domingo, 11 de junho de 2023

João do Rio (Velhos Cocheiros)

Outro dia, ao saltar de um tilburi no antigo Largo do Paço, vi na boleia de um vis-à-vis pré-histórico a ventripotência (
que tem estômago forte) colossal de um velho cocheiro. As duas mãos gorduchas à altura do peito como quem vai rezar, enfiado numa roupa esverdeada, o automedonte (cocheiro) roncava. Seria uma recordação literária ou a memória de uma fisionomia de infância? Seria o cocheiro da Safo, o irmão mais velho de Simeon, ou simplesmente um velho cocheiro que eu tivesse visto na doce idade em que todas as emoções são novas? Era difícil adivinhar. Para os cérebros cheios de literatura, a verdade obumbra-se (nubla-se) tanto que é sempre preciso perguntar por ela como o fez Poncius Pilatos diante de Deus.

Fui para perto do vis-à-vis, bati na perna do velho. Estava feio. O ventre, um ventre fabuloso, parecia uma talha que lhe tivessem entalhado ao tronco; as pernas, sem movimento, pendiam como traves. Os braços, extremamente desenvolvidos, eram quase maiores que as pernas, e a cara vermelha, com tons violáceos, lembrava os carões alegres do Carnaval. Abriu, entretanto, uma das pálpebras com mau humor e resmungou:

– Pronto!

– Então você não me conhece mais?

– Eu não, senhor.

– Pois eu conheço a você desde menino.

Ele abriu de todo as pálpebras pesadas, um sorriso de alegre bondade passou-lhe pelo lábio.

– Saiba vossa senhoria que bem pode ser! Toda essa gente importante de hoje eu conheci meninos de colégio!

Não sei por que estava meio emocionado.

– E já fez ponto na Estrada de Ferro?

– Há vinte anos, eu e o Bamba.

Encostei-me à boleia do antigo vis-à-vis. Havia vinte anos sim, havia vinte anos que no passar pela estação de carros os meus olhos de criança se fixaram curiosamente na fisionomia jocunda (
alegre) de um velho, que já naquele tempo era velho e já naquele tempo gravemente roncava na boleia de um carro! Havia vinte anos.

É como lhe digo, afirmava ele. Conhece a filha do barão de Cotegipe? Eu vi aquela santa criatura menina. Conhece o filho do grande ministro João Alfredo? É meu amigo, dá-me dinheiro sempre que vem ao Rio. Olhe, há de conhecer o Dr. Fernando Mendes de Almeida e mais o irmão Dr. Cândido. Pois quando eu servia o pai, eles eram meninos de colégio. Há meses eu disse ao Dr. Fernando tudo isso e ele foi dar um passeio no meu carro e deu-me doces, vinho do Porto, dinheiro. Estava admirado e ria...

– Como se chama você?

– Braga, eu sou o Braga.

Pobre velho cocheiro a quem se dá como às crianças doces de confeitaria! Eu continuava encostado ao vis-à-vis, imensamente triste e com a mesma curiosidade de criança.

– Trabalho neste ofício desde 1870. Tinha vinte anos, quando comecei. Toda a minha mocidade foi acabada aqui.

– E não estás rico?!

– Rico?

Soltou uma gargalhada sonora que lhe balançou o ventre e avermelhou mais. Os seus olhos pequenos olhavam-me da boleia com superioridade compassiva. É difícil encontrar um cocheiro de carro que tenha feito fortuna. Enriquecem os de carroça, os de caminhões. De carro, se citam dois ou três em trinta anos. O ofício, longe de tornar ágeis os corpos, faz lesões cardíacas, atrofia as pernas, hipertrofia os braços, de modo que quinze anos de boleia, de visão elevada do mundo, ao sol e à chuva, estragam e usam um homem como a ferrugem estraga o aço mais fino. O Braga era um velho trapo encharcado. Tanto ádipo (
relativo à gordura) dava-me a impressão de que o pobre velho devia ter água nos tecidos.

Eu continuava a ouvi-lo. Naquela boleia falava um cultor do quietismo, um renanista (
relativo a Ernesto Renan) que tivesse compreendido o nirvana. Nem uma ambição, nem um ódio: apenas um sorriso de quem não se rala com a vida e vem para a rua almejando não encontrar fregueses, para dormir mais à vontade.

– Ah! Este carro! – murmurei. – Quanta história podia você contar. Quantas cenas de amor, quantos beijos, quantas angústias e quantos crimes!

– Este carro não; outros, ou antes, eu. Fui de cocheira, fui de casa particular e trabalhei por minha conta. Quando caiu o ministério João Alfredo fui eu quem o levou ao Paço. Agora essas coisas de beijos – noutro tempo era nas berlindas.

– Tinha vontade de saber a sua opinião.

Ele arregalou muito os olhos.

– A respeito de beijos? Sei lá!

– Não, a respeito da Monarquia e da República.

Ele sorriu, pensou.

– A Monarquia tinha as suas vantagens. Era mais bonito, era mais solene. Não vá talvez pensar que eu sou inimigo da República. Mas recorde por exemplo um dia de audiência pública do imperador. Que bonito! Até era um garbo levar os fregueses lá. Ó Braga, onde estiveste? Fui à Boa Vista! Hoje todo o mundo entra no palácio do Catete. Não tem importância... É verdade que o Obá entrava no Paço. Mas era príncipe. E então para conhecer homens importantes! Não precisava saber-lhes o nome. Os ministros tinham uma farda bonita, o imperador saía de papo de tucano. Bom tempo aquele! Hoje a gente tem de suar para conhecer um ministro. Parecem-se todos com os outros homens.

– Talvez não sejam, Braga.

– Quanto às capacidades não digo nada...Mas veja. Por estar perto da secretaria é que conheço o Müller, um magro, que reforma a cidade. E de todo o ministério só ele. Se isso era possível em 1880! Depois, quer saber? A República trouxe a Bolsa, uma porção de cocheiros estrangeiros, uns gringos e ingleses de cara raspada, com uns carros que até nem eu lhes sabia o nome!

Despegou as mãos de sobre o peito.

– E vão morrendo todas as pessoas notáveis, já não há mais ninguém notável. Só restam o sr. visconde de Barbacena, o sr. marquês de Paranaguá e mais dois outros.

Houve uma longa pausa. Como este cocheiro estava do outro lado da vida! Quinze anos apenas tinham levado o seu mundo e o seu carro para a velha poeira da história! Ele falava como um eco, e estava ali, olhando o boulevard reformado, pensando nos bons tempos das missas na catedral e das moradas reais, hoje ocupadas pela burocracia republicana.

– O Braga é o mais velho cocheiro do Rio?

– Não senhor; é o Bamba, que começou em 1864.

Neste momento, outros cocheiros moços, limpos, de grandes calças abombachadas foram aproximando os carros, com vontade de saber o que retinha um cavalheiro tanto tempo a prosar com o velho. Logo se fez um barulho de rodas e de vozes.

– Ó Braga, ó velho, despacha o freguês! Tem aqui um carro bom, vossa senhoria! O Braga, posso servir?

Braga cruzou outra vez as mãos no peito, com um sereno olhar indiferente. Que dor o havia de trespassar! Murmurei com pena:

– Bom, adeus, meu Braga. E onde para o Bamba?

– Na Estrada, para na Estrada. Às ordens do menino, respondeu ele do alto.

Já agora era impossível deixar de ver o outro, de conhecer o mais antigo cocheiro do Rio! Tomei um bonde da Central. A tarde morria em lento e vermelho crepúsculo. No céu brilhava a primeira estrela trêmula e luminosa, e os combustores (
postes de iluminação pública)  acendiam a sua luz azul quando saltei na Praça da Aclamação. E foi um grande trabalho. Eu ia de carro em carro.

