quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Abbie Philips Walker (O castelo azul)


Era uma vez, em um país distante, uma bruxa que vivia no topo de uma alta montanha. Todos os anos, ela descia até o reino e aparecia no palácio do rei, pedindo um saco de ouro.

Uma noite, quando o rei e sua rainha estavam celebrando alegremente com uma grande festa em homenagem ao nascimento de sua pequena filha, a princesa Lírio, a velha bruxa chegou ao palácio e pediu seu saco de ouro.

“Diga para ela ir embora,” disse o rei ao seu servo. “Eu usei todo o ouro dos cofres na festa; ela terá que voltar no próximo ano.”

A velha bruxa ficou muito irritada ao ouvir essa mensagem e se escondeu nos jardins do palácio até todos dormirem naquela noite. Então, ela entrou no palácio e sequestrou a bebê princesa.

A rainha e o rei ficaram desesperados de tristeza quando descobriram a perda, e ofereceram grandes recompensas para quem trouxesse sua filha de volta, mas ninguém conseguiu encontrá-la.

“Encontrem a velha bruxa que veio aqui na noite da festa,” disse um dos homens sábios do rei, “e vocês encontrarão a princesa.”

Procuraram por toda parte, mas a bruxa não foi encontrada, pois, quando alguém tentava escalar a montanha onde a velha bruxa morava, os insetos se tornavam tão espessos quanto neblina e nuvens, impedindo-os de ver o caminho.

Um por um, desistiram da tentativa, e assim, com o tempo, o rei e a rainha passaram a lamentar a filha como se estivesse morta, e a velha bruxa nunca mais voltou ao palácio.

A rainha e o rei nunca tiveram mais filhos, e todos os dias lamentavam, pensando que não haveria ninguém para reinar depois de sua partida.

Um dia, um dos homens sábios do rei disse a ele: “Em uma caverna na floresta vive um ogro que tem um cavalo maravilhoso. Ele é mantido em um estábulo feito de mármore, e seu estábulo é de ouro, e é alimentado com milho cultivado em um campo de pérolas.

“Se conseguirmos esse cavalo, talvez possamos escalar a montanha onde a velha bruxa vive, e quem sabe a princesa ainda esteja viva.”

“Mas como conseguiremos esse cavalo?” perguntou o rei.

“Ah! Essa é a parte difícil,” respondeu o sábio. “A criatura encantada só pode ser capturada e montada por quem puder alimentá-la com o milho mágico, e dizem que quem tenta colher o milho do campo de pérolas sente-se afundando e precisa correr para salvar sua vida. Somente o ogro, que conhece as palavras mágicas que impedem as pérolas de sugá-lo para dentro da terra, pode colher o milho.”

Ao ouvir isso, o rei convocou todos os príncipes do reino para irem ao seu palácio, e, quando chegaram, ele lhes disse que daria seu reino àquele que conseguisse capturar e montar o cavalo encantado do ogro se pudesse encontrar a princesa Lírio, e ela se tornaria sua esposa.

Mas todos os príncipes eram ricos o suficiente e não se importavam em correr tal risco, especialmente porque nunca tinham visto a princesa Lírio.

Então, o rei enviou a mensagem a todos os jovens pobres do reino para virem até ele e lhes fez a mesma oferta, mas um a um eles desistiram. No final, restou apenas um jovem camponês.

“Eu vou tentar, Vossa Majestade,” disse ele, “mas não me casarei com a princesa a menos que possa amá-la, e se ela não quiser se casar comigo, também não vou exigir essa parte do acordo, mas ficarei com o reino se trouxer sua filha de volta.”

Naquela noite, o jovem camponês foi até uma fada que vivia na floresta e pediu sua ajuda.

“Você só pode entrar no campo de milho mágico usando os sapatos mágicos do ogro, e ele sempre dorme com eles debaixo da cama. Eles estão amarrados ao dedão do pé direito dele por um fio de seda, e ninguém pode cortá-lo ou quebrá-lo sem acordar o ogro.

“Vou lhe dar uma pena, e se você tiver a sorte de entrar no quarto dele sem ser pego, pois ele é bem guardado por um cachorro com duas cabeças, use essa pena para fazer cócegas no pé esquerdo dele, e assim você poderá cortar o fio de seda sem que o ogro perceba. Isso é tudo o que posso fazer por você. O cachorro de duas cabeças não está sob o meu controle.”

Então, o camponês pegou a pena mágica e naquela noite foi até o castelo do ogro na floresta e esperou até ouvir os roncos do ogro. Em seguida, ele tirou dois grandes ossos do bolso.

Ele abriu a porta do castelo, pois o ogro não temia ninguém e não trancava sua porta à noite.

O cachorro de duas cabeças rosnou e avançou em direção ao camponês, mas ele rapidamente enfiou um osso na boca de cada cabeça, o que os acalmou.

As duas cabeças começaram a roer os ossos, e enquanto isso o camponês entrou sorrateiramente no quarto onde o ogro estava dormindo e fez cócegas no pé esquerdo dele, que estava fora das cobertas.

O velho ogro começou a rir, e riu tão alto que nenhum outro som era ouvido; o camponês teve tempo de quebrar o fino fio que estava preso aos sapatos mágicos com uma das mãos, enquanto continuava fazendo cócegas no ogro com a pena na outra mão.

Quando já estava com os sapatos debaixo do braço, saiu silenciosamente da cama, deixando o ogro rindo.

O cachorro de duas cabeças ainda mastigava os ossos, e o camponês saiu sorrateiramente e se sentou nos degraus do castelo para calçar os sapatos mágicos.

Ele mal tinha calçado os sapatos quando o cachorro de duas cabeças terminou os ossos e começou a latir tão forte que o camponês achou a princípio que fosse trovão.

Ele correu até o campo de pérolas, onde o milho mágico estava crescendo, e estava puxando as espigas quando o ogro saiu correndo de seu castelo, seguido pelo cachorro de duas cabeças, com as bocas abertas, parecendo querer devorá-lo.

O camponês saiu correndo do campo, mas não antes de o ogro ter entrado, e o ogro afundou imediatamente, desaparecendo de vista quando as pérolas fecharam-se sobre sua cabeça, pois, é claro, ele havia esquecido tudo sobre os sapatos quando ouviu o cachorro latir, e de qualquer forma pensou que eles ainda estavam amarrados ao seu dedão.

Embora o camponês estivesse livre do ogro, ele ainda estava sendo perseguido pelo cachorro de duas cabeças, que corria atrás dele mostrando seus dois conjuntos de dentes grandes e latindo o tempo todo. Mas o camponês estava muito à frente do cachorro, e chegou ao estábulo a tempo de alimentar o cavalo encantado com o milho mágico. O cavalo relinchou amavelmente e deixou o camponês montá-lo.

