sexta-feira, 5 de março de 2021

Júlia Lopes de Almeida (O Voto)


As pitangueiras, garridas com as suas frutinhas de coral, estavam ainda molhadas da chuva da véspera. O sol, que ia subindo, punha uma larga barra cor de laranja no céu, de um azul violeta; cantava um bem-te-vi na copa alta de uma paineira, e a aragem da manhã vinha toda perfumada de manacá e de ervilhas-de-cheiro.

Com o samburá na mão, a saia redonda mostrando-lhe os tornozelos finos, a Ginoca, saltitante e mimosa como a juriti, enterrava na grama orvalhada os pezinhos delicados, sem pena de molhar as suas meias vermelhas e os seus sapatos amarelos.

Ela passava risonha, cantando num débil, mas agradável fio de voz uma cantiga da roça.

Das grandes folhas das bananeiras rolavam, como contas, os pingos d’água, e de fragmento em fragmento as formigas iam levando para as suas tocas os araçás de que a chuva tinha alastrado o chão.

Ginoca escolheu com cuidado os melhores marmelos e os figos mais maduros. Suspendeu-se depois, alegre e ágil, num galho de pitangueira, e foi então uma chuva de corais e de orvalho sobre a sua
blusa de linho branco e sobre os seus cabelos corredios e negros.

Cheio o samburá, ela subiu o pomar até perto de casa.

O pai, um homem atlético, estava de pé no meio do terreiro, saboreando um copo de leite. Ao pé dele a vaca silenciosa esperava submissa, com o focinho voltado para a luz. Ginoca deu-lhe um figo. O animal estava acostumado àquelas gulodices, comeu a fruta e lambeu a mão da moça.

Acabado o leite, o pai entregou o copo à filha, e esta, abaixando--se, tomou na palma da mão a teta da vaca e ia mungi-la para encher novamente o copo, quando o pai exclamou:

– Olha, Ginoca, aquele que vem acolá, é o Camundongo! Ora se é! conheço-o perfeitamente pelo trote!

Ginoca levantou-se de um salto; estendeu a mão sobre as sobrancelhas para ver melhor, e depois de um segundo de observação disse com ar de triunfo:

– É, papai! lá vem Maurício!... assobie para ver se ele ouve!...

O velho assobiou estridulamente. Não se ouviu resposta. Houve um bater de asas apressadas no pomar, e o bem-te-vi calou-se. Ginoca respirou com força, enchendo o peito com o ar impregnado de manacá e de ervilhas-de-cheiro. O coração batia-lhe, as faces cor de jambo maduro fizeram-se-lhe vermelhas como rosas de Alexandria.

– Pois você não vê como o pobre Camundongo vem depressa! Aposto em como o diabo do Maurício traz esporas! Vai abrir a cancela, que o teu noivo não tarda... Também, se ele tiver esporeado o Camundongo, há de se haver comigo!

– De Friburgo até aqui é longe... respondeu ela, desculpando o noivo.

– Longe! Duas léguas mal medidas... Deus me dê anos de saúde, como de vezes as tenho andado a pé... Quando tua mãe era viva...

Não continuou; o rumor das patas do cavalo aproximava-se, e a Ginoca deitou a correr para a cancela; o pai seguiu-a sorrindo, e a vaca avançou vagorosamente para o samburá esquecido no chão, e, com toda a calma, devorou os figos.

Maurício era noivo e primo da Ginoca; estudava medicina e só pelas férias ia passar um tempo em casa do tio. Ginoca adorava-o, e o pai aceitava com alegria aquele casamento, porque era doido pelo sobrinho. “Um rapaz de mão cheia! dizia ele aos amigos, e sabe tantas coisas! Tem ciência para dez!”

O que ele temia era que o moço se corrompesse com os livres–pensadores...

Religioso, arraigado à igreja, ele queria para genro um homem de crenças seguras no poder infinito do Ser Supremo...

– Ora, viva o Sr. Maurício! gritou ele ao sobrinho, que era todo olhos para a Ginoca.

– Tio Guilherme... murmurou, abraçando-o, o moço.

Trocadas as primeiras expansões, entraram. Na pequena sala de jantar, alegre e rústica, alvejavam a toalha e a louça para o almoço; na parede caiada, ao fundo, sobre uma prateleira de pinho coberta de crochê, um boião de barro sustinha um ramo de rosas de todo o ano, de hortênsias azuis e de alecrim cheiroso. No alto, um quadro da Virgem, em oleografia, com a sua túnica branca e o manto flutuante, sorria no meio daquela pobreza alegre. O tio Guilherme benzeu-se antes de sentar-se à mesa; a filha rezou de mãos postas, e Maurício desviou o olhar para a janela, onde uma borboleta azul batia de encontro aos vidros.

O tempo das férias voou alegremente.

Às vezes iam a uma propriedade vizinha, de uns sitiantes suíços, comprar manteiga fresca ou assistir à colheita das batatas. Ginoca levava sempre uma cestinha que enchia das framboesas da estrada, para dar às crianças que encontrasse. Maurício auxiliava-a, e o pai ria-se, alegrado pelo amor e a mocidade de ambos. Era bem certo que Deus tinha criado aqueles dois um para o outro!

Na maior parte das manhãs não saíam do sítio, mas nem por isso se levantavam mais tarde. Quando abriam as janelas, as montanhas de Friburgo estavam ainda envoltas num nevoeiro espesso, que o sol ia desfazendo numa polvilhação dourada. A estrada, vermelha, serpeava ao longe entre a verdura dos campos e o espreguiçar azulado e frio das águas da cachoeira. Os carneiros balavam à distância, e no ar fresco e leve cruzavam-se cantos de aves e aromas de flores.

Ginoca, lépida como uma cabrita, descia ao curral e vinha puxando a vaca, a grande vaca branca e preta, que a seguia com olhar melancólico e meigo.

Daí eram as partidas no pomar; os assaltos às pitangueiras. Maurício trepava à árvore, Ginoca aparava as frutas no avental; enfeitava a trança negra com as pitanguinhas vermelhas, desfolhava no seio as flores dos limoeiros, e era tudo alegria e risadas. Quando voltavam para o almoço, iam impregnados do aroma das ervas e com o rosto ainda úmido da agua, muito transparente e fria, que atravessava a horta, levando na corrente um ou outro junquilho ou as florinhas douradas dos pés de hortaliça.

Expirado o tempo das férias, Maurício voltou ao Rio, e a Ginoca começou a trabalhar com afinco no enxoval.

Iam as coisas assim, quando tiveram notícia de que o estudante estava à morte no Rio, com febre amarela!

Foi um terror imenso!

Ginoca suplicava ao pai que a levasse para junto do noivo; o pai negava-se, e as horas passavam lentas e amarguradas. Cessaram as notícias e o pressentimento da morte tolheu os corações do pai e da filha; ele queria disfarçar, mas não o conseguia, e a Ginoca, já sem lágrimas, muito pálida, parecia uma louca. Uma noite, enquanto o pai dormia, ela ajoelhou-se em frente ao quadro da Virgem e fez, com toda a fé da sua alma castíssima, uma promessa à Mãe de Deus. Quando se levantou, os seus olhos resplandeciam de lágrimas, mas havia uma expressão enérgica de confiança e de paz no seu belo rosto moreno.

Nem um soluço quebrou o silêncio da noite.

No outro dia de manhã receberam uma carta. Maurício estava salvo.

Rebentaram os risos. O velho disse à filha que escrevesse ao noivo, dizendo-lhe para ir convalescer em sua casa. Ginoca ria, relendo e beijando a carta.

– Sabes que mais? disse-lhe o pai, o casamento vai fazer-se já... isto de cuidados e demoras não são coisas do meu agrado. Ele que venha e trataremos disso. O padre Benedito aí está e um altar arma-se num momento!

Ginoca suspendera subitamente o riso e tornou-se branca como o linho.

– Casar?...

– Então?!

– É impossível! Oh! não me pergunte por que, papai; é impossível!

– Ora esta!

O velho supôs que a filha delirasse e tomou-lhe o pulso. A moça correu para o interior da casa, e ele, atônito, ficou olhando para o buraco vazio da porta por onde ela tinha fugido.

Passou todo o dia aflito.

Que teria a Ginoca? Resolveu-se a chamar o médico; mas antes disso quis ainda consultar a filha.

Às Ave-Marias desceram ambos ao pomar. No galho florido de um pessegueiro cantava um sabiá, e no fundo azul pálido do céu as montanhas de Friburgo desenhavam-se muito escuras.

– Olha, Ginoca... por que é que já não queres casar com teu primo?... perguntou o tio Guilherme, com ar constrangido e tímido.

A filha baixou a cabeça, silenciosa, vencida pela comoção.

– Ele fez-te algum mal, ofendeu-te?

– Oh! não!

– Então que teima é essa?! o pobre moço adora-te, e eu, francamente, estava satisfeito...

– Eu já não posso casar!

– Hein!? Já não podes casar! que diabo de linguagem é essa?!

Ginoca parou, ergueu para o pai os olhos úmidos e murmurou:

– Fiz um voto... prometi a Nossa Senhora que, se salvasse Maurício da morte, eu ficaria solteira a vida toda...

O pai recuou, como se tivesse levado uma pedrada no coração.

Rolaram no ar sereno da tarde as badaladas das Ave-Marias; ele, respeitoso e triste, tirou o chapéu. A Ginoca apoiou-se a um tronco de
árvore, soluçando alto.

Extinta a última vibração do Angelus, o velho disse tremulamente à filha:

– Já que fizeste um voto... tens de cumpri-lo...

Ela abanou afirmativamente a cabeça.

Voava por todo o pomar o doce aroma das ameixeiras em flor.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Coletânea de Contos Infantis - Centenário de Maria Clara Machado (Prazo: 15 de Março)


Realização do Projeto Apparere (www.apparere.com.br)


Queremos convidar você e seus amigos a participarem de nossa Coletânea de Contos Infantis - Centenário de Maria Clara Machado (Tema sugerido por: Conceição Maciel e Equipe PerSe).

As inscrições, que já estão abertas, podem ser feitas até o dia 15 de Março. Veja mais informações abaixo!