– Pode informar onde para o Bamba?

Uns diziam que o Bamba caíra e fora para o hospital, outros, os moços, riam de que se fosse procurar um cocheiro inútil como o Bamba, outros asseguravam que o velho não trabalhava mais. Afinal, quase defronte da porta do Quartel, encontrei um landau (
Carruagem de quatro rodas, que tem no interior dois bancos frente a frente) empoeirado, desses que parecem arcas e acomodam à vontade seis pessoas.

Da boleia um mulato velho falava para um gordo ancião, muito gordo, muito estragado...

– Sabe você dizer quem é e onde está o Bamba?

O mulato riu.

– É este, patrão...

O gorducho abriu a boca, onde faltavam os dentes.

– Já não trabalho de noite: tenho 70 anos. Não vejo. Desde 1864 que estou no serviço. Outro dia quase morro; caí da boleia. Tenho as pernas duras.

– Bamba, meu velho...

– Sou o primeiro cocheiro, o mais velho, não há nenhum mais velho...

Eu voltei-me para o mulato, interroguei-o quase em segredo:

– Mas que diabo vem ele fazer aqui, assim?

O mulato sorriu com tristeza.

– Sei lá! É o cheiro, vossa senhoria, é o cheiro! Quando a gente começa nesta vida, não pode viver sem ela...É o cheiro.

A praça vibrava numa estrepitosa animação, os combustores reverberavam em iluminações fantásticas, e, só, no céu calmo, como uma hóstia de tristeza, a velha lua esticava a triste foice do seu crescente.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João do Rio. A Alma Encantadora das Ruas. Publicado originalmente em 1908.

O mercado editorial sob a ótica dos escritores (Caio Riter em Xeque)


Caio Riter nasceu em Porto Alegre. Escritor, doutor em Literatura Brasileira e pós-doutorando em Escrita Criativa, publicou mais de 60 livros, dentre eles infantis, juvenis, contos e poesias. Recebeu diversos prêmios, incluindo os prêmios Açorianos, 1º Barco a Vapor, Ages – Livro do ano, Orígenes Lessa, Ofélia Fontes, além do Selo Altamente Recomendável da FNLIJ. Teve seus livros inclusos nos Catálogos de Bolonha e White Ravens. Vários de seus livros foram selecionados para programas governamentais, como o PNBE e o Kit Escolar BH. Além de escritor, é professor e ministra oficinas, cursos e palestras sobre criação literária por todo Brasil.

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Publicar um livro é um sonho de muita gente, o que faz com que amantes da leitura e da escrita por vezes caiam em grandes armadilhas. Para discutir este complexo mercado editorial, ainda mais em tempos de livros digitais, iniciamos hoje uma série de entrevistas com escritores de diferentes trajetórias sobre carreira, publicação e o futuro do livro. A primeira entrevista é com Caio Riter, professor, escritor premiado, com diversos livros recomendados pelo PNBE e presidente da Associação Gaúcha de Escritores.
 
Entrevista realizada por Marcelo Spalding

Como e quando surgiu a vontade de ser escritor? Você já iniciou publicando em livros?

Olha, quando puxo pela memória, não encontro um marco da minha decisão de ser escritor. Acho que a vontade foi se instalando aos poucos, veio devagarzinho e acabou se apossando graças ao tanto de livros que foram fazendo parte da minha vida como leitor. Aí, um rascunho aqui, outra ameaça de texto ali, fui começando a acreditar que poderia ser escritor, que poderia ser lido também. Então, fiz oficina literária com o Assis Brasil na PUC. Porém, minha primeira publicação individual, ocorreu apenas em 1994, com o livro infantil, hoje esgotado, "Um Palito Diferente".

Você tem livros publicados por importantes editoras, mas iniciou publicando por conta própria. Quais as principais vantagens de estar vinculado a uma editora tradicional?

Na verdade, meus dois primeiros livros, "Um Palito Diferente" e "A menina que virou bruxa" não foram edições por conta própria. Foram publicados pela Editora Interpretavida, que estava iniciando seu plano de edições. A editora, infelizmente, durou pouco, publicando um catálogo bastante pequeno. Após isso, é que acabei me vinculando ao projeto de edição da WSEditor. Em 2005, parei de editar por conta própria, publicando livros com a Artes e Ofícios e com a Paulinas. Hoje publico por mais de dez editoras. Creio que publicar por uma editora comercial, cujo processo de edição envolve várias pessoas, depende de muitos aceites, acaba por dar ao texto maior credibilidade junto ao público e junto à crítica, embora o meu primeiro livro premiado, "A cor das coisas findas", ter sido publicado, inicialmente, por conta própria. Além disso estando no catálogo de um editora tradicional sempre é maior possibilidade de distribuição, e isso acaba fazendo com que o livro possa cumprir, de forma mais intensa, sua função primeira: ser lido pelo maior número de pessoas possível.

Vamos falar um pouco sobre as editoras tradicionais. Como você chegou à primeira publicação? Foi enviando originais às editoras ou foi pelo Barco a Vapor?

Meu primeiro texto publicado por editora tradicional foi através do envio de um original para a Paulinas (na verdade, enviei três e um foi aceito: "O fusquinha cor-de-rosa"). O segundo produzi por convite da Editora Artes e Ofícios. Porém, após vencer o Barco a Vapor, as coisas começaram a acontecer de forma mais tranquila. Várias editoras do centro do país e algumas do RS me procuraram interessadas em originais. Outras encomendaram textos que se adequassem a seus catálogos.

A partir de que momento você percebeu que sua carreira deslanchou? Foi a partir de algum prêmio importante?

O Prêmio Barco a Vapor foi fundamental em minha carreira. Fui o primeiro brasileiro a ganhá-lo e, quando isso ocorreu, editores do centro do país estranharam que eu já publicasse há dez anos, sem ser conhecido fora do RS.

Nas editoras tradicionais, como se dá o pagamento de cachê para a realização de palestras e oficinas em escolas?

Normalmente, o cachê está ligado ao número de livros vendidos, oscilando. Todavia, normalmente fixo um valor mínimo, a fim de não fragilizar o mercado, visto que entendo que visitar escolas e feiras não seja uma função do escritor. Escritor escreve, as demais atividades para as quais é convidado devem, portanto, ser remuneradas. Para fixar meu cachê, normalmente levo em conta o número de atividades, sua natureza, a distância do local do evento, o público.

Quanto as editoras têm oferecido de direito autoral para o escritor de livro infantil?

Meus contratos, em sua maioria, são de 10% de Direitos Autorais.

Para um autor reconhecido como você, vale mais a pena ser exclusivo de uma editora ou ter livros em diferentes editoras? Por quê?

Não curto exclusividade, embora já tenha recebido convite para tal. Creio que a não-exclusividade torna o autor mais livre para apostar em novos projetos, em novos públicos.

Você percebe alguma diferença importante entre publicar por grandes editoras nacionais ou com editoras regionais? Quais as vantagens e desvantagens das editoras nacionais?

Não há diferenças substanciais, pois as editoras gaúchas com as quais trabalho têm boa distribuição nacional. Hoje, o mais importante para o autor é mesmo a capacidade distributiva que as editoras têm, pois é a garantia de que seus textos estarão circulando e também disputando as compras governamentais em nível municipal, estadual e federal.

O que o autor deve cuidar no contrato da editora?