O cavalo usava uma sela de veludo roxo, com enfeites de ouro e prata, e era branco como a neve. Ele também tinha uma rédea de ouro e prata decorada com rubis.

Era um cavalo digno de um rei, e o camponês, em cima dele, parecia totalmente fora de lugar.

Assim que o camponês chegou ao pátio do castelo, o cachorro de duas cabeças avançou para morder as patas traseiras do cavalo encantado, mas o cavalo deu um coice nele, e o cachorro rolou para o lado.

O camponês olhou para trás para ver o que tinha acontecido com o cachorro, mas ele não estava mais lá; no lugar onde ele estava havia agora uma grande rocha escura com um topo irregular que se assemelhava a um conjunto de enormes dentes.

O camponês estava livre de ambos os perseguidores agora, e montou em direção à montanha onde o rei havia dito que a bruxa vivia.

O cavalo encantado galopou montanha acima, como se tivesse asas em vez de patas, e em poucos minutos levou o camponês até o topo.

O camponês olhou à sua volta, esperando ver uma caverna, mas, para sua surpresa, viu apenas um bosque de árvores com algo brilhando através das folhas, que parecia ser uma casa.

Ao se aproximar do bosque, viu um castelo de vidro azul profundo, sem portas nem janelas. Dentro, ele viu uma garota fiando.

Ela olhou para cima quando a sombra do cavalo e do cavaleiro caiu sobre o castelo de vidro, e seus olhos se arregalaram de surpresa, mas antes que o camponês pudesse descer do cavalo, uma velha apareceu passando pelo chão da casa e bateu com sua bengala na cabeça da garota, que se transformou em um rato.

O camponês ficou tão espantado que não se mexeu por um minuto, mas o riso da velha o trouxe de volta à realidade e ele soube que aquela devia ser a bruxa.

“Ha, ha! Você pegou o cavalo, mas não pode trazer de volta a princesa até que eu permita!” ela gritou, e então desapareceu pelo chão.

O camponês andou em volta do castelo azul, mas não encontrou nenhuma porta ou janela, ou qualquer abertura.

Ele estava segurando o cavalo pela rédea de ouro quando de repente o cavalo levantou uma das patas dianteiras e bateu no castelo azul.

O castelo de vidro azul estilhaçou-se, e o camponês viu uma abertura grande o suficiente para ele entrar.

Estava prestes a fazê-lo, deixando o cavalo encantado do lado de fora, quando ouviu outro estrondo; o cavalo encantado o estava seguindo, tendo quebrado mais uma parte do vidro, criando uma abertura maior para os dois entrarem.

O rato estava encolhido em um canto da sala, e o camponês o pegou com cuidado e o colocou em seu bolso.

O cavalo foi até o local onde a velha bruxa havia desaparecido no chão e bateu três vezes com uma das patas dianteiras no piso de vidro. De repente, a bruxa apareceu novamente. Mas desta vez, ela não estava rindo; parecia assustada, e tremia tanto que teve que se apoiar na bengala para não cair.

O cavalo encantado a pegou pela saia e a sacudiu três vezes, e de seu bolso caiu um feijão preto com uma mancha branca.

Quando o feijão caiu, a velha bruxa gritou e caiu no chão. O cavalo pegou o feijão e o engoliu.

O camponês estava todo esse tempo observando os eventos estranhos, sem ousar se mover por medo de quebrar o feitiço, e se perguntando o que viria a seguir.

Quando o cavalo engoliu o feijão, ele começou a desaparecer, e uma névoa azul encheu a sala. Quando a névoa se dissipou, o camponês viu um jovem no lugar onde o cavalo estava, e onde a bruxa havia estado, havia um buraco profundo.

“Ela caiu no buraco?” perguntou o camponês, sem saber o que mais dizer.

“Não; nesse buraco encontraremos o feitiço mágico que vai restaurar a princesa à sua forma normal,” disse o jovem. “A bruxa desapareceu na névoa azul.”

“Vamos logo encontrar o feitiço mágico,” ele disse, e entrou no buraco. O camponês o seguiu.

Havia uma escada pela qual eles desceram, e desceram tanto que parecia que nunca chegariam ao fim.

Mas finalmente seus pés tocaram em algo firme e macio, e eles estavam em uma linda sala com um tapete de veludo azul.

A sala era decorada com veludo na cor de safira, e as cadeiras eram de ouro polido com assentos de veludo.

Uma fonte de ouro jorrava no meio da sala, e a água caía em uma bacia de safira.

“Essa é a fonte mágica,” disse o jovem. “Você deve jogar o pequeno rato nela se quiser trazer de volta a princesa.

O camponês tirou o rato trêmulo do bolso. “Ele está com medo,” disse ele. “Eu não gosto de jogá-lo nesta água profunda.”

Sem responder, o jovem pegou o rato da mão do camponês e o jogou com força na fonte. O rato sumiu de vista.

“Oh, você o matou!” disse o camponês, olhando com olhos assustados para a água azul.

Então ele viu uma cabeça subindo lentamente do fundo da bacia azul. Logo, a cabeça emergiu da água, e então uma linda garota saiu da fonte, com seu cabelo dourado todo molhado e brilhante.

Uma brisa suave passou pelas janelas, e logo o cabelo e as roupas dela secaram. O camponês pensou que nunca tinha visto alguém tão bonita quanto a princesa.

“Eu sou o príncipe que foi transformado em um cavalo pelo ogro,” disse o jovem, dirigindo-se à princesa. “Fui roubado ao mesmo tempo que você, e o ogro, que era o marido da bruxa, me levou, enquanto a bruxa levou você. Mas este camponês nos resgatou, pois foi aqui que o feijão mágico que me restaurou à minha forma estava guardado. Se não fosse por uma fada que veio até mim uma noite e me contou o segredo, eu nunca teria recuperado minha forma original.”

Enquanto o príncipe falava, o camponês viu a princesa olhando para ele com um olhar de amor, e ele soube que a princesa não era para ele. Além disso, ele sabia que nunca seria feliz em um palácio.

Eles começaram a explorar e descobriram que estavam em um lindo palácio onde a velha bruxa havia morado. Agora que ela se fora para sempre, o camponês decidiu que ficaria com o palácio como recompensa e deixaria o príncipe e a princesa voltarem para o pai dela.

Nos estábulos encontraram belos cavalos brancos, e em um deles o príncipe e a princesa montaram para voltar ao reino, após fazerem o camponês prometer que iria ao casamento deles e dançaria com a noiva. “Pois nunca vamos esquecê-lo,” disse a princesa, “e sempre seremos amigos.”

Os pais da princesa ouviram atentamente a história contada pelo príncipe. Então, a rainha disse: “Eu posso dizer se esta é ou não minha filha desaparecida. Deixe-me ver seu ombro esquerdo; ela tem seu nome marcado nesse ombro, se for nossa filha.”