Esta é uma Coletânea de Contos Infantis em homenagem ao Centenário de nascimento de Maria Clara Machado, comemorado agora no mês de Abril. Maria Clara Machado, foi escritora e dramaturga, autora de famosas peças e livros infantis, e para homenageá-la buscamos Contos Infantis (seu universo), que poderão ser 100% de autoria dos Autores participantes ou releituras dos maravilhosos contos de Maria Clara Machado, e neste caso deve-se mencionar em qual conto se baseou a releitura.

IMPORTANTE:
Os contos desta coletânea serão compostos somente de Textos, não conterão nenhuma imagem ou ilustração. Conheça todos os detalhes no link https://bit.ly/3pyqp7G

Nessa Coletânea os Artistas Plásticos e Designers de capa, também podem participar, enviando sugestões de Capa para a Coletânea. Conheça todos os detalhes no link https://bit.ly/3ax7w0P

Já recebemos várias inscrições e ainda estamos aguardando ansiosamente a sua! Importante lembrar que sua participação é Gratuita.

Após recebermos os Textos, faremos uma seleção/avaliação dos melhores e publicaremos um livro com eles. Essa Coletânea ficará à venda na Loja Online da PerSe, com impressão sob demanda, para quem quiser adquiri-la.

Como dissemos, sua participação não terá nenhum custo!

Você encontra todos os detalhes para sua inscrição nos links abaixo:

1) Quero enviar meu texto: https://bit.ly/3pyqp7G​

2) Quero enviar sugestão de capa: https://bit.ly/3ax7w0P

Você não pode ficar fora desta homenagem à Maria Clara Machado. Inscreva-se já!

Forte abraço,
Equipe Apparere

Fonte:
Texto enviado pelo Projeto Apparere

quinta-feira, 4 de março de 2021

Arquivo Spina 28 - José Airton Oliveira

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) JG e Maringá


Houve tempo em que os bons poetas conseguiam status de celebridades no Brasil, quase tanto quanto os mais famosos atores, cantores e atletas. Gonçalves Dias, Castro Alves, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles e mais alguns são lembrados ainda hoje, porém como gente do passado. Os dois últimos bastante conhecidos em todo o país foram Mário Quintana e Manoel de Barros.

Nenhum deles alcançou, no entanto, um nível de popularidade semelhante ao de JG de Araújo Jorge, que aliás nem aparecia nos manuais de literatura adotados pelas escolas. Porém seus versos eram publicados em todos os jornais e revistas, o que lhe garantia uma multidão de leitores. Com isso, enquanto os autores mais ilustrados vendiam no máximo 5 mil exemplares dos seus livros, JG vendia mais de 50 mil. Foi o único dos nossos escritores a fazer alguma fortuna vendendo poesia. Tinha até um programa semanal na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que dava o maior ibope.

Toda a geração que viveu entre os anos 1940 e 1970 lia e curtia os versos do chamado “poeta das moças”. Os críticos em geral nutriam preconceito conta ele, mas nada disso abalava seu prestígio. Escrevia para o povo, especialmente para o público jovem. Sonetos, poemas livres, trovas, sempre numa linguagem simples, que todo mundo entendia. Daí o sucesso.

Em três ocasiões JG de Araújo Jorge esteve em Maringá – 1966, 1970 e 1972. Na primeira vez, veio como atração principal num grupo de cerca de 50 outros poetas, para um dos maiores eventos literários já realizados na cidade. O então prefeito Luiz de Carvalho, que também gostava de poesia, mandou armar um coreto em frente à antiga biblioteca e ali se reuniram milhares de pessoas para ouvir os menestréis. Foi um “comício de poesia”, disseram.

Em 1972, JG conheceu aqui o professor Renato Bernardes, que na época era o vice-prefeito e secretário da Educação e Cultura, no governo do prefeito Adriano Valente. Alguns anos mais tarde Renato se elegeu deputado federal. Em Brasília ele reencontrou JG, que havia sido eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro. O poeta conseguira transformar seus leitores em eleitores e assim, sem gastar praticamente nada, obteve uma votação enorme.

Numa determinada ocasião, Renato Bernardes andava labutando para conseguir a liberação de um recurso importante para Maringá. Precisava convencer o ministro responsável pela verba a apressar a tramitação do processo. Contou isso ao colega deputado JG, que de pronto se dispôs a ajudar. Foram os dois juntos ao gabinete do ministro, que por acaso ou por sorte era fã do poeta. A assinatura do documento saiu na hora, seguida do convite para um cafezinho em meio a uma roda de funcionários que vieram pedir o autógrafo do famoso homem de letras. Em resumo: o carinho que JG de Araújo Jorge dedicava a Maringá, mais a amizade com o Renato, renderam bons proveitos para o município. Viva a poesia!
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 25-02-2121)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Álvares de Azevedo (Poemas Escolhidos) – 4 –

XI


Formosa é Daliana; o seu cabelo,
A testa, a sobrancelha é peregrina;
Mas nada tem, que ver co’a bela Eulina,
Que é todo o meu amor, o meu desvelo:

Parece escura a nove em paralelo
Da sua branca face; onde a bonina
As cores misturou na cor mais fina,
Que faz sobressair seu rosto belo.

Tanto os seus lindos olhos enamoram,
Que arrebatados, como em doce encanto,
Os que a chegam a ver, todos a adoram.

Se alguém disser, que a engrandeço tanto
Veia, para desculpa dos que choram
Veja a Eulina; e então suspenda o pranto.
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XII

Fatigado da calma se acolhia
Junto o rebanho à sombra dos salgueiros;
E o sol, queimando os ásperos outeiros,
Com violência maior no campo ardia.

Sufocava se o vento, que gemia
Entre o verde matiz dos sovereiros;
E tanto ao gado, como aos pegureiros
Desmaiava o calor do intenso dia.

Nesta ardente estação, de fino amante
Dando mostras Daliso, atravessava
O campo todo em busca de Violante.

Seu descuido em seu fogo desculpava;
Que mal feria o sol tão penetrante,
Onde maior incêndio a alma abrasava.
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XIII

Nise? Nise? onde estás? Aonde espera
Achar te uma alma, que por ti suspira,
Se quanto a vista se dilata, e gira,
Tanto mais de encontrar te desespera!

Ah se ao menos teu nome ouvir pudera
Entre esta aura suave, que respira!
Nise, cuido, que diz; mas é mentira.
Nise, cuidei que ouvia; e tal não era.

Grutas, troncos, penhascos da espessura,
Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde,
Mostrai, mostrai-me a sua formosura.

Nem ao menos o eco me responde!
Ah como é certa a minha desventura!
Nise? Nise? onde estás? aonde? aonde?
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XIV

Quem deixa o trato pastoril amado
Pela ingrata, civil correspondência,
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado.

Que bem é ver nos campos transladado
No gênio do pastor, o da inocência!
E que mal é no trato, e na aparência
Ver sempre o cortesão dissimulado!

Ali respira amor sinceridade;
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Um só trata a mentira, outro a verdade.

Ali não há fortuna, que soçobre;
Aqui quanto se observa, é variedade:
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
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XV

Formoso, e manso gado, que pascendo
A relva andais por entre o verde prado,
Venturoso rebanho, feliz gado,
Que à bela Antandra estais obedecendo;

Já de Corino os ecos percebendo
A frente levantais, ouvis parado;
Ou já de Alcino ao canto levantado,
Pouco e pouco vos ides recolhendo;

Eu, o mísero Alfeu, que em meu destino
Lamento as sem razões da desventura,
A seguir vos também hoje me inclino:

Medi meu rosto: ouvi minha ternura;
Porque o aspecto, e voz de um peregrino
Sempre faz novidade na espessura.

Fonte:
Álvares de Azevedo. Poesias. Livro publicado em 1853.

Carla Rejane Silva (Sobressaltos....)


Acordei meio assustada, talvez o que me tenha despertado do sono profundo tenha sido um sonho horrível, um sonho inóspito do qual eu havia me esquecido há tempos. Não sei, mas me vi entremeada, estranha, como um balão cheio demais e pronto para explodir a qualquer momento.

E aquela dor incômoda, vinda das minhas entranhas – ou seria do meu coração – afligido por um mal súbito que, até então, eu desconhecia a razão e o porquê. Não atinei com a resposta, pelo menos de imediato. O fato é que esta dor foi aumentando, e a cada minuto que  passava já não sabia distinguir o porquê de tamanha e confusa depreciação.  

Dito de forma mais clara. Não saberia explicar exatamente o que sucedia comigo. Levantei-me cambaleante, ainda atordoada, quase não me sustendo sobre os pés. Me sentia perdida, esfacelada, completamente transtornada, numa consumação interior inexplicável.

Meu Deus! Olho agora através do espelho de meu quarto e espio, compridamente, a minha grotesca imagem. Ela está  assustadora,  amedrontada, assombrada, como num filme de terror à la Hitchcock. Apavorada e fora de mim, corro ao banheiro e lavo meu rosto, tentando desfazer o que vejo, e ao mesmo tempo apaziguar esta loucura insana que povoa meu semblante espavorido e intimidado que só sabe me fazer mal.

Sinto-me neste momento como se fosse a Rainha Má -, aquela  bruxa antagonista saída de um conto clássico dos irmãos Grimm que oferece uma maçã envenenada para a mais bela entre as mais belas, “Branca de Neve”. À guisa deste pensamento, não me deixa formar um sorriso. Tampouco, me permite abrir a boca num ‘o’ de pura estupefação.

No entanto, um semblante macabro se faz presente, inundando meu rosto. Este  mesmo rosto que mais parece um genipapo (fruta que madura, se deteriora enrugada). Fujo, pois, às pressas ou, pelo menos, tento me afastar deste momento maligno que reflete através de minha imagem, de meu amanhecer completamente sombrio...

A janela, à minha frente, se me apresenta como um cenário digno dos deuses ungidos. Há flores, árvores e pássaros cantando em derredor. Todavia, por mais que tente ver, e não só ver, captar, capturar, prender e sentir todas estas belezas, me inebriar com o sol maravilhoso que me convida para um abraço quentinho... Nada consigo!

Apesar disto, algo que não sei exatamente o que seja, me desconecta do agora e não me autoriza enxergar nada além de sombras difusas. Sombras dilatadas, extensas, que me ofuscam os passos a serem seguidos em direção ao Encantado. Esta dor alucinante, não me permite ter a visão beatificada do que é Belo e arroubado, entusiasmado, a ponto de me deixar cativa de estar viva.  