São tantos os detalhes. Eu sempre procuro garantir os 10% de DA, julgando que, caso algum ilustrador deseje DA, este deva ser negociado por ele com a editora e não comigo. Procuro que o contrato não seja por tempo muito longo, a fim de que, caso haja algum problema com a editora, o texto não fique atrelado por muito tempo a ela. Gosto também de olhar com certo cuidado os artigos que versem sobre tradução.

O que você responde para aqueles tantos que perguntam se dá para virar de literatura? E, acrescento eu, você acha que a publicação de livros impressos contribui com sua carreira profissional de professor?

Olha, se o escritor encarar a escrita como profissão, creio que viver de literatura é possível, sim. Para alguns, é mais fácil; para outros, mais difícil, tudo depende da forma como a carreira será conduzida. Depende dos prêmios ganhos, das vendas para governo que seus livros conquistaram. Quanto à tua segunda pergunta, sou daqueles que amam o livro impresso e que creem que eles terão vida longa. Sua existência é de suma importância para minha atividade como professor, afinal é o livro impresso que promete histórias ou poemas ao ser aberto em sala de aula. Há, ainda, certo encantamento com o abrir das páginas, e isso é fundamental na construção do ser leitor: a magia do abrir as páginas. Pode ser uma visão ingênua para muitos, mas para mim, como disse antes, é acreditar na magia, na sintonia que há entre o olhar que traduz as palavras e a mão que acaricia as páginas, que faz anotações. Adoro ler livros comentados pelos leitores anteriores a mim: eles narram histórias de leitura, caminhos, descobertas, que por vezes iluminam a minha, por vezes, contradizem minhas chaves de compreensão. E isso é rico demais. Sobretudo para quem pretende formar leitores.

sábado, 10 de junho de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 10

 

Camilo Castelo Branco (As ostras)


No Porto, as comoções que sacodem os nervos da grande cidade são raras, mas, se arrebentam, são a valer!

No princípio deste ano, estávamos todos quietos, com estas nossas caras cheias de ideal, grávidos de filosofias, hipocondríacos, ares ingleses, indigestos, mas, sobre tudo, bons vizinhos e inimigos de novidades.

A quarta página das gazetas andava, há muito, alugada aos vários barateiros, que se denominam numericamente como as dinastias, traspassando a sua qualidade de barateiros n. 1, n. 2, etc., à proporção que quebram, e vão transmitindo a genealogia dos epítetos, maneira discreta de esconder os nomes.

Eis que, inesperadamente, se anunciam em letras colossais as ostras.

E os literatos, encarregados de guiarem a corrente da opinião publica, escolhendo no seu guarda-joias a mais nítida pedraria de estilo, apregoaram as ostras como há dezenove séculos o fazia Horácio quando as afogava no falerno (
vinho produzido em Falerno/Itália) de Mecenas.

O localista (
redator de seção de jornal) do Primeiro de Janeiro, com pulso febril, e ternura pelo marisco, exclamou: «Abençoado o nome de quem quer que em tempos tão doentios nos trouxe medicina tão eficaz e preconizada!... Não são de Ostende as ostras que se nos oferecem, frescas, saborosas e provocadoras, pela manhã como leite de cabra, ao meio dia como o lunch (almoço) à inglesa, á noite como um restaurador das forças perdidas no labutar diurno. São de Montijo, igualmente boas, e igualmente irritantes. Vamos a elas!»

Vamos lá! – Conclamou toda a gente doentia, toda a gente em uso de leite de cabra, toda a gente que “lunchava” à inglesa, e, em suma, toda a gente que à noite costumava restaurar as forças, deitando-se a dormir, ou extraindo do goraz (
peixe) cozido o fósforo necessário à sua vida intelectual e física.

Desde o alvorejar (
alvorecer) das gazetas, confluíram á praça de D. Pedro todos os servos que superintendem na culinária das famílias. As massas que desembocavam das ruas circunjacentes davam a lembrar os comícios daqueles dias de vertigem cívica, lá quando os irmãos Passos abriam na viela da Neta os relâmpagos do Sinai, e a turbulência da liberdade ali vinha soltar um rugido e ameaçar os tiranos.

Não assim agora nestes dias em que o país, podre de feliz e anêmico da sua indigestão de prosperidade, procura restaurar-se pelo marisco.

De mais a mais, os diários tinham anunciado que as ostras eram gordas; e, sobre gordas, dizia o Primeiro de Janeiro, irritantes. Pela qualidade de gordas, o sorriso que brincava nos meus lábios, quando mandei o meu galego (
criado, pessoa sem muito nível cultural) comprar doze vinténs daquele remédio, era um sorriso de tão legitima candura como o leitor os tem visto nas bentas bochechas dos serafins que sobem de gatinhas pelas colunas dos altares. Quanto a irritantes, como essa virtude me não parecesse a mais sadia, mandei ao mesmo tempo comprar a linhaça correspondente.

E, enquanto o criado ia e vinha, consultei, para iludir a impaciência, os meus livros no que havia, através dos séculos, mais averiguado acerca das ostras. Li em Chernoviz que pode uma pessoa comer oito dúzias sem experimentar o mínimo incômodo. Oito dúzias – noventa e seis ostras, de manhã, como leite de cabra; noventa e seis, como lunch à inglesa; noventa e seis à noite para restaurar as forças: ao todo, duzentas e oitenta e oito ostras cotidianas que custam no depósito da praça de D. Pedro 3$840 reis.

É uma alimentação econômica e boa para fortalecer o estômago de um país pobre. Qualquer sujeito anêmico, pálido, que não possa com um gato por qualquer parte do mesmo, deve nutrir esperanças de que, no fim de um ano, tendo comido cento e cinco mil cento e vinte ostras gordas da praça de D. Pedro, que lhe custam um conto quatrocentos e um mil e seiscentos reis, pode gozar uma saúde mais ou menos galega.

Assim que o meu criado chegou com dezoito ostras por 240 reis, atadas na ponta de um lenço, à guisa de biscoitos de revalenta (
preparado de farinha de certos legumes e cereais), duvidei da gordura do testáceo (ostra), mas afaguei a charneira (união das duas partes da ostra) da concha bivalve, porque só de per si a concha tem virtudes medicinais cuja notícia eu envio aos risos jubilosos dos meus amigos. Tenho aqui a Ancora medicinal do grande médico Francisco da Fonseca Henriques, e nela a pag. 247, mihi, artigo Ostras, leio com estremeções (estremecimentos) de gáudio: As conchas das ostras queimadas são boas para as queixas das almorreimas (hemorróidas).

Isto é o que o Primeiro de Janeiro sabia de fundamento quando abençoou o inventor de remédio tão conveniente às doenças do tempo. Faz-se mister grande intuição médica de entranhas para diagnosticar hemorróidas universais na nação.

Das alegrias externas, passei a averiguar a gordura anunciada do testáceo hermafrodita.

Não me pareceu tão gorda a ostra espalmada na concha que pudesse disputar vantagens a um jantar do Ugolino de Dante na Torre de Piza.

Autorizado pelas ideias que formo de gordura, suspeito que o empresário destas ostras descobriu o segredo de repartir dez por cada casca; ou, negociando as cascas em Montijo, as encheu com amêijoas (
molúsculo comestível) do Cabedelo. É uma falsificação engenhosa que merece desculpa em quanto se conservar na família dos testáceos; mas desde que o único depositário das ostras portuenses começar a introduzir nas conchas das ostras pedacinhos de bucho de safio (peixe), carochas e grilos de salmoura, quer-nos parecer que uma dúzia destes covilhetes (pratinhos para doces) por oito vinténs não é barato, nem me garante a renovação do meu sangue depauperado.