A princesa mostrou seu ombro, e a rainha viu ali uma pequena flor de lírio, que provava que era realmente sua filha.

O rei deu uma grande festa em honra ao retorno de sua filha, e o príncipe e a princesa se casaram. O camponês dançou no casamento, conforme prometido.
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Abbie Hoxie Phillips Jacob Walker foi uma autora americana conhecida por suas contribuições cativantes para a literatura infantil no início do século 20. Nascida em Exeter, Rhode Island, Estados Unidos, em 1867. Walker cultivou um estilo que envolvia o caprichoso e o didático, com o objetivo de entreter e instruir as mentes jovens. Grande parte da escrita de Walker está encapsulada em sua deliciosa coleção de histórias para dormir intitulada 'The Sandman's Hour: Stories for Bedtime', que foi publicado em 1916 e despertou a imaginação de inúmeras crianças ao longo das gerações. Nesta antologia, Walker exibe uma propensão para elaborar contos imbuídos de um senso de admiração e lições morais, adaptado para mandar as crianças dormir com sonhos inspirados em suas proezas narrativas. Seu estilo literário muitas vezes espelha a tradição oral de contar histórias, com uma qualidade lírica que ecoa a atemporalidade dos contos populares. A abordagem sutil de Walker ao tecer contos que falam tanto da inocência da juventude quanto da sabedoria buscada pelas mentes em crescimento tornou suas obras clássicos duradouros no domínio da literatura infantil. Embora informações biográficas detalhadas sobre Walker sejam relativamente escassas, seu corpo de trabalho continua a falar de seu legado como autora cujas histórias embalaram e inspiraram, muito parecido com o Sandman homônimo de seu livro mais conhecido. Faleceu em 1951.

Fontes> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças. 
Disponível em Domínio Público.
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) ““Botar as barbas de molho”

É outra expressão popular da língua portuguesa, que equivale a “deixar as barbas de molho” ou “colocar as barbas de molho”, justamente porque todas elas indicam que determinada pessoa, com presumível culpa no cartório, deve ficar alerta, esperta, preparada para o que der e vier, porque a sua “batata está assando” e mais cedo ou mais tarde haverá algum ajuste de contas.

Desde a mais remota Antiguidade a Idade Média, a barba sempre foi vista e considerada como o símbolo máximo da masculinidade, da honra, da determinação e do poder. Por essa ótica, era impensável que um indivíduo, ciente desses atributos, permitisse que outro - barbeiro ou não - cortasse sua barba, pois isso significava indignidade, flagrante, pública e inaceitável humilhação perante o meio social em que a pessoa vivia. 

Com o passar do tempo e até os dias de hoje, ouvir alguém dizer que alguém deveria “deixar suas barbas de molho”, significa aludir que por algum motivo, o tal sujeito deveria ficar de sobreaviso, prevenido para qualquer eventualidade, porquanto algo ocorrerá acabando por lhe impor determinada penalidade. 
 
Na Espanha é de cediço conhecimento famoso provérbio que diz: “Quando você vir as barbas de seu vizinho pegar fogo, ponha as suas de molho” indicando, com base no que aconteceu com alguém muito próximo, que a mesma coisa poderá acontecer com o próprio.
 
Alguns estudiosos afirmam que esta expressão sofreu uma corruptela motivada pelas condições de pobreza que caracterizou a sociedade brasileira na primeira metade do Século XX, fase histórica na qual os cortiços que albergavam os menos favorecidos eram construídos pegados uns aos outros, tendo como cobertura um capim denominado “bargas”, quase uma variação do sapê, tendo  na Amazônia seu correspondente na carnaúba, no babaçu, no buriti e na piaçava, que se prestam à cobertura dos barracos ribeirinhos. 

Pois bem, tais habitações utilizavam grandes fogões à lenha para o preparo das refeições dos moradores, que lançavam fagulhas que causavam incêndios entre elas, facilmente disseminados pelo vento, devastando todas as que estavam próximas. Daí adveio o costume do vizinho da casa que ardia em chamas de molhar intensamente seu telhado, como meio hábil de salvá-la, surgindo assim a expressão: “Fulano colocou suas “bargas” de molho, porque que a casa do vizinho está queimando!”, fala popular transmudada para “barbas”, pelo repetitivo dizer dos que enfrentavam o problema.

A expressão é tão utilizada que inspirou o livro “Barbas de molho” do escritor Luís Pimentel (Editora Dimensão, 64 páginas), que recebeu o Prêmio Cruz e Souza de Santa Catarina, pela Menção Honrosa recebida como finalista do Concurso Nacional de Literatura João-de-Barro, do Estado de Minas Gerais, ao discorrer sobre a vida de um menino no Brasil dos anos 30, contando seus primeiros encontros amorosos, os meandros da revolução tenentista, a pobreza do bairro em que morava e, mesmo assim, sua grande alegria de viver.

Pela sua popularidade, o tema inclusive foi objeto dos versos da esquecida e jocosa Dança da Desfeiteira, praticada nos folguedos juninos das cidades do Baixo Amazonas, onde os versejadores não deixaram por menos:

O cavalheiro:
tapuinha oferecida
no teu gingar estou de olho
contigo na minha vida
vou botar as barbas de molho...

A dama: 
Te manca, chifrudo!...

Barbas longas e bem cuidadas sempre fizeram a fama de muita gente no mundo todo, que por causa delas faturaram respeitabilidade e fixaram imagem identitária inconfundível, talvez por isso nunca admitiram raspá-las, do que é o melhor exemplo Papai Noel, ícone universal do Natal, que viraria apenas mais um na multidão trajado de vermelho, sem a sua branca e esvoaçante barba.

Para ficar só entre os políticos que governaram o Brasil nos primórdios da República, Deodoro, Floriano, Prudente de Morais, Rodrigues Alves e no Segundo Império, o respeitável, visionário, generoso e culto Imperador Dom Pedro II (um nobre de origem e não de título comprado), que teve o privilégio de existir na época áurea em que um fio da barba ou do bigode tinha a força de um documento solene para selar compromissos, prática de há muito postergada pelos espertalhões de todo tipo com os quais, nos dias de hoje, as pessoas de bem tem a desventura e a má sorte de conviver.
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

José Feldman (Abelardo e Azeitona)

Abelardo sempre foi um homem solitário, mas sua vida ganhou um novo significado quando decidiu adotar um cachorro de rua. Ele o chamou de Azeitona, um nome que refletia tanto a cor do pelo do animal quanto sua personalidade travessa. Desde filhote, Azeitona se tornou o melhor amigo de Abelardo, acompanhando-o em todas as suas aventuras e se tornando parte de sua rotina.