Sinto-me, por tudo o que estou vivenciando agora, ou melhor, não só me sinto, me flagro sorumbática, fechada, escudada por detrás  de altos muros, como um bichinho enjaulado, preso a um  desespero funesto, em busca de liberdade. Liberdade que busco incessantemente desde as primeiras horas do dia.

O que devo fazer? O que preciso fazer? O que careço por em prática?  O que, enfim, não posso deixar para depois? Bem sei, o inimigo ganha terreno e pior, se espalha. Este inimigo horrendo que não visa outra coisa a não ser me destruir por inteira. Esta loucura, não é de hoje, está  me tirando o sossego, a tranquilidade.

Este inimigo me obstrui a afeição do Onipotente. Não me deixa ver a felicidade plena.  Como larvas de  um vulcão ensandecido, me mantém cativa, me tolhe, me cerca para que eu jamais consiga escapar. Preciso tomar uma atitude urgente. Esta dor infernal que dilacera meus dias, meus momentos de glórias pode vencer.

Por minha parte, não posso me dar por vencida. Preciso me concentrar, analisar, usar todas as minhas armas e conter estes instantes de pura indigestão que me deixa pra baixo, quase à pique. Tenho que, urgentemente jogar fora o que insistentemente me tortura e me aniquila.

Ao fechar os olhos, por um breve instante, me sinto desaparecida de mim mesma, distanciada de minhas quimeras, divorciada de meus objetivos a serem alcançados. De súbito, inopinadamente, um ‘buuuuummmmm’ se faz ouvir e eu me vejo retornando à crosta terrestre da minha existência. Nada, absolutamente nada sinto. Nada de nada, igual a coisa nenhuma. Incrível...  No fim, eram apenas gases intestinais aprisionados dentro de meus próprios medos e receios.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Varal de Trovas 483

 


Gregório Duvivier (Saudades de sentir que estamos indo pro mesmo lugar né, minha filha)


Minha vida foi radicalmente transformada numa terça-feira, lá pelas cinco da tarde, do ano de 1996. Tinha dez anos e um pavor social disfarçado de desinteresse pela humanidade. Morria de medo de tudo e sabia que ninguém nunca iria me compreender —e nem valia muito a pena tentar, porque eu não pensava mesmo nada que prestasse.

Tivesse nascido um pouco depois, teriam me chamado de emo. Não existindo ainda o termo, me considerava um jovem Werther, mesmo sem nunca ter lido o livro. Bastava-me o texto da contracapa. A contracapa era o Wikipédia da época. “Um jovem que inspirou muitos jovens de sua época a cometerem suicídio.” Pronto. Entrava no bate-papo do UOL como “Jovem Werther”. Sim, era eu.

Meu avô Carlos, analista junguiano, sugeriu que me botassem no teatro e no futebol —“atividades socializantes”. Entrei pro Gavea Gol, o futsal do Corpo de Bombeiros da Major Rubens Vaz, onde quase apanhava dos colegas de time —o pereba se destaca dos demais jogadores por gerar mais ódio nos colegas que nos adversários.

No teatro, tudo indicava que seria pior. Subi no palco do Tablado, pela primeira vez, numa aula da professora Aracy Mourthé. As pernas tremiam. Quando disse meu nome em voz alta, todos riram, ao mesmo tempo. Não entendi se riam da minha voz de criança, ou do meu nome de velho, ou do cabelo de cuia, ou da união de todas as coisas. Mas eu passei a vida tentando repetir aquilo.

Existe algo de mágico em fazer pessoas que nunca se viram antes rirem da mesma coisa, no mesmo momento, sem combinar —mesmo que essa coisa da qual estejam rindo seja você. Nunca me recuperei da sensação de provocar esse laço imediato entre pessoas que não se conhecem. Toda amizade começa com uma piada interna. Fazer rir é fazer amigos, percebi. E nunca mais quis outra coisa.

Sei que muita gente encontrou sentido, como eu, na comoção. Aliás, que palavra bonita, essa, comover mover, coletivamente. O teatro funciona, quando funciona, como um ônibus, que desloca um grupo de pessoas de um lugar pro outro. Quando não funciona, é como o trem do Alckmin pro aeroporto, que não vai até o aeroporto.

Sei também que o teatro não vai voltar tão cedo. E sei que tem que ser assim. Mas que pena. Como nos faria bem essa sensação de que estamos todos indo, pelo menos por alguns minutos, pro mesmo lugar.

Fonte:
Folha de São Paulo. Seção Colunas. 9 junho 2020.

Cecília Meireles (Antologia Poética) III

         EXCURSÃO

Estou vendo aquele caminho
cheiroso da madrugada:
pelos muros, escorriam
flores moles da orvalhada;
na cor do céu, muito fina,
via-se a noite acabada.

Estou sentindo aqueles passos
rente dos meus e do muro.

As palavras que escutava
eram pássaros no escuro...
Pássaros de voz tão clara,
voz de desenho tão puro!

Estou pensando na folhagem
que a chuva deixou polida:
nas pedras, ainda marcadas
de uma sombra umedecida.
Estou pensando o que pensava
nesse tempo a minha vida.

Estou diante daquela porta
que não sei mais se ainda existe...
Estou longe e fora das horas,
sem saber em que consiste
nem o que vai nem o que volta...
sem estar alegre nem triste,

sem desejar mais palavras
nem mais sonhos, nem mais vultos,
olhando dentro das almas,
os longos rumos ocultos,
os largos itinerários
de fantasmas insepultos...

— itinerários antigos,
que nem Deus nunca mais leva.
Silêncio grande e sozinho,
todo amassado com treva,
onde os nossos giram
quando o ar da morte se eleva.
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MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
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MÚSICA

Noite perdida,
Não te lamento:
embarco a vida

no pensamento,
busco a alvorada
do sonho isento,

puro e sem nada,
— rosa encarnada,
intacta, ao vento.

Noite perdida,
noite encontrada,
morta, vivida,

e ressuscitada...
(Asa da lua
quase parada,

mostra-me a sua
sombra escondida,
que continua

a minha vida
num chão profundo!
— raiz prendida

a um outro mundo.)
Rosa encarnada
do sonho isento,

muda alvorada
que o pensamento
deixa confiada

ao tempo lento..
Minha partida,
minha chegada,

é tudo vento...

Ai da alvorada!
Noite perdida,
noite encontrada…
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NOITE

Úmido gosto de terra,
cheiro de pedra lavada
— tempo inseguro do tempo! —
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.

Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,
— lábio da voz sem ventura! —
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.

A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,
— sozinha, com o seu perfume! —
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.

Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento...
— de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrelas e o vento.
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RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Fonte:
Cecília Meireles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 34) Papo careta


Texto integrante de Comédias da Vida na Privada.

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BIFE MARCOS PASSADO, amigo íntimo do Eduardo Camaleão, marido da inebriante e formosa Laurinda, se encontrou com ela quando a beldade saia da padaria do bairro onde moravam. Extremamente galanteador e metido a ter todas as mulheres a seus pés, principalmente as jovens, não pensou duas vezes e se abriu em mesuras e reverências, feito mala velha imprestável:

— Dona Laurinda, que prazer enorme em lhe encontrar!

Dona Laurinda, vinte e três anos, se formara uma mulher bela e encantadora, capaz de virar a cabeça de qualquer homem que tivesse gosto apurado e rigoroso pelo sexo oposto. Seus cabelos compridos, caídos até a cintura, lhe davam ares de uma boneca feita sobre medida pelas mãos hábeis de um artista nato, que pensara em concentrar tudo de maravilhoso num ser humano único, tornando o inimitável e assombradamente fagueiro e mavioso:

— O prazer é todo meu, seu Bife.

— E como está o meu amigo Eduardo Camaleão?

— Neste momento se aprontando para o trabalho.

— Legal. Faz tempo que não vou à casa de vocês. Estou com saudades de seus bolos de chocolate.

— Não seja por isto, amigo Bife. Apareça quando quiser... Sempre será bem vindo.

— Tomei conhecimento, pelo Pingolino, o porteiro do seu prédio, irmão do vigia do meu edifício, que vocês comemoraram um ano de casados?

— De fato. Pensei que fosse contar com a presença do senhor. Fizemos uma brincadeira rápida, de última hora. Assamos uma carninha, entornamos algumas cervejas... Abrimos um champanhe. Até falei para o Camaleão: ‘Amor, está faltando o Bife’.

Risos de ambas as partes:

— Ele esqueceu de me chamar. Acontece. Não faltará ocasião.

— Independentemente disto, poderia ter ligado. Tudo bem. Me perdoa. Peço desculpas por nossa falha. Afinal, o senhor faz parte do seleto círculo de amigos. Sempre nosso cantinho estará ao seu inteiro dispor.

— Agradeço o seu carinho. Isto muito me lisonjeia.

— Não por isto.

— A Bebel, sua empregada, me disse num encontro que tivemos na feira de quarta, que a senhora está pensando em ter um filho?

— Nossa, as noticias correm. Penso, de fato, em aumentar a família. Acho que está na hora de arranjarmos um herdeiro...

Bife Marcos Passado não era de perder uma chance, por menor ou por mais insignificante que fosse. Neste pé, aproveitou a deixa e caiu matando:

— Uau, dona Laurinda! Que excelente notícia. Me avisa quando quiser colocar esta ideia em prática. Lembra de mim. Não esqueça que os amigos... Os verdadeiros amigos são para estas coisas...

Laurinda mandou um bom dia, meio que enviesado, fechou o rosto numa carranca furiosa e entrou, de vez, padaria adentro.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Concurso de Trovas para uma Vida Melhor (6ª Etapa - 3º Concurso) Prazo: 15 de abril


Tema: - DESAFIO

Calendário: de 01/03/2021 à 15/04/2021

Resultado e entrega de diplomas: a partir de 01/06/2021

CRITÉRIOS:

1. Uma trova inédita por trovador

2. O Tema tem que constar no corpo da trova: ABAB.

3. A Inscrição pode ser por e-mail ou por envelope (dentro do envelope grande, endereçado ao responsável pelo recebimento, virá um envelope menor lacrado, com os dados do trovador – nome, endereço, telefone e e-mail, - tendo na frente do envelopinho a trova colada).

4. A Comissão de Julgadores é soberana.

5. Em língua portuguesa:

Grupo 1: Nacional  (Veterano e Novo Trovador)

Grupo 3: Estudantil (Alunos de 12 a 18 anos).