Não obstante, o consumo de ostras no corrente mês, no Porto e arrabaldes, tocou uma cifra que seria fabulosa, se as consequências da irritação, previstas pelo Primeiro de Janeiro, se não manifestassem formidáveis, nos jeitos, nos ademanes (
trejeitos), nos esgares, nas crispações elétricas que faiscam dos olhos de toda a gente saturada das ostras do único depósito. Conhece-se que os insultos inferiores, que o pó da concha combate, se deslocaram, e evadiram a cúpula do edifício humano. Os sistemas nervosos, levados pela irritação a eletróforos (disco de resina que conduz eletricidade), tornaram-se engenhos luminosos que transcendem as mais fantásticas idealizações da pirotécnica. Esta galvanização de organismos extenuados é realmente um espetáculo que honra muito a ostra; mas que também pode vir a ser nocivo à saúde das almas.

Sei que temos recursos antiflogísticos (
eficaz contra inflamações) para combater as irritações, desde as cataplasmas de fécula até ás ventosas sarjadas; mas o emprego destes meios terapêuticos obriga as pessoas tímidas a andarem na rua com um alforje de drogas, como os antigos físicos, ministrando capilés (xarope adocicado) e orchatas (bebidas refrigerantes) a todos os sujeitos que denunciem instintos inflamados no último grau de irritação.

Em nome da moral pública, pedimos às pessoas irritáveis que se embebedarem em água de cevada, quando sentirem que a ostra se lhes insinua perfidamente nos seios do coração.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Camilo Castelo Branco. Noites de insomnia a quem não pôde dormir. Bibliotheca de Algibeira. Publicação Mensal n. 1 – janeiro. Porto; Braga: Ernesto Chardron, 1874.
Atualização do Português por J. Feldman.

Baú de Trovas LXV


Tem muito mais graça a vida
quando a gente tem com quem
repartir bem repartida
a graça que a vida tem.
A. A. de Assis
Maringá/PR
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Os aplausos me arrebatam!
Mas perdem toda a valia
quando os meus olhos constatam
tua poltrona vazia...
Almira Guaracy Rebelo
Belo Horizonte/MG
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Se há pedras na encruzilhada
do sucesso que procuras,
faze dela uma escada
para galgar as alturas
Antonio Valentim Rufatto
Bauru/SP
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O amor, para muita gente.
é diversão perigosa.
Quem não sabe ser prudente
transforma em espinho a rosa.
Arlene Lima
Maringá/PR
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Mil conquistas... sonhos vãos
que passaram como a bruma...
Eu apertei tantas mãos
e não segurei nenhuma.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG
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Vou, saudoso e abandonado,
tão sozinho pela rua.,,
Meu olhar, enfeitiçado,
busca teu rosto na rua.
Auxiliadora de Carvalho Lago
Belo Horizonte/MG
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Querendo o mundo alegrar,
Deus juntou perfumes, core.s,
e, para o poeta sonhar,
sorrindo criou as flores...
Célia Martins
Bauru/SP
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Ouço ainda a ressonância
das cantigas que cantei
nas tardes da minha infância
no jardim que eu tanto amei.
Conceição Parreiras Abritta +
Belo Horizonte/MG
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Ouvi o conselho do monge,
achei-o mais do que certo:
quem quiser chegar ao longe,
tenha sempre Deus por perto!
Dari Pereira
Maringá/PR
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Mais que migalha de um pão,
vai o faminto buscar
alguém que lhe dê a mão
que lhe permita... sonhar!
Dodora Galinari
Belo Horizonte/MG
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Renúncia é uma ponte estreita,
onde das extremidades,
pode-se ouvir sempre à espreita,
chorando duas saudades...
Ercy Maria Marques de Faria
Bauru/SP
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- "Onde está a felicidade?"
E sinto ouvir do Senhor:
" -Onde existir igualdade...
- e aonde existir o amor!"
Giovana Campos de Oliveira
Bauru/SP
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Das mensagens que mandaste
o tempo apagou as linhas,
mas lembranças que deixaste
jamais se apagam, são minhas...
Graziella Lydia Monteiro +
Belo Horizonte/MG
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Outono, linda estação,
onde todos, neste mundo,
sentem a enorme emoção
de um renovar mais profundo!

Helena de Barros Barbosa Moreira
Bauru/SP
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Eis um conselho eficaz
que proclamo com fervor:
somente se encontra a paz
pelos caminhos do amor!
Hélio de Aguiar
Bauru/SP
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Um grande amor não se esquece!
Nada no mundo o destrói!...
- Quanto mais longe, mais cresce!
- Quanto mais perto, mais dói!
Helvécio Barros +
Bauru/SP
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No brilho do sol ardente,
que expressa tanta alegria,
eu faço do amor ausente
a volta da fantasia.
Ieda Marine Souza Oliveira
Belo Horizonte/MG
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Nossa vida é dom divino,
cabe-nos cuidá-la bem
com amor e muito tino;
vivenciá-la também...
Irma Rangel Martins
Bauru/SP
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Sem alarde, sem barulho,
procuro um mundo perfeito...
Não deixo que o véu do orgulho
cubra a humildade em meu peito.
Ivone Taglialegna Prado
Belo Horizonte/MG
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Não há sorriso que emplaque
na comédia desta vida,
se na ironia da claque,
toda verdade é escondida!...
João Batista Xavier Oliveira
Bauru/SP
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Canta, canta o bem-te-vi
procurando por seu par.
Por que eu nunca me atrevi
cantar para te encontrar?
José Marques
Bauru/SP
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Na estrada, a perder de vista,
não vou caminhando a esmo,
cada passo é uma conquista
para o encontro de mim mesmo.
José Roberto Pereira de Souza
Bauru/SP
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Para o encontro da esperança,
eu procuro, num segundo,
ser apenas a criança
que acreditava no mundo.
José Valeriano Rodrigues +
Belo Horizonte/MG
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Nos momentos de incerteza,
eu renovo a confiança
de transformar a tristeza
em motivo de esperança.
Lucília Cândida Sobrinho
Belo Horizonte/MG
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"O que machuca é a saudade";
é o que todo mundo diz -
Só não a sente, em verdade,
alguém que não foi feliz...
Lucy Rangel Fraga +
Bauru/SP
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Se tens culpa, nunca apontes
com teus dedos a ninguém.
Existem dedos aos montes
a te apontarem também.
Lucy Sother de Alencar Rocha +
Belo Horizonte/MG
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Eu te amo tanto, mas tanto,
que já pus num pedestal
toda glória desse encanto,
que se tornou imortal!
Luiz Carlos Abritta +
Belo Horizonte/MG
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Encanto maior não há
que a pureza da criança
soletrando o beabá
na cartilha da esperança.
Luzia Aparecida João
Bauru/SP
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Uma lágrima sentida,
um sorriso, um bem-querer,
são detalhes de uma vida
que vale a pena viver!
Maria Dolores Paixão Lopes +
Belo Horizonte/MG
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Saudade! Guardo-a num lenço
que um dia orvalhei de pranto...
Tem o perfume do incenso:
misto de amargo e de santo!
Martinho de Abreu Carvalho +
Bauru/SP
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Sou poeta e trovador,
componho lodos os dias,
cantando alegria e dor
no compasso da Poesia.
N
elson Coimbra +
Bauru/SP
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Da placidez dos teus olhos,
negros como a escuridão,
encontrei, vencendo escolhas,
meu porto de salvação
Nidoval Reis +
Bauru/SP
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Toma o lenço. Enxuga o pranto...
Ninguém precisa saber
que, por amor, sofres tanto
e que eu te faço sofrer...
Pedro Coltro +
Bauru/SP
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Estamos nós dois juntinhos,
olhando o tempo passar,
felizes, nós dois, velhinhos.
que ainda somos um par!...
Perez Filho +
Bauru/SP
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É do romance envolvente
entre a terra e o lavrador
que a esperança da semente
se torna seara em flor.
Relva do Egypto Rezende Silveira
Belo Horizonte/MG
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Quando eu te encontrei na vida
vinha calmo e consolado:
e agora levo, querida,
o amor e a dor a meu lado
Rodrigues de Abreu +
Bauru/SP
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O dia estava passando
num silêncio tão profundo,
que escutei Deus conversando
do outro lado do mundo!...
Ronaldo Benevenuto +
Bauru/SP
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São testemunhas caladas
do nosso amor e carinho
as duas letras bordadas
no velho lençol de linho.
Thereza Costa Val +
Belo Horizonte/MG
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A vida nos faz promessas
de amor, sucesso, dinheiro;
nunca se sabe qual dessas
é descumprida primeiro...
Vânia Maria Menezes de Figueiredo
Bauru/SP
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Com fé no poder divino,
traço meus rumos assim:
jamais permito ao destino
fazer escolhas por mim!
Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte/MG
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Fonte:
Entregue por Carolina Ramos.
Carolina Ramos (org.). A Trova: raízes e florescimento. Santos/SP: 3D Stúdio, 2013.