Os dois eram inseparáveis. Todos os dias, ao amanhecer, eles se dirigiam ao parque da cidade, onde Azeitona corria livremente, brincando com outros cães e perseguindo folhas que voavam com o vento. O parque era um refúgio para Abelardo, um lugar onde ele se sentia em paz, cercado pela natureza e pela alegria de seu fiel amigo.

Certa tarde, como de costume, Abelardo decidiu fazer uma pausa em um dos bancos do parque. O dia estava ensolarado e calmo. Ele observou Azeitona brincar com uma bolinha que havia trazido, rindo com a energia do cão. Mas, em um momento de distração, ele fechou os olhos e deixou-se levar pela brisa suave. Quando os abriu, Azeitona havia desaparecido.

O coração de Abelardo disparou. "Azeitona!" ele chamou, mas o silêncio do parque respondeu apenas com o farfalhar das folhas. Ele se levantou rapidamente, o desespero tomando conta de seu peito. Começou a procurar, chamando pelo nome do cachorro, perguntando a todos que encontrava pelo caminho se haviam visto seu amigo. Cada resposta negativa parecia um golpe, e a angústia crescia a cada segundo.

Percorreu o parque em busca de Azeitona, passando por caminhos que nunca havia explorado. Ele se sentia perdido, não apenas em relação ao espaço, mas também em sua própria esperança. Horas se passaram, e a luz do sol começou a se pôr, colorindo o céu com tons de laranja e rosa, mas isso não trazia conforto.

Do outro lado do parque, Azeitona também estava angustiado. Ele havia se afastado, atraído por um grupo de crianças que brincavam com uma bola. Quando percebeu que seu dono havia desaparecido, entrou em pânico. Correu por arbustos e trilhas desconhecidas, chamando por Abelardo, mas não conseguia encontrá-lo. O desespero tomou conta do pequeno cão, que começou a ganir, ecoando sua tristeza.

Finalmente, após horas de busca, Abelardo ouviu um som familiar. Era um ganido fraco, mas cheio de desespero. Seu coração se encheu de esperança. Ele seguiu a direção do som e, ao virar uma esquina, avistou Azeitona, encolhido em um canto, tremendo de medo.

Os olhos de Abelardo se encheram de lágrimas. Ele correu até Azeitona, que o reconheceu instantaneamente. O cachorro saltou para os braços do homem, abanando o rabo com toda a força que tinha, como se quisesse compensar cada segundo em que estiveram separados. Abelardo o abraçou com força, sentindo a suavidade do pelo e o calor do corpo de Azeitona.

"Eu pensei que nunca mais te encontraria, meu amigo!" disse, a voz embargada pela emoção.

Azeitona, aliviado e feliz, lambeu o rosto de Abelardo, expressando toda a sua alegria. O rabo do cachorro balançava freneticamente, quase parecendo um chicote, e Abelardo não pôde deixar de rir.

"Vai devagar com este rabo, parece um chicote!" brincou ele, enquanto algumas pessoas que haviam se juntado à busca também riam e se emocionavam com o reencontro.

O parque, que antes parecia um labirinto de incertezas, agora se enchia de alegria. Abelardo e Azeitona estavam juntos novamente, e isso era tudo o que importava. A amizade entre eles se fortalecia ainda mais naquele momento. Agradecendo a todos que o ajudaram, Abelardo se sentiu grato, não apenas por ter encontrado seu amigo, mas também pela solidariedade que o cercava.

Os anos passaram, e a relação entre Abelardo e Azeitona se aprofundou. O parque, que uma vez foi o cenário de seu reencontro emocionante, tornou-se o palco de muitas memórias: corridas alegres, piqueniques sob a sombra das árvores e longas caminhadas ao pôr do sol. Abelardo observou Azeitona crescer, seu pelo escurecendo e suas patas se tornando mais lentas. No entanto, o brilho nos olhos do cão nunca se apagou.

Com o passar do tempo, Abelardo também sentiu os efeitos da idade. Seus cabelos, antes escuros, agora eram salpicados de grisalhos, e sua energia não era mais a mesma. Mas a presença de Azeitona ao seu lado sempre o animava. O cachorro parecia entender quando Abelardo estava cansado, fazendo questão de parar e descansar um pouco, como se quisesse preservar cada momento juntos.

Certa manhã, enquanto caminhavam pelo parque, Abelardo se sentou em um banco, observando o movimento ao seu redor. As crianças brincavam, os casais passeavam de mãos dadas, e os pássaros cantavam nas árvores. Ele olhou para Azeitona, que se deitou ao seu lado, com a cabeça apoiada nas patas dianteiras. Era um momento simples, mas cheio de significado.

"Azeitona, você sempre esteve comigo, não é?" Abelardo disse, acariciando o pelo macio do cachorro. "Passamos por tantas coisas juntos."

O cão levantou a cabeça, olhando para Abelardo com seus olhos expressivos. Era como se ele entendesse cada palavra, cada sentimento. Azeitona lambeu a mão do homem, como se quisesse confortá-lo.

Com o tempo, as caminhadas se tornaram mais curtas. Azeitona, agora um velho amigo, preferia explorar os pequenos caminhos do parque, cheirando cada cantinho e apreciando a brisa suave. Abelardo, por sua vez, começou a notar que a energia de seu fiel companheiro estava diminuindo. As corridas alegres foram substituídas por caminhadas lentas e contemplativas.

Certa tarde, enquanto se sentavam juntos em seu banco favorito, Abelardo sentiu uma pontada de tristeza. Ele sabia que o tempo era implacável e que cada dia que passava era precioso. Olhando Azeitona, ele percebeu que o cachorro havia se tornado mais do que um amigo; era uma parte de sua alma.

"Eu prometo que vou cuidar de você para sempre, Azeitona," ele disse, a voz embargada. "Você é a melhor parte da minha vida."

Nos meses seguintes, Abelardo fez tudo o que pôde para tornar os dias de Azeitona confortáveis. Ele comprou cobertores macios e petiscos especiais, e sempre que possível, tentava levar o cachorro ao parque. A amizade deles era uma fonte de força, e mesmo nos dias mais difíceis, o amor que compartilhavam iluminava suas vidas.

Certa manhã, enquanto o sol nascia, Abelardo acordou e percebeu que Azeitona não estava ao seu lado. Um frio na barriga tomou conta dele. Ele se levantou e procurou por toda a casa, até que encontrou seu querido cão deitado em sua cama, respirando calmamente, mas com um olhar distante. Abelardo se ajoelhou ao lado dele, acariciando sua cabeça.

"Oi, meu velho amigo," disse Abelardo, a voz trêmula. "Eu estou aqui."

Azeitona levantou a cabeça lentamente, reconhecendo a presença de seu dono. Abelardo sentiu uma onda de nostalgia ao recordar todos os momentos que compartilharam. Ele se lembrou das corridas no parque, das risadas, e da profunda conexão que formaram ao longo dos anos.

