando aproximar mais o leitor dos editores e autores. Uma grande novidade foi o lançamento da categoria Formação de Novos Leitores que visa reconhecer iniciativas de estímulo à leitura.

Em 2020 aconteceu a 62ª edição do Prêmio Jabuti.

E porque um Jabuti?

Como foi que um animal tão simples ganhou a simpatia dos dirigentes da premiação? O jabuti é um animal facilmente encontrado em diversas regiões brasileiras. No período de criação do prêmio, o ambiente literário era marcado pelo modernismo, com suas inspirações nacionalistas e a ideia de valorização da cultura popular, das raízes indígenas e da cultura africana.

O caminho do jabuti do mato para a premiação se inicia em Reinações de Narizinho, livro infantil do escritor Monteiro Lobato. Na obra, o jabuti é um dos personagens. Ele é lento, mas obstinado! A partir daí tudo é história e esse simpático animal foi eleito o símbolo da premiação.

OBRAS PREMIADAS DAS EDITORAS DO COLETIVO LEITOR

O Coletivo Leitor busca promover o incentivo à leitura e a troca de
conhecimentos sobre literatura, ensino literário e tudo que relacione o mundo dos livros ao universo da educação. Em seu acervo, reúne obras de seis grandes selos editoriais: Ática, Scipione, Saraiva, Atual, Formato e Caramelo.
 
Somando as publicações de todos esses temos mais de 1.600 obras
em nosso catálogo! Dentre elas, estão livros de autores nacionais e
estrangeiros, traduções e muitos deles foram indicados e venceram
premiações importantes do mundo literário.
 
Neste material, separamos algumas obras ganhadoras do Prêmio
Jabuti, uma das mais importantes premiações do nosso país. Você
poderá conferir quais livros ganharam o prêmio.

Livros Destacados

Raul Pompéia
O Ateneu


Sérgio está prestes a enfrentar a educação repressora do famoso internato Ateneu. Lá, ele terá de lidar com a brutalidade dos colegas e do diretor, superando a falta da família e o recém-abandonado universo infantil. As marcas desse mundo constritor permanecerão nas lembranças do adulto, que escreve melancolicamente suas memórias. Nessa narrativa a um só tempo doce e amarga, Raul Pompéia traça um retrato impressionista do processo de formação da individualidade flagrado em seus momentos mais decisivos.
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Ana Maria Machado
Histórias Meio ao Contrário


Nesta narrativa ao contrário, o príncipe e a princesa não se contentam em ser felizes para sempre – porque é assim que começa a história deles. Eles decidem fazer sua própria trajetória, numa trama cheia de surpresas.
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Jane Tutikian
A cor do azul


Obra vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Juvenil (1984). O livro narra a turbulenta passagem da infância à puberdade. As dúvidas, as paixões, os sonhos, os medos e as descobertas da narradora-personagem são um convite para vermos o mundo com novos olhos. Uma obra de rara sensibilidade.
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Giselda Laporta, Ganymedes José
Awankana, o segredo da múmia Inca


Em 1994, quatro pessoas são encontradas mortas no Museu de Arqueologia Latino-Americano, ao lado de uma múmia inca. No chão, uma faca cerimonial de ouro, com a figura de um deus alado incaico. Tão logo tomam conhecimento dessa notícia, Sach’a e o professor Ortegas partem de Cuzco para São Paulo. Havia chegado a hora de encontrar o elo perdido, de tentar desfazer um mistério de quinhentos anos.
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José Paulo Paes
Poemas para brincar


Um clássico da poesia infantil brasileira em que José Paulo Paes propõe a seus leitores brincar com a língua portuguesa. Os poemas apresentam jogos de palavras e até um abecedário com significados inusitados, que diverte, instiga a criatividade das crianças e ainda faz pensar.
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Claudio Martins
Galo, galo,
não me calo


História do galo da menina Fanci, moradora de uma rua de Copacabana, numa casa pequena com quintal, no meio da cidade do Rio de Janeiro. Prosa poética que narra o conflito entre o galo, que todas as manhãs canta para saudar o Sol, e os moradores da vizinhança, que vivem nos altos edifícios próximos à casa de Fanci e que tentam calar o galo a todo custo. Uma história ecológica que mostra a cidade grande com seus carros, buzinas, fumaça, prédios, lixo expulsando a natureza para longe de si.
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Lourenço Casarré
Nadando contra a morte


Vinda do interior para trabalhar como doméstica com uma família de classe média, Maria do Amparo, 14 anos, é estuprada pelo patrão e engravida. A menina consegue esconder da patroa a gravidez, mas não a criança. E recebe um ultimato: que se livre dela. Desesperada, depois de andar a esmo pelas ruas, Maria do Amparo se atira no rio com a filhinha. A história de Maria do Amparo e seu salvamento por dois esportistas (um nadador e um remador) é narrada por meio de depoimentos da menina, do nadador, do remador, do capitão do Corpo de Bombeiros, que tira todos do rio, e de outras personagens que presenciaram o fato. Numa agilidade de reportagem, a história tem a dose exata de emoção. Adaptado para o cinema no longa “Amparo”, dirigido por Ricardo Pinto e Silva.
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Ana Maria Machado
Fiz voar o meu chapéu


Prosa poética deliciosa, com rima e ritmo bem marcados. Um chapéu que voa, voa… e vai passando por riachos, coronéis, senhoras, caciques, marinheiros, botes e cachoeiras até virar ninho de passarinho (com varanda e tudo!). O texto é constituído por dísticos cheios de musicalidade. O ponto de vista é de uma criança que traduz com humor, sonoridade e simplicidade as brincadeiras do seu cotidiano: no caso, fazer voar o seu chapéu.
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Raquel Coelho
A arte da animação


Como pessoas curiosas inventaram estranhas engenhocas com luzes e desenhos para dar vida à animação e, com isso, criaram efeitos mirabolantes para a época, século XIX. Além da origem da animação, o leitor poderá saber sobre a evolução dessa arte até os dias de hoje, quando o computador virou um instrumento de apoio para o animador. O texto fala também das várias técnicas usadas, dá exemplos de filmes que utilizaram a animação como recurso de enriquecimento gráfico. As ilustrações, feitas de pequenos objetos, sucata, retalhos, vão envolver ainda mais o leitor nesse texto gostoso e curioso sobre a arte da animação.
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Ricardo Azevedo
Contos de enganar a morte