Hans Christian Andersen (O Tesouro de ouro)

A mulher do tambor entrou na igreja. Viu o novo altar, com as imagens pintada e os anjos esculpidos em madeira. Os anjos representados na tela, de cores variadas e cercados de glória, eram tão belos como os esculpidos na madeira, e coloridos e dourados. O cabelo resplandecia de ouro, cheio de luz. Era um encantamento! Mas a luz do sol de Deus era ainda mais bela, quando penetrava mais, mais clara e mais vermelha, através das árvores sombrias, quando o sol se punha. É uma coisa grandiosa, olhar para o rosto de Deus? A mulher fitou o sol vermelho, e pôs-se a meditar profundamente: pensava na criancinha que a cegonha ia trazer. Alegrou-se a essa ideia, e continuou a contemplar o sol, desejando que a criança tivesse aquele esplendor, e se parecesse ao menos com algum dos anjos brilhantes do altar.

Quando ela segurou nos braços a criancinha e a ergueu para o pai, dir-se-ia que o menino era um dos anjos da igreja. Os cabelos pareciam de ouro, e luzia neles o esplendor do sol poente.

- Meu tesouro de ouro, minha riqueza, minha luz do sol! - disse a mãe, beijando os caracóis resplandecentes.

E ouviu-se no quarto um som de música e de canto, um som que simbolizava alegria, vida e movimento.O tambor rufava, o tambor de incêndio:

- Cabelos ruivos! O menino tem cabelos ruivos! Acredita na pele do tambor, e não no que diz a mãe! Ca-be-los-rui-vos!...Tu-ru-tu-tu! Tu-ru-tu-tu!

E a cidade repetiu o que o tambor de incêndio contava.
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O menino foi batizado na igreja. Deram-lhe um nome simples: chamava-se Pedro. A cidade inteira, também o tambor de incêndio assim o chamaram: Pedro, filho do tambor, o menino dos cabelos ruivos. Mas a mãe beijou-lhe a cabeleira ruiva, chamando-lhe:

- Meu tesouro de ouro.

Muita gente gravava o nome na rampa argilosa do desfiladeiro, para deixar nele uma lembrança. E o tambor disso consigo:

- A celebridade vale alguma coisa!

E lá gravou também o seu nome, e o do filhinho.

Vieram as andorinhas, que nas suas viagens tinham visto inscrições mais duradouras nas rochas e nas paredes do templo indiano: grandes feitos de reis poderosos, nomes imortais, tão antigos que hoje já ninguém pode decifrá-los, nem citá-los.

As andorinhas fizeram ninho no desfiladeiro, abrindo covas na encosta íngreme. As chuvas e a poeira, foram gastando e apagando os nomes, e assim se sumiram também os do tambor e de seu filhinho.

- Creio que o nome de Pedro ficará ali, talvez ano e meio. - dissera o pai.

Mas o tambor de incêndio pensou lá consigo:

- Tolo!

Contudo, limitou-se a dizer em voz alta apenas:

- Ra-ta-plan! ...Pa-ta-ra-tam, pa-ta-ra-tam!

Era um menino cheio de vida e de animação o filho do tambor, o menino dos cabelos ruivos. Tinha uma voz agradável, e sabia cantar; e cantava, como um passarinho na mata. Cantava, e no seu canto havia expressão.

- Pedro deve ser menino do coro, - disse a mãe - e cantar na igreja, perto dos lindos anjos dourados que se parecem com ele.

Mas as mulheres da vizinhança contaram que os trocistas da cidade o chamavam:

- Foguinho! Foguinho!

E os moleques da rua gritaram-lhe um dia:

- Não voltes para casa, Pedro! Se dormires na água-furtada, pegarás fogo no telhado, e o tambor de incêndio terá de rufar!

- Tratem vocês de se livrar das baquetas! - disse o menino.

E, mesmo assim pequeno como era, avançou valentemente, e deu um soco no ventre do que lhe ficava mais próximo.

O moleque sentiu vergaram-lhe as pernas, mas os outros aproveitaram bem as suas para correr em disparada.

O músico da cidade era um homem fino e distinto: era filho do limpador da prataria do rei. Gostava muito de Pedro, e levava-o às vezes à sua casa, e, pondo-lhe um violino nas mãos, ensinava-lhe a maneira de tocar. Parecia que o menino tinha alguma coisa nos dedos! É que ele não queria chegar apenas a simples tambor: aspirava ser um dia músico da cidade.

- Quero ser soldado! - disse ele certa vez, quando era ainda muito pequeno.

  Parecia-lhe a coisa mais linda do mundo carregar um fuzil e andar de farda e espada:

- Um, dois! Um, dois!

Mas o tambor de incêndio retrucou:

- Aprender antes a bater na pele do tambor: Dem-dem, de-ren-dem-dem! Vem! Vem!

- Ah! Se ele pudesse chegar a general, isso sim! - disse o pai. - Mas seria preciso que houvesse uma guerra.

- Deus nos livre! -  exclamou a mãe.

- Ora... nós não temos nada que perder.

- Sim! Temos o nosso menino!

- Mas se for para ele voltar general...

- Sem braços e sem pernas? - protestou ela - Não, senhor! Prefiro guardar o meu tesouro de ouro são e salvo!

- Trom! Trom! Trom! - rufou o tambor de incêndio, com todos os outros tambores.

Rebentara a guerra. Partiram os soldados, e com eles o filho do tambor. E a mãe chorava:

- Meu filho ruivo! Meu tesouro de ouro!

Mas o pai, em imaginação, via-o coberto de fama.  E o músico da cidade pensava que era uma lástima a sua ida para a guerra: devia ficar, e continuar a estudar música.
-----------

 - Foguinho! - diziam os soldados.
 
E Pedro achava graça.

Mas lá um ou outro dizia também:

- Pelo de raposa!

A isso o rapaz cerrava os dentes, e desviava os olhos: olhava para o vasto mundo, e desprezava o motejo.

Era um rapaz destro, de gênio alegre e sempre de bom humor - e é isto o melhor cantil, segundo dizem os soldados velhos.