Naquele instante, Abelardo decidiu que faria daquele dia um dia especial. Ele preparou um piquenique com os petiscos favoritos de Azeitona e os levou para o parque. Sentaram-se juntos sob a sombra de uma árvore, e Abelardo compartilhou histórias de suas aventuras, como se o tempo tivesse parado.

"Você sempre foi meu melhor amigo, Azeitona," ele disse, olhando nos olhos do cachorro. "E sempre será."

Enquanto o sol se punha, Abelardo percebeu que a luz nos olhos de Azeitona estava começando a se apagar. O amor que compartilhavam era eterno, e ele sabia que, não importava o que acontecesse, Azeitona sempre estaria em seu coração.

Uma onda de tristeza envolveu Abelardo. O peso do tempo, das memórias e da iminente perda o atingiu como um soco no estômago. O amor que sentia por aquele cachorro era tão profundo que parecia quase insuportável.

"Eu não sei o que vou fazer sem você," ele murmurou, a voz tremendo. "Você é tudo para mim."

A tristeza começou a se transformar em um nó apertado no peito, e Abelardo sentiu seu coração disparar. Ele tentou ignorar, mas a sensação era esmagadora. O desespero de perder Azeitona era tão intenso que ele se viu lutando para respirar. 

"Por favor, não me deixe," implorou, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto. 

Nesse momento, a dor se intensificou, e, de repente, Abelardo caiu para trás, o coração não suportou a carga emocional. Ele caiu no chão, ainda segurando Azeitona em seus braços, o cachorro imediatamente percebendo a mudança. Azeitona lambeu o rosto de Abelardo, como se tentasse acordá-lo, mas o homem não respondeu.

Naquela entardecer, enquanto a lua começava a iluminar o céu, Azeitona fechou os olhos pela última vez, com a cabeça apoiada no colo de Abelardo.

O parque, antes cheio de vida, silenciou. As risadas e os sons da natureza se tornaram um eco distante. As pessoas que passavam notaram a cena e correram em direção a Abelardo, mas era tarde demais. O amor incondicional que unia os dois havia se tornado um laço eterno, selado naquele último abraço.

As lágrimas começaram a cair dos rostos dos que assistiam à cena, muitos lembrando-se de seus próprios amores e perdas. Era um momento de profunda conexão, uma lembrança de que, mesmo em sua fragilidade, o amor pode ser uma força poderosa e transformadora.

Para aqueles que testemunharam a cena, nada seria igual. A história de Abelardo e Azeitona se tornaria uma lenda local, um exemplo de amor puro e incondicional que transcendeu a barreira entre o homem e o animal, mostrando que, mesmo em sua diferença, eles eram iguais na profundidade de seus sentimentos.

E assim, juntos, eles deixaram este mundo — um em um último suspiro em um amor que nunca morreria. O parque, repleto de memórias, agora guardaria para sempre a essência daquele amor imenso, imortalizado no coração de todos que tiveram a sorte de conhecer a história de Abelardo e Azeitona.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.


Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Daniel Maurício (Poética) 83


O poeta Daniel Mauricio é natural de Jaguariaíva/PR, em 1968, Graduado em Letras - UFPR; Administração de Empresas - FESP; Direito - FARESC; Pós-graduado em Gestão Administrativa e Tributária – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão de Pessoas e Qualidade no Setor Público - SPEI; Pós-Graduado em Gestão Pública de Tecnologia da Informação – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão Pública – FAEL. É Auditor de Tributos Municipais da Secretaria Municipal de Finanças da Prefeitura Municipal de Curitiba. Foi Integrante da Câmara Técnica Permanente da ABRASF – Associação dos Secretários de Finanças das Capitais, atualmente Chefe de Serviços do Setor de Processos Administrativos da PMC, Professor da Rede Municipal de Curitiba; Monitor na área de Linguística na Universidade Federal do Paraná, entre outros.
Pertence ao  Centro de Letras do Paraná; - Academia de Cultura de Curitiba; Confraria Brasileira de Letras; Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil; União Brasileira de Escritores etc.
Publicou livros de poemas: Mosaico de Sentimentos; Cacos e Retalhos; Gotas Poéticas; Origamis de Palavras; Palavras de Cheiro;  Miudezas do Coração; Poemininos; Poesias da Madrugada; Leve-me;  Alma Lírica; Olhares; e Amar É.

Renato Frata (Visita)

A poeira acumulada sobre a lápide saiu com água e vassouradas, na rápida faxina. Fazia algum tempo que não visitava o túmulo de meus pais; por isso, quase findo o expediente, juntei balde e vassoura para me colocar à tarefa. O anseio da chegada do outono já diminuía a robustez do sol, de modo que não me preocupei com seu excesso embora o calor desse o tom de tarde ensolarada com nuvens claras em vadiagem.

No céu de outono se escondem as maiores belezas, já dissera alguém e, naquele dia, quando o sol já projetava um barrado vermelho tingindo o horizonte, um azul acinzentado se alimentava em meio a uma ou outra nuvem de algodão a lhe quebrar a cor, o que significava que a seca se manteria. Absorto e em meio ao mudo silêncio de vozes no recanto, somente esfregares e piares se ouvia. De resto, a solidão com seu manto sóbrio junto ã beleza entristecida dos fachos de luz vazados como flechas fosforescentes entre ramos, esticados e debruçados alisando-se em túmulos impolutos e granitados, decorados com bronzes e cristais a mostrarem posse dos ocupantes e, também, porque não dizer, disseminavam-se a não ver diferença naquelas campas menores de acabamento simples, com pinturas gastas ou até sem elas, adornadas por cruzes de madeira e números enferrujados nas placas indicativas, e o fazia por igual, com a mesma beleza, sem se importar com essa exagerada diferença.

Alguns estavam limpos e asseados, outros, porém, á mercê das travas do tempo, carentes de limpeza e zelo no mais explícito descaso. Para aqueles fachos, porém, sem se aterem à distinção da aparência e pompa, todos mereceram clarões na proporção que os ramos permitiam ao quararem a luz e, convenhamos, poder notar essa beleza num fim de tarde, com lúmens tão nítidos a criarem visões esplêndidas na singela expressão da igualdade, o ignorar das especificidades tumulares direcionando-se a esmo como o sol ordenava, repetia aos meus olhos a certeza de que finda a vida tudo se iguala ao voltar ao pó, embora, pelo nascimento, cada qual devesse ser livre e igual em dignidade, em direito e em disposição. 

