domingo, 16 de outubro de 2022

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 5

ANO NOVO

Os sinos sacodem a noite silente.
Apitos, sirenes, febris a anunciar
que parte o Ano Velho, tristonho, doente,
e Nova Esperança começa a brilhar!

Em meio à alegria que explode em espuma,
transborda de taças e rola no chão,
rasteja a tristeza, fiapos de bruma,
estranha entre risos, confete e rojão!

É a mesma tristeza que rima com prece,
e aquele que a sente é incapaz de a entender!
Tristeza que, às vezes, receio parece,
receio de tudo que é inútil prever!
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AOS QUE COMEÇAM...

Se escreves, nesse humilde e obscuro anonimato,
a enfrentar, com denodo, os lances audaciosos,
para a glória de um texto ou graça de um relato,
que não te anule o brilho, astral, dos mais famosos!

Sabes bem que o trabalho é teu fiel retrato.
Se és capaz de conter delírios ambiciosos,
no labor hás de ter o perfil mais exato
do ideal que conduz à frente os vitoriosos!

Quem folheia um jornal, pela manhã bem cedo,
desconhece, por certo, a nobre e intensa lida
que envolve o jornalista em seu diurno enredo.

Mas, quanto o valoriza aquele que, enfim, pensa:
- como seria o mundo apático e sem vida,
sem o bravo clamor... das máquinas da imprensa!
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ARREPENDIMENTOS

Erraste... e quem não erra neste mundo,
repleto de sofismas e ciladas?!
Basta-nos, para errar, um vil segundo,
que o demônio nos tece, às gargalhadas!

A vida abismos cava... explora a fundo,
as faltas pequeninas, simples nadas;
absolve, purifica um charco imundo,
de linhas retas, faz encruzilhadas!

Vês? A vida é também contraditória!
Não te anule a opressão de um desatino!
Ponto final! E enceta nova história,

repetindo, a evitar outros tormentos;
- Assento os alicerces do destino,
"nos meus fecundos arrependimentos" (*]
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(*) Chave de Ouro de Guilherme de Almeida
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ESPERANÇA

Que falta faz a mão do Poverello,
mão chagada, que lembra o Salvador!
Mão que outras mãos unia, como um elo...
elo de luz fraterna, elo de Amor!

Que falta faz o ardor do seu anelo,
quando tentava unir a um só Pastor
as ovelhas dispersas - sonho belo,
que a vida se compraz em decompor!

E a vida o quanto vale?! - Um quase nada!
Por todo lado, há só gente empenhada
em fazer gente ser mais infeliz!

...Quem sabe ainda houvesse uma esperança,
se o mundo ouvisse a voz, humilde e mansa,
do bom Francisco... nosso Irmão de Assis!...
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O SABER

O saber, que arrebata e que mantém ativo
o lampejo do gênio e a fluência da história,
abre portas e as fecha, em rigor decisivo,
soberano senhor das chaves da memória.

Esse mesmo saber pode tornar cativo
o incauto que se ilude às promessas de glória
e, a erguer-se em pedestal, não mais que tolo altivo,
permite que a soberba o enleie compulsória!

Ao ver tombar ao chão seus castelos e aprumos,
na busca ao próprio eu, o homem se desengana
a revelar-se anão de limitados rumos!

Sem saber de onde vem, sequer sabe quem é!...
- Toda arrogância vã, toda a vaidade humana,
desmoronam aos pés, humílimos, da Fé!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

sábado, 15 de outubro de 2022

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 5

 

Lima Barreto (A polícia suburbana)


Noticiam os jornais que um delegado inspecionando, durante uma noite destas, algumas delegacias suburbanas, encontrou-as às moscas, comissários a dormir e soldados a sonhar.

Dizem mesmo que o delegado-inspetor surrupiou objetos para por mais à mostra o descaso dos seus subordinados.

Os jornais, com aquele seu louvável bom senso de sempre, aproveitaram a oportunidade para reforçar as suas reclamações contra a falta de policiamento nos subúrbios.

Leio sempre essas reclamações e pasmo. Moro nos subúrbios há muitos anos e tenho o hábito de ir para a casa alta noite.

Uma vez ou outra encontro um vigilante noturno, um policial e muito poucas vezes é-me dado ler notícias de crimes nas ruas que atravesso. A impressão que tenho é de que a vida e a propriedade daquelas paragens estão entregues aos bons sentimentos dos outros e que os pequenos furtos de galinhas e coradouros não exigem um aparelho custoso de patrulhas e apitos.

Aquilo lá vai muito bem, todos se entendem livremente e o Estado não precisa intervir corretivamente para fazer respeitar a propriedade alheia. Penso mesmo que, se as coisas não se passassem assim, os vigilantes, obrigados a mostrar serviço, procurariam meios e modos de efetuar detenções e os notívagos, como eu, ou os pobres-diabos que lá procuram dormida, seriam incomodados, com pouco proveito para a lei e para o Estado.

Os policiais suburbanos têm toda a razão. Devem continuar a dormir. Eles, aos poucos, graças ao calejamento do ofício, se convenceram de que a polícia é inútil.

Ainda bem.

Fonte:
Lima Barreto. Vida urbana. Publicado no Correio da Noite, RJ, 28-12-1914.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) VII


BILAC


Ganhei de Deus este divino dom,
Assim, por Ele, venturoso escrevo
A melodia do mais belo tom;
A joia fina do almejado enlevo.

Não mais respiro se me falta o som
Da sinfonia a que ilustrar eu devo.
Minha alma aplaude por achá-lo bom
Na pauta ativa que anotar me atrevo.

Perder as notas deste raro encanto
Seria o mesmo que negar o santo
Do livro nobre que o Senhor me deu.

Hei de coroá-lo no "panteão" da história
Em honra ao mestre de soberba glória
Mostrando ao mundo que jamais morreu.
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O CANTO DA MORTE

Ao ler meu verso sentirá o raro
Desvelo às letras que feliz componho;
Sua estrutura me concede amparo
Na plenitude da canção do sonho.

E com amor o musical preparo
Ao novo encontro que em florais proponho.
E a melodia, com fervor declaro,
Na pauta livre que ao verbal exponho.

Igual cigarra de tristeza canto
E morrerei só de escrever, garanto!
Traçando a rima de um soneto triste.

O sofrimento - este pendor me traz -
A sensação que, com certeza, faz
Nascer o canto que na morte existe.
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MISTERIOSA FLOR

Na tenda minha a flor mais triste nasce,
Não murcha nunca e nunca perde a cor.
Não sei seu nome, mas se alguém contasse
Teria, com certeza, o meu louvor.

Que bom se um dia a própria flor falasse
Seu nome, assim por certo teria autor.
Nobre sigilo da orgulhosa classe
E tal segredo ela me quer impor.

Tanto mistério é de corar a face...
Mas sem desdém eu lhe propus enlace
Que recusou sem transmitir maldade.

Hoje senil na solidão, compondo,
Ouvi do céu - todo estelar clamando -
Seu nome dói, poeta, é a flor saudade.
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RESGATE

Fui sempre amigo do soneto exato
E, além de tudo, persistente fã.
As suas regras com denodo acato
Sem os favores da plateia vã.

Gravado na alma eu tenho o seu retrato
Com a pureza de uma doce irmã.
Ninguém, por isto, se me diz ingrato,
Quanto à aparência do sagrado afã.

Bilac poeta me ensinou o ofício
E a perfeição deste bendito vício
Que me consagra burilando graça.

Não ganha espaço nos jornais do povo,
Por isso agora vou tentar de novo
Gravar seu nome nos murais da praça.
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SUA MAJESTADE «O SONETO»

Oh! Deus, lhe peço me conceda o senso
De estilo grato e lucidez constante.
Pois eu preciso construir e penso
Na venturosa formação pujante.

Este querer não ficará suspenso
Nem me permito ser vulgar jactante.
Labuto e vivo do prazer intenso
De proteger o galardão brilhante.

Com elegância a sua letra afino,
Pois vou levá-lo ao seu real destino:
À glória casta do eternal melódio.

Foi sempre rei, jamais pediu asilo,
Belo e altaneiro, no seu nobre estilo,
Não cederá o seu lugar no pódio.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.

Filemon Martins (Cecim Calixto, o poeta do amor)


CECIM CALIXTO nasceu em Pinhalão, Paraná, a 28 de julho de 1926, onde fez seus primeiros estudos, transferindo-se aos treze anos para Curitiba, a cidade sorriso. Trabalhando e estudando, diplomou-se em Ciências Contábeis na Faculdade de Ciências Econômicas De Plácido e Silva. Já formado, adotou a cidade de Tomazina, PR, onde começou a exercer sua profissão. Tornou-se bancário e passou boa parte de sua vida às voltas com orçamentos, balanços, planilhas de custos, planos de aplicação financeira desbravando várias regiões do Norte Novo do Paraná, trabalhando no banco Bamerindus.

Fora da vida prosaica sua alma de poeta nunca deixou de escrever poesia, especialmente nas horas de folga, exercitando com maestria a poesia clássica. Tornou-se um magnífico sonetista, premiado em vários concursos literários de São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná, entre outros.  Publicou em 1951 seu primeiro livro com o título de “NINFAS”, cuja segunda edição saiu em 1967.

Em 1997 com 99 sonetos publicou “EMOÇÕES” pela editora Editek & Cia Ltda ME, no qual demonstra toda inspiração que um poeta precisa ter para compor, criar e arrebatar corações sensíveis que amam o belo.  No soneto OBSESSÃO, diz: “A fé perfeita que a meu ser importa/ dá-me mais força para abrir a porta/ e entrar no reino que o amor produz. //Desprezo os pomos do pomar alheio/ pois, na verdade, o meu maior anseio/ é pelos frutos divinais da luz”. Ou ainda nestes dois tercetos do soneto ORATÓRIO: “A liberdade que me inspira tanto/ dá-me o conforto que jamais me falta/ enquanto a sós e a caminhar medito. // Na solidão em que sozinho canto/ minha oração que dispensou voz alta/ possui mais força que estrondoso grito”.

Assim, Cecim Calixto foi-se consagrando como um dos melhores e maiores poetas de nosso tempo no Paraná e no Brasil, ao lado de nomes como Apolo Taborda França, Emílio Sounis, Harley Clóvis Stocchero, José Wanderlei Resende, Leonardo Henke, Moacir Antonio Bordignon, Oldemar Justus, Orlando Woczikosky, Paulo Leminski e Vasco José Taborda.

Os versos do poeta paranaense agradam aos ouvidos do mais exigente leitor, porque são escritos com musicalidade, espontaneidade, inspiração e em português escorreito. O livro “A VOZ DO AMOR” veio à luz da publicidade em 2000 pela Juruá Editora, de Curitiba, onde o poeta mais uma vez esbanja o seu perfeccionismo, com outro conjunto de 99 sonetos impecáveis.  Estudioso, aprimorou sua técnica e após sua aposentadoria, pôde então dedicar-se à Literatura, como sempre desejou.

Com razão o poeta quando escreve em seu soneto A VOZ DO AMOR, que abre o livro com este mesmo título: “Esfrio a guerra congelando mágoas/ aqueço as almas como esfrio as águas/ em mutações que a própria mente enseja. // Abro caminho aos vegetais floridos/ e encho de vida os corações feridos/ porque sou tudo que o mortal deseja”.

Conquistou o 2º lugar no 14º Concurso Nacional de Poesia, Categoria Especial Paraná, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura, Governo do Paraná, em 2003, com o soneto O Rival:

“Você de novo colibri teimoso,
roubando a seiva da singela rosa!
Morro de inveja do rival airoso
que suga o mel da minha flor mimosa.

A minha rosa tem o olor gostoso
que até perturba a vizinhança prosa.
E sem modéstia o menestrel brioso,
todo orgulhoso, sempre a fez ditosa.

Cedo levanto e para a rosa eu canto
e com carinho vou secar o pranto
da noite fria, que seu bojo aninha.

Mas... meu rival, de novo mais ligeiro,
logrou a mim e a bajulou primeiro,
sugando a gota que era toda minha”.

Opiniões sobre o trabalho excepcional do intelectual Cecim Calixto:

“Quem tiver oportunidade de ler seus sonetos verificará, desde logo, o poeta rico de emoções e sentimentos, que sabe cantar a dor, a paixão e a nostalgia, com rara elegância e distinção”. (Paschoal A. Pítsica – Presidente da Academia Catarinense de Letras).

“Emoções são, de fato, uma constante na vida do poeta e sua sensibilidade o induz a criar e viver um mundo onírico de Beleza e Paz”. (Horácio Ferreira Portella – Centro de Letras do Paraná).

Pertenceu ao Centro de Letras do Paraná, Academia Paranaense de Poesia, UBT-PR, Academia de Letras “José de Alencar” e Círculo de Estudos Bandeirantes. Além dos livros já publicados, como “NINFAS”, 1951 e 1967 – 2ª edição, “EMOÇÕES”, 1997 e “A VOZ DO AMOR”, 2000, o vate de Pinhalão, Paraná, teve pronto para publicação novo livro de sonetos, sem título ainda e o seu primeiro livro de trovas, “TROVAS & SONHOS”. Participou também da Antologia SETE POETAS, ao lado de grandes nomes da poesia paranaense.            

Verbete da ENCICLOPÉDIA DE LITERATURA BRASILEIRA, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, edição do MEC, 1990, com revisão de Graça Coutinho e Rita Moutinho Botelho, edição revista e atualizada, em 2001.

O poeta silenciou em 29 de maio de 2008, em Tomazina, aos 81 anos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 15

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 64


O "bosco", os verdes, a natura. Canarinhos na quirera. As folhas do inverno. Silêncio no mosteiro. O torpor da tardinha invade almas e corações. Tempo de sorver. Croniquinha de sábado ? Gostosuras fazem uma delas.

Entre as divagações da boca-noitinha é doce evocar Pablo Neruda: " Ao cair sobre a terra, as tardes se quebram em pedaços, se estilhaçam contra o solo. A tarde cai num silêncio letal, como o desabar duma escura entretela sobre a água. E a noite nos tapa os olhos de surpresa, sem que possamos ouvir seus passos, querendo saber se foi reconhecida, ela, a infinita e inconfundível ".

SACRA NATUREZA !
Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Raul Pompéia (Fora de horas)


O último amor de Emílio foi uma viúva, antes um capricho feito viúva, ou melhor ainda um demônio feito capricho.

Mme. Lamour, Mme. Lamort, ninguém lhe sabia exatamente o nome. Inscreviam-na dos dois modos, na comédia do mundo alegre, e ela não se dava ao trabalho de expedir uma errata, deixando que vacilasse o apelido de amor ou morte, como o mistério da vida, que tão bem resumia: o incêndio do ditirambo onde as almas ardem e acabam.

Não cuidem, porém, que estragava a meditar simbolismos o ensejo de descanso poupado na agitação da vida impetuosa. Pertenciam-lhe ao egoísmo inerte, como um tesouro de indolência, as horas da sesta, as horas nuas da sesta, no ambiente resguardado do dormitório, quando estirava-se ao divã de veludo preto, fresca da reação do banho, vaidosamente deslumbrada da brancura da própria carne, gostando na epiderme a viagem leve, saltitada, de uma mosca atraída pelas migalhas da última ceia.

A imaginação sonolenta ia e vinha passivamente, na comparação da alvura absoluta das formas, onde se concentrava a luz toda das vidraças entreabertas - com o negrume intenso do forro do divã, das peles do tapete crescidas e retintas, da seda preta do para-vento atravessado obliquamente pelo voo pálido de cegonhas de prata, da estranha decoração negra das paredes, da madeira dos móveis, dos encostos de cupidinhos negros esculpidos em luta, enrolando-se, mordendo-se como filhotes de tigre.

Nada perturbava o repouso. Nem um pensamento, nem um ruído. As vidraças detinham fora o ramalhar múrmuro do jardim. Além do biombo, o relógio não batia, parado num longo minuto de felicidade material. Até que chegava o sono, lentamente, respirado na noite fictícia da decoração. junto dela, sobre uma cadeira, dormia a taça de ouro, objeto querido, que mandara fazer, moldada sobre o seio de uma rival defunta.

Estava ausente para todos; mesmo para o amante. Qualquer dos dois, que ela tinha dois, sempre e fielmente: por um exercício duplo de fidelidade, que lhe parecia dobrada virtude.

Às quatro horas, Emílio acordava-a aos beijos. Tinha dois amantes, disse, como tinha dois nomes. Amantes que não se viam, que não se conheciam, que não se encontravam. Manejava habilmente os dois corações, como bolas alternadas de um jogo malabar.

Prezava-os impessoalmente por predicados opostos e incompatíveis, que buscaria em outros amores, se os atuais faltassem. isolá-los reciprocamente era porém o meio de conservar a ilusão do prazer completo de duas existências.

Queria um amante que fosse dela, e outro de quem ela fosse.

Um devia ser delicado, adolescência franzina, temperamento febril e fraco, que se lhe entregasse como a uma tortura. Ela estenderia os braços como tentáculos de polvo e sugar-lhe-ia a vida com os lábios, devorá-lo-ia deleitando-se de o ver extinguir-se dia a dia, ele buscando-a sempre, ardente, trêmulo, sorrindo e sucumbindo. Queria também o amor forte de um largo peito, o desejo de grande fôlego, a carícia constringente da saúde, da força, que enlaça, que macera e afoga um amor brutal, que a punisse da perversa delícia do outro.

Emílio era o forte.

- Ciúmes de um cadáver! dizia ela, enigmaticamente, rindo, quando Emílio insinuava a queixa de uma suspeita.

Esta frase repetida, da excêntrica mulher, distraía-o do ciúme, aduzindo um traço mais de extravagância à sedução macabra daquela aliança.

Sonhou, então, que a viúva o traía com efeito; que ressurgia para trai-lo com ela, o falecido esposo, a letra morta do contrato conjugal. Ele a via nos braços do finado, dando-se-lhe toda com o prazer novo de uma lascívia de horror cingida contra a carne malhada de roxo, olhada amorosamente pela meiguice branca dos olhos extintos, sentindo o cheiro úmido da terra nos cabelos, vendo a língua negra através dos dentes fixos, ouvindo passar nos lábios um hálito empestado de sepultura, estremecendo de gozo a criatura incrível que ele amava - abraçada pelo pesadelo!

Entretanto, o outro vinha, nas ocasiões combinadas, pobre criança extenuada e exangue, sôfrego, ofegante, obedecendo à fatalidade, trazendo o sacrifício dos seus dias, trazendo dos desesperos do trabalho, da miséria, talvez dos recursos culpados, mimos de preço, pérolas, rubis, rubis principalmente, prediletos dela porque são como cristais de sangue...

Uma noite, que estavam juntos, Mme. Lamour e Emílio, muito tarde, no salão negro, ouviram bater à porta lateral do jardim. Os amantes cruzaram um olhar.

- Ciúmes? perguntou a viúva sorrindo.

Bateram de novo. Emílio quis abrir.

- Não abras! Deixa que batam!

Bateram ainda.

- Não abras!

Um abalo violento, como de uma ombrada, sacudiu os ferrolhos e o ar da sala. Depois não bateram mais.

Fazia um frio agudo. Adivinhava-se, lá fora, a chuvinha glacial, peneirada da noite. Os dois amantes esqueceram-se no aconchego das efusões, mais estreito e mais vivo naquele inverno, em meio do pavor ornamental do aposento.

No dia seguinte, atravessado à porta, sobre o mármore do limiar, achou-se o corpo inerte de um rapaz, muito moço, imberbe ainda, belo, apesar da morte e da magreza extrema. Tinha sangue nos lábios e pousava em sangue a face lívida.

Ao redor, as roseiras, as begônias, na manhã clara, choravam as últimas gotas da chuva da véspera.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

Concurso de Trovas “Tambores da Poesia” (Trovas Premiadas)


NACIONAL
NOVOS TROVADORES

Tema: Medo
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VENCEDORAS
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1º Lugar
 José Maria Luz e Silva

Maceió - AL

Eu vou contar um segredo
sobre os homens corajosos:
Somente não sentem medo
os loucos e os mentirosos.
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2º Lugar
Elvira Drummond

Fortaleza - CE

Quando o medo me alucina,
faço, com fé, uma prece.
Logo o medo dobra a esquina
e, pelo visto, me esquece...
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3º Lugar  
Wilton Di Cali

Guarulhos - SP

Eu vivo um drama medonho
que parece não ter fim,
tenho medo que meu sonho
algum dia morra em mim.
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4º Lugar
Davi Pereira

Toledo - PR

O medo é grande inimigo,
sentimento bem atroz,
mas não está no perigo,
sempre o medo está em nós.
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5º Lugar
 Janete Francisco Sales Yoshinaga

São Paulo – SP

Não tenho medo da morte,
eu tenho medo da vida
sem algo que me conforte
de vivê-la mal vivida.

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NACIONAL
VETERANOS
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Tema: Medo

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VENCEDORAS
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1º Lugar
Renata Paccola

São Paulo - SP

A lembrança tece o enredo
que remete à mocidade
e, por vezes, tenho medo
de perder tanta saudade!
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2º Lugar
Paulo Cezar Tórtora

Rio de Janeiro - RJ

Nada prova a força bruta
com seus nefastos conceitos.
Sem medo é aquele que luta
contra seus próprios defeitos.
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3º Lugar
Thalma Tavares

São Simão - SP

Herói é quem, na viagem,
enfrenta mares, rochedos,
tirando a sua coragem
da cova escura dos medos.
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4º Lugar
Edmar Japiassú Maia

Nova Friburgo - RJ

Pesadelo! Acordo cedo
pelo susto repentino...
E o meu medo é de que o medo
seja meu novo inquilino!
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5º Lugar
Maria Madalena Ferreira

Magé - RJ

Aprendi, desde bem cedo,
ao me ver em desvantagem,
que, muitas vezes, o medo
é que dá força à coragem!!!

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MENÇÕES HONROSAS
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6º Lugar
 Jerson Lima de Brito

Porto Velho – RO

O medo forja a cautela,
mas encontra seu limite
quando o peito se rebela
e a derrota não permite.
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7º Lugar
Lóla Prata

Bragança Paulista - SP

São três os medos que temos:
velhice, doença e a morte;
sob essas sombras vivemos,
mas a fé nos dá suporte.
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8º Lugar
Cipriano Ferreira Gomes

São Paulo - SP

O medo é bom confidente,
e conselheiro capaz
de nos colocar à frente,
dando um passo para traz.
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9º Lugar
Jessé Fernandes do Nascimento

Angra dos Reis - RJ

Muito medo e hesitações,
sempre temendo o perigo;
em meio às desilusões
sou meu pior inimigo.
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10º Lugar
Glória Tabet Marson

São José dos Campos - SP

Tudo começa do nada,
sem ter medo de um "talvez”,
mas se a vida der guinada,
do nada, tente outra vez!

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MENÇÕES ESPECIAIS
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11º Lugar
Élbea Priscila de Souza e Silva

Caçapava - SP

O medo é muito importante
e no escuro, um feiticeiro,
pois transforma em elefante
um ratinho de celeiro.
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12º Lugar
Olympio da Cruz S. Coutinho

Belo Horizonte - MG

Eu tenho, Maria, medo
que, em tuas horas vazias,
tu contes nosso segredo
às minhas outras Marias.
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13º Lugar
A. A. de Assis

Maringá – PR

Faço uma trégua por dia
para brincar de criança...
– Recarga de fantasia,
num mundo onde o medo avança.
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14º Lugar
Heder Rubens Silveira e Souza

Natal - RN

Dentre os grandes adversários
que, na vida, a gente enfrenta
os medos imaginários
são nossa falsa tormenta
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15º Lugar
César Augusto Ribas Sovinski

Curitiba - PR

Asas valentes, bem cedo,
ganham o azul da amplidão.
Asas transidas de medo
ficam ciscando no chão.

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REGIONAL DE TROVAS
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Tema: Alívio


1º Lugar:
Jose Almir Loures

Para alívio do meu tédio,
numa alquimia que eu faço,
encontro o melhor remédio,
no afeto de seu abraço.
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2º Lugar:
Messias da Rocha

A emoção sempre é sublime,
quando, intervindo, a razão
faz do amor fonte que exprime,
todo o alívio do perdão.
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3º Lugar:
Arlindo Tadeu Hagen

Só quem já afrouxou o nó
da gravata de um convívio
entende, de uma vez só,
o que representa alívio.
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4º Lugar:
Márcia Jaber

Teu abraço, um aconchego,
traz alivio abençoado:
toda dor ganha sossego,
todo cansaço é sanado.
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5º Lugar:
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho

Vencida amarga tormenta,
na vida, grande viagem,
vem o alívio que apascenta
a alma inquieta na paisagem.
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6º Lugar:
Alice Gervason Marco Fernandes

Para alívio dos tormentos,
a fé se mostra real,
maldizeres e lamentos:
sem bases no pedestal!
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7º Lugar:
Cezar Defilippo

Deus, que a aflição suaviza,
traz alívio ao intervir,
põe na alma o frescor da brisa
sem nenhum vento existir.
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8º Lugar:
Romilton Faria

Saudade jamais é nova.
Para falar a verdade,
nos dá, quando se renova,
alívio ao peso da idade.
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9º Lugar:
Célia M.G. Mendonça de Melo

O peso suavizado...
Que alívio dentro de mim!
Será que fui perdoado
por amar-te tanto assim?
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10º Lugar:
Luzimagda De Martin Ramos da Fonseca

Alívio... já sinto agora
e grande consolação;
ao saber que vou embora,
parto pra ressurreição.
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11º Lugar:
Licínio Antônio de Andrade

A pandemia vai embora
causando alívio geral
e usar máscara, agora,
só mesmo no carnaval.

Fabiane Braga Lima (Brian: adeus, meu querido)


Jane sentiu uma vontade enorme de fumar um cigarro e beber uma champanhe gelada, a executiva sênior nunca suportou o hábito de homens do mundo dos negócios celebrarem suas conquistas com charutos e uísque. Jane preferia um bom champanhe e uma tragada de um cigarro aromático.

Jane procurou no bolso e encontrou seu maço de cigarros, puxou um até a boca, sacou de um isqueiro e pensou da visita que daqui a pouco chegaria. Mas antes, ela saiu do confortável escritório e andou poucos passos, Jane olhou a concessionária do segundo andar. A gerente executiva e sócia proprietária olhou a sua equipe trabalhando, as mudanças que ela fez estavam funcionando bem.

— Berta! Não sensualize tanto! — Falou Jane no rádio comunicador, a funcionária estava atendendo um rico empresário. Brian tinha contratado meia dúzia de modelos para atender os ricos clientes, como não entendiam nada de carros e motores, Jane contratou uma equipe especializada de vendas de carros e mecânicos para dar aulas para as modelos. Jane olhou o recém espaço para veículos esportivos e motocicletas, os vendedores antes usavam rígidos uniformes impecáveis brancos. Jane trocou os uniformes por confortáveis roupas informais para atender famosos surfistas, esqueitistas e jovens empresários ricos. Até o departamento de veículos elétricos e de carros populares e usados estava indo bem, apostar nas diversidades deu novos ares à concessionária.

No outro lado na rua a loja de bicicletas daqui a pouco seria inaugurada, em suma, a vida profissional estava indo bem e Jane olhou para o relógio e pensou que não faltava muito.

— Andreas! Na escuta? Deixe-o passar! Entendido? — Falou Jane no rádio ao seu chefe de segurança.

Jane voltou para o seu escritório e sentou na confortável cadeira, a executiva de meia idade olhou no relógio de pulso. Ele entrou pela porta e estava vestido com um uniforme de zelador. O homem estava nervoso e Jane apertou um botão embaixo da mesa.

— Calma Brian, meu querido! — Falou Jane de forma calma e levou um cigarro até a boca, tragou e aspirou a fumaça no ar. Os olhos de Lince apavoraram Brian. — Já que tenho um bom cargo aqui na empresa, quero ajudá-lo.

— Serei breve! — Falou o desesperado Brian.

— Brian, esqueci de lhe contar algo. — Disse Jane com um tom glacial na voz

— Então me diga a verdade! Somente a verdade, mulher! — Falou Brian como se sussurrar um segredo bem guardado ao pé do ouvido de um confidente.

— Tu esqueceu de desligar as câmaras do escritório, no nosso último encontro! Pobre da Susan, que viu tantas e tantas traições.

— Mulher falsa e repugnante és. Maldita sejas! — Esbravejou Brian a plenos pulmões. A acústica do escritório trancafiou o brado do antigo dono da concessionária.

Jane se levantou da cadeira e andou lentamente até Brian, Jane deu-lhe um beijo no rosto, forçado, e colocou em seu bolso o anel de noivado com sua resposta.

— Jamais me casaria com um homem imundo do teu tipo! — Jane sussurrou no ouvido de Brian e continuou — Sorte que Susan descobriu sua verdadeira identidade. Espere, quanto a vaga de emprego que lhe propus é de faxineiro, terá muitos vasos sanitários para limpar...! E gostei que tenha vindo me visitar a caráter. Vejo que mudou mesmo. Bom, deixe seu currículo na portaria, eu entrarei em contato assim que possível.

Jane apertou o botão embaixo da mesa e dois corpulentos seguranças apareceram para escoltar o ex-patrão porta a fora.

Em um último ato, Jane prendeu os cabelos, sem ao menos se despedir, olhou para Brian com um misto de ódio e desprezo. Ela se considerava vítima de muita mentira e traição. Hoje, apesar da pouca idade, todos a respeitam na empresa. Jane aprendeu a se valorizar.

Uma vez sozinha ela lembrou dos passos que a levaram até ali, primeiro foi a colega de trabalho, outra vítima de Brian. Ela era uma excelente executiva que se perdeu de amores por Brian e ele a seduziu, a usou por um bom tempo e a descartou sem aviso prévio. Foi ela que confidenciou sobre os negócios escusos de Brian com senhores italianos, gregos, colombianos e mexicanos. Foi ela que alertou Jane sobre as práticas de Brian, do diário íntimo de cada conquista, de cada caso que teve ao longo dos anos. A colega de trabalho deu detalhes de cada reunião que Brian tivera com os estrangeiros e Jane partiu para vasculhar os labirintos contábeis da concessionária. Tudo estava lá, a arrogância e certeza da impunidade, Brian deixara vestígios claros de seus negócios escusos. Do diário íntimo, a ex-amante de Brian, calculou que estava bem guardado em um cofre particular em um banco. Não o estúpido do Brian, pensou Jane e não precisou muito para encontrar o diário de Brian em uma gaveta no escritório do próprio Brian.

Brian sempre desligava as câmeras de segurança, todas as vezes que recebia uma amante. Jane recuperou as imagens do último encontro entre eles e Jane cobrou o próprio rosto nas imagens.

Provas reunidas, Jane teve uma longa conversa com Susan, a esposa de Brian. Jane confirmou um boato que rondava Brian, que ele tinha um sócio que era o real dono da concessionária e toda a fortuna de Brian. Susan e Jane se entenderam bem. Fechar a lavanderia de dinheiro de Brian não foi difícil, assim como denunciá-lo para as autoridades. Brian desapareceu, nunca mais foi visto depois da visita a sala de Jane.

Fonte:
Texto enviado por Samuel C. da Costa

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Adega de Versos 92: Castro Alves

 

Coelho Neto (Canções)


Foi de tristeza aquele dia.

Minha mãe, desolada ainda que ali me tivesse no aconchego do seu amor, já me avistava na desventura do lúgubre destino profetizado, como em anátema, por meu pai: vagando, descalço e roto, com fome, pedindo esmola a troco de canções como os mendigos que vão de porta em porta e cantam plangentemente para comiserar.

Poeta!

A própria ama, compadecida de mim, fez uma promessa à Nossa Senhora para que me protegesse contra o mau fado. E todos que souberam da minha infelicidade – vizinhos, amigos, simples, conhecidos lastimaram-me, aconselhando-me a não persistir naquele vício e perdição. Tive medo, medo supersticioso sentindo-me como cercado de maldições.

Tudo me parecia hostil; as próprias árvores como que se retraíam, negando-me a sombra dos seus ramos. E os que cruzavam comigo olhavam-me de soslaio, com desprezo, desviando-se como de um leproso.

Poeta!

Mas como descobrira meu pai os meus primeiros versos, que eu escondera como um furto nas páginas do dicionário?! É bem certo que o coração dos pais adivinha.

Jurei a mim mesmo nunca mais escrever canções, ainda que os versos me afluíssem prontos, com imagens e rimas, como vêm à haste as flores com a cor viçosa e trescalando aroma.

À noite, tarde, no silêncio da casa apagada, já deitado, ouvi cantar dentro de mim, muito longe, numa suave saudade.

A voz era meiga e, até de madrugada, rimei às escondidas, n’alma, canções formosas, que se perderam porque nunca as escrevi para que meu pai as não achasse, irritando-se com elas e fazendo chorar de tristeza minha pobre mãe.

Eis por que não conservei as canções da minha adolescência quando, sem ainda amar, já decantava o amor, como se sente a luz, antes de ver sol.

Fonte:
Coelho Neto. Canteiro de saudades. Porto: Lello, 1927.

Baú de Trovas LVII


Sob a luz do sol nascente
segue o velho, estrada afora...
– É uma gota de poente
vagando dentro da aurora...
Adalberto Dutra de Rezende
Cataguazes/MG, 1913 – 1999, Bandeirantes/PR

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Nossa alma é uma criança,
que nunca sabe o que faz.
Quer tudo que não alcança;
quando alcança, não quer mais...
Adelmar Tavares
Recife/PE, 1888 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

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A mais triste solidão
que os seres humanos têm
é abrir o seu coração...
olhar e não ver ninguém!
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

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Eu amo a vida, querida,
com todo o mal que ela tem!
Só pelo bem – que há na vida,
de se poder querer bem.
Anis Murad
Rio de Janeiro/RJ, 1904 - 1962

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Teu adeus em gestos francos
me fez crer, na despedida,
que acenos de lenços brancos
tornam mais negra a partida.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG

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Saudade, palavra doce,
que traduz tanto amargor!
Saudade é como se fosse
espinho cheirando à flor!
Bastos Tigre
Recife/PE, 1882-1957, Rio de Janeiro/RJ

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Bichinho cheio de manha,
terno e manso quando quer;
mas, zangado, morde e arranha:
— É gato? — Não... é mulher!
Carolina Ramos
Santos/SP

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Sou mais alta que esse morro,
mais vasta que aquele mar.
Há muito que me percorro
sem me poder encontrar.
Cecília Meireles
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964

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Hoje eu sei que foi loucura...
Mas, ao louco, que fui eu,
devo o pouco de ternura
que o bom senso não me deu.
Cesídio Ambrogi
Natividade da Serra/SP, 1893 — 1974, Taubaté/SP

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Dando pra um beco o banheiro
da inquilina, uma "parada",
O Zezé ganha dinheiro
cobrando aluguel de escada...
Darli O. Barros
São Paulo/SP

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Teu corpo ardente, formosa,
caminho da perdição,
é uma rua perigosa
que eu subi na contramão.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG

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Ao beijar a tua mão,
que o destino não me deu,
tenho a estranha sensação
de estar roubando o que é meu...
Durval Mendonça
Rio de Janeiro, 1906 – 2001

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Pelos caminhos que sigo,
a dor não me pesa tanto,
quando encontro um lenço amigo
para enxugar o meu pranto...
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ

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Quem da astúcia é mais capaz?
Num concurso singular
vence a mulher; Satanás
fica em segundo lugar!
Élbea Priscila Sousa e Silva
Caçapava/SP

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Um apito na estação...
Um lenço acena tristonho...
O aperto no coração
e a saudade em vez do sonho!
Fernando Câncio de Araújo
Fortaleza/CE, 1922 – 2013

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Tudo muda, tudo passa,
neste mundo de ilusão:
vai para o céu a fumaça,
fica na terra o carvão.
Guilherme de Almeida
Campinas/SP, 1890 – 1969, São Paulo/SP

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Na distância, ao teu aceno,
quanta tristeza me invade...
O trem ficando pequeno
e, em mim, crescendo a saudade...
Hermoclydes Siqueira Franco
Niterói/RJ, 1929 – 2012, Rio de Janeiro/RJ

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Saudades, sempre saudades
Dos anos que já vivemos.
Cultuando as amizades
Que tivemos e as que temos.
Hildemar Cardoso Moreira
São Mateus do Sul/PR, 1926  – 2021, Contenda/PR

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Para mantê-los me empenho,
porque penso sempre assim:
tendo os amigos que tenho,
eu nem preciso de mim.
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

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Oxalá flores nascentes
em vergéis adormecidos
despertem as novas mentes
aos caminhos coloridos.
João Batista Xavier Oliveira
Bauru/SP

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Para voltar, não me peças…
Seria uma insensatez
eu crer nas tuas promessas
e arrepender-me outra vez.
José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

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Rosas vermelhas, paixão…
Com perfume embriagador,
despertam meu coração
para os acordes do amor!…
Lucília Alzira Trindade Decarli
Bandeirantes/PR

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Era Natal - eu me lembro!
nosso pinheiro enfeitado...
Hoje a saudade em dezembro,
põe enfeites... no passado!
Maria Lúcia Daloce
Bandeirantes/PR

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Embora o dia me açoite
com seus barulhos brutais,
lá no silêncio da noite
a solidão bate mais!...
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ

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A coroa do Tancredo
dando a idade é tão avara,
que nem vê que faz segredo
de um troço que está na cara!
Maria Nascimento Santos Carvalho
Rio de Janeiro/RJ

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A mulher do meu vizinho,
que em amores não se aperta,
mesmo errando no caminho,
chega em casa na hora certa.
P. de Petrus
São Paulo/SP, 1920-1999

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Por mais que eu seja fraterno
socorrendo o pobre irmão,
pior que o frio do inverno,
é o frio do coração.
Romilton Faria
Juiz de Fora/MG

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Chove... E no espaço suspenso,
vertendo luz, sem alarde,
o Sol é um doirado lenço
que enxuga o pranto da tarde!...
Sérgio Bernardo
Rio de Janeiro/RJ

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Flor singela, delicada,
a rosa, flor do carinho.
É linda mas anda armada,
protegida pelo espinho.
Silvia Svereda
Irati/PR

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Entre tantas belas flores
elas são as mais airosas
e perfumam os amores…
Estou falando das rosas!
Solange Colombara
São Paulo/SP
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Ao disfarçar a paixão
quando na rua, se olharam
bem à luz do lampião,
suas Sombras... se abraçaram!
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP

Amadeu Amaral (Ratinha de esgoto)


(Na praça, depois de dois minutos de prosa)

- Dá-me um cigarro, Timóteo.

- Um Abdula?

- Oh! não me atrevia a tanto.

- É que eu não fumo Abdula. Eu uso fumo Veado, de pacotinho amarelo, e mortalhas de Gaston d'Argy.

- Que ignomínia, Timóteo!

- Talvez tenhas razão, meu caro Ramalho. Realmente...

- Parece-me que te aborreci. Garanto que não tive intenção...

- Realmente!

- Estava brincando...

- Olha, queres tomar um café?

- Vamos lá, Timóteo.

(No café, a uma das mesinhas do fundo)

- Garçom, café para dois. - Então, o amigo Ramalho acha que é uma ignomínia fumar do Veado, de pacotinho amarelo... Entretanto, este pacotinho é tão cômodo! Olhe, tiro uma porção de fumo, maior ou menor, conforme a hora, conforme o apetite; puxo por esta mortalha, arranco-a como quem arranca uma pequenina página inútil do livro da vida, enrolo nela este punhadinho de tabaco desfiado, ponho-lhe fogo... e... fuuu!... fico a olhar a fumaça que sobe e que se dispersa...

- Quanto a isso de soltar fumaça e ficar olhando, não é só com o Veado que se pode fazer.

- De fato. Mas há uma diferença: É que eu o faço unicamente para isso, ao passo que tu fumas os teus Abdulas, Sakelarides etc., só por fumares Abdulas e Sakelarides, para teres entre os dedos um cigarro fino, adocicado, caro, e da moda. Acresce que,. a mim, o único cigarro que vejo queimar com prazer, é esse. Tirem-me o Veado, e tiram-me o vício.

- Não há outro. Nenhum outro.

- Ora, esta.. . Vejo que estás comovido, Timóteo! Ora esta... Mas que diabo disto é aquilo, ó seu Timóteo?

- Não há outro...

- Mas...

- Quer que eu lhe conte? Eu tinha dezoito anos (porque posso garantir-lhe que já tive dezoito anos), morava no Rio, frequentava uma roda horrível de boêmios machos e fêmeas. Um dia, conheci uma menina, uma criatura ordinaríssima, uma ratinha de esgoto, uma vesícula vanólica da cidade. Eu era um bruto, um palhaço, um bicho sem alma. A boêmia, a minha roda de boêmios, todas as rodas de boêmios da Terra me aclamavam o mais feroz, o mais divertido e mais grotesco dos boêmios.

- Isso é conto.

- Não crês? É o mesmo. Encontrei-me um dia, ao acaso das troças e distúrbios, com essa menina sem graça, sem beleza e sem coração. Uma bebedeira, um capricho, uma luta a copos e garrafas num botequim de marinheiro, de contrabandistas e de rufiões - e, no fim, eu, na rua, sozinho, às três da madrugada, a rebocar a minha pobre amiga, que eu não amava, nem queria. Simpatizou comigo. Não sei se gostou do meu cinismo, ou da minha fachada, que naquele tempo era menos má. Depois, encontrei-a outras vezes, na mesma zona. Quando dei acordo, tinha-se-me agarrado, com um carrapicho que se leva na roupa de passagem pela macega. Protestei contra o seu desmazelo: tratou de se alindar... e começou a procurar-me com maior insistência. Reclamei contra as suas maneiras desconjuntadas e reles: tratou de se emendar, emendou-se... e entrou a procurar-me todos os dias.

- Uma paixão, enfim.

- Da graúda. Para encurtar: a páginas tantas, adoeceu. Coisa do peito. Levei-lhe o médico. Dei-lhe todos os remédios. Para arranjar os meios, acabei por me empregar. Isso durou meses. Afinal, morreu. E, quando morreu, morreu quase bonita, - parecia impossível! - morreu bonita, muito branda, muito leve, muito fina, com um sorriso delgado e virginal de criatura renascida. Era outra. E eu, também, era outro. Completamente outro. Pela primeira vez conheci a gravidade, o recolhimento e a ternura.

- ... Mas, isso é sério, Timóteo?

- Como tudo quanto há de sério.

- Mas, agora, que é que tem tudo isso com o fumo Veado?

- Por enquanto, nada. Escuta. Larguei o Rio, larguei a boêmia, larguei a vadiação e a troça, vim para esta nossa terra, tratei de encaminhar-me na vida... e cheguei a esta pacífica posição que estás vendo, - pequeno proprietário e empregado público. Meu pai, que morreu há dezoito anos, fez tudo para que me casasse. Minha mãe, que morreu há cinco, punha-me no caminho todos os laços e arapucas matrimoniais que podia. Minhas irmãs indicavam-me cada semana um partido inexcedível. Levaram-me a bailes, introduziram-me na sociedade. Fizeram-me até viajar, para conhecer meninas e viúvas. Fui requisitado por duas ou três damizelas bonitas e graciosas, - uma clara e breve, uma trigueira e forte, uma pálida e sentimental... Não pude. Não pude de todo. Nunca encontrei uma carinha que tivesse o sorriso dolorido e reconhecido de Amanda, aquele sorriso de meiguice enlaçante e magoada, aquele sorriso-flor, aquele sorriso-gota d'água, aquele sorriso-recompensa, inconfundível, indefinível, indescritível, que me entrou na alma durante seis meses, que a perfumou, a amoleceu, a revolveu, a tocou em todas as suas obras, que me deu a conhecer, com a doçura da lágrima e a ânsia do desespero, a volúpia da minha primeira e única obra de arte.

- Mas, o fumo?

- Muito simples. Nesse tempo eu, pobre boêmio sem mesada, sem emprego e sem vergonha, fumava Veado, porque era muito barato e saía ainda mais barato do que custava, pois eu podia regular à vontade a grossura do cigarro. Muitas vezes, reparti com ela o meu pacotinho. Muitas vezes. Nos meus dias amargos de boêmio sem vintém, almocei e jantei cigarros de fumo Veado. Toda a minha história com Amanda correu entre nevoeiros de fumo Veado. Contraí com isso o meu hábito mais tenaz, - um hábito feito, hoje, de saudades, de remorsos, de obsessões doces e dilacerantes, da infinita tristeza de um nunca-mais que me purifica e me aniquila... A minha vida inteira teve o seu pináculo na hora em que a minha ratinha de esgoto morreu sorrindo nos meus braços. Tudo o mais que se seguir são ondulações que se prendem, num ritmo decrescente, a essa altitude remota... Impossível esquecer.

- Mas, que diabo! isso tudo é verdade?... Estás chorando, Timóteo?

- Alto lá! Bem vê que não estou chorando. Então eu sou homem que chore? Garçom, outro café; mas bem quente!

(Uma pausa. Sorve-se o café em silêncio. Timóteo saca do seu pacotinho de fumo)

- Portanto, o amigo Ramalho já sabe porque é que eu prefiro fumar desta ignominiosa maneira.

- Mas, ainda não voltei do meu espanto, Timóteo! Então, isso tudo é mesmo verdade?...

- Veja lá como eu estou mestre em fazer os meus cigarros. Sou capaz de os enrolar com uma só mão. Aqui está o fumo, vê? Agora, arranco a mortalha, - mais uma pequenina página inútil do livro da minha vida - ponho-lhe o fumo, estendo-o, enrolo... Está vendo? Pronto... Dá cá o fogo... fuuu!... Olha essa espiral que se esgueira por cima de todo esse burburinho, de todas essas cabeças... Olha, olha, lá vai ela... Acabou-se. - Moço, cobre aqui quatro cafés. Jesus, estou na horinha do meu bonde! Ande com isso, ó funcionário!

Fonte:
Obras de Amadeu Amaral - Editora Hicitec - 1982.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 19

 

Aluísio de Azevedo (O Madeireiro)


– Sua ama está em casa, rapariga?

– Está, sim, senhor. Tenha a bondade de dizer quem é.

– Diga-lhe que é a pessoa que ela espera para jantar.

– Ah! Pode subir… Minha ama vem já.

Entrei e reconheci a saleta, onde eu dantes fora recebido tantas vezes pela viuvinha do general.

Quanta recordação! Vira-a uma noite no Clube de Regatas; apresentou-me um jornalista então em moda; dançamos e conversamos muito. Ao despedir-nos, ela, com um sorriso prometedor, disse-me que costumava receber às terças-feiras os amigos em sua casa e que eu lhe aparecesse.

Fui, e um mês depois éramos mais do que amigos, éramos amantes.

Adorável criatura! simples, inteligente e meiga. No entanto, o meu amor por ela fora sempre um tanto frouxo e preguiçoso. Aceitava e desfrutava a sua ternura como quem aceita um obséquio de cortesia. Teria eu porventura o direito a recusá-la?…

Mas, assim como nasceram, acabaram os nossos amores; uma ocasião cheguei tarde demais à entrevista; de outra vez lá não fui; depois esperei-a e ela não se apresentou; até que um dia, quando dei por mim, reparei que já não era seu amante.

Seis meses já lá se iam depois disto, e eis que uma bela manhã, ao levantar-me da cama, entregaram-me uma carta.

Era dela.

Meu amigo.
Sei que conserva as minhas cartas e peço-lhe que me as restitua. Venha jantar comigo, mas não se apresente sem elas. É um caso sério, acredite.
São vinte. Não me falte e conte com a estima de quem espera merecer-lhe este último obséquio.
Afianço que será o último. Sua amiga,

LAURA.


Para que diabo queria ela as suas cartas?… Teria receio de que as mostrasse a alguém?… Impossível!

Principiavam-me estas considerações, quando se afastou a cortina da saleta e a viuvinha do general surgiu defronte de mim.

– Com efeito! disse ela. Só assim o tornaria a ter em minha casa! Bons olhos o vejam!

Beijei-lhe a mão.

– Trouxe?… perguntou.

– Suas cartas? Pois não! Bem sabe que para mim as suas ordens são sagradas…

– Ainda bem. Sente-se.

Sentamo-nos ao lado um do outro. Ela recendia uma combinação agradável de cananga do Japão e sabonete inglês; tinha um vestido de linho enfeitado de rendas; e na frescura aveludada do seu colo destacava-se um medalhão de ônix.

– Então, que fantasia foi essa?… interroguei, depois de um silêncio em que nos contemplamos com o mesmo sorriso.

E no íntimo já estava gostando de haver lá ido. Achava-a mais galante; quase que me parecia mais moça e mais bonita.

– Que fantasia?…

– A de exigir as suas cartas…

Ela fez do seu meio sorriso um sorriso inteiro.

– Tinha receio de que alguém as visse?… perguntei, tomando-lhe as mãos entre as minhas.

– Não! Suponho-o incapaz de tal baixeza…

– Então?…

– Mas para que deixá-las lá?… Está tudo acabado entre nós.

E retirou a mão.

Eu cheguei-me mais para ela.

– Quem sabe?… disse.

Laura soltou uma risada.

– Você há de ser sempre o mesmo!… Não se lembraria de mim se não recebesse o meu bilhete, e agora… Tipo!

– Não digas tal, que é uma injustiça!

– Espere! Tire a mão da cinta! Tenha juízo!

– Já não te mereço nada?…

– Deixe em paz o passado e tratemos do futuro. Eu quero que você seja meu amigo…

Dizendo isto, erguera-se e fora abrir uma janela que despejava sobre o jardim.

– Está então tudo acabado?… Tudo? inquiri, erguendo-me também, e envolvendo-a no meu desejo, que ela fazia agora reviver, maior do que nunca.

É que incontestavelmente o demônio da viuvinha estava muito mais apetitosa. Nunca tivera aqueles ombros, aquele sorriso tão sanguíneo e aqueles dentes tão brancos! Seus olhos ganharam muito durante a minha ausência, estavam mais úmidos e misteriosos, quase brejeiros! O seu cabelo parecia-me mais preto e mais lustroso; a sua pele mais pálida, com uma cheirosa frescura de magnólia. Todos os seus movimentos adquiriram inesperada sedução; e o seu quadril havia enrijado de um modo surpreendente; o seu colo tomara irresistíveis proeminências que meus olhos cobiçosos não se fartavam de beijar.

– Então, tudo acabado, hein?…

– Tudo!

– Tudo? tudo?…

– Absolutamente!

– Para sempre?

– Você assim o quis, meu amigo! Queixe-se de si!

Ia lançar-lhe as mãos e fechá-la num abraço; ela, porém, desviou-se, ordenando-me com um gesto muito sério que me contivesse, puxou duas cadeiras para junto da janela e pediu-me que a ouvisse com toda a atenção.

– Sabe por que lhe exigi as minhas cartas?…

– Por quê?

– Porque vou casar…

– Como? A senhora disse que ia casar?!

– Dentro de dois meses.

– Com quem, Laura?

E fiquei também eu muito sério.

– Com um negociante de madeiras.

– Um madeireiro?

Ela meneou afirmativamente a cabeça; eu fiz um trejeito de bico com os lábios e pus-me a sacudir a perna.

– Está bom!

– Que quer você?… Uma senhora nas minhas condições precisa casar!…

– Ora esta! Um madeireiro!…

– Que me ama muito mais do que você me amou, tanto assim que está disposto a fazer o que você nunca teve a coragem de imaginar sequer! E juro-lhe meu amigo, que saberei merecer a confiança de meu marido! Serei em virtude o modelo das esposas!…

Olhei-a de certo modo.

– Não seja tolo! – disse ela em resposta ao meu olhar.

E fugiu lá para dentro, sem consentir que eu a acompanhasse.

Só nos tornamos a ver meia hora depois, já a mesa do jantar.

– E as cartas? reclamou ela.

Tirei o maço do bolso, desatei-lhe a fitinha cor-de-rosa que o atava; contei as cartas, estavam todas as vinte metodicamente numeradas, com as competentes datas em cima escritas em letra boa.

Mas não tive ânimo de entregá-las.

– Olhe! disse, trago-lhas noutro dia… Se as restituir agora, que pretexto posso ter para voltar cá?…

– Hein? Como? Isso não é de cavalheiro…

– Não sei! Quem lhe mandou ficar mais sedutora do que era?

– Está então disposto a não entregar as minhas cartas?…

– E até a servir-me delas como arma de vingança!

Laura franziu a sobrancelha e mordeu os beiços.

Tínhamos já cruzado o talher da sobremesa e bebíamos, calados ambos, a nossa taça de champanhe.

O silêncio durou ainda bastante tempo. Ela só o quebrou para perguntar, muito seca, se eu queria mais açúcar no café.

E continuamos mudos.

Afinal, acendi um charuto e arrastei minha cadeira, para junto da sua.

– É melhor ser minha amiga… segredei passando-lhe o braço na cintura.

– Não desejo outra coisa, balbuciou ressentida e magoada. Peço-lhe justamente que me proteja como amigo, em vez de pôr obstáculos ao meu futuro. Que diabo! eu preciso casar!…

– Eu lhe entrego as cartas… Descanse.

– Então dê-mas!

– Com a condição de prolongar a minha visita até mais tarde…

– Mas…

– E fazermos um pouco de música ao piano como dantes. Está dito?

– Jura que me entrega depois as cartas?…

– Dou-lhe a minha palavra de honra.

– Pois então fique.

Às onze e meia, Laura apresentou-me o chapéu e a bengala.

Repeli-os e declarei positivamente que não lhe entregaria as cartas, se ela não me concedesse por aquela noite, aquela noite só gozar ainda uma vez dos direitos que dantes o meu amor me conferia tão solicitamente.

Ela a princípio não quis, mostrou-se zangada; mas eu insisti, supliquei, jurei que seria a última vez, a última!

E não saí.

Pela manhã, depois do almoço, Laura exigiu de novo as suas cartas.

Tirei o pacotinho da algibeira, abri-o, contei dez.

– É a metade. Aí ficam!

– Como a metade?…

– Pois, Laura, você me acha tão tolo que te entregasse logo todas as tuas cartas?… E depois, em troca do que te pediria que prolongasse um outro jantar como o de ontem?…

– Isso é uma velhacada!

– Que seja!

– Estou quase não aceitando nenhuma!

– Daqui a uma semana vir-te-ei trazer as outras dez. Está dito?

Daí a uma semana, com efeito, lá ia eu, com as dez cartinhas na algibeira, em caminho da casa de Laura. E nunca em minha vida esperei com tanta ânsia a hora de uma entrevista de amor. Os dias que a precederam afiguraram-se-me intermináveis e tristes. A viuvinha também se mostrava ansiosa, quando menos por apanhar as suas cartas.

Mas, coitada! não recebeu as dez, recebeu cinco.

Pois se a achei ainda mais arrebatadora nesta segunda concessão que na primeira!…

E na seguinte semana recebeu apenas duas cartas, e nas outras que se seguiram recebeu uma de cada vez.

Ah! mas também ninguém poderá imaginar a minha aflição ao desfazer-me da última! um jogador não estaria mais comovido ao jogar o derradeiro tento! Eu ia ficar completamente arruinado; ia ficar perdido; ia ficar sem Laura, o que agora se me afigurava a maior desgraça deste mundo!

Arrependi-me de lhe ter dado dez logo de uma vez e cinco da outra. Que grande estúpido fora eu! Esbanjara o meu belo capital, quando o podia ter feito render por muito tempo!…

Então o espectro do madeireiro surgiu-me à fantasia, como eu o imaginava: bruto, vermelho, gordo e suarento. E Laura, ao meu lado, no abandono tépido da sua alcova sorria triunfante, porque tinha rasgado o único laço que a prendia a outro homem. Estava livre!

Rasguei a carta ao meio.

– Tratante!

– Aqui tem, disse passando-lhe metade da folha de papel. Ainda me fica direito a um almoço e metade de uma noite em sua companhia… Peço-lhe que me deixe voltar..

Ela riu-se, e só então reparei que meus olhos estavam cheios d’água.

– Queres que te passe de novo o baralho?… perguntou-me enternecida, cingindo-se ao meu peito.

– Se quero!… Isso nem se pergunta!

– Mas agora é a minha vez de pôr a condição…

– Qual é?

– Só tornaremos a jogá-lo depois de casados, serve-te?

– E o madeireiro? Ele não tem cartas tuas?

– Tranquiliza-te que, além de meu marido, eu só amei e escrevi a um homem, que és tu!

– Pois aceito com todos os diabos! E, como ainda tenho jus a um almoço, não preciso sair já!

Uma semana depois, Laura dizia-me à volta da igreja:

– Mas, meu querido, como queres tu que eu te mostre uma pessoa que não existe ?.

– Como não existe?… Então o teu ex-noivo, o célebre madeireiro, cujo retrato trazias no medalhão de ônix…

– Qual noivo! Aquela fotografia é de um jardineiro que tive há muitos anos e que morreu aqui em casa.

– Então tudo aquilo foi…

– Foi o meio de arrastar-te para junto de mim, tolo! e reconquistar o teu amor, que era tudo o que ambicionava nesta vida!

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) XLVII


NÃO TRAGAS FLORES, QUE EU SOFRO

 
Não tragas flores, que eu sofro...
Rosas, lírios, ou vida...
Tênue e insensível sopro.
O céu que não olvida!

Não tragas flores, nem digas...
Sempre há de haver cessar...
Deixa tudo acabar...
Crescem só urtigas.
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NÃO VENHAS SENTAR-SE À MINHA FRENTE, NEM A MEU LADO
 
Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado,
Quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando
Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
A não ter que pensar.

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre urtigas o que era a minha fé,
Escrevi numa página em branco, "Fim".

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro.
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales.
Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales -
Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem se lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar.
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NA PAZ DA NOITE, CHEIA DE TANTO DURAR
 
Na paz da noite, cheia de tanto durar,
Dos livros que li,
Que os li a sonhar, a mal meditar,
Nem vendo que os vi,
Ergo a cabeça estonteada
Do lido e do vão
Do ler e vazio que há e quis na noite acabada -
Não no meu coração.
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NAS ENTRESSOMBRAS DE ARVOREDO
 
Nas entressombras de arvoredo
Onde mosqueia a incerta luz
E a noite ocupa a medo
O incerto espaço em que transluz…
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NÁUSEA. VONTADE DE NADA
 
Náusea. Vontade de nada.
Existir por não morrer.
Como as casas têm fachada,
Tenho este modo de ser.

Náusea.  Vontade de nada.
Sento-me à beira da estrada,
Cansado já no caminho
Passo pra o lugar vizinho.

Mas náusea.  Nada me pesa
Senão a vontade presa
Do que  deixei de pensar
Como quem fica a olhar...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NA VÉSPERA DE NADA
 
Na véspera de nada
Ninguém me visitou.
Olhei atento a estrada
Durante todo o dia
Mas ninguém vinha ou via,
Ninguém aqui chegou.

Mas talvez não chegar
Queira dizer que há
Outra estrada que achar,
Certa estrada que está,
Como quando da festa
Se esquece quem lá está.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NA VÉSPERA
 
Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,  
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!  
Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros  
Por isto tudo, ter pensado o tudo  
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranquilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fitando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens!  Dormita!
É a véspera de não partir nunca!

Aparecido Raimundo de Souza (No tapa)


O GILBERTO VENESIANO e a sua mulher Penélope, resolveram, antes de embarcarem para a casa da filha (que havia ganho o primeiro bebê) darem uma passadinha no dentista. Como ficariam fora, pelo menos uns quinze dias, rumaram para o consultório do especialista. Na sala de espera, amargaram uns quarenta minutos em face de um cliente que precisou colocar às pressas dois dentes interinos em vista de tê-los perdidos numa briga de vizinhos.

Estavam, pois, às portas de desistiram da empreitada, quando, finalmente, a secretária mandou que entrassem:

— O doutor Cunegundes os espera. Queiram me acompanhar, por favor. Desculpem a demora.

Assim que se viram diante do estilista bucal, Penélope, soltando fogo pelas ventas, se adiantou e botou as mãos nas cadeiras, fazendo pose de mandona:

— Doutor Cunegundes, ouça com muita atenção. Quero que atenda a um pedido meu...

O doutor Cunegundes, até aquele instante, calmo e sereno, como sempre, se abriu em mesuras:

— Bom dia para a senhora também, dona Penélope — respondeu sorrindo. Claro que atenderei ao seu pedido. Aqui o cliente tem sempre razão. Obviamente, se a sua requisição a ser feita estiver ao meu alcance...

Dona Penélope não tinha papas da língua. Era uma criatura chata, avoada, sem noção. Sem se importar com o bom dia do doutor, a mulher alterou ainda mais a voz, se fazendo meio que descontrolada e fora de si:

— Tenho certeza que o senhor acatará o que tenho em mente...

Sem mais delongas, a mulher voltou a encarar o odontólogo dentro dos olhos. Mantendo a voz tonitruante esclareceu:

— Seguinte. Arranque esse maldito dente que lhe trouxe na mais profunda aflição. Todavia, desde logo, torno claro o desejo veemente de passar bem longe da anestesia. Não quero nenhum paliativo para estancar a dor. Estamos entendidos?    

Em resposta, o doutor Cunegundes coçou a cabeça. Diante da estranha solicitação da cliente observou, meio que ressabiado:

— Dona Penélope, entenda. Sem o procedimento da anestesia, a senhora sofrerá o diabo. Sem levar em conta que poderá passar mal, desmaiar... precisar ser levada para um hospital. Perceba, não é um simples pedido, como a senhora colocou. A coisa não funciona bem assim.

— Não importa — vociferou a mulher. Assumo as consequências do meu ato. Vamos em frente. Sem anestesia...

— Posso saber da senhora, pelo menos, os motivos da tal dispensa?  Acaso medo da agulha?

— Doutor —, estou... desculpe, estamos, eu e meu marido, com muita pressa. Entende, agora, o motivo da minha, digo, da nossa afobação desordenada? Pior, meu nobre, da maldita e intrépida impaciência que nos acelera os fundilhos da alma e as pregas do coração?

O dentista franziu o cenho. Boquiaberto e sem ação, se viu, de repente, no mato sem cachorro:

— Por certo eu entendo a sua situação... mas dona Penélope, eu...

— Doutor Cunegundes... por favor, sem qualquer outro argumento que por ventura possa querer trazer à baila.

Fez uma parada básica e acrescentou:

— Estamos com o tempo apurado. Sem contar o desrespeito de quase uma hora, ou mais, que mofamos como duas múmias paralíticas sentadas na sua recepção e a sua secretária, colada na droga do celular, sequer nos ofereceu uma água, menos ainda um café...

O doutor Cunegundes procurou aparentar uma serenidade que começava a voar longe de seus brios. Por dentro, tinha a impressão que explodiria:

— A senhora quer um café?  Seu Gilberto, aceita uma água?

Dona Penélope se adiantou de novo e retrucou, se contrapondo ao consorte:

— Doutor Cunegundes, o Gilberto não quer nada. Nem eu. Somente que o senhor faça o seu trabalho.

— Sem anestesia?

— Fui bastante clara quanto a isso. Como disse, e volto a frisar, sem anestesia. Estamos, como diria, meio que desembestados.  Queremos que nos livre do incômodo do dente, que cobre pelo seu trabalho e nos libere. A essa altura, deveríamos estar quase chegando ao nosso destino.

O doutor Cunegundes, perdeu, de vez a paciência. Nessa fase do campeonato, se mostrou deveras nervoso. Na verdade, além do semblante completamente desfigurado, danou a tremular as mãos. “Que mulher encapetada, essa”. Pediu licença, foi ao banheiro e lá, depois de beber um copo de água e um calmante forte com o restante de café da garrafa, se preparou para o atendimento:

— Quero que saiba, de antemão, a coisa vai doer horrores. A senhora sofrerá o diabo. Confesso, estou pasmo, dona Penélope. Devo acrescentar que a senhora é muito corajosa. Parabéns pela sua bravura e sangue frio.

Tirou do bolso um lenço, secou o suor, se benzeu:

— Sente-se, por favor. Seja o que Deus quiser. Qual é o dente?    

Dona Penélope, então se virou para o marido e, com um sorriso bailando nos lábios sensuais, se dirigiu a ele e mandou a ordem:

— Gilberto, meu amor, o doutor vai, enfim, nos levar a sério. Eu sabia que não criaria nenhum tipo de embaraço. Lembra do que lhe falei, quando vínhamos para cá? Que o doutor Cunegundes é cabra da peste e porreta...

Dona Penélope fez uma breve pausa. Estava satisfeita. A sua vontade, com a anuência do especialista a deixou acesa e saltitante. Para não perder mais nenhum segundo, concluiu, a sua fala, observando:

— Além de porreta, o nosso doutor tem convicção e sabe que os clamores vindos de clientes antigos, não podem ser contestados. OK, meu ilustre doutor. Nosso bate papo se estendeu além do tempo que eu havia previsto.  Gilberto, meu amor, seja macho. Senta na cadeira e mostra o dente “dodói” para o nosso salvador da pátria.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.