Passou muitas noites deitado ao ar livre, no pó ou exposto à chuva, molhado até os ossos; contudo não perdia o bom humor, e as baquetas batiam:

- Tá-rá-tá-tá, tá-rá-tá-tá! Levantar ! Levantar!

Sim! Não havia dúvida: ele nascera para tambor!

Chegou o dia da batalha. O sol ainda não aparecera, mas despontara já a madrugada. O ar estava frio, mas a luta ardente! Aquilo não era cerração, não: era a fumaça da pólvora. Balas e granadas voavam, por cima das cabeças - e também para dentro da cabeças, e dos ventres e dos membros. Mas o avanço continuava. Um após outro iam caindo de joelhos, com a fronte ensanguentada e as faces brancas como a cal.  Mas o pequeno tambor tinha ainda a tez corada e saudável. Com alegre fisionomia olhava para o cão do regimento, que ia pulando, tão contente como se estivesse ali para distrair todo o mundo, e as balas que caíam à sua frente lhe servissem de brinquedo.

- Marcha! Avante! Marcha!

Eram essas as palavras de comando para o tambor. Não havia a palavra "recuar!"

Mas talvez chegasse a haver uma retirada, e quem sabe se não seria uma coisa sensata?

Pois veio a ordem: " Recuar!"

Mas o pequeno tambor bateu:

"Avante! Marcha!"

Assim compreendera ele a ordem. Obedeceram os soldados à pele do tambor. Foi um bom rufo, aquele, que deu a vitória aos que já estavam a ponto de ceder.

Perderam-se na batalha corpos e membros. Granadas arrancaram pedaços de carne sanguinolenta. Outras foram acender labaredas na medas de palha, para onde tinham arrastado os feridos, que ali ficariam abandonado durante horas - quem sabe se por toda a vida!
                                                        
De nada serve pensar nessas coisas, mas é impossível deixar de pensar nelas; mesmo longe da luta, na cidade tranquila, há quem nelas pense. Assim era com o tambor e sua mulher, porque Pedro estava na guerra.

- Também já estou farto de lamentos! - disse o tambor de incêndio.

Outro dia de batalha começou. O sol ainda não nascera, mas já chegara a madrugada. O tambor e sua mulher dormiam. Tinham falado no filho, como todas as noites: o filho, que estava lá longe, na mão de Deus. E o pai sonhou que a guerra estava acabada, e os soldados de volta, e entre eles vinha Pedro, com uma cruz de prata no peito. Mas a mãe sonhou que entrava na igreja, e via os anjos esculpidos e os pintados nos quadros, de cabelos cor de ouro; e  seu querido filhinho, o tesouro de ouro do seu coração, lá estava também no meio dos anjos vestidos de branco, cantando tão magnificamente como só os anjos sabem cantar. E, à luz do sol, ele acenou carinhosamente para a mãe.

  - Meu tesouro de ouro! - gritou ela - Agora Deus o levou!

Unindo as mãos, deitou a cabeça no travesseiro e rebentou em pranto.

- Onde jaz ele agora, entre tantos outros, na vala comum que abriram para os mortos? Ou talvez no fundo do banhado? Ninguém sabe onde é o seu túmulo: ninguém rezou uma oração junto dele!

E, silenciosamente, passou-lhe o padre-nosso pelos lábios. Ela curvou a cabeça, profundamente fatigada: e adormeceu assim.

Passaram-se dias, tanto na vida como nos sonhos.

Era noite. Sobre o campo de batalha erguia-se um arco-íris, que tocava a mata e o pântano profundo.

Diz a lenda - e o povo conserva a crença - que no ponto em que o arco-íris toca a terra, há um tesouro enterrado. E ali jazia mesmo um tesouro. Ninguém, a não ser sua mãe, pensava no pequeno tambor, e foi por isso que ela sonhou com ele.

Passaram-se dias, tanto na vida como nos sonhos.

Não lhe haviam tocado nem na ponta de um cabelo, de um daqueles cabelos dourados.

- Drum, drum, drem! Drum, drum, drem! Ele aí vem! Ele aí vem!

Assim teriam dito, assim teriam cantado o tambor de incêndio e a mãe, se o tivessem visto, ou se tivessem sonhado com ele!

Com vivas e cantos, adornados das cores verdes da vitória, regressavam os soldados. Terminara a guerra, assinara-se a paz. O cão do regimento vinha pulando na frente, fazendo círculo enormes, para tornar o caminho três vezes mais comprido.

Passaram-se dias, e semanas. Pedro entrou em casa dos pais. Vinha trigueiro, como um selvagem; o rosto resplandecia como a luz do sol, e os olhos claros olhavam em redor. A mãe estreitou-o nos braços, beijou-lhe a boca, os olhos, o cabelo ruivo. Tinha de novo o seu menino, que não ostentava no peito a cruz de prata com que sonhara o pai, mas conservava intactos os membros - o que a mãe não vira nos sonhos.

Era grande a alegria. Riam e choravam ao mesmo tempo. E Pedro abraçou o velho tambor de incêndio, dizendo-lhe:

- Pois ainda estás aqui, esqueleto velho?

Mas o pai fez o tambor rufar:

- Parece até um incêndio! Dia claro! Alegria nos corações! Ra-ta-plã, plã, plã!
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E então?

Então...Ora! Pergunta-o ao músico da cidade!

- Pedro vai muito acima de tambor! - dissera ele. - Pedro irá muito mais alto do que eu.

Ele era filho do homem que areava a prataria do rei! Mas tudo quanto ele gastara a metade da vida em aprender, aprendera-o Pedro em meio ano. Havia nele uma alegria, uma bondade íntima; luziam-lhe os olhos, tanto como o cabelo - não era possível negar.

   - Ele que mande tingir o cabelo. - disse a vizinha. - A filha do chefe de polícia fez isso e teve muita sorte: encontrou logo um noivo.

- Mas o cabelo ficou logo, logo, verde como lentilha-d'água, e tem de ser retingido de vez em quando.

- Ora, ela sabe dar um jeito. - replicou a vizinha.-Pedro também poderia arranjá-lo. Ele entra nas  casas mais importantes, até na burgomestre; e dá lições de piano à senhorita Lotte.

Como ele sabia tocar! Ah! Sim! Tocava do fundo do coração, e as peças mais lindas, que ainda não existiam escritas em papel pautado! Tocava nas noites claras - e também nas escuras. E a vizinha, e também o tambor de incêndio diziam:

- Que coisa insuportável!

Tocava de tal maneira, que as ideias se elevavam, e brotavam grandes planos de futuro: A celebridade!

Lotte, a filha do burgomestre, estava sentada diante do piano. Seus dedos finos dançavam sobre o teclado, de tal modo que o som ia ecoar no coração de Pedro. Aquilo parecia superior  às suas forças, e contudo, era sempre assim - sempre que ela tocava. Um dia ele segurou os dedos finos e a mão bem feita, e beijou-os, fitando os grandes olhos castanhos da moça. Só Deus sabe o que lhe disse, mas nós temos plena liberdade de adivinhá-lo. Lotte corou, corou, até a raiz dos cabelos mas nada disse. Nesse instante entrou gente estranha na sala; era o filho do conselheiro de Estado, um moço de testa branca, e alta, que se estendia tanto para trás, que ia quase até a nuca. Pedro ficou muito tempo ao pé de Lotte, que o olhava com olhares suaves.
                                                  
À noite, em casa, ele falou do vasto mundo, e do tesouro de ouro que estava escondido para ele, no seu violino.

A celebridade!