E aí me veio uma dúvida que hoje, centrado em mim, ponho-me em comiseração sem encontrar resposta entre muitas que bailam soltas em dança maluca: por que tanta diferença entre os seres, já que a vida reserva para si a busca incessante da sabedoria? Não deveria o homem, de qualquer estágio econômico e social saber sonhar com tudo o que existe e não apenas consigo e, com isso, se permitir àquilo que o sonho em si revela? Por que a vida não mostra a todos o mesmo caminho das oportunidades? Por que somente a morte e não a vida, nos iguala independentemente dos abrigos que nos dão no cemitério?

A luz projetada em leque iluminando pontos dispersos, somada à terra esfarelada em voejo (esvoaçante) pelo vento ao silêncio soturno do vazio na tarde modorrenta, à solidão penumbrosa de melancolia que escorria aos olhos do sol poente e à cor do esquecimento estampada em várias tumbas, criaram esse conjunto de indagações. Bom de observar e ruim de se ruminar, impossível de aceitar. A diferença na vida faz a constância! - é o ditado. Por isso nos acostumamos... e passamos ao largo, longe das cercas necessárias, cegos para a pobreza e particularidades humanas.

Pois, daí a pouco, sem menos esperar, uma aragem impregnada de poeira cheirando à terra saturou o ar e me fez sentir inusitadas sensações a me assomarem sem que desse conta da sua pujança. Se não digo bela, no mínimo era surreal pelo esplendor mostrado.

O sol, como a se despedir findo em encantos na realidade perversa que relegamos, pôs-me cruz no coração. 

Por que nunca notara tais diferenças? Se as notei, por que as releguei? Não saberia dizer. Foi tão instantâneo que a rapidez do tempo não me permitiu decifrar esses sentimentos, e nem sei ainda o porquê de ter juntado os elementos incomuns num momento tão íntimo que é a visita a falecidos.

A quietude ampliada pelo sol sendo absorvido num pré–crepúsculo em meio ao vento morno da boca da noite, como ordem sistemática, calaram-se os pássaros para fazer em mim daquele silêncio o grito da realidade. O tremular das chamas vivas no veleiro a suportar o buliçoso que as soprava, ajudou-me a concluir que o conjunto luz, poeira, silêncio e solidão, a despeito do que possam representar em outras situações, jamais seriam observados se eu estivesse envolvido apenas na tarefa de limpeza, oração e recolhimento a que me havia proposto. Mas esse silêncio morno que ali habita a fazer júbilo ao sol que se esvaía, talvez tenha aberto essa porta de observação para criar sensações nunca experimentadas como compusessem uma sonata muda do recordar para invadir minha alma, criar sinestesias e, com isso, colocar aumentativos nas próprias sensações como bússolas internas a nortearem os movimentos da alma.

De vassoura em punho, enquanto o silêncio de túmulos tristes falava na voz branda do vento e a solidão respondia na diminuição sistemática do lento apagar dos fachos, senti a aliança do sossego da morte com a imensa tristeza no encapelado mar da vida: nada demais em se tratando de um cemitério.

Não tive medo nem receio, mas condoimento pelos meus e por tantos que ali repousam em meio a essa diversidade própria do ser vivo e, parado em mim de compleição austera, notei que além daqueles elementos insistentemente presentes havia outro ao qual reputei interessante: o abandono. Sim, dos túmulos esquecidos. 

Eles representavam a indiferença, o afastamento, o ignorar a quem ali se pôs. Abandono, tenho por mim, é o nome que se dá à estação em que o trem da vida se acomoda para a eternidade ao passar pelas estações sombrias do Desespero, da Saudade, da Lembrança, da Desesperança, advindas dos estágios de deslembrança da perda de alguém.

Coisas do tempo, eu acho, que com suas manobras sobre nós reserva. A chegada desse trem mostra que ao escorrer tudo se vai para não retornar e, nesse chegar definitivo, apaga-se a lousa na qual se registrou a vida deixando, como sinal dessa passagem, apenas borrões incompreensíveis, tantas as razões, as (in)certezas, as dúvidas vivenciadas. Visão que pode ser comparada à lágrima que de tanto doer, seca e, sem se aperceber ao processo de secamento, inunda tanto o coração para fazê-lo transbordar para a alma, a quem se dá o nome tristeza, símbolo cogente (coercitivo), mas natural, do cemitério.
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes: 
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
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José Feldman (Pafúncio na Confraternização dos Jornalistas)


Era uma noite animada quando Pafúncio, o jornalista da revista “Fuxico & Fofocas”, se preparava para a confraternização anual dos jornalistas e editores. O evento seria realizado em um restaurante elegante, e Pafúncio estava decidido a fazer a melhor impressão possível, embora sua ideia de elegância envolvesse uma camisa com estampas de abacaxis e uma gravata que piscava.

Ao chegar ao restaurante, Pafúncio ficou boquiaberto com a decoração sofisticada. As mesas eram adornadas com velas e flores, e o cheiro da comida deliciosa pairava no ar. Ele rapidamente se juntou aos colegas, que já estavam se divertindo e brindando. “Estou pronto para a festa!” ele exclamou, levantando seu copo de suco, enquanto todos sorriam, um tanto apreensivos.

Assim que a comida começou a ser servida, Pafúncio, na ânsia de experimentar tudo de uma vez, decidiu se levantar para pegar mais pratos. No entanto, ao dar o primeiro passo, ele tropeçou no pé da mesa e foi projetado para a frente, caindo de cara sobre uma mesa próxima, que estava cheia de pratos de comida.

O som do impacto foi ensurdecedor, e todos na confraternização pararam para olhar, enquanto Pafúncio se levantava, com um pedaço de lasanha preso em sua camisa. “Desculpem, estava apenas testando o buffet!” ele disse, tentando rir da situação, mas a lasanha escorregou e caiu no chão, fazendo um barulho surdo.

Os colegas de Pafúncio estavam em choque, mas não puderam evitar as risadas. Ele, sem se dar conta do que acontecia, decidiu que precisava se recompor e se aproximou do garçom que passava com uma bandeja cheia de copos de vidro.

“Com licença, posso me servir?” Pafúncio perguntou, mas, ao estender a mão, acabou derrubando a bandeja, que se espatifou no chão, espalhando copos como se fossem confetes. O garçom, com uma expressão de desespero, olhou para Pafúncio, que apenas deu um sorriso nervoso.

“Foi mal! A banda de jazz deve estar ensaiando para uma apresentação!” ele disse, tentando desviar a atenção da cena caótica.

A confraternização continuou, e Pafúncio decidiu que era hora de se divertir com a comida. Ele pegou uma azeitona, mas ao tentar comê-la, a azeitona voou da sua mão e acertou em cheio a cara do editor, que estava sentado ao seu lado. O editor, um homem sério e de poucos sorrisos, parou por um segundo, surpreso, e então começou a rir, o que deixou Pafúncio ainda mais aliviado.

“Desculpe, editor! Era só uma azeitona, não uma proposta de matéria!” Pafúncio comentou, rindo junto com os outros. O clima descontraído estava de volta, mas ele ainda não sabia que a noite guardava mais surpresas.