ENVIO:

1)Inscrição por e-mail:
Helio = helio.@gmail.com. (sem acento)

2)Inscrição por carta, envelope:

Gloria Tabet Marson
Rua Major Dietrich Ott, 71 - Jardim das Colinas
CEP: 12242-111 – São José dos Campos, SP.


Mifori
CBT Seção de São José dos Campos - SP - Brasil

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Arquivo Spina 27 - Ana Luzia Moura

 


Milton S. Souza (Somos todos anjos)


Alta madrugada. Despertei e notei que o Anjo da Solidão, meu companheiro inseparável de todas as noites, não estava no leito ao meu lado. Um pouco assustado, notei na penumbra do quarto que o Anjo do Sono estava sentado ao pé da cama. Antes que os meus olhos estivessem completamente abertos, ele falou: - Vamos brincar de esconde, esconde? E sumiu sem esperar a minha resposta. Contei até dez... Até cem... Até mil... E procurei o Anjo do Sono no meio dos lençóis amassados, nas sombras que a luz fraca da lâmpada de cabeceira jogava nas paredes e até no tique taque impaciente do relógio despertador. E nada…

Um clarão repentino renovou o meu susto. Logo reconheci o olhar achocolatado e os cabelos esvoaçantes do Anjo da Amizade que, saindo não sei de onde, pousou docemente ao lado do meu travesseiro. Em poucos segundos, ele segurou as minhas mãos entre as suas, e começou a contar histórias lindas dos belos momentos que tantas vezes passamos juntos. A penumbra ganhou centenas de cores enquanto nós dois, de mãos dadas, começamos a passear pelos caminhos das recordações. Respiramos o ar puro da brisa que brincava de pegar com as borboletas nas sombras de grandes árvores. Sentamos na beira de um lago de águas azuis, onde os peixinhos faziam malabarismos para chamar a nossa atenção. Atravessamos um jardim repleto de flores, enquanto centenas de passarinhos, de todas as cores, cantavam saudando a nossa passagem. Foi então que entramos num bosque onde a neblina era tão espessa que os nossos olhos, abertos ou fechados, enxergavam a mesma escuridão. Levei outro susto quando senti que a mão do Anjo da Amizade se desprendeu da minha. Abri os olhos e me vi novamente deitado no meu leito, com o Anjo do Sono cobrindo a minha visão com as suas mãos cinzentas.

- Onde está o Anjo da Amizade?, perguntei, enquanto sentia um torpor na mente, como se todas as forças estivessem fugindo do meu corpo. O Anjo do Sono ainda respondeu, antes que meus olhos se fechassem num sono profundo: - Não sei de Anjo da Amizade. Vi dois anjos voando em disparada quando cheguei. O Anjo do Amor, que estava de mãos dadas com o Anjo da Saudade. E, além de mim, só tem mais um anjo neste quarto: o Anjo da Solidão, que já está dormindo, como sempre, do teu lado.

Ainda tentei ficar com os olhos abertos, mas o Anjo do Sono, severo, me mandou dormir. Comovido com a minha tentativa de ficar acordado, ele falou mais uma vez: - Dorme tranquilo. Vou mandar o Anjo dos Sonhos entrar no teu sono. E ele, que tem a mania de satisfazer todas as vontades de todos, mesmo aquelas vontades que a pessoa nem manifesta, fará com que tu encontres com todos os anjos que quiseres, até mesmo com este tal Anjo da Amizade que os teus pensamentos inventaram...

Então fechei os olhos e dormi como um anjo. E sonhei com todos os anjos que fazem parte da minha vida. Acordei na manhã deste dia com a certeza de que nós todos somos anjos. Mudamos de nome dependendo da situação e do nosso jeito de estender a mão e de caminhar de mãos dadas com quem precisa. Depois disso, passamos a fazer parte dos sonhos das outras pessoas, que nos reconhecem como os anjos que foram importantes para elas naquele momento mais preciso.

Fonte:
Recanto das Letras

Baú de Trovas XXX


Este vazio em meu peito,
veja a que ponto chegou:
dói-me tanto, e de tal jeito,
que nem saudade ficou...
A. A. de Assis
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A mentira não resiste
por ser sempre incoerente;
vê-se logo que é um chiste:
a verdade é transparente...
Alfredo Barbieri
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Enquanto a vida não passa,
enquanto a morte não vem,
quem deixa marcas de graça
tem outros mundos no além!
Ari Santos de Campos
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Na gaiola um ser se agita,
com certeza por saudade...
Só não sei porque não grita
por socorro: LIBERDADE!
Célia Aparecida Silli Barbosa
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Em meio a um mundo violento
poesia é paz natural.
E a trova mostra o talento
no teatro universal...
Célia Guimarães Santana
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Pelos mares do infinito,
jogo anzóis e redes novas,
e, no meu sonho bonito,
pesco cardumes de trovas!
Delcy Canalles
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Beleza é ter a prudência
de uma vida pura e calma,
onde a nossa consciência
não cria rugas na alma!
Dilva Maria de Moraes
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Nas águas turvas da vida
que já não venço, alquebrada,
a fé é e corda estendida
que me garante a chegada,
Dorothy Jansson Moretti
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Jogo de amor não tem pressa,
adora preliminares...
Toda sedução começa
num longo beijo... de olhares!
Élbea Priscila Souza Silva
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De mãos dadas caminhava
com ele ao lado direito.
Minha alma doce sonhava
num casamento perfeito!
Elisa Alderani
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Até mesmo o passarinho,
que pensa ter liberdade,
retorna sempre ao seu ninho,
do qual também tem saudade.
Ilze de Arruda Camargo
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Tenho vivo em minha mente
um porto de salvação,
que me faz muito contente
e feliz meu coração !
Isaías Teves
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Jamais somo as amarguras
de minha vida sofrida…
eu somo em dobro as ternuras
para viver bem a vida...
Ivone Taglialegna Prado
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A grande dor que apunhala,
a mágoa que me angustia,
é ver, no fundo da sala
tua cadeira vazia...
Janske Niemann Schlenker
= = = = = = = = = = =
Para voltar não me peças.
Seria uma insensatez
eu crer nas tuas promessas
e arrepender-me outra vez!
José Tavares de Lima
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Abençoado é o momento
quando alguém, de coração,
liberta o ressentimento
e diz: – Perdoo-te, irmão!
Jupyra Vasconcelos
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A natureza se vinga
de toda agressão sofrida
e essa revolta respinga
no centro de nossa vida!
Luiz Carlos Abritta
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À espera do teu regresso,
deixei a vida passar!...
Envelheci, mas... confesso:
valeu a pena esperar!
Maria Madalena Ferreira
= = = = = = = = = = =
Em meu peito, soluçando,
escondo uma dor antiga,
para dizê-la, cantando,
nos versos de uma cantiga!
Matusalém Dias de Moura
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Debruçada na janela,
a espargir o seu fulgor,
a lua cheia revela
segredos do nosso amor!
Relva do Egypto Resende Silveira
= = = = = = = = = = =
Canta o rio a sua sanha
entre as pedras do caminho,
enquanto a noite acompanha
os sonhos do ribeirinho...
Rita Marciano Mourão
= = = = = = = = = = =
Alegria verdadeira,
neste mundo de ilusão,
é sonhar a vida inteira
sem tirar os pés do chão.
Roberto Resende Vilela
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O trabalho que mais traz
a paz pela qual se anseia
é aquele que a gente faz
em prol da ventura alheia.
Sandro Pereira Rebel
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Como pode alguém falar
tudo aquilo que se sente,
numa trova singular
e que espelha a alma da gente?!
Talita Batista
= = = = = = = = = = =
A trova, grande tesouro
que só o trovador recria;
o sentimento vira ouro...
e os versos pura magia!
Vanda Alves da Silva

Fonte:
Informativos da Seção São Paulo

Lygia Fagundes Telles (A Janela)


A mulher estendeu-lhe a mão e sorriu. O homem pareceu não ter notado o gesto. Ficou imóvel no meio do quarto, os braços caídos ao longo do corpo, o olhar fixo na janela.

— Havia ali uma roseira.

Lentamente ela amarrou na cintura o cinto do penhoar de seda japonesa. Examinou mais atenta o homem alto e magro, um pouco arqueado, de cabelos grisalhos com reflexos de prata.

— Que roseira?

— Uma roseira — disse ele num tom velado, vagando o olhar pelo quarto. — Certa vez, deu mais de cem rosas. Umas rosas enormes, vermelhas...

— Como é que o senhor sabe?

— Meu filho morreu neste quarto.

Ela sentou-se na beirada da cama. O riso foi-se desfazendo nos lábios grossos, mal pintados.

— Seu filho?!

— Este era o quarto dele — disse o homem voltando para a mulher o olhar fatigado. Tinha olhos palidamente azuis e falava baixinho, como se receasse ser ouvido. Um olho era bem maior do que o outro. — Exatamente onde está sua cama ficava a cama dele.

Ela descruzou as pernas e lançou um olhar constrangido para a cama coberta de almofadas coloridas. Sorriu sem vontade.

— Imagine... Isso faz muito tempo?

— Não sei.

Encarou-o. Estendeu-lhe o maço de cigarro.

— Está servido?

— Não fumo.

— No que faz bem. Diz que fumo dá aquela doença que nem gosto de falar. Queria ver se deixava mas quando deixo engordo que nem louca — lamentou fazendo um muxoxo. — A gola do penhoar abriu-se no peito. Ela fechou a gola frouxamente, de maneira que voltasse a se abrir de novo. — O senhor... você não quer se sentar? — convidou, indicando a pequena cadeira vermelha ao lado da mesa de toalete. — Fique à vontade, meu bem.

Ele sentou-se, encolhendo as longas pernas para não tocar nas da mulher. Entrelaçou as mãos. Vestia-se corretamente, mas a roupa parecia larga demais para seu corpo.

— Eu precisava rever essa janela.

— Só a janela?

O homem fixou na mulher o olhar desesperado.

— Meu filho morreu aqui.

— Deve ter sido horrível — disse ela depois de um breve silêncio. Soprou, nostálgica, a brasa do cigarro. Encarou o homem. E tentou uma risadinha: — Sorte a minha de ter escolhido este quarto, só assim podia te conhecer... Sabe que você é o meu tipo? Vem, senta aqui comigo!