- Ra-ta-plã! Par-la-pa-tão, par-la-pa-tão!-  disse o tambor de incêndio. - Os negócios de Pedro não vão bem! Acho que há fogo na casa...

No dia seguinte a mãe foi ao mercado. Na volta, perguntou ao filho:

- Já sabes da novidade, Pedro? É uma novidade esplêndida! Pois a Lotte do burgomestre contratou casamento com o filho do conselheiro de Estado. Foi ontem à noite!

- Não! - brandou Pedro, levantando-se de um salto.

Mas a mãe disse:

- Sim! Foi! Soube-o da mulher do barbeiro: e ele mesmo ouviu a notícia da boca do próprio burgomestre.

Pedro, pálido como um cadáver, tornou a sentar-se.

- Que tens, meu filho? Que tens? Meu Deus!

- Nada, nada... Deixa-me em paz! - disse ele, com as lágrimas a lhe correrem pelas faces.

- Meu filho querido, meu tesouro de ouro! - dizia a mãe, chorando também.

Mas o tambor de incêndio cantou, embora só lá no seu íntimo:

- Lotte morreu, Lotte morreu! Acabou-se a canção!
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Mas a canção não se acabara, não! Pelo contrário, teve ainda muitos versos - os mais belos, o tesouro de ouro da vida.

- Ela está que parece doida, dizia a vizinha. - Todo o mundo tem de ler as cartas que recebe do seu tesouro de ouro, e ainda ouvir o que dizem os jornais a respeito dele e do seu violino. Ele lhe manda dinheiro, e a mãe bem precisa disso, desde que enviuvou!

- Pedro toca diante de imperadores e reis, dizia o músico da cidade. - A mim é que não tocou tal sorte! Mas ele é meu discípulo, e não esquece o velho professor.

E a mãe dizia:

- Deus sabe que seu pai sonhou que ele voltaria da guerra com a cruz de prata no peito... Não foi na guerra que a ganhou, mas de outra maneira muito mais difícil de obter! Agora tem a cruz de cavalheiro. Que pena que o pai não esteja aqui para vê-lo!

- Célebre! - disse o tambor de incêndio.

E a cidade natal repetiu-o:

- O filho do tambor, Pedro, o ruivo, que todos vimos- menino de tamancos, depois tambor, e depois, músico tocando nos bailes - Pedro é célebre!

- Ele tocou na nossa casa, antes de tocar para reis - disse a mulher do burgomestre. - Naquele tempo  andava louco pela Lotte... Sempre teve ambições elevadas. Era presunçoso, naquele tempo, e imaginava tanta coisa... Meu marido riu-se, ao ouvir aquelas tolices, Hoje, Lotte é conselheira de estado!

Sim: um tesouro de ouro fora depositado no coração, na alma da criança pobre que, quando era tamborzinho, rufou: " Avante! Marcha!" - dando o toque de vitória àqueles que estavam a pique de ceder. Havia um tesouro de ouro em seu peito; o vigor dos sons. Seu violino bramava, como se houvesse nele todo um órgão, como se sobre as suas cordas dançassem todos os duendes das noites de verão. Ouvia-se nele o canto do tordo, e a voz humana, clara e cheia. E passou pelos corações um encantamento; e o eco levou para longe, para os países estrangeiros, o nome de Pedro. Foi uma grande fogueira - a fogueira do entusiasmo.

- Além de tudo, ele está tão bem parecido! - diziam as moças, de todas as idades.

A mais velha até comprou um álbum para anéis de cabelo de celebridades, só para pedir um da rica, da esplêndida cabeleira daquele tesouro, daquele tesouro de ouro.

O filho entrou na casa humilde do tambor - distinto como um príncipe, mais feliz que um rei. Tinha os olhos claros, o rosto radiante como o sol. Estreitou a mãe nos braços. Ela beijou-lhe a boca ardente, chorando de alegria, como a gente só pode chorar quando é feliz... Ele acenou para todos os velhos móveis da sala - para o armário que guardava as xícaras de chá, para o vaso de flores, para o catre em que dormira quando era menino. Mas foi buscar o velho  tambor de incêndio, colocou-o no meio da sala, e disse, ao tambor e á mãe:

- Num momento destes, meu pai teria rufado o tambor. Vou eu fazê-lo agora.

E rufou o tambor. Foi um verdadeiro trovão dentro do tambor, que, de tão honrado que se sentiu, rasgou a própria pele. e dizia:

- Que magnífico pulso tem ele! Agora fico com uma lembrança dele para ao resto da vida! E espero que sua mãe também estoure de alegria, da alegria que lhe dá o seu tesouro de ouro!

E é esta a história de ouro.

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicado originalmente em 1867.

VII Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul/RS (Prazo prorrogado: 30 de setembro)


Para efeito deste concurso, entende-se por TROVA a composição poética (poema) de quatros versos (linhas) setissilábicos, rimando o 1° com o 3° e o 2° com o 4°, expressando um sentido completo.

Tema:
Nacional/Estadual /Internacional

Veteranos  e Novos trovadores:

Tema: – LIVRO (Lírica/Filosófica)


A palavra tema tem que estar na trova.

Máximo 1 trova

Prazo: 30 de setembro de 2023


Remessa pelo e-mail:

Fiel Depositária: Roberta Macho Silva

robertamachadosilva4@gmail.com

A festa de entrega de prêmios ocorrerá em data e local a serem designados pela entidade.

Haverão 5 trovas Vencedoras, 5 Menções Honrosas e 5 Menções Especiais aos trovadores.

Juntamente do concurso de trovas, neste ano, a Seção Cachoeira do Sul, está lançando um concurso paralelo com temática livre, poemas em versos livres, crônicas e contos.

Os poemas devem conter no máximo 25 versos. As crônicas, até uma página e meia com fonte 12, e os contos, até 3 páginas.

Os poetas podem participar em uma ou mais categorias. Haverão 5 premiações aos vencedores em prosas e versos livres.

O corpo de jurados será formado por trovadores de reconhecido valor literário, já premiados em diversos concursos, indicados pela entidade promotora do evento.

Os casos omissos serão resolvidos pela diretoria da entidade promotora do evento.

Jaqueline Machado
Presidente da Seção Cachoeira do Sul/ RS

Maiores informações em: tudoepossivelw7@gmail.com

Fonte: 
enviado por Jaqueline

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Adega de Versos 107: Washington Daniel Gorosito Pérez (México)

 

Teófilo Braga (A Estrela Dalva)

(CONTO MARÍTIMO DO SÉCULO XVI)


Nisto andava tudo, que se não poderiam por os olhos em parte onde se não vissem rostos cobertos de tristes lágrimas, e de uma amarelão, e trespassamento de manifesta dor, e sobejo receio que a chegada da morte causava, ouvindo-se também de vez em quando algumas palavras lastimosas, sinal certo da lembrança, que ainda naquele derradeiro ponto não faltava dos órfãos e pequenos filhos, das amadas e pobres mulheres, dos velhos e saudosos pais que cá deixavam, etc.
Hist. trágico-marítimo, t. I, p. 55.