“Sair desta para uma melhor” não parece ser exatamente o desejo de Zé Malandro, do médico, do ferreiro e de um jovem viajante. O que eles querem mesmo é gozar a vida, e acham que é possível dar um jeitinho de tapear dona Morte. Mas acontece que com Ela não tem conversa mole que resolva. Quando chega a hora, não adianta bater o pé. É o que aprendem os personagens dessas prazerosas narrativas populares recolhidas e recontadas por Ricardo Azevedo neste livro. O médico, por exemplo, faz a Morte prometer que somente seria levado assim que terminasse de rezar o Pai-Nosso. Quando ele anuncia que demorará anos para recitar o final da prece, ela vai embora contrariada. O ferreiro manda sua esposa dizer que ele não está em casa toda vez que a danada bate à sua porta. O jovem viajante abriga-se em uma terra onde a vida é eterna. E Zé Malandro, muito espertamente, encontra mais de uma maneira de enganar sua algoz.
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Luiz Vilela
Sofia e outros contos

Seis contos sobre simplicidade: a Sofia dos tomates, um regalo de Natal, um passado, um monstro, uma lagartixa e… amanhã eu volto. Divertidas, comoventes, engraçadas, líricas ou trágicas, algumas das melhores histórias de um dos mais notáveis contistas brasileiros estão reunidas nesta obra, que foi 3º lugar no Prêmio Jabuti 2010, na categoria Juvenil.
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Continua… mais livros premiados.

Fonte:
Ebook da Equipe Coletivo Leitor.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 478

 


Fernando Sabino (Fantasmas de Minas)


Assim que ele soube que eu e ela pretendíamos passar o carnaval em Ouro Preto e não conseguíamos hotel, amavelmente ofereceu-nos sua casa. É uma linda casa, informou com ar matreiro.

Tão matreiro que dava até para desconfiar. Mas eu já ouvira falar na casa, do tempo em que Marchette morava lá e passava o dia pintando seus belos quadros de fundo verde-escuro. O próprio Scliar retratou recentemente, numa sucessão múltipla de lindos quadros, 180 graus da paisagem de Ouro Preto vista da janela da casa. E eu sabia que Vinícius, entre outros, costumava passar longas temporadas hospedado lá. Uma casa de artistas, portanto. Não havia por quê desconfiar.

E lá fomos nós, serpenteando pelas longas estradas de Minas. Passamos Juiz de Fora, Barbacena, Santos Dumont — quando dei por mim Belo Horizonte já estava pintando e nada de Ouro Preto. Paramos num posto de gasolina.

— Pode nos informar se já passamos a estrada de Ouro Preto?

O mineiro coçou a cabeça, cauteloso:

— É conforme, moço: de que lado ocês tão vindo?


Minha primeira desconfiança surgiu diante do portão: enorme, enferrujado como o de um cemitério do interior, fechado a cadeado com duas correntes, sinistro dentro da noite que baixara. E atrás dele não havia casa alguma.

— Pula o muro — sugeriu um menino, morador nas vizinhanças. — É assim que o caseiro faz.

O muro de pedra era realmente baixo e fácil de ser pulado. Então para que o portão? — me perguntei, depois de seguir a recomendação do menino.

Não tive tempo de me perguntar mais nada: de súbito me vi despingolando pirambeira abaixo, tropeçando no calçamento de pedras irregulares, mergulhando na escuridão como nas profundas dos infernos. Consegui afinal frear o corpo diante de uma pontezinha de madeira envolta em sombras — e divisei a casa, do outro lado, encravada no meio da encosta, portas e janelas fechadas. Tudo às escuras, sem o menor sinal de vida. O caseiro, onde estaria o caseiro? Pelo sim pelo não, resolvi voltar e voltar correndo, escarpa acima, antes que as sombras me engolissem. Cheguei ao portão botando o coração pela boca, entrei no carro:

— Não tem ninguém lá — informei, quando recuperei a fala.

O mesmo menino nos ensinou onde morava o caseiro — e em pouco a mulher do caseiro vinha abrir a casa para que nos instalássemos. Pairava nos quartos fechados um ar de cinco meses atrás. Preferimos os de cima, instintivamente recusando a sugestão da caseira, segundo a qual Vinícius costumava ficar nos de baixo: o acesso a eles se fazia por uma escada apertada e lúgubre como as que levam às masmorras de um castelo.

— Não deixem de trancar bem as portas — recomendou a mulher. E nos entregou à nossa própria sorte.

Nessa primeira noite atribuí o sussurro de vozes no porão ao vento que soprava lá fora; o ruído de portas que se abriam e se fechavam a estalos de madeira velha; os passos no corredor aos excessos de minha mórbida imaginação. Não disse palavra sobre o assunto — mesmo porque não teria voz para tanto. Preferi fingir que dormia, e a manhã veio me encontrar insone, mas lépido e fagueiro como um ressuscitado: a luz do dia reintegrava a casa em seu contexto, harmoniosamente recomposta na paisagem de Ouro Preto, como me haviam antecipado: realmente uma bela casa antiga.

Talvez um pouco mais antiga do que eu desejaria.

Mas o que não é antigo na antiga Vila Rica? O Pouso de Chico Rei, por exemplo, onde fomos recebidos de maneira fidalga com um excelente almoço, é um modelo de bom gosto em matéria de antiguidade. Lá encontramos toda uma equipe de cinema, empenhada na filmagem daquela história de Drummond sobre a moça que recolhe uma flor num sepulcro e à noite recebe telefonemas sepulcrais.

Por causa do carnaval, os guardas impedem a passagem dos carros nas ruas do centro, o jeito é mesmo ir a pé. E tome ladeira. Há quem sugira que a melhor maneira de subir é de costas, para se ter a ilusão de estar descendo. E o carnaval comendo solto na cidade, com bumbos e zabumbas tocando zé-pereira noite adentro. Só que isso não tem nada a ver com Ouro Preto.

Então nos recolhemos à nossa tebaida. Transpomos o pesado portão de ferro e vamos escorregando ladeira abaixo, tropeçando na escuridão. A ponte de madeira, pude verificar durante o dia, se lança sobre uma grota abismal onde reside há milênios um dragão de sete cabeças. Agora à noite ele só espera que cruzemos a ponte para reduzirnos a cinzas com um jato de fogo saído de uma das suas sete bocarras.

Mal ousamos iniciar a travessia, percebo que a janela do andar inferior — o tal quarto do Vinícius — está acesa.

— Hoje vai ter festa no porão — adverti.

Entramos pela cozinha e trancamos a porta, como se nada estivesse acontecendo. Mas quem é que era homem de ir lá embaixo apagar a luz que nem eu nem ela havíamos acendido? Tendo verificado que as portas e janelas cá em cima estavam devidamente fechadas, resolvi ignorar o que se passava lá embaixo.