— Era ele quem cuidava da roseira.

No cômodo ao lado alguém ligou um toca-discos. A música arrastou-se na surdina, era um samba-canção. Pigarreando forçadamente, a mulher teve um meneio de ombros. A gola do penhoar abriu-se até os bicos dos seios. Cruzou as pernas deixando cair no chão a sandália dourada. Descobriu os joelhos roliços.

— Mas então? Você trabalha por perto? Me dê sua mão, deixa eu adivinhar o que você faz... Sei ler mão, uma vez disse pra um cara, você vai ganhar na loteria! E não é que ele ganhou mesmo? Me dá sua mão e eu já digo o que você faz, dá aqui, amor...

– Não trabalho — murmurou ele percorrendo com o olhar o teto do quarto. Deteve-se na janela. — Não é estranho? Assim sem a roseira ela parece menor.

Esticando o braço nu, a mulher esmagou no cinzeiro a brasa do cigarro. Enfiou as mãos nos cabelos encaracolados, puxando-os para trás. Examinou o homem, intrigada.

— Quando me mudei não tinha nenhuma roseira.

— Morreu exatamente um mês depois dele.

— Pois quando cheguei aqui nem o canteiro tinha. Isso já faz três anos. Sou de Rio Preto, já contei?

O homem tirou do bolso uma pequena caixa de injeção e ficou a rodá-la entre os dedos. Repuxou a boca numa contração.

— Na véspera de morrer ele ainda me pediu que eu abrisse a janela, queria sentir o perfume... Enquanto pôde, debruçou-se nela. Depois, quando perdeu as forças, ficava olhando da cama. Um galho da roseira insistia em entrar pelo quarto adentro. Era um galho tão áspero, tão violento, eu o afastava, mas ele vinha novamente cheio de espinhos e folhas... Nunca tive coragem de cortá-lo.

A mulher foi afundando na cama até recostar-se no ângulo do espaldar com a parede. Puxou uma almofada e nela apoiou o cotovelo. Apertou os olhos. E ficou mordiscando a unha do polegar. Falava agora em voz baixa, no mesmo tom abafado do visitante.

— Que é que você tem aí dentro? Injeção?

— Nada — sussurrou ele, abrindo a caixa. Ergueu a face Perplexa: — Está vazia.

Uma porta bateu com estrondo. A mulher teve um estremecimento.

— Sempre me assusto quando uma porta bate — desculpou-se. — Fico nervosa à toa...

— Queria que me perdoasse — pediu ele num tom mais baixo ainda. — Mas é que eu precisava ver essa janela.

— Fique à vontade, imagine... O que é de gosto, regalo da vida!

— Era muito importante para mim voltar aqui.

— Já entendi, essas coisas eu entendo, pode deixar... Você é estrangeiro?

— Meu pai era dinamarquês.

— Dinamarquês — repetiu a mulher inexpressivamente. Inclinou-se para apanhar o cigarro. — Logo que você entrou, achei que devia ser estrangeiro. Posso saber seu nome?

Ele baixou a cabeça. As veias da fronte dilataram-se, tortuosas. Assim, de cabeça baixa, parecia um velho.

—As casas deviam ter mais janelas.

Passos ressoaram pesadamente no cômodo vizinho. A música foi interrompida, fazendo a agulha riscar o disco. A mulher encolheu as pernas. Cobriu com uma almofada os pés nus. Fechou no pescoço a gola do penhoar.

— A Brigite é apaixonada por esse disco, repete ele umas cem vezes por dia. Agora está mudando de lado. Quer que eu vá pedir pra parar?

— Não se incomode — ele sussurrou estendendo a mão espalmada na direção da mulher. Recolheu depressa a mão quando a viu estremecer. —Assustei-a?

— Que nada! É que sou mesmo assim, ando nervosa, acho que é o calor, está hoje um calor, não está? Mas posso pedir pra ela diminuir, vou num minuto...

— É aqui que está o botão para diminuir o som — disse ele apontando para o ouvido. — Todos os botões estão em nós mesmos.

Recomeçou a música acompanhada por uma voz de mulher, cantarolando meio distraída.

— O senhor sabe as horas? Marquei hora na Mirtes.

– Não tenho relógio. Mas por que me chamou de senhor? — ele quis saber examinando-a com uma expressão afetuosa. – Nos reuníamos junto da lareira. Foi na casa desse avô que eu vi a neve pela primeira vez. Cobria tudo, não se podia nem abrir a vidraça. Então ficávamos na sala, brincando perto da lareira. Tinha um corcundinha de roupa amarela e chapéu de guizos. Os dentes eram de ouro. Eu rolava com ele no tapete, fazendo-lhe cócegas só para ver seus dentes...

— Também tenho um dente de ouro — começou ela em meio de um risinho. — Só que é lá no fundo. Às vezes dói, o bandido.

— Começa hoje a primavera. Você teria rosas lindíssimas.

A mulher ficou de joelhos na cama. Estava pálida. Os lábios trêmulos. Falava agora como ele, delicadamente.

— Olha, espere um pouco que vou buscar um refresco pra nós, tá? A Nanei fez uma delícia de refresco, uvaia com bastante açúcar, bem geladinho.

Ele descruzou as mãos e ficou a olhar para os dedos longos, abertos num espanto. A voz rouca saiu entrecortada.

— Não seria preciso mais do que uma pequena janela. Poderia então respirar. E quem sabe o galho de roseira...

Ainda de joelhos, sem ruído, a mulher foi deslizando para o chão. Abriu a porta.

— Fique bonzinho, volto num instante, tá? Escurecia. A sombra arroxeada do crepúsculo dava uma coloração de vinho velho à coberta vermelha da cama. O vento soprou mais forte, fazendo farfalhar o saiote de papel de seda da bonequinha vestida de bailarina, dependurada no espelho por um fio. No toca-discos, a agulha riscava obstinadamente o disco que chegara ao fim. O homem não se moveu na cadeira vermelha, tão integrado na penumbra quanto os objetos em redor.

— Demorei muito? — perguntou a mulher entrando sorrateira. — É que fui buscar laranjas, o refresco tinha acabado, fiz outro, está na geladeira — acrescentou atropeladamente.

Mantinha-se junto da porta, a mão torcendo o trinco. — Vou acender a luz, está escuro demais, credo!

— Não, por favor, está tão bom assim — pediu ele com doçura. Falava num tom quase inaudível: — E nesta hora que começa o perfume, a gente sente melhor no escuro.

— Perfume de quê?

— De rosas.

Ela encostou a cabeça na porta, os olhos muito abertos, a respiração curta. Vinha agora do corredor um ruído arrastado de passos. Vozes de homens e mulheres cruzaram-se precipitadas. Abriu-se a porta. Um enfermeiro entrou a passos largos, seguido por outro enfermeiro. Três mulheres de ar assombrado ficaram espiando do lado de fora. Alguém acendeu a luz.

O homem levantou-se e tapou os olhos com a mão. Aos poucos foi levantando a cabeça, os olhos ainda apertados. Pôde então encarar o enfermeiro que desdobrava uma camisa de força. Estendeu tranquilamente as mãos. Tinha na fisionomia uma expressão de profunda tristeza.

— É preciso?

O enfermeiro teve um sorriso contrafeito. Encolheu os ombros enquanto dobrava a camisa. E aproximou-se com brandura.

— Então vamos.

Ele teve um último olhar para a janela. Depois voltou-se para a mulher, descalça e encolhida num canto. Falou tão baixo que só ela pôde ouvi-lo.

— Porquê?...

O segundo enfermeiro tomou-lhe o braço e em silêncio o cortejo foi saindo para a rua.

Como se obedecessem a um secreto sinal, as três mulheres precipitaram-se para dentro do quarto, rodeando a companheira que continuava colada à parede, fechando no peito a gola do penhoar.

— Que horror! — exclamou a mulher de lenço amarelo amarrado na cabeça. — Como é que você não morreu de susto? Fechada com um louco aqui dentro? Só de pensar fico toda arrepiada, olha aí!

– Mas até que ele tinha uma cara bem simpática — disse a loura de brincos. — Era meio parecido com aquele artista de cinema, aquele meio velho, como é mesmo o nome dele? James...

— Ah! não quero nem saber, Deus que me livre de topar com um louco — interrompeu-a a mulher de lenço. — E como é que você descobriu que ele tinha fugido? Puxa vida, que você dava até para trabalhar na polícia! Isso prova que a gente devia ter um revólver no quarto. Metralhadora, minha filha.

— Coitado, fiquei com tanta pena... E nem fez nada, não foi? — perguntou a loura, voltando-se para a amiga. — Podia ter abusado, não abusou. Palavra que fiquei com pena, ele lembrava muito aquele artista, nós vimos a fita juntas, o nome começava com James...

Repentinamente a mulher pareceu despertar no canto onde se encurralara. Abarcou as três mulheres num olhar enfurecido. Empurrou-as para fora do quarto:

— E chega, ouviram? Chega! Vão-se embora, me deixem em paz!

— Mas que bruta! A gente estava só querendo...

— Chega! — gritou ela, fechando os punhos. — Saiam todas, vamos, você aí também, fora! Fora!

Bateu a porta com estrondo. Por um momento prosseguiram ainda as vozes das mulheres falando exaltadas, ao mesmo tempo. Em seguida, num tropel, desandaram para a rua.

Viu-se no espelho, desgrenhada e descalça. Desviou depressa o olhar da própria imagem. Apagou a luz. E sentando-se na cadeira onde o homem estivera sentado, ficou olhando a janela.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles. Antes do Baile Verde: contos. Publicado em 1970.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 482

 


Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 12: Patacoadas


O  CIDADÃO PIRES DA CONCEIÇÃO XICRINHA  requereu numa das varas de família do Rio de Janeiro, seu divórcio, tendo em vista que não podia, segundo ele,  oferecer nada de bonito e elegante à sua esposa, a bela e esfuziante Pedralinda Pedregulhosa da Costa Xicrinha, ao passo que ela tinha de tudo do bom e do melhor.  

De fato, linda e maravilhosa, no albor dos vinte, Pedralinda Pedregulhosa da Costa Xicrinha era filha de mamãe e de papai. Apesar de saber do divorcio repentino, num primeiro momento rodou a baiana, subiu nas tamancas, virou bicho. No dia da audiência, mais calma, contratou a sua mãe, advogada porreta e sogra de Pires da Conceição Xicrinha. Os dois (nora e genro) pareciam  gato e rato numa briga desigual.   