Quando chegou a hora dos discursos, Pafúncio decidiu que também queria fazer uma participação especial. Ao pegar o microfone da mesa de som, ele puxou com tanta força que o aparelho se soltou, emitindo um ruído ensurdecedor que ecoou por todo o restaurante. Os convidados cobriram os ouvidos, e Pafúncio, sem saber o que fazer, começou a balbuciar palavras desconexas.

“Eu só queria dizer que… que a vida é como um abacaxi! Às vezes você precisa cortar para encontrar o doce!” ele gritou, enquanto o microfone continuava a emitir chiados.

As risadas se misturaram ao caos, e a cena ficou tão absurda que alguns convidados começaram a sair, ainda atordoados pela situação. Pafúncio, percebendo que seu discurso não estava indo como planejado, decidiu encerrar da melhor forma que sabia. “Obrigado, obrigado! E agora, uma salva de palmas para a comida! E para o garçom que ainda está de pé!” ele disse, enquanto aplaudia com entusiasmo.

No final da noite, enquanto todos tentavam se recuperar do que acabaram de presenciar, Pafúncio, com um sorriso radiante, se despediu dos colegas. “Foi uma confraternização incrível! Eu realmente trouxe a festa!” ele exclamou, enquanto os outros jornalistas balançavam a cabeça, ainda atordoados.

Ao sair do restaurante, Pafúncio olhou para o céu noturno e pensou em como a vida era cheia de surpresas. “Hoje eu definitivamente fiz história!” ele murmurou para si mesmo, sem perceber que, apesar de todas as trapalhadas, ele havia conseguido unir os colegas em risadas e diversão — o verdadeiro espírito da confraternização.

Após a noite caótica, alguns colegas sugeriram que Pafúncio deveria ser convidado para todas as confraternizações futuras. “Precisamos dele para manter o clima leve! Quem mais poderia fazer a festa ter tanta vida?” brincou um deles.

Após a confraternização, as reações dos colegas de Pafúncio foram uma mistura de risos, incredulidade e alívio. 

Vários colegas riram tanto que mal conseguiam se controlar. Assim que se afastaram do restaurante, começaram a relembrar os momentos mais hilários da noite. “Lembram da azeitona que acertou o editor? Eu nunca pensei que veria isso!” um deles comentou, enquanto todos riam.

A situação rapidamente se tornou material para memes internos na revista. Um grupo de jornalistas começou a fazer montagens engraçadas com fotos de Pafúncio em sua camisa de abacaxi, destacando momentos da festa. “Pafúncio, o rei das confraternizações!” virou uma piada recorrente.

Enquanto caminhavam para seus carros, alguns jornalistas sussurravam comentários sobre as trapalhadas. “Acho que ele deveria ser nosso correspondente em festas de gala,” disse um. “Pelo menos teríamos boas histórias para contar!”

No dia seguinte, a história da confraternização tomou conta do escritório. Durante o café da manhã, todos estavam comentando sobre os eventos da noite anterior. “Se Pafúncio não tivesse caído na mesa de comida, não teríamos nada para rir hoje!” disse um editor.

Assim, as trapalhadas de Pafúncio se tornaram uma lembrança divertida e uma forma de fortalecer os laços entre os colegas, mostrando que, no fundo, o que contava era a diversão e a camaradagem — mesmo que isso significasse algumas lasanhas e copos quebrados pelo caminho.
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Fontes 
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 
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Vereda da Poesia = 190 = Carolina Ramos



Nilto Maciel (Carlim)

Apesar de muito vivido, Carlim não entendia quase nada do que falavam as pessoas. Nem mesmo porque o chamavam dos mais variados nomes e nunca de Carlim. Aliás, esse nome ele mesmo se deu.

Andava um dia perdido, porém satisfeito, quando parou junto a um muro e sua sombra. Só queria descansar e situar-se. Talvez não estivesse tão longe de casa. Isto é, de seus amigos, da rua onde costumava dormir.

Recostado ao muro, ouviu vozes de crianças. Faziam perguntas a uma mulher. Gritavam, riam, num vozerio babélico. A moça falava do Sacro Império Romano Germânico. De imperadores, reis, príncipes. De Carlos V, Maximiliano, Borgonha, Solimão, etc. Palavreado difícil, nunca antes ouvido.

Curioso, Carlim procurou ver as crianças e a moça. Descobriu uma janela. Primeiro viu a professora. Falava sem parar, explicava, lia. A certa altura, apontando para uma figura do livro, disse: este é Carlos Quinto. Porém, viu Carlim e nele fixou o olhar. Mirou-o profundamente. E havia tanta ternura (ou tanta piedade) em seus olhos, que aquele instante Carlim sentiu como sendo o seu batismo. Sentiu-se filho, sentiu ter tido mãe. Pois os olhos da moça lembravam os de outra...

A mãe de Carlim morreu debaixo de um carro. E ninguém parou para socorrê-la ou remover seu pobre corpo a lugar seguro. Carlim ainda tentou arrastá-la para a calçada. Por um triz, não morreu também.

Sim, Carlim não entendia quase nada do que falavam as pessoas. Nem do que faziam. Mesmo os gestos e as palavras mais repetidas. “Fulano não vale nada. É um cachorro”. Quando se aproximava de alguém, era enxotado. “Sem vergonha, vira-lata, cão-sem-dono”.

Carlim procurou os amigos. Quem sabia o significado de cão-sem-dono? E passaram a conversar mais. Precisavam se unir, lutar por direitos básicos: casa, comida, carinho, etc. Propuseram a criação de uma sociedade. Alguém brincou: Sociedade dos Cães-Sem-Dono.

A reação dos “outros” não tardou. Devem ter visto Carlim na televisão. Nada de casa, comida e carinho para aqueles vagabundos. Nada de nome. Quem vivia na rua era cão-sem-dono. Portanto, sujeito a comer lixo, levar pontapé, morrer debaixo dos carros. Além do mais, não havia casa para todos. Se aqueles sarnentos deixassem as ruas, eles, os “outros”, estariam perdidos. Adeus casa, comida, carinho, nome...

Pobres de tais rebeldes! Pois muitos foram considerados doidos e, por isso, mortos. Passavam dias e noites a latir, protestar. Cachorros doidos!