Quando já me recolhia ao quarto, eis que de súbito é posta à prova a minha natureza de homem:

— Será que você pode me trazer um copo d'água? — pediu ela.

Como negar água aos que têm sede? Revesti-me de bravura e fui à cozinha buscar o copo d'água.

Somente quando vinha voltando é que as janelas e portas da sala me chamaram a atenção. Estavam abertas.

— Não é por nada não, mas as portas e janelas da sala estão escancaradas.

Ela pensou que eu estivesse brincando — tive de levá-la até a sala  para que acreditasse.

— Foi você mesmo.

— Eu? Não brinco com essas coisas.

Ela se voltou com olhos enormes:

— Que tal se a gente fosse embora daqui?

Nunca uma sugestão judiciosa como essa foi tão prontamente aceita.


Em Tiradentes o fantasma do Padre Toledo passeia pelo imenso casarão onde ele morou, hoje transformado em museu. Não se vê viva alma pelas ruas: a cidade muito quieta sob o sol, caiada de branco como um sepulcro, tudo parado nas ruas mortas.

Resolvemos seguir viagem, e sem olhar para trás, para não nos transformarmos em estátuas de pedra-sabão.

Em Congonhas o que há é a igreja sob a guarda de seus doze Profetas. Doze fantasmas? Em voo lento, um urubu risca o azul do céu. Tudo quieto aqui embaixo, parado, em suspenso. Até aqui não chega a confusão do mundo. Saímos do mundo. O tempo parou. Projetados contra o céu, eles são, como afirmou o poeta, “magníficos, terríveis, graves e ternos” “nesta reunião fantástica, batida pelos ares de Minas”.

E em Belo Horizonte o fantasma sou eu próprio. Procuro nestas ruas mal assombradas a cidade invisível onde vivi até a juventude. Ao dobrar uma esquina, esbarro com o fantasma de um jovem de 20 anos.

Ao regressar ao Rio, sentimos que alguma coisa nos acompanha: alguma coisa feita de ar e imaginação, que não é propriamente um fantasma, mas o espírito de Minas a impregnar-nos de passado e de eternidade. E aceleramos alegremente em direção ao futuro.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Baú de Trovas XXVIII


Invejando a liberdade
que, de fato, tu possuis,
meu destino é ser escravo
desses teus olhos azuis!
APARÍCÍO    FERNANDES
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Para dizer a verdade,
tudo o que sou vem de ti:
— Toda esta felicidade
começou quando te vi.
ALMIR SOARES
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Esses teus olhos tristonhos,
tristonhos e cismadores,
enchem minha alma de sonhos
e o coração de temores...
IRINEU GUIMARÃES
= = = = = = = = = = =
Haverá maior encanto,
neste mundo já sem brilho,
do que ouvir o terno canto
da mãe que embala seu filho?
MARIA STELLA DE ALMEIDA MOURA
= = = = = = = = = = =

Mais bebo, mais me angustio,
tamanha é a dor que me invade.
— Sou planta de beira-rio,
numa enchente de saudade.
PAULO EMÍLIO PINTO
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A vida avança e recua,
quanto destino imprevisto!
Ontem, dizias: "Sou tua!".
Hoje, nem sabes que existo…
R. ESTRÊLA
= = = = = = = = = = =
Que importa a fatalidade
que te deixou sem carinho?
Enquanto existir saudade,
ninguém viverá sozinho!
RAUL SERRANO
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Meus poemas vão girando
em torno de um mal infindo:
— eu, a fazê-los chorando;
— tu, a rasgá-los sorrindo...
RENATO BASTOS VIEIRA
= = = = = = = = = = =
Saudade — planger de sino
em tarde calma, dolente:
prelúdios de violino
ferindo o peito da gente!...
RENATO DE LACERDA
= = = = = = = = = = =
Por nosso amor me intimido,
e vivo a te intimidar.
— Tu sofres porque eu duvido,
e eu sofro por duvidar...
RICARDINA YONE
= = = = = = = = = = =
Quando tive a tua carta
tão leve, na minha mão,
percebi quanto pesavas
dentro do meu coração.
ROBERTO LOPES
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Não há criança vadia...
E as que esmolam a teus pés
são anjos que Deus envia
para saber quem tu és.
ROBERTO MEDEIROS
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O que tem acontecido
desde o dia em que te vi:
– Vencendo, fiquei vencido;
ganhando, tudo perdi!
RODRIGO JÚNIOR
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Não me chames de senhor,
que não sou tão velho assim.
Ao teu lado, meu amor,
não sou senhor nem de mim. ..
RODRIGUES CRÊSPO
= = = = = = = = = = =
Neste amor aberto em palmas,
espero encontrar, depois,
um céu para duas almas
e um sonho para nós dois.
R. PETIT
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Não me importa o teu destino,
se tens ou não tens razão.
— Farei qualquer desatino,
levado por tua mão!
SEBASTIÃO PAIVA
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Ninguém traduz os segredos
que um beijo pode conter...
Antes morrer-se de um beijo,
do que sem beijos viver!
SEGUNDO WANDERLEY
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Eu quis que o meu coração
só pertencesse a você,
mas ele tem ambição...
gosta de todas que vê!
SERAFIM SOFIA
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Beijo mais puro e mais lindo
ninguém decerto conhece
que o de duas mãos se unindo
na comunhão de uma prece.
SÉRGIO FONSECA
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Tu, ó Maria da Glória,
que tanta graça irradias,
mais que Maria da Glória,
és a glória das Marias!
SOARES DA CUNHA
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As tuas mãos pequeninas,
se as estendes com fervor,
são duas asas divinas
voando em busca de amor.
SOLIMAR DE OLIVEIRA
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Por muito amar pago o preço
de tanto e tanto sofrer,
mas ao fitar-te me esqueço
de que te devo esquecer.
TEIXEIRA LEITE
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No tédio de minha vida.
de emoções vazia e nua,
só me torna comovida
a esperança de ser tua!...
VERA MILWARD DE CARVALHO
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Que nos importa a distância
que meu desvelo te furta?
Quando o amor possui constância,
toda distância é bem curta!
VICENTE CAPUANO
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Mal sabes tu, que desprezas
os olhos com que te sigo,
que meus olhares são rezas
ditas baixinho, comigo...
VICENTE DE CARVALHO

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Moacyr Scliar (Parada obrigatória)


"1.000 Lugares para Conhecer Antes de Morrer", best-seller mundial da americana Patricia Schulz lançado no Brasil pela Sextante, traz cerca de 20 paradas obrigatórias no país.
Mônica Bergamo, 23 de abril de 2006


Tão logo ele tomou conhecimento dos mil lugares imperdíveis no mundo, decidiu: seria o primeiro brasileiro a conhecê-los todos. Homem muito rico, recursos para isso não lhe faltariam. Pretendia, inclusive, realizar este périplo em tempo recorde, em primeiro lugar para dar à façanha ainda maior destaque e depois porque, pela idade, já não podia fazer planos a longo prazo.