No dia aprazado, todos reunidos na sala de audiência, a mãe advogada pediu a palavra, depois que o juiz abriu a boca e deu por aberta a contenda e mandou aquelas palavras idiotas de sempre, coisas para bois cansados e com sono dormirem logo que se recolhem a seus aposentos reais:

JUIZ:

- Senhora Pedralinda, não existe a possibilidade de ser repensado o pedido aqui protocolado e o casal terminar com os entraves e partir para uma possível reconciliação?

Antes que a autora respondesse, a mãe dela, dona Aurora Tribufú da Costa tomou a dianteira.

MÃE:

- Na, né, ni, na não, excelência...

O juiz escaneou a senhora de cima em baixo ajeitando os óculos para melhor contemplar a beldade que bruscamente o interrompera.

JUIZ:

- A senhora, quem é?

Aurora Tribufú da Costa, mãe de Pedralinda Pedregulhosa da Costa Xicrinha se levantou num salto e, igualmente, encarou o juiz:

- Sou a mãe dela, senhor juiz.

JUIZ:

- Senhora, quem precisa decidir é a sua filha. Por favor, fique em silêncio.

A senhora Aurora Tribufú da Costa vociferou:

- Um momento, Excelência. Eu preciso esclarecer que...

O juiz, soltou um latido esquisito e estridente dando sinais de fúria, como se tivesse sido mordido por um leão esfomeado:

- Senhora, como é seu nome?

MÃE:

- Meu nome é Aurora Tribufú da Costa. E o seu?

JUIZ:

- Isto não vem ao caso. Então, dona Aurora, a senhora como mãe, não pode interferir. Fique calada, ou pedirei que saia desta sala.

A MÃE (DE NOVO):

- Protesto, Excelência.

O JUIZ (BATEU NA MESA):

- Como é que é?

A MÃE  (AGORA, VISIVELMENTE TRÊMULA E NERVOSA):

- Eu protesto. Sou a mãe dela.

JUIZ:

- Não importa. Fique de boca fechada. A senhora não pode meter o bedelho.

A MÃE (SOCOU TAMBÉM A MESA, EM REAÇÃO AO ATO DO MAGISTRADO):

- Excelência, sou a mãe dela, como disse e outro detalhe. Sou advogada e estou aqui devidamente constituída defendendo os direitos de minha filha, tendo em vista o marido dela (este ai – falou apontando o sujeito) querer dar uma de João sem braço em cima da minha menina. Se Vossa Excelência olhar no processo, verá a minha procuração.

O JUIZ (COÇOU A CABEÇA):

- Por que não disse logo que era advogada da separanda?

A MÃE:

- O senhor não perguntou...

JUIZ:

- E por que a sua filha não pode responder ao que perguntei?

MÃE (DESABAFANDO):

- Meu genro, excelência, esta coisa aí, o Pires da Conceição Xicrinha é um pobretão metido a riquinho. Aliás, um riquinho fajuto. Alegou, em sua petição, que nada pode oferecer de bonito e elegante à minha querida filha.

E COMPLETOU, CHEIA DE IRA:

- Estou farta de ouvir, nos fóruns da vida, e nas audiências que faço, que os maridos que se queixam alegando que as suas mulheres são bonitas demais para eles, é porque não tem dinheiro suficiente para bancar os gastos mais prementes dos quais elas necessitam no dia a dia. Ou seja, este sujeitinho ai, em resumo, quer dar o golpe. Com a separação, pretende mamar metade dos bens que dei a ela. Eu mato este sujeito, eu mato... Tenho dito...

Juntando as palavras ao gesto, a mãe da jovem abriu a bolsa e empunhou uma 380 novinha em folha. O juiz, apavorado, se escondeu debaixo da mesa. O genro  preferiu voar para uma sala  contígua, sendo seguido por sua advogada. A promotora de justiça desmaiou.

A escrivã, antes de sair de cena, derrubou o computador que se espatifou, no chão causando uma explosão.  Alguém, lá fora, ouvindo a discussão acalorada e os gritos de socorro, chamou os policiais que meteram  os pés na porta e  contiveram a advogada.  Completamente endiabrada, a tresloucada partiu para cima do genro, arma empunhada, prometendo,  a brados retóricos, manda-lo para a terra dos pés juntos. Acabou presa.  

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) III

A SRA. D. TERESA MARIA CAETANA DA TRINDADE

(Oferecida a sua madrinha D. Teresa Trindade por ocasião de seu aniversário)

Que importam anos? Uma flor existe
Que, quanto mais por ela o tempo corre
Mais seu aroma e seu verdor aumenta;
Com o tempo revive, nunca morre.

É a virtude, raio que no mundo
Do céu dardeja o sol da eternidade,
Em si bem como Deus o tempo encerra,
Anos não conta, nem aumenta a idade.

O homem que a contempla, embora viva
Séculos a contemplar-lhe a formosura,
Mais aroma lhe sente, e vê na forma
Mor garbo, mais beleza e mais doçura.

Não, as cãs da velhice não enfeiam
A fronte da matrona virtuosa;
Diadema de prata nela brilha,
Qual na da mocidade brilha a rosa.

Se a grinalda de rosas da donzela
É bela por dizer graça e meiguice,
Exprime mais solenes predicados
A coroa de prata da velhice.

Mostra uma virtude ainda nascente,
As galas, o trajar da juventude,
E a outra, coroa de triunfos,
Que já colheu dos anos a virtude.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O DESALENTO
(Ao meu amigo Leopoldo Luís da Cunha)

Quando eu morrer, minha morte
Não lamentes, caro amigo,
Que o sepulcro é um jazigo
Onde eu devo descansar;
A minha triste existência
É tão pesada, é tão dura,
Que a pedra da sepultura
Já me não pode pesar.

Uma lágrima, um suspiro,
Eis quanto custa o morrer;
Custa-nos sempre o viver
Prantos, suspiros, sem fim!
Que tormento fora a vida,
Se não fosse transitória!?...
Não me risques da memória,
Porém não chores por mim.

Enchem trevas o sepulcro,
Mas ninguém delas se queixa;
Quando o morto os olhos fecha,
Não quer luz, quer sossegar;
Aquele fundo silêncio,
Aquele extremo abandono,
Dão-lhe tão profundo sono,
Que nem pode despertar.

Já tive medo da morte,
Agora tenho da vida;
Sinto minha alma abatida,
Sem vigor o coração;
Já cansado de viver,
Para a morte os olhos lanço;
Vejo nela o meu descanso,
A minha consolação.
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DOIS IMPOSSÍVEIS

Jamais! quando a razão e o sentimento
Disputam-se o domínio da vontade,
Se uma nobre altivez nos alimenta
Não se perde de todo a liberdade.

A luta é forte: o coração sucumbe
Quase nas ânsias do lutar terrível;
A paixão o devora quase inteiro,
Devorá-lo de todo é impossível!

Jamais! a chama crepitante lastra,
Em curso impetuoso se propaga,
Lancem-lhe embora prantos sobre prantos,
É inútil, que o fogo não se apaga.

Mas chega um ponto em que lhe acena o ímpeto
Em que não queima já, mas martiriza,
Em que tristeza branda e não loucura
À razão se sujeita e harmoniza.

É nesse ponto de indizível tempo
Onde, por misterioso encantamento,
O sentir a razão vencer não pode,
Nem a razão vencer ao sentimento.

No fundo de noss’alma um espetáculo
Se levanta de triste majestade,
Se de um lado a razão seu facho acende
De outro os lírios seus planta a saudade.

Melancólica paz domina o sítio,
Só da razão o facho bruxoleia
Quando por entre os lírios da saudade
Do zelo semimorto a serpe ondeia!

Dois limites então na atividade
Conhece o ser pensante, o ser sensível:
Um impossível — a razão escreve,
Escreve o sentimento outro impossível!

Amei-te! os meus extremos compensaste
Com tanta ingratidão, tanta dureza,
Que assim como adorar-te foi loucura,
Mais extremos te dar fora baixeza.

Minh’alma nos seus brios ofendida
De pronto a seus extremos pôs remate,
Que mesmo apaixonada uma alma nobre
Desespera-se, morre, não se abate.

Pode queixar-se inteira a felicidade
De teu olhar de fogo inextinguível,
Acabar minha crença, meu futuro,
Aviltar-me! jamais! É impossível!

Mas a razão, que salva da baixeza
O coração depois de idolatrar-te,
Me anima a abandonar-te, a não querer-te,
Mas a esquecer-te, não, sempre hei de amar-te!

Porém amar-te desse amor latente,
Raio de luz celeste e sempre puro
Que tem no seu passado o seu presente,
E tem no seu presente o seu futuro.

Tão livre, tão despido de interesse,
Que para nunca abandonar seu posto,
Para nunca esquecer-te, nem precisa
Beber, te vendo, vida no teu rosto.

Que, desprezando altivo quantas graças
No teu semblante, no teu porte via,
Adora respeitoso aquela imagem
Que deles copiou na fantasia.
 
Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Carla Rejane Silva (Silêncio absoluto)


Estranho este silêncio vindo de dentro para fora. Não escuto nada, nem mesmo as batidas do meu coração. Logo ele, que vivia em festa... Em desespero, procuro sair deste marasmo infundado, busco escapar desta loucura-lamúria que me deixa surda de sentimentos. Quisera eu, simples mortal, quisera poder entender, ao pé da letra, o que vai dentro de minha alma.

Meu ser tenebroso me tira toda aquela vontade de escutar. Meu coração silencioso, derrama lágrimas de sangue por mim.  E me pergunto, a toda hora: quando terei paz? Me questiono, a toda hora, em que momento da minha vida, me sentirei plena e realizada?

Eu, que outrora fui cheia de alegria e contentamento abundante... Que vivia com um sorriso largo e contagiante bailando nos olhos, um sorriso  que transbordava até a  boca, de repente... Do nada, me vi vazia de tudo.

E a minha boca, hoje, esta boca que só tinha palavras sinceras e verdadeiras, que declamava a vida em versos, se fechou. Por algo incompreensível, ela se tornou muda, atrelada a uma surdez sem tamanho.

Este estilhaçar sentimental e cruel, me tirou tudo, me roubou o essencial. Até mesmo o prazer que eu tinha, de ouvir aquele som maravilhoso que me fazia delirar, em forma de brisa leve... Se esvaiu...