O sol esmaltava as cores límpidas do horizonte com uns cambiantes de púrpura e de azul, cujo cariz (
semblante) incompleto e vago reflete a melancolia suave em que a alma se concentra nessa hora fugitiva da tarde. O horizonte fechava-se lentamente, como o véu de um templo que se cerra. As virações travessas da noite volitavam encrespando a face trêmula das águas, que lhes respondiam às caricias inquietas, confidenciando com um murmúrio sonoro e confuso. O galeão soberbo da Índia singrava ufano, buscando em proa a terra querida da pátria; levado nas asas das monções propícias, a vela branca desfraldada aos ventos, tinha o garbo da garça altaneira que se libra (equilibra) vaidosa por sobre as ondas, que ela vai roçando de leve. A flâmula ondulante, hasteada no tope do mastro de mezena (mastro de ré), serpeava nos ares como em adeus silencioso às ribas (ribanceiras) odoríferas do Oriente, a despedida ao país dos sonhos e das maravilhas. A natureza como que se absorvera nos encantos desta hora; havia um segredo íntimo em cada toada perdida deste concerto do declinar do dia.

Longo tempo um mancebo encostado à amurada do navio, com os olhos fitos na corrente das vagas, permanecera absorto num cismar incessante, como quem atava na mente as aparências de um sonho mentido, como quem procurava alentar a ultima esperança que prende à vida, e que é como a hera das ruínas. Conhecia-se-lhe na respiração comprimida no peito, que ofegava de cansaço, o esforço acintoso com que procurava afastar da lembrança um sentimento funesto.

A palidez retinta nas faces cavadas pelas insônias longas e aflitivas, era a expressão dos pensamentos tenebrosos, confusos, incoerentes, que vinham povoar-lhe a ansiedade das vigílias. Quem o visse sentiria uma dor igual aquela, uma vontade irresistível de entornar-lhe em sua alma o bálsamo das consolações, com a prodigalidade do afeto com que a moça desenvolta de Magdala vinha derramar aos pés do divino Mestre os perfumes inebriantes da sua urna de alabastro.

Quem o visse na mudez expressiva daquele desalento, no desamparo e soledade de todas as alegrias da vida, sentia-se levado para ele, como por um condão fascinador, que às vezes possuem certos olhares que ninguém pode fitar e de que se tem medo. A brisa fresca da noite, que soprava do poente, como trazendo-lhe o presságio do ocaso de suas esperanças, vinha volatilizar a lágrima tímida e ingênua que tremeluzia viva na pupila cintilante.

A este tempo apareceu sobre o convés do galeão alteroso (
imponente) um outro vulto, todo armado contra a rajada aspérrima (muito áspera) da noite, que se ia cerrando:

— “Ainda aqui, Fernão Ximenez? Embebido nesse longo cismar em que o passado se te afigura doloroso e feio? Para que foges de teu irmão? Bem vês que eu procuro distrair-te dessa agonia lenta que te vai minando a essência débil da vida, desse espasmo da atonia (
inércia) que produz em ti a mudez do sepulcro. O que tens tu em uma vida de criança, inocente, sempre desprevenida, para que o ocultes a teu irmão, ao amigo que sofre com o teu sofrimento, e que exulta com as tuas alegrias?

“ Uma ave, quando é levada para um país distante, longe do ninho que lhe ouviu balbuciar os primeiros trilos de amor, quando lhe falta a bafagem tépida das auras em que se espanejava contente, desfalece à mingua, prisioneira, ralada pela saudade pungente que lhe amofina o ser. Tu, pelo contrario, à medida que os aromas quase imperceptíveis da terra abençoada da pátria nos vêm dar força para afrontar as tormentas escuras, as cerrações e os cabos perigosos, perdes o ânimo ante uma dor imaginária, e deixas-te apossar de uma ânsia, que um instante só de reflexão tranquilizaria. Vamos, serena o teu espírito; seja-te o meu coração o porto almejado onde encontres abrigo. Que receias pois? Temes encontra-la na volta desposada, nos braços de outro? Conta-me a verdade toda; amas?"

— Se com vinte anos apenas haverá quem não tenha sentido ainda esse desvario divino, que acorda de súbito em nós todas as potências da alma, que rasga brilhante a manhã de um éden terreno, dando realidade à vida, e que a um tempo vibra o estertor e o cício (
rumor) horrível dos que se confrangem no báratro (abismo) do desespero que ele gera! Eu amo, sim. É um amor que tem purpurado de risos todas as horas que me absorvo a pensar nela. Para mim é o resumo de todas as belezas do mundo. Onde a vista depara uma aparição grandiosa, deslumbrante, aí sinto uma reminiscência dela; às vezes procuro em vão formar na mente o composto do semblante engraçado, quero tê-la presente pela imaginação à minha idolatria; mas a fantasia não pode reunir em uma mesma auréola de encantos tudo quanto há de mais puro no céu e na terra. Eu estou doido. É o frenesi deste amor que me enlouquece. Eu não a vejo, nem sei mesmo já se existe, mas sinto-a como a essência de um licor suavíssimo e volátil, que inebria à distância os sentidos. Ela flutua-me pairando ante a vista, como um nevoeiro da madrugada que se esvaece (desvanece) nos ares ao romper da claridade, e de que o sol faz realçar a alvura esplendente. Ela nunca me disse que me amava. Quando só em pensamentos a escuto, a dizer-me segredos introduzíveis, parece-me a bailarina indiana requebrando-se flácida, com uma morbidez encantadora, a voltear brandamente às vibrações remotas das gandharvas (seres musicais), instrumentistas do paraíso. Eu voo na mesma ondulação de harmonia, e sonho um gozo indefinível, que me exacerba mais as angústias cruciantes, quando desperto à realidade. Eu não sei mesmo se me ama. Costumado a brincar desde criança, unindo as nossas orações infantis em noites de tormenta, quando seu pai andava sobre as águas, esta confiança torna impossível o mistério, que alimenta todo o amor.

—”Aldonça!  – repetiu despercebidamente Gaspar Ximenez — a mesma, a que me torna aguerrido, audaz para afrontar estas regiões nos términos do mundo; a que jurou um dia ser minha e me prometeu a mão de esposa, que eu beijei e apertei tremulo, convulsivo!

Fernão Ximenez compreendeu estas palavras. Foram como um clarão súbito, que lampeja e cega. Os olhos arrasaram-se-lhe de água, sem as lágrimas poderem rebentar. Era incrível o que se passava em sua alma. A cólera, a alegria, a contrariedade das aspirações mais ardentes da vida, o desinteresse sublime de um coração generoso debatendo-se tudo naquela alma deserta de esperança! Gaspar Ximenez continuou, como delirando:

—Amas também Aldonça? Como ela é meiga e dócil! É a rola inocente do sacrifício. Ela há de querer a tua felicidade. O que eu disse era uma loucura. Amo-a como irmã apenas; ama-a também, mais do que eu, e será tua.

Ao ouvir estas palavras, proferidas com uma acentuação dolorosa, por uma abnegação quase impossível, Fernão Ximenez não pode represar mais tempo as lágrimas, que lhe rebentavam ferventes dos olhos. Os soluços entercortaram-lhe a voz. Ele jurara dar-lhe também um dia a maior prova de dedicação.

A este tempo, ouviu-se um berro do gajeiro (
marinheiro que fica no cesto da gávea) gritando da gávea:

— Mestre Fernão Mendonça, um negrume espesso se alcança no horizonte, que levamos, pois que a não ser a cerração do cabo, mais me parece presságio de tormenta.

O mar começava já a cavar-se. O piloto mandou logo prender o traquete (
vela grande do mastro da proa), colocar a escota (corda da vela que regula sua orientação) à bujarrona, e que o homem de quarto amurasse mais para sotavento, antes que a borrasca rebentasse de chofre. Instantes depois a marinhagem tripulava afanosa (trabalhosa) sobre o convés; a noite estendera pela amplidão dos mares o seu manto gélido de sombras, como um sudário de morte. O vento frígido sibilava na enxárcia (cabo que manobra as velas); parecia uma serpente escamosa