Assim, tudo o que faria era entrar nos lugares mencionados na obra, tirar uma foto e seguir adiante. Consultou um amigo, dono de uma grande agência de turismo. Sim, era possível fazer aquilo em um ano, desde que ele alugasse um jatinho particular. O que sem demora foi feito, e assim ele partiu, disposto a visitar pelo menos três lugares por dia. Era difícil, mas ele o conseguiu e assim pouco a pouco foi riscando os lugares de sua lista.

Deixou o Brasil para o fim. Em nosso país eram cerca de 20 lugares, a maioria deles em São Paulo, cidade onde nascera e onde morava. Os amigos esperavam que ali se encerrasse a gloriosa trajetória, mas seus planos eram diferentes. Queria terminar com o Copacabana Palace, no Rio.

Havia uma razão para isso, uma razão muito especial. Anos antes ele se apaixonara por uma mulher, uma jovem e linda carioca. Paixão tão fulminante, tão avassaladora, que ele decidira largar tudo, esposa, filhos, empresas e viver com a moça no Rio. Para tanto, haviam marcado um encontro no Copacabana Palace.

Encontro ao qual ele não compareceu. Chegou a viajar para o Rio e, no aeroporto, tomou um táxi para ir ao famoso hotel, mas no meio do caminho desistiu: não, não abandonaria tudo que havia conquistado por causa de uma aventura amorosa. Voltou a São Paulo sem ir ao Copacabana Palace -no qual, aliás, nunca entrara.

Agora, finalmente, adentraria o hotel. Não mais para uma aventura, mas para gozar seus 15 minutos de fama. Seus assessores haviam avisado a imprensa, que lá estaria para registrar o clímax da aventura, a chegada ao último dos mil lugares.

Já era noite quando o jatinho pousou no aeroporto. Ele tomou um táxi. Nervoso: já estava atrasado. E, para cúmulo do azar, havia um congestionamento em Copacabana. Decidiu completar o trajeto a pé, apesar das advertências do motorista.

Já estava a uns 200 metros do famoso prédio da avenida Atlântica, quando o assaltante lhe apontou o revólver. Ele fez um gesto - um gesto que queria dizer leve tudo, mas não me retenha, tenho um encontro com o Destino - mas foi mal interpretado: o homem achou que ele tentava reagir e disparou.

Caído no chão, agonizante, tinha apenas uma mágoa: havia um lugar, um único entre mil outros lugares, que ele não veria antes de morrer. O problema, concluiu antes de expirar, é que a gente não pode ter tudo o que se quer na Vida.

Fonte:
Folha de São Paulo. Caderno Cotidiano. SP: 01 de maio de 2006.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 477


 

Carlos Drummond de Andrade (Ciao)


Há 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar térreo do prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira página de um jornal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redação. O homem olhou-o, cético, e perguntou:

- Sobre o que pretende escrever?

- Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo e de qualquer outro possível.

O diretor, ao perceber que alguém, mesmo inepto, se dispunha a fazer o jornal para ele, praticamente de graça, topou. Nasceu aí, na velha Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de Deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices.

Comete é tempo errado de verbo. Melhor dizer: cometia. Pois chegou o momento deste contumaz rabiscador de letras pendurar as chuteiras (que na prática jamais calçou) e dizer aos leitores um ciao-adeus sem melancolia, mas oportuno.

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Creio que ele pode gabar-se de possuir um título não disputado por ninguém: o de mais velho cronista brasileiro. Assistiu, sentado e escrevendo, ao desfile de 11 presidentes da República, mais ou menos eleitos (sendo um bisado), sem contar as altas patentes militares que se atribuíram esse título. Viu de longe, mas de coração arfante, a Segunda Guerra Mundial, acompanhou a industrialização do Brasil, os movimentos populares frustrados mas renascidos, os ismos de vanguarda que ambicionavam reformular para sempre o conceito universal de poesia; anotou as catástrofes, a Lua visitada, as mulheres lutando a braço para serem entendidas pelos homens; as pequenas alegrias do cotidiano, abertas a qualquer um, que são certamente as melhores.

Viu tudo isso, ora sorrindo ora zangado, pois a zanga tem seu lugar mesmo nos temperamentos mais aguados. Procurou extrair de cada coisa não uma lição, mas um traço que comovesse ou distraísse o leitor, fazendo-o sorrir, se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que às vezes se torna cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que outros o façam.

Crônica tem essa vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou comentários precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadiação de espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo.

Com esse espírito, a tarefa do croniqueiro estreado no tempo de Epitácio Pessoa (algum de vocês já teria nascido nos anos a.C. de 1920? duvido) não foi penosa e valeu-lhe algumas doçuras. Uma delas ter aliviado a amargura de mãe que perdera a filha jovem. Em compensação alguns anônimos e inominados o desancaram, como a lhe dizerem: “É para você não ficar metido a besta, julgando que seus comentários passarão à História”. Ele sabe que não passarão. E daí? Melhor aceitar as louvações e esquecer as descalçadeiras.

Foi o que esse outrora-rapaz fez ou tentou fazer em mais de seis décadas. Em certo período, consagrou mais tempo a tarefas burocráticas do que ao jornalismo, porém jamais deixou de ser homem de jornal, leitor implacável de jornais, interessado em seguir não apenas o desdobrar das notícias como as diferentes maneiras de apresentá-las ao público. Uma página bem diagramada causava-lhe prazer estético; a charge, a foto, a reportagem, a legenda bem feitas, o estilo particular de cada diário ou revista eram para ele (e são) motivos de alegria profissional. A duas grandes casas do jornalismo brasileiro ele se orgulha de ter pertencido ― o extinto Correio da Manhã, de valente memória, e o Jornal do Brasil, por seu conceito humanístico da função da Imprensa no mundo. Quinze anos de atividade no primeiro e mais 15, atuais, no segundo, alimentarão as melhores lembranças do velho jornalista.