Em compensação, Carlim e seus amigos continuariam ao léu, perdidos nas ruas. E a toda hora morre um deles debaixo dos carros. Ontem mesmo foi a vez de Carlim.
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Nilto Maciel nasceu em Baturité/CE em 1945. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Em parceria com outros escritores, no ano de 1976 criou a revista Saco. Transferiu-se no ano seguinte para Brasília, trabalhando na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Em 2002 foi para Fortaleza/CE onde residiu até a sua morte em 2014. Venceu inúmeros concursos literários, e escreveu diversos livros, tendo contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. Além de contos e romances publicados, também Panorama do Conto Cearense, Contistas do Ceará, Literatura Fantástica no Brasil. Alguns livros publicados: Contos Reunidos vol. I, são os 66 contos escritos por Nilto em seus livros Itinerário (1974 a 1990), Tempos de Mula Preta (1981 a 2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). O volume II conta com 122 contos dos livros As Insolentes patas do cão (1991), Babel (1997) e Pescoço de Girafa na Poeira (1999).
Nilto possui esta capacidade de fazer com que nossas almas percorram desde um estado de profunda tristeza ao de êxtase. Não é apenas um escritor, são muitos escritores dentro de um só. A cada conto terminado, aflora o anseio pelo próximo. Aonde Nilto nos conduzirá agora? Cada conto é um conto, que faz com que nossa imaginação nos leve às vezes a adentrar dentro dele e participar, deixando que nos levemos pelo seu encanto, pela sua linguagem simples e deliciosa.” (José Feldman, em Nilto Maciel, o mago das almas, 18/12/2010)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Pescoço de girafa na poeira. Brasília: Bárbara Bela, 1999. p.69-70. Enviado pelo autor.

Hans Christian Andersen (As velas)

Era uma vez uma grande vela de cera, que conhecia perfeitamente seu próprio valor.

- Nasci de cera - dizia ela - e fui fundida em um molde. Dou melhor luz mais tempo que as outras velas. Meu lugar é no lustre ou no castiçal de prata.

- Que vida esplêndida! - disse a vela de sebo.- Eu sou de sebo - uma simples vela escorrida, mas tenho um consolo: valho um pouco mais que a vela de tostão, que só foi mergulhada no sebo oito vezes. para ficar de uma grossura conveniente. Ora, isso me basta! Não há dúvida  que pode mesmo escolher o seu lugar neste mundo... As velas de cera vão para o salão, são postas no lustre de cristal enquanto eu fico na cozinha. Mas ora... afinal a cozinha é também um bom lugar: não é de lá que sai toda a alimentação da casa?

- Mas há coisa mais importante do que o alimento? - retrucou a vela de cera. É a vida social! Ver os outros brilharem, enquanto a gente mesmo está resplandecendo! Esta noite vai haver um baile na casa, e daqui a pouco virão buscar-me - a mim e a toda a minha gente.

Mal acabara de dizer essas palavras, vieram mesmo buscar as velas de cera; mas também levaram a de sebo. A própria senhora tomou-a nas mãos delicadas e levou-a para a cozinha. Lá estava um menino com uma cesta, que encheram de batatas; puseram nela também algumas maças. A bondosa dama deu tudo aquilo ao menino pobre:

- Toma também esta vela, meu menino. Tua mãe fica a trabalhar até altas horas; a vela lhe poderá ser útil.

A filhinha da casa, que estava ao pé da mãe, disse, radiante de alegria:

- Eu também vou ficar acordada até altas horas! Temos um baile hoje e eu vou levar no vestido compridas fitas vermelhas.

E que luz lhe iluminava o rosto! Que alegria! Nenhuma vela de cera pode resplandecer como os olhos de uma criança!

E a vela de sebo pensava consigo:

- Que coisa magnifica! Nunca hei de esquecer disto - e nunca mais tornarei a ver coisa semelhante!

Meteram-na na cesta, fecharam a tampa e o menino carregou tudo para casa.

- Quem sabe onde irei agora!... Meu destino é ir para casa de gente pobre. Talvez nem me deem sequer um castiçal de latão - enquanto a vela de cera lá está, rodeadas de prata, e vendo só gente fina... Como há de ser lindo espalhar luz para gente distinta! Mas minha sorte é ser de sebo e não de cera!

E a vela chegou à casa da gente pobre: uma viúva e três filhos, que moravam num quartinho muito baixo, bem defronte ao palacete.

- Deus abençoe a bondosa senhora pelo seu presente! - disse a mãe. - Uma vela esplêndida, que pode ficar acesa até altas horas da noite!

E acendeu a vela.

- Arre! - disse ela. - Que mau cheiro deitou esse fósforo com que ela me acendeu! Lá no palacete ninguém se atreverá certamente  oferecer coisa semelhante a uma vela de cera!

Lá também tinham acendido as velas, que derramavam luz para a rua. Vinham chegando, todas sacolejantes, as carruagens que traziam os convidados, vestidos de gala; e a música retinia.

- Lá começa a festa - pensou a vela de sebo.

E, lembrando-se do rosto radiante da meninazinha, que brilhava ainda mais que todas as velas de cera, repetiu:

- Nunca mais tornarei a ver uma coisa assim!

Naquele instante entrou a filhinha menor da casa pobre. Abraçou os irmãos, dizendo que tinha uma notícia muito importante- tão importante que só podia comunicá-la em segredo. E cochichou:

- Imaginem! Hoje vamos comer batatas assadas!

E o seu rosto irradiava de tanta felicidade. A vela desprendeu mais brilho e viu uma alegria tão grande como a que presenciara no palacete, quando a menina rica disse:

- Hoje há um baile em casa e vou usar um vestido com compridas fitas vermelhas!

- Será então uma felicidade tão extraordinária comer batatas assadas? Porque noto que aqui, pelo menos entre as crianças, reina a mesma alegria que lá...

Nisto deu um espirro - isto é, respingou, pois  a vela de sebo não pode fazer mais que isso.

Puseram a mesa e comeram as batatas. Que saborosas! Foi um verdadeiro festim; depois cada criança recebeu uma maça. E a menor recitou:

" Graças Te dou, Pai do Céu,
Por este alimento,
Que nos deu Tua bondade,
Pra nosso sustento.
Amém!”

 - Mamãe, mamãe! Não recitei bem os versinhos?
 
 - Não é nisso que deves pensar, filhinha: lembra-te somente do bom Deus,  que te deu o que comer.

Depois as crianças foram para a cama, e com um beijo da mãe, adormeceram logo.

A senhora ali ficou sentada , a coser, até altas horas da noite: precisava ganhar com que comprar o sustento para si e para as crianças.

Do palacete, lá do outro lado da rua, vinham os sons da música e o brilho das velas. As estrelas cintilavam acima de todas as casas, das da gente rica e das da gente pobre, luzindo com fulgor igual, com igual simpatia.

- Afinal, a noite foi bem agradável - declarou a vela de sebo. - Acaso as velas de cera, lá no castiçal de prata, terão tido momentos melhores? Gostaria bem de sabê-lo antes de me extinguir...

Pensava nas duas crianças, igualmente felizes, uma - a meninazinha iluminada pelas velas de cera; a outra - radiante à luz da vela de sebo...

E acabou-se a história.
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Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes>
 Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
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