Enfim, tudo o que bailava, até então, dentro do meu ‘outro eu’, ou seja, aquele recôndito escondido, que conservava um imenso amor, um grandioso querer, quase abissal, se quedou igualmente inerte.

De repente, sem motivo algum, o sombrear das mazelas da vida, me tiraram o meu desejo de viver entre os mais esfuziantes  e perfeitos. E pior, de conviver com os  eternos, ao som mavioso do uivar da louca e desenfreada paixão.

Fonte:
Texto enviado pela autora

Estante de Livros (Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto)

O Autor


Lima Barreto estreou na literatura em 1909 com a publicação de Recordações do Escrivão Isaías Caminha. A crítica especializada considera-o o nosso grande escritor pré-modernista. Sabe-se que o Pré-Modernismo no Brasil não chegou a efetivamente antecipar a densidade temática e a revolução da linguagem do Modernismo, mas refletiu, e em especial Lima Barreto, uma preocupação de retratar o social e o indivíduo inserido no meio em que ele vive. Digno de nota é o fato de o escritor jamais ter esquecido sua biografia, sendo sua obra uma espécie de extensão de seus dramas individuais, sobretudo o ressentimento que sua condição de mulato reafirmou e as dificuldades que teve de enfrentar numa sociedade preconceituosa como a do Rio de Janeiro do final do século XIX. Lima Barreto faz registro dos conflitos sociais e pessoais de maneira simples e sincera, tomando o leitor como cúmplice de seus sentimentos em relação às injustiças e aos seus anseios por conquistar um mundo melhor.

Realista por convicção e por afinidade e marxista ou maximalista por adoção e modismo. Lima Barreto viveu na época em que o Rio de Janeiro conheceu suas primeiras greves e os primeiros distúrbios sociais de massa que mobilizaram o operariado crescente, fatos que não escaparam da análise do arguto escritor. Suas atividades de jornalista ajudaram-no a registrar, com certa precisão, os fatos que estavam ocorrendo. Graças à prática, conseguiu um estilo mais despojado, longe da tendência parnasiana que invadia as Letras na época. A adjetivação torna-se econômica, a linguagem flui com clareza e precisão, se bem que não é possível presenciar a renovação no interior da frase ou na utilização de uma linguagem coloquial como fariam os modernistas.

Introdução ao tema

A problemática abordada em Recordações do Escrivão Isaías Caminha é o preconceito racial. Segundo Lima Barreto, um indivíduo nas condições de Isaías Caminha poderia ser massacrado pelo preconceito, embora tivesse todas as condições intelectuais para vencer. O escritor confessa ter sido muitas vezes brutal tanto com o personagem quanto com o meio que retratava, mas, acrescenta ele, sempre foi movido pela sinceridade, pois quer ver triunfar a verdade na sua literatura. Portanto, o escritor está dentro dos padrões da literatura engajada que inundou a literatura do final do século XIX. Assim, toda a ficção de Lima Barreto tem muito da realidade que ele registrava após profundas observações da vida durante os primeiros momentos da República.

Enredo

Isaías é o narrador e o personagem principal da obra, transformando-se, no decorrer da narrativa, numa espécie de alter ego do escritor que lhe deu conformação, pois nele e através dele pode o leitor contemplar boa parte da vida, da ilusões e das ideologias de Lima Barreto. O narrador inicia colocando seu círculo familiar desde a infância, sempre retrocedendo, para ressaltar sua inteligência, destacando a sabedoria do pai e a humildade da mãe. Como foi bom estudante, saiu do liceu com um currículo exemplar. Ao considerar as perspectivas de futuro, encontrou no Rio uma opção para o seu crescimento intelectual, encantado com a possibilidade de vir a ser um doutor. Seu tio Valentim recorreu ao coronel Belmiro que escreveu uma carta de recomendação endereçada ao deputado Dr. Castro. Isaías parte para o Rio com a crença inabalável de que obteria sucesso.

Quase menino, contando apenas dezoito anos, Isaías desembarcou no Rio, após longa e difícil viagem. Travou conversa com um comerciante de farinha, o padeiro Laje da Silva, que o acompanhou nas primeiras investigações pela nova cidade. Também conheceu de passagem o jornalista Dr. Ivã Gregoróvitch Rostóloff, ilustrado e simpático repórter, que impressionou Isaías Caminha devido a sua versatilidade linguística.

A situação do protagonista vai ficando dramática, pois não conseguia encontrar-se com o deputado Castro e seu dinheiro foi-se reduzindo rapidamente.

Isaías enfim encontrou uma oportunidade para apresentar a carta ao Dr. Castro, e teve uma outra grande decepção porque o deputado se recusou a ajudá-lo. Deve-se observar que Lima Barreto é um escritor com tendências ao Naturalismo.

A maior humilhação de Isaías veio quando foi intimado a ir à delegacia. Por alto soube de um roubo no hotel onde morava. Crente de que iria depor, sofreu ao perceber que ele era o acusado. Como estava acostumado com a valorização de sua condição, possível através da fama de bom estudante, e de ser muito inteligente, ao ser chamado de 'mulatinho' pelo funcionário da delegacia, ficou ferido em sua susceptibilidade. Ao ser agredido verbalmente, o delegado o encaminha para a prisão. Só se livra da cadeia por ser conhecido do jornalista Gregoróvitch.

Após o incidente, deixou o hotel, procurando abrigo em um quartinho de fundos. Lá conheceu o poeta revolucionário Abelardo Leiva, que se dizia socialista e era secretário do Centro de Resistência dos Varredores de Rua. O poeta vivia pobremente, mas curtia sua miséria, gabava-se de ter participado de duas greves e de ter conscientizado o operariado. Através dele frequentou as reuniões do apostolado positivista e ouviu as prédicas de Teixeira Mendes, em quem Isaías Caminha reconhece um impostor. É também através dele que desvenda o mistério da cidade que o acolheu tão friamente. A situação do protagonista fica cada vez pior.

Não havia mais dinheiro para seu sustento. Confessa ter-se abandona à miséria, pois mal comia ou comia mal e sua sobrevivência em parte era devida ao conterrâneo Agostinho Marques.

Por fim, Isaías reencontra o jornalista Gregoróvitch, a quem confessou suas agruras e os sofrimentos pelos quais estava passando. Gregoróvitch lhe arranja um lugar como contínuo no jornal O Globo. A partir desse momento, a obra praticamente gira em torno das observações que o personagem-narrador faz da rotina do jornal.
 
As observações de Isaías continuam, colocando não só a rotina ao jornal, como também suas próprias ideias e sua vivência. De certa maneira, esse contínuo simples e humilde tornou-se uma espécie de observador passivo dos homens que trabalhavam naquele ambiente, uma vez que pouco participava da rotina do jornal.

Gradativamente, Isaías vai percebendo que a rotina do jornal era uma sucessão de enganos e estavam todos, desde o redator-chefe até o mais íntimo dos operários, à mercê de um diretor tirano e voluntarioso e conferiram a ele o tratamento dispensado a um deus, cultuando-o, venerando-o, obedecendo-o cegamente. Cabe também a Isaías Caminha depositar confiança e admiração pela atuação de Loberant. Pôde constatar, ainda, qur todos se desprezavam entre si, dando aberturas à criação de uma atmosfera falsa e carregada, embora procurassem manter as aparências a qualquer custo. Os personagens de Recordações do Escrivão Isaías Caminha são montados de tal forma que parecem firmar a ideia de que, na cidade, os homens são movidos por interesses escusos e dirigidos pelas aparências. As observações de Isaías continuam sendo oportunas e ele, inteligente e astuto, aproveita-se delas num intenso processo de aprendizagem.

Um incidente viria a mudar a vida do contínuo: Floc, o crítico literário do jornal, suicida-se em plena redação.

Para não ser desmoralizado, o dono do jornal passa a protegê-lo e, pela primeira vez, o rapaz tem a oportunidade de mostrar seus reais dotes jornalísticos.

A referência às suas origens deixou Isaías fora de si, com vontade de agredir o colega. Conteve-se no momento, mas depois, na rua, não hesitou e deitou por terra aquele que o havia ofendido. Foram todos parar na delegacia; Isaías estava aliviado, mas satisfeito de ter-se vingado.

Pela primeira vez na vida, tinha consciência de que não havia se deixado humilhar. Loberant, desse dia em diante, deu mais apoio a seu tutelado. Todos da redação do jornal passaram a considerá-lo e a respeitá-lo. O diretor do jornal, como que movido pelo remorso de tê-lo deixado tanto tempo como contínuo, passou a cobrir-lhe de dinheiro e atenções, levava-o a toda a parte elogiando-lhe o talento, a inteligência e a cultura. Isaías manifestou vontade de abandonar o Rio, satisfazer seus desejos mais simples, casar-se, ter filhos.

Comentário crítico

Em tom retrospectivo, Isaías narrou suas memórias com a convicção de ter vencido em parte os problemas e as humilhações que o meio social preconceituoso lhe delegava, mas mais consciente de estar vivendo uma situação falsa ou de exceção.

A prosa realista de Lima Barreto em Recordações do Escrivão Isaías Caminha está ainda engatinhando na arte de compor a linguagem. Seu trabalho artístico chegaria a páginas perfeitas em obras escritas posteriormente, presenteando a Literatura Brasileira com verdadeiras obras-primas como Triste Fim de Policiarão Quaresma. Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto é pré-modernista por apresentar tonalidades críticas ao se voltar para o retrato do mundo das aparências e das falsidades. Não é possível esquecer de que muitas das observações aí feitas, ainda hoje são válidas, principalmente no retrato da nossa devassidão política, do jogo de interesses e das relações falsas que deixam os homens à mercê dos mais poderosos.

Personagens principais

Ricardo Loberant - diretor do jornal, tipo alto magro que soube trabalhar para fazer valer sua vontade de ver crescer o jornal. O jornal onde trabalhava 'trazia novidade: além de desabrimento de linguagem e um franco ataque aos dominantes, uma afetação de absoluta austeridade e independência [...] O Globo levantou a crítica, ergueu-a aos graúdos, ao presidente, aos ministros, aos capitalistas, aos juízes, e nunca houve tão cínicos e tão ladrões'. Dirigia o jornal mais polêmico do Rio de Janeiro na época e, sem dúvida, um dos mais vendidos devido à frieza e ao senso crítico que desenvolvia. Sua autoridade deixava marcas profundas em seus subalternos.

Leporace - arrogante secretário do jornal, 'sumidade em literatura e jornalismo, árbitro do mérito, distribuidor de gênios e talentos.'

Frederico Lourenço do Couto - assinava artigos com o pseudônimo de Floc. Era respeitado por entender de literatura e assuntos internacionais, por isso era considerado a alta intelectualidade do jornal. Não se metia em polêmicas ou em escândalos. Isaías comparava-o a uma águia.

Gregoróvitch - esse russo era a artilharia do jornal. Em estilo arrojado e violento, tecia críticas aos adversários.
 
Uma série de outros personagens vão desfilando aos olhos dos leitores, que se mantêm acesos com as descrições dos mais diferentes tipos, sempre apresentados como se fossem instrumentos principais ou secundários de uma batalha.

Fonte:
Site Algo Sobre

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Pergaminhos da Saudade – 2 –

 


Júlia Lopes de Almeida (A Primeira Bebedeira)


– Não saias hoje, meu filho! A noite está tão feia! Que necessidade tens tu de te expor ao tempo?

– Descanse, minha mãe, que eu voltarei cedo...

– Mas repara que é hoje o dia do meu aniversário, que há de vir alguém ver-me, e a tua ausência será censurada...

– Descanse, minha mãe, que eu voltarei cedo...

– A noite está escura e o caminho é tão mau...

– Descanse, minha mãe...

– Que voltarás cedo, não é assim? Pois faze o que quiseres, na certeza de que me dás um desgosto... Adeus!

– Até já, mamãe.

E o moço saiu. Caía uma chuva miudinha, peneirada, leve, e no céu tenebroso não luzia uma estrela. De longe em longe a luz de um lampião iluminava um bocado da rua barrenta, ladeada de mato, sem calçada. Sentia-se o respingar delicado das gotinhas de chuva nas folhas, e ao longe, nuns charcos, umas rãs coaxavam. Ao cabo de um quarto de hora o moço batia com a bengala nas grades de um jardim.

Ouviu abrir-se e fechar-se rapidamente uma porta; depois, uns passos ligeiros quebrando a areia do jardim e uma voz doce dizer-lhe:

– Não posso demorar-me agora... meu tio está em casa!

– Que importa? e eu não deixei minha mãe, hoje, dia de seus anos?

– Ah! mas isso é diferente... os homens fazem tudo que lhes apraz!...

– Mas eu tenho muito que lhe dizer, Albertina!

– Volte logo, às dez horas... falar-lhe-ei da janela...

– Escute...

– Não posso... estão-me chamando, adeus!

E o vulto embuçado da bela Albertina tornou a desaparecer entre os arbustos do jardim. Depois ouviu-se de novo abrir e fechar rapidamente uma porta, e ficou tudo silencioso.

Contrariado, o moço lembrou-se da promessa que fizera à mãe; mas, como voltar, se a Albertina lhe dizia que a fosse ver às dez horas?

Decididamente era preferível fazer a vontade à última. A mãe que se resignasse...

Para não esperar ali, na rua, tolamente, lembrou-se de ir passar uma hora no botequim do bairro, onde tinha a certeza de encontrar amigos.

Assim foi. Junto a uma mesinha de pedra conversavam alto, rindo, três colegas seus, rapazes ainda muito novos, imberbes como ele, afetando um ar de estroinas, de boêmios românticos, convictos de gozarem assim a sua mocidade, apenas desabrochada e já tanto murcha pelas extravagâncias.

Logo que o viram entrar, fizeram os outros grande algazarra; manifestaram espanto, atirando ao ar frases bombásticas salpicadas de adjetivos flamejantes e das mais conhecidas locuções latinas. Abriram--lhe lugar e encheram-lhe o cálice de conhaque. Estabelecida a palestra, o da direita ofereceu-lhe charutos, o da esquerda apresentou-lhe um fósforo aceso, e o que estava em frente renovou-lhe o conhaque do cálice. E este criticava-o por achá-lo acanhado, esquerdo; aquele, porque mostrava pouca prática das rapaziadas alegres; aquele outro, porque lhe percebia na fraseologia uma chateza das palestras familiares, inspiradas pelos conselhos da mamãe nos serões caseiros.

– Um pouco de atrevimento, um pouco ao menos! meu caro! dizia um; e logo outro:

– Audaces fortuna juvat*...

– Isto de homens maricas só servem para uma coisa: envergonhar a espécie!

– Apoiado...

– Apoiado!

Aquelas advertências humilhavam o rapaz. Realmente ele começava a achar-se ridículo, parvo e infeliz. Não encontrava justificação para a sua timidez; daria tudo para convencer os colegas de que era folgazão e gozava a vida; de que tinha proezas, e não obedecia à família tanto quanto supunham. Chegou mesmo a falar na independência do seu caráter, na sua maneira altiva de tratar os superiores e nos recursos monetários que não lhe faltavam nunca... Ia bebendo.

– Bravo! à tua saúde!

– Bravo!

– Bravo!

Os copos esvaziavam-se, os olhos brilhavam e as palavras escorriam fluentes, entre casquinadas de risos e tilintar de vidros. Entraram depressa em assuntos de amor: um confessou fazer a corte a uma velha que lhe dava presentes, e mostrou, vaidoso e risonho, o alfinete da gravata cravejado de pedras finas.

– Quando a desenganares avisa-me, dizia um outro; ando muito falto de joias.

Sucessivamente foram-se desenrolando, entre o fumo e o cheiro forte do álcool, as histórias amorosas de todos eles, até que chegou a vez da Albertina.

O nome da pobre moça foi inúmeras vezes repetido, e, como alguém duvidasse da veracidade do conto, o rapaz tirou do bolso uma carta, e, abrindo-a com um gesto decidido, bateu com ela na mesa, sobre o conhaque entornado.

– Dá cá! deixa-me ver quantos erros traz... pediu-lhe um dos companheiros.

Ele entregou o papel e, recostando-se na cadeira, ouviu risonho e triunfante toda a carta da moça, declamada num tom enfático, embora por vezes muito arrastado.

Choviam comentários; rebentavam a cada período gracejos brutais; e ele, que até então resguardara honestamente, com toda a delicadeza e cuidado, o seu amor, expunha-o agora, sem vexame, aos companheiros indiscretos, gabando-se muito!

– E que tal, é rica? perguntava um.

– E é formosa? inquiria outro.

Ele ia respondendo afirmativamente a todos, rindo-se, com o olhar quebrado, os braços sobre a mesa, a voz alterada e o copo entre os dedos. De vez em quando parecia compreender a realidade; queria então reagir, lutar, esconder o seu amor num melindroso recato; mas a cabeça pendia-lhe para o peito, as ideias bailavam-lhe no espírito como folhinhas num redemoinho de vento, e tudo quanto era digno, justo, e que habitualmente guardava concentradamente no coração, consentia que girasse agora, de um modo grosseiro, nesse pequeno círculo de amigos insensatos! Varriam-se-lhe depressa todos os escrúpulos!

O conhaque ia arrastando as sutilezas da sua alma, afogando os seus deveres, enegrecendo a sua consciência. Deu-lhe para falar. Contou a sua vida íntima, segredos de família que não transpareciam cá fora: o pai fugira por dívidas; um tio roubara em casa de um amigo... Arremedou depois a voz da Albertina e a maneira da mãe ralhar com a criada.

Os outros já lhe não prestavam atenção, iam bebendo, silenciosamente, até que o dono do botequim os pôs na rua.

A chuva cessara; corria uma viração forte, embalsamada do aroma das chácaras. Os amigos seguiram abraçados, cantando alto, para a esquerda; ele subiu a rua, não errando, milagrosamente, o caminho de casa. Mal seguro nas pernas, dobrando frequentemente os joelhos, cambaleante, ora na calçada, ora no meio da rua, aproximou-se da morada de Albertina, que o esperava a um canto da varanda. Vendo-o naquele estado, ela, sem dizer nada, escondeu-se e fechou horrorizada a janela. Ele pôs-se então a gritar de baixo que não estava bêbado, que não estava! caluniava-o quem afirmasse isso! E como a Albertina não se resolvesse a aparecer, ele desatou a chorar alto, muito alto, num berreiro desesperador.

Passou assim algum tempo, até que, já cansado, continuou o seu caminho. A calçada acabara-se; o solo agora era desigual, barrento, coberto de lama e de poças d’água. Por um prodígio estranho conseguiu conservar o equilíbrio; ia de bordo em bordo, muito agoniado, com grandes tonturas e dores de cabeça. Ao pé de casa havia uma ladeirinha escorregadia... aí não se pôde suster, os joelhos dobraram-se-lhe, vieram-lhe ao mesmo tempo os vômitos, e ele caiu.

Palpitavam-lhe com força as artérias das fontes, martelando-lhe pancadas dolorosas; não podia mover o corpo, muito pesado; e começava de ter a percepção da sua vergonha. Um cão lambeu-lhe e bafejou-lhe a cara; a viração fria da noite pareceu-lhe depois cortar com uma chicotada a face, molhada da baba do animal.

Estava assim, coberto de imundície, quando a mãe surgiu, com um xale pela cabeça, à porta da habitação, a observar se o filho viria perto ou não; dando com ele, assim caído, julgou-o doente ou ferido, e ajoelhou-se depressa a apalpá-lo.

Chamou-o devagar, cariciosamente; não ouvindo resposta, abaixou-se mais, procurando, trêmula, escutar-lhe a respiração; mas, ao chegar a cabeça à boca do filho, recuou espavorida, sentindo o cheiro do álcool. Ele fitava nela os olhos, pasmadamente.

Não passava ninguém; fazia frio, estava escuro, e latiam ao longe os cães; no entanto a pobre mulher esforçava-se por erguer nos seus braços débeis o corpo pesado do filho, e o seu maior desejo era poder abrigá-lo no seio escondendo-o de todas as pessoas e de todas as coisas!

Conseguiu levá-lo sozinha, através do corredor escuro, para o seu quarto; deitou-o, deu-lhe remédios e, enquanto ele dormia, ressonando alto, ela, numa agonia muda, vigiava à porta, para que alguém não fosse surpreendê-lo assim...
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*Audaces fortuna juvat – A sorte favorece os audazes.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.