E é por admitir esta noção de velho, consciente e alegremente, que ele hoje se despede da crônica, sem se despedir do gosto de manejar a palavra escrita, sob outras modalidades, pois escrever é sua doença vital, já agora sem periodicidade e com suave preguiça. Ceda espaço aos mais novos e vá cultivar o seu jardim, pelo menos imaginário.

Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo.
Carlos Drummond de Andrade

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Ciao foi publicada no dia 29 de setembro de 1984, no Caderno B do Jornal do Brasil. Era a despedida de Drummond do gênero crônica.

De 1969 até 1984, Carlos Drummond de Andrade escreveu três vezes por semana para o Caderno B, suplemento cultural do Jornal do Brasil. Foram publicadas, aproximadamente, 2.300 crônicas, com temas sempre relacionados com a vida cotidiana, como o futebol, a música, a memória individual e a memória coletiva. Nos textos é possível identificar elementos comuns à poesia, o lirismo que o poeta sempre dava a esse gênero que caminha entre o jornalismo e literatura.


Fonte:
– Luana Castro. Ciao: a última crônica de Carlos Drummond de Andrade. Disponível em Brasil Escola.

Álvares de Azevedo (Poemas Escolhidos) – 3 –

VI


Brandas ribeiras, quanto estou contente
De ver nos outra vez, se isto é verdade!
Quanto me alegra ouvir a suavidade,
Com que Fílis entoa a voz cadente!

Os rebanhos, o gado, o campo, a gente,
Tudo me está causando novidade:
Oh como é certo, que a cruel saudade
Faz tudo, do que foi, mui diferente!

Recebei (eu vos peço) um desgraçado,
Que andou té agora por incerto giro
Correndo sempre atrás do seu cuidado:

Este pranto, estes ais, com que respiro,
Podendo comover o vosso agrado,
Façam digno de vós o meu suspiro.
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VII

Onde estou? Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-lo tímido esmoreço.

Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
De estar a ela um dia reclinado:
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!

Árvores aqui vi tão florescentes,
Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.

Eu me engano: a região esta não era:
Mas que venho a estranhar, se estão presentes
Meus males, com que tudo degenera!
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VIII

Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.

Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.

Oh quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e as vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!

Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
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IX

Pouco importa, formosa Daliana,
Que fugindo de ouvir me, o fuso tomes;
Se quanto mais me afliges, e consomes,
Tanto te adoro mais, bela serrana.

Ou já fujas do abrigo da cabana,
Ou sobre os altos montes mais te assomes,
Faremos imortais os nossos nomes,
Eu por ser firme, tu por ser tirana.

Um obséquio, que foi de amor rendido,  
Bem pode ser, pastora, desprezado;
Mas nunca se verá desvanecido:

Sim, que para lisonja do cuidado,
Testemunhas serão de meu gemido
Este monte, este vale, aquele prado.
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X

Eu ponho esta sanfona, tu, Palemo,
Porás a ovelha branca, e o cajado;
E ambos ao som da flauta magoado
Podemos competir de extremo a extremo.

Principia, pastor; que eu te não temo;
Inda que sejas tão avantajado
No cântico amebeu*: para louvado
Escolhamos embora o velho Alcemo.

Que esperas? Toma a flauta, principia;
Eu quero acompanhar te; os horizontes
Já se enchem de prazer, e de alegria:

Parece, que estes prados, e estas fontes
Já sabem, que é o assunto da porfia
Nise, a melhor pastora destes montes.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Nota:
* Amebeu
– designativo de um verso latino com duas sílabas longas seguidas de duas breves e uma longa.


Fonte:
Álvares de Azevedo. Poesias. Livro publicado em 1853.

Monteiro Lobato (O fígado indiscreto)


Que há um Deus para o namoro e outro para os bêbados está provado — a contrario sensu. Sem eles, como explicar tanto passo falso sem tombo, tanto tombo sem nariz partido, tanta beijoca lambiscada a medo sem maiores consequências afora uns sobressaltos desagradáveis, quando passos inoportunos põem termo a duos de sofá em sala momentaneamente deserta?

Acontece, todavia, que esses deuses, ao jeito dos de Homero, também cochilam: e o borracho parte o nariz de encontro ao lampião, ou a futura sogra lá apanha Romeu e Julieta em flagrante contato de mucosas petrificando-os com o clássico: “Que pouca-vergonha!...”.

Outras vezes acontece aos protegidos decaírem da graça divina. Foi o que sucedeu a Inácio, o calouro, e isso lhe estragou o casamento com a Sinharinha Lemos, boa menina a quem cinquenta contos de dote faziam ótima.

Inácio era o rei dos acanhados. Pelas coisas mínimas avermelhava, saía fora de si e permanecia largo tempo idiotizado. O progresso do seu namoro foi, como era natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, tacitamente concertadas numa conspiração contra o celibato do futuro bacharel. Uma das manobras constou do convite que ele recebeu para jantar nos Lemos, em certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.

Inácio barbeou-se, laçou a mais formosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira, friccionou os cabelos com loção de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela hora. Levou consigo, entretanto, para mal seu, o acanhamento — e daí proveio a catástrofe...

Havia mais moças na sala, afora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o olhavam com a benévola curiosidade a que faz jus um possível futuro parente.

Inácio, de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo um tanto desmontado com o papel de galã à força que lhe atribuíam. Uma das moças, criaturinha de requintada malícia, muito “saída” e “semostradeira”, interpelou-o sobre coisas do coração, ideias relativas ao casamento e também sobre a “noivinha” — tudo com meias palavras intencionais, sublinhadas de piscadelas para a direita e a esquerda.

Inácio avermelhou e tartamudeou palavras desconchavadas, enquanto o diabrete maliciosamente insistia: “Quando os doces, seu Inácio?”.

Respostas mascadas, gaguejadas, ineptas, foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de réplicas jeitosas sempre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a mesa.

Lá, enquanto engoliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no equilíbrio. Por dá cá aquela palha o pobre rapaz mudava-se de si para fora, sofrendo todos os horrores consequentes. A culpada aqui foi a dona da casa. Serviu-lhe dona Luísa um bife de fígado sem consulta prévia.

Esquisitice dos Lemos: comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes.

Esquisitice do Inácio: nascera com a estranha idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar de fígado. Seu estômago, seu esôfago e talvez o seu próprio fígado tinham pela víscera biliar uma figadal aversão. E não insistisse ele em contrariá-los: amotinavam-se, repelindo indecorosamente o pedaço ingerido.

