Já àquele tempo, a fauna doméstica crescia, a exigir balanceamento. Malhado,
vira-latas simpático, de pelo alvinegro e crespo, foi doado à
"abuelita", mãe de meu pai, assim que chegou a nossa Valente.
Valente
era uma cadela ruiva, alta, esguia... Fidalga!! Perfeita ladie a
projetara imagem da futura Lassie, embora sem as largas manchas cor de
ferrugem que consagrariam a atriz canina nas telas dos cinemas.
Em
meus tenros anos, cheguei a questionar minha mãe, que lhe dera o nome
de Valente, em memória de um cão terra-nova que lhe enternurara a
infância. Alertei-a, com ares de futura professora:
- Ela é menina, mamãe! Em vez de Valente, não é melhor chamá-la de Valenta?!
Em
tempos atuais, quem ressuscite alguma lembrança política, lembre-se,
por favor, que a imaturidade dos tenros anos daquela garotinha
impertinente, validava o tal questionamento.
Naquela ocasião, entretanto, algo imprevisto aconteceria:
-
Um cãozinho obstinado, que em seus passeios vespertinos descobrira os
encantos da Valente, deu de fazer serenatas apaixonadas lá no portão da
garagem da nossa casa. Não, uma, duas... ou três vezes... mas sempre! Ou
seja, desde que algum Cupido canino disparou sua flecha certeira no
coração impulsivo do tal cãozinho, ele caíra de joelhos, por detrás
daquele portão, tenazmente disposto a descobrir onde se escondia sua
amada.
A princípio, não entendíamos o porquê daquela assídua
pontualidade canina. Dúvida esclarecida no momento em que um garotão
adolescente, morador nas redondezas - que regularmente buscava o
cãozinho apaixonado várias vezes ao dia, levando-o, às turras, de volta
para casa - expressou, em definitivo, a decisão de abandonar a luta.
Tudo
cansa nesta vida... e o garoto, afinal, cansou-se de forçar a barra.
Jogou a toalha... ou melhor, atirou a coleira ao chão, desabafando;
- Ele quer ficar aqui? - Pois que fique!!! O nome dele é Sultão. Não venho mais buscá-lo! - Bateu o pé... e não veio mesmo!
E,
assim, por lá ficou o teimoso Sultão, por um dia e uma noite inteira, a
atravancar a entrada da nossa garagem, testando a paciência de meu pai,
cada vez que pretendia guardar o carro.
Foi curto o impasse!
Logo,
os olhos pidões do cãozinho teimoso acabaram por sensibilizar o dono
daquele portão, aberto, afinal, com um acolhedor - Bem-vindo!
Tínhamos, a partir de então, um casal de cães, em realidade bastante contrastante.
Ela
- alta, esguia, fidalga, como já descrita. Ele - um cara simpático,
pelagem de cor mista, bege, marrom e preto - raça indefinida, pernas
curtas, baixinho... e olhos incisivos... por demais sedutores! - que
enfeitam a capa deste livro.
O tempo seguia a marchar em paz.
Até que, num certo dia, aquela garota, que era eu, correu alarmada,
clamando pela mãe, em busca de socorro:
- Mamãe!... A Valente vai morrer... ela está com uma bola de tripas se mexendo... do lado dela!!!
Minha mãe acudiu assustada... logo a acalmar a ingenuidade da filha:
-
Não é nada, não... ela vai ficar bem. - E a garotinha enxerida foi
afastada, para que não se aprofundasse em assuntos não aconselháveis á
sua idade.
Até hoje, não sei o que realmente terá acontecido após
aquele parto... e nem, também, que fim teria sido dado àquele conteúdo
empelicado que viera à luz. Nego-me a pensar!
Sei, apenas, que o
Sultão, sem questionamentos, foi despachado para a casa do "vô" Joaquim,
pai de minha mãe, que residia bastante longe... lá na rua São Leopoldo,
à entrada de Santos.
Contudo, não demorou muito para que a
notícia preocupante viesse de volta: - Logo no segundo dia depois da
chegada, aquele Sultão imprevisível, desaparecera da nova residência.
Deveria
andar perdido por aí... Ou, quem sabe, caíra no laço da abominável
"carrocinha", temível algoz dos cães vadios e alvo do ódio de toda
criançada, em qualquer tempo.
Essa mesma carrocinha, da qual,
certa vez, num rasgo de ousadia, tive a felicidade de abrir-lhe a porta,
soltando, não sei como, todos aqueles infelizes passageiros de quatro
patinhas, condenados a um passeio sem volta.