Nesse dia, mal dona Luísa o serviu, Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu de si. Viu-se só, desamparado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera, exigir, com império, respeito às suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo, mostrou-lhe que mau momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou acalmá-lo a goles de clarete, jurando eterna abstenção para o futuro. Pobre Inácio! A porejar suor nas asas do nariz, chamou a postos o heroísmo, evocou todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na era cristã pelos heréticos; contou um, dois, três e glug!, engoliu meio fígado sem mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio ficou a esperar, de olhos arregalados, imóvel, a revolução intestina.

Em redor a alegria reinava. Riam-se, palestravam ruidosamente, longe de suspeitarem o suplício daquele mártir posto a tormentos de uma nova espécie.

— Você já reparou, Miloca, na “ganja” da Sinharinha? — disse a sirigaita de “beleza” na testa. — Está como quem viu o passarinho verde... — e olhou de soslaio para Inácio.

O calouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava na auscultação das vozes viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída: tinha ainda diante de si a segunda parte do fígado engulhento.

Era mister atacá-la e concluir de vez a ingestão penosa. Inácio engatilhou-se de novo e — um, dois, três: glug! — lá rodou, esôfago abaixo, o resto da miserável glândula.

Maravilha! Por inexplicável milagre de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar lorpa dos ressuscitados. Chegou a rir-se. Riu-se alvarmente, de gozo, como riria Hércules após o mais duro dos seus trabalhos. Seus ouvidos ouviam de novo os rumores do mundo, seu cérebro voltava a funcionar normalmente e seus olhos volveram outra vez às visões habituais.

Estava nessa doce beatitude, quando:

— Não sabia que o senhor gostava tanto de fígado — disse dona Luísa, vendo-lhe o prato vazio. — Repita a dose.

O instinto de conservação de Inácio pulou em guarda. E fora de si outra vez o pobre moço exclamou, tomado de pânico:

— Não! Não! Muito obrigado!...

— Ora, deixe-se de luxo! Tamanho homem com cerimônias em casa de amigos. Coma, coma, que não é vergonha gostar de fígado. Aqui está o Lemos, que se pela por uma isca.

— Iscas são comigo — confirmou o velho. — Lá isso não nego. Com elas ou sem elas, nunca as enjeitei. Tens bom gosto, rapaz. Serve-lhe, serve-lhe mais, Luísa.

E não houve salvação. Veio para o prato de Inácio um novo naco — este formidável, dose dupla.

Não se descreve o drama criado no seu organismo. Nem um Shakespeare, nem Conrad — ninguém dirá nunca os lances trágicos daquela estomacal tragédia sem palavras. Nem eu, portanto. Direi somente que à memória de Inácio acudiu o caso de Nora de Ibsen na Casa de bonecas, e disfarçadamente ele aguardou o milagre.

E o milagre veio! Um criado estouvadão, que entrava com o peru, tropeçou no tapete e soltou a ave no colo de uma dama. Gritos, rebuliço, tumulto. Num lampejo de gênio, Inácio aproveitou-se do incidente para agarrar o fígado e metê-lo no bolso.

Salvo! Nem dona Luísa nem os vizinhos perceberam o truque — e o jantar chegou à sobremesa sem maior novidade.

Antes da dançata lembrou alguém recitativos e a espevitadíssima Miloca veio ter com Inácio.

— A festa é sua, doutor. Nós queremos ouvi-lo. Dizem que recita admiravelmente. Vamos, um sonetinho de Bilac. Não sabe? Olhe o luxinho! Vamos, vamos! Repare quem está no piano. Ela... Nem assim? Mauzinho!... Quer decerto que a Sinharinha insista?... Ora, até que enfim! A Doida de Albano? Conheço, sim, é linda, embora um pouco fora da moda. Toque a Dalila, Sinharinha, bem piano... assim...

Inácio, vexadíssimo, vermelhíssimo, já em suores, foi para o pé do piano onde a futura consorte preludiava a Dalila em surdina. E declamou a Doida de Albano. Pelo meio dessa hecatombe em verso, ali pela quarta ou quinta desgraça, uma baga de suor escorrida da testa parou-lhe na sobrancelha, comichando qual importuna mosca. Inácio lembrou-se do lenço e saca-o fora. Mas com o lenço vem o fígado, que faz plaf! no chão. Uma tossida forte e um pé plantado sobre a infame víscera, manobras de instinto, salvam o lance.

Mas desde esse momento a sala começou a observar um extraordinário fenômeno. Inácio, que tanto se fizera rogar, não queria agora sair do piano. E mal terminava um recitativo, logo iniciava outro, sem que ninguém lho pedisse. É que o acorrentava àquele posto, novo Prometeu, o implacável fígado...

Inácio recitava. Recitou, sem música, o Navio negreiro, As duas ilhas, Vozes da África, O Tejo era sereno.

Sinharinha, desconfiada, abandonou o piano. Inácio, firme. Recitou O corvo de Edgar Poe, traduzido pelo senhor João Kopke; recitou Quisera amar-te, o Acorda donzela; borbotou poemetos, modinhas e quadras.

Num canto da sala Sinharinha estava chora-não-chora. Todos se entreolhavam. Teria enlouquecido o moço?

Inácio, firme. Completamente fora de si (era a quarta vez que isso lhe acontecia naquela festa) e, falto já de recitativos de salão, recorreu aos Lusíadas.

E declamou As armas e os barões, Estavas linda Inês, Do reino a rédea leve, o Adamastor — tudo!...

E esgotado Camões ia-lhe saindo um “ponto” de Filosofia do Direito — A escola de Bentham —, a coisa última que lhe restava de cor na memória, quando perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu, patenteando aos olhos arregalados da sala a infamérrima víscera de má morte...

O resto não vale a pena contar. Basta que saibam que o amor de Sinharinha morreu nesse dia; que a conspiração matrimonial falhou; e que Inácio teve de mudar de terra. Mudou de terra porque o desalmado major Lemos deu de espalhar pela cidade inteira que Inácio era, sem dúvida, um bom rapaz, mas com um grave defeito: quando gostava de um prato não se contentava de comer e repetir — ainda levava escondido no bolso o que podia…

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas. Escrito em 1904, publicado em 1919.

Minha Estante de Livros (Riacho Doce, de José Lins do Rego)


Em Riacho Doce, José Lins une amor e petróleo. Um casal de suecos vem para o Brasil, para Alagoas, e a loura Edna se extasia com a força tropical do Brasil, que ela descobre. Apaixona-se por um mestiço nordestino, Nô, uma das figuras mais empolgantes de toda a ficção numerosa de Zé Lins. O amor de Edna e Nô é o núcleo desse romance que é um dos mais ardentemente humanos do mestre José Lins do Rego, esse contador de histórias inesgotável, impregnado de oralidade.

Como em "Pureza", como em "Água Mãe", estamos aqui fora do Ciclo da Cana-de-Açúcar. Mas ainda estamos em pleno Nordeste. A narrativa é de uma atualidade absoluta, porque os suecos vieram para o Nordeste a serviço da exploração do petróleo. Engenharia, petróleo, amor, o simples amor, o puro amor aqui se associam na prosa extremamente vegetal, espontânea, telúrica, flexível de alguém que soube como raros aliar organicamente literatura e vida.

Seu estilo neste romance é um milagre de naturalidade e de intimidade com a natureza ou integração na própria natureza exterior. E há que se salientar o processo de análise psicológica, que consiste na repetição sistemática de certos dados. A figura da Mãe Aninha é perfeita como observação da psicologia supersticiosa.

José Lins uniu como ninguém memória e imaginação, primitivismo e arte, povo e ficção. Personagens nativas e rústicas se misturam a essa estranha sueca, fascinada pelo mundo bárbaro e poderoso de um Nordeste que é todo a verdade vista e vivida. Mãe Aninha e Nô saltam diante dos nossos olhos como criações exatas, inesquecíveis.

José Lins está preso à tradição dos cantadores nordestinos. A sua prosa, de um coloquialismo gostosíssimo, único, é bem a fala autêntica de uma feira do Nordeste. Como em toda a obra ficcional de Lins do Rego, o Nordeste está presente neste romance, de forma dramática.

A sueca misteriosa vem descobrir sensualmente a força telúrica do Nordeste rústico, o ritmo popular, os sabores e os cheiros, as formas, as cores, a vida intensa de uma região que é o mundo perene desse grande narrador em contato amoroso com a vida.

José Lins do Rego é apaixonadamente povo, é vigorosamente povo nas páginas deste romance forte e ardente, que é um ato de amor à vida sumarenta. Há aqui um fundo lirismo tropical, um instintivismo, um calor humano, um sopro de poesia genuína que faz deste romance de 1939 uma afirmação plena de maturidade artística.
”      (Antonio C. Villaça)

Desde as primeiras páginas, a narrativa de Riacho Doce se apodera de nós, impondo-nos ao seu ritmo. Em todo ciclo da cana-de-açúcar o que é ação não deixa margem para discussões ociosas, uma vez que apresenta com a força dos fatos consumados, independentes do arbítrio do autor, que é como se apenas os tivesse recolhido. Por isso mesmo, não se queira sujeitar às regras habituais da construção do romance e da composição das figuras uma obra nascida diretamente da vida e que, visivelmente, José Lins do Rego não tem, mais do que nós, o poder de alterar. Ele não é tanto um verdadeiro romancista, mas antes um narrador, o recitador admiravelmente vivo de uma realidade que não lhe é possível senão transpor e revivificar.

Essa conclusão ajusta-se perfeitamente às indicações que o estudo da forma pode fornecer. Para alguns, essa forma é a falta de estilo, seria antes um informe literário, o gênero mal-escrito. Juízo apressado, fruto de lamentável confusão. Por não ser literário, no sentido que hoje se empresta à palavra, o estilo de José Lins do Rego não deixa de existir; é, ao contrário, dos mais característicos, dos mais saborosos, que possuímos. Apenas não é o estilo escrito a que estamos habituados, mas os dos recitadores orais, haurido diretamente na fonte da linguagem viva. É isso, precisamente, que lhe dita o ritmo da narrativa.

Dir-se-ia, até, que a própria ação nasce, em grande parte, daí: é o estilo oral que atrai e liga os episódios, que delineia os personagens, que dá unidade à obra e em certo sentido a compõe, não como coisa que escreve, mas como coisa que viveu. É ainda esse estilo que permite ao recitador atingir, como tantas vezes acontece na obra, um plano quase poético, uma interpretação que, no fundo, é lírica, da vida e do mundo das suas criaturas.

A exposição de certos estados subjetivos, tão frequentes e de tais consequências na obra de José Lins do Rego, não é analítica, mas descritiva, e feito nos termos de estilo oral, como que taquigrafado pelo autor, muito mais próximo dos cantadores de todos os tempos que dos romancistas-escritores dos nossos dias.

Em Riacho Doce, José Lins reúne amor e petróleo. Um casal de suecos vem para o Brasil, para Alagoas, e a loura Edna se extasia com a força tropical do Brasil, que ela descobre. Apaixona-se por um mestiço nordestino, Nô, uma das figuras mais empolgantes de toda a ficção numerosa e rica de José Lins. O amor de Edna e Nô é o núcleo desse romance que é um dois mais ardentemente humanos desse contador de histórias inesgotável, impregnado de oralidade.

Personagens nativas e rústicas se misturam a essa estranha sueca, fascinada pelo mundo bárbaro e poderoso de um Nordeste que é todo verdade vista e vivida. Mãe Aninha e Nô saltam diante dos nossos olhos como criações exatas, inesquecíveis.

Sem ser porventura uma das suas obras mais individualmente destacáveis, Riacho Doce conserva o mesmo valor documental, a mesma significação crítica, a mesma força novelística e as mesmas belezas das outras obras do escritor.

Em Riacho Doce, José Lins do Rego nos dá a sua visão possante dos desequilíbrios sociais e dos dramas humanos individuais e coletivos, provocados pelo problema do petróleo em Alagoas. Tudo decorre deste trágico problema da nossa vida contemporânea. As marés sucessivas de entusiasmo, de desapego às tradições, provocadas pelo engodo da riqueza, e das desconfianças supersticiosas e cóleras nascidas das desilusões naquela mansa terra de pescadores, são descrições de psicologia coletiva das mais vivas e reais que o romancista já fez. A psicologia de Edna, a fraqueza supercivilizada do engenheiro sueco, a Mãe Aninha que é a melhor análise de psicologia supersticiosa já feita pelo romancista, são todos seres de vida empolgante. De Nô se dirá a mesma coisa, talvez a figura de mestiço, ou melhor, talvez a figura popular mais delicada, mais impressionantemente exposta em todas as incongruências e males de sua condição, da nossa literatura. Não será mais profunda, mais humana que a do moleque Ricardo, mas é de uma delicadeza incomparável.

E páginas como a descrição dos primeiros tempos de Edna no Riacho Doce, numa linguagem saborosa, ou capítulos como o do estouro da Mãe Aninha, em que a maldição é criada com uma intensidade trágica maravilhosa, são verdadeiramente passos geniais.
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Complemento:
Riacho Doce foi minissérie exibida pela Rede Globo de 31 de julho a 5 de outubro de 1990 com duração de 40 capítulos. Escrita por Aguinaldo Silva e Ana Maria Moretzsohn, com a colaboração de Márcia Prates e dirigida por Paulo Ubiratan e Reynaldo Boury foi baseada no romance homônimo de José Lins do Rego. Gravada em duas partes de Pernambuco, no arquipélago de Fernando de Noronha e na praia de Carne de vaca, distrito de Goiana (última praia pernambucana, fazendo "fronteira" com o litoral Paraíbano). (wikipedia)

Fonte:
Prof. Jayro Luna. Site Orfeu Spam Apostilas.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Olivaldo Júnior (Três Microcontos sobre Escritor)


A PENA MÁGICA


Nunca pensou que se tornaria um escritor. Muito menos um escritor de sucesso. Mas estava feito. Acumulava, ano após ano, um prêmio após o outro na estante dos troféus.

Convidado para todas as festas literárias possíveis e imaginadas, vivia de uma para outra, com um copo na mão e palavras nos lábios que agradavam a todos. Era o maior.

No entanto, mesmo com todo o sucesso, a cada vez que se sentava para escrever, tomava de sua pena mágica, uma velha caneta BIC, esferográfica mesmo, e começava do zero.
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A MUSA INSPIRADORA

Antônia tinha muitas qualidades, mas, sem dúvida, a maior delas, era ter sido declarada musa inspiradora de um velho amigo escritor, a quem tanto dera motivos para inspirá-lo.

Não, Antônia não era linda, nem possuía atributos intelectuais dignos de qualquer volume da Enciclopédia Britânica (ainda existe isso?). Antônia era musa por ser simples.

Seu cabelo, preto, liso natural, era na altura do ombro. Sua pele era do tom da pele amorenada do País. Altura média, peso idem, nada demais. Mas era única. Era a Antônia.
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O TRISTE ESCRITOR

“Deixe-me ir, preciso andar / Vou por aí a procurar / Sorrir pra não chorar”, cantava Cartola no velho toca-discos do triste escritor de meia-idade que não tinha “dado certo”.

Sob o cabelo que ia raleando, já com uns e outros fios de um cinza pálido, o triste escritor escrevia sempre que dava, mas dava na vista que não era um sucesso. Andava sem paz.

Se alguém por mim perguntar / Diga que eu só vou voltar / Depois que eu me encontrar”... Se tivesse conhecido Cartola!... Fez da noite sua musa. Da lua, sua estrela.
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Olivaldo Júnior, trovador, escritor, músico e cantor, nasceu em Aguaí, São Paulo, mas mora em Mogi Guaçu, cidade vizinha, desde menino. Formou-se em Licenciatura Plena em Letras, Habilitação em Português e Inglês, pelas Faculdades Integradas Maria Imaculada. De vez em quando, participa de concursos literários, obtendo algumas premiações.

Fonte:
Textos enviados pelo autor.

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) VI


CINZAS


Foi pisando nas cinzas do passado
que entre as cinzas dos sonhos tropecei!
Tantas cinzas de sombras ao meu lado,
que aos encantos das cinzas me abracei!

Sobre as cinzas do chão já castigado,
eu nem sei quantas sombras eu beijei;
mas ao ver, de saudade, o chão bordado,
a tristeza da infância, eu disfarcei!

Ante as cinzas do tempo envelhecendo,
meu passado distante foi morrendo
como quem diz adeus, à primavera...

E eu sozinho, naquela solidão,
vi nas cinzas tristonhas do meu chão,
minha infância, nas cinzas da tapera!
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MÃE

Eu procuro nas línguas pelo mundo,
desde o tempo da escrita cuneiforme,
um só termo, que diga e que me informe,
a grandeza de mãe, num só segundo!

Esse amor que a mãe sente, é tão fecundo,
que em palavras, por mais que se reforme,
há um espaço tão grande e tão enorme,
que na vida, o que eu penso, eu me confundo.

Ninguém diz, eu não sei nem ninguém sabe,
o lugar que se esconde e onde é que cabe,
a grandeza do amor, que é tão sublime...

E que a mãe tem no peito um relicário,
e as três letras são chaves de um sacrário,
onde guarda esse amor, que a dor redime!
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MEMÓRIA

Esta dor que me fere e me magoa
quando lembro da minha mocidade,
pouco me importa que ela tanto doa,
se doendo, não cura esta saudade.

Melancolicamente eu vou lembrando,
de saudade em saudade eu vou vivendo,
mas não posso esquecer de quando em quando,
que em teus braços, aos poucos vou morrendo.

Nesta luta sem trégua, em desatino,
eu me agarro nas rédeas do destino
dos arquivos ingratos da velhice,

mas não posso esquecer que fui criança,
guardarei para sempre na lembrança
a saudade feliz da meninice!
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OFENSAS

Eu não quero jamais, que chegue o dia,
dessa triste e cruel desilusão;
em que o povo mantenha a mão vazia,
sem poder apertar mais outra mão.

Eu nem penso na triste covardia,
de outro alguém machucar meu coração;
é que eu vejo, na Luz que me irradia,
a ternura do olhar de um outro irmão.

Por ser justo, ao mal feito, eu não me rendo,
e se alguém me bater, eu não me ofendo
nem procuro as razões dos oprimidos...

Que entre mágoas, ofensas e rancores,
a vergonha maior dos ofensores
é escutar o perdão dos ofendidos!
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SAUDADE

Se a saudade de alguém chega a ferir
e, sem pena, maltrata e faz chorar,
é porque, no silêncio, espera ouvir
o que a voz do silêncio quer falar.

A saudade é um disfarce e, em seu olhar,
traz o brilho da luz que quer pedir;
mas nem pede licença para entrar
nem sequer, permissão para sair.

A saudade é a pior das inquilinas,
mas de todas as sombras femininas,
é irmã gêmea do pranto de quem chora...

E essas cruzes de dor, entre os escombros,
tirarei todas elas nos meus ombros,
se essa velha inquilina for embora!
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SENTIMENTOS

Quando o dia se apressa e vai embora,
num silêncio que fere e que angustia,
a tristeza me invade e me devora,
nas horas sepulcrais, do fim do dia.

Como quem diz adeus e triste chora,
vai-se o sol delirando de agonia,
e a cortina da noite, Deus decora,
com luz tênue, de vã melancolia.

Distante, bem distante, muito além,
a tristeza me acena, como quem
se despede de alguém, que já morreu,

Fontes:
– Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.
– Sonetos “Memória” e “Sentimentos” – obtidos em Ademar Macedo. Mensagens Poéticas 691 e 666.