O que acontecera depois? Sei lá!
Tímida
garota, mas sem deixar de ser esperta, sei que simplesmente sumi...
Graças à balbúrdia provocada e na certeza de que acabara de fazer algo
nadinha recomendável! - Por vezes, chego a duvidar da veracidade desse
feito. Será que aquilo aconteceu mesmo? Ou, o desejo de que aquilo
acontecesse era tão grande, que se configurou em minha mente infantil
como realidade?! - Sei lá!
Quanto ao sumiço do cãozinho teimoso, o
desfecho surpreendente não tardaria a acontecer. Três dias depois do
desaparecimento, quem iria surgir, novamente, à frente daquele mesmo
questionado portão da rua Alexandre Herculano?!
Palmas a quem,
acreditou no estoicismo daquelas perninhas curtas e na tenacidade de um
apaixonado Sultão decidido a ter reingresso no antigo lar.
Sim,
lá estava ele, dias após ao instigante sumiço, com um palmo de língua de
fora, de volta ao emblemático portão - pequenino herói, ofegante e
faminto, com inconfundível brilho de vitória no olhar! Seus olhos pidões
e a cauda freneticamente festiva orquestravam a certeza de ótima
acolhida, em resposta ao retorno verdadeiramente sensacional!
Aquele
cãozinho teimoso atravessara, heroicamente, o labirinto das ruas
santistas, em busca de sua parceira! Sem bússola?! - Não... Levava
consigo a mais precisa e preciosa delas todas - um coração apaixonado!
Cãozinho valente! Ele, sim, merecia esse nome. E com absoluta justiça!
Daquela vez. Sultão não se enganara.
Abertos,
com alegre espontaneidade, aqueles portões deram entrada ao cãozinho
raçudo que, sem "lenço nem documento", ou melhor, sem qualquer pedigree
que lhe reabrisse portas, provava querer ser nosso a qualquer preço é o
que aquele heroico retorno confirmava de sobejo, podendo ser configurado
como verdadeira façanha!
E aquele heroico retorno, por sua vez,
foi condignamente festejado com muita alegria, pelos moradores daquele
lar, onde Sultão conquistou lugar definitivo.
Mas...
Fim da história? - Não!
Sempre
que um mas, reticente e amargo, aparece, sabe-se que pode trazer com
ele coisas jamais aceitas, principalmente, pela ingenuidade de qualquer
criança, como neste caso.
Foi bem isto o que aconteceu. A volta
do Sultão foi saudada com alegria, mas... Por conta desse retorno, um
novo descarte aconteceu. Desta vez, foi a nossa querida Valente que se
despediu, ou melhor, foi oportunamente despedida, sendo presenteada a
uma família amiga.
A
evitar choramingas, nunca me foi revelado o nome dessa tal "família
amiga", e, muito menos, o endereço que acolheu aquela cadelinha Valente,
nunca mais vista por mim.
Terminou, assim, melancolicamente, o
singelo romance canino que, apesar da sua intensidade, teve curta
duração. Sultão ficou muito tempo conosco. Morreu de velhice. Exatamente
como deve morrer um velho sultão – cercado de desvelos e carinhos.
Embora
morresse solitário, sem o seu "harém", ou tão somente sem o seu grande
amor, que lhe foi sumariamente negado pelo que, ao menos para ele,
poderia ser classificado como fruto da insensibilidade humana -
demasiado ágil ao decidir situações de modo egoísta - de acordo com as
próprias conveniências.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *
Quem salta em pauta, agora, é um coelhinho branco bola de arminho, alva e fofa - a passear, livre, pela casa,
Como se dono dela fosse, e, a trançar pés que o evitavam pisar.
Uma
família inteira, encantada com aqueles olhos cor de rubi e com aquelas
longas e aveludadas orelhas, observava o passeio saltitante e atrevido,
daquele animalzinho fofo, que, a ignorar limites, transitava livre por
sobre os tapetes das salas, como se todos eles tivessem sido estendidos,
reverentemente, para seu próprio e exclusivo deleite.
Logo,
porém, aquele novo e irrequieto invasor teve os passos limitados,
penalizado que foi por desrespeito às leis de segurança doméstica e,
principalmente, por conta de seus hábitos nada higiênicos.
E foi
assim que aquele coelhão branco, (a exemplo do outro literariamente
famoso), a mando da "Rainha" daquele lar, acabou por perder as regalias
do seu "País das Maravilhas", muito embora ganhasse casa própria...
porém, fora da nossa.
Fonte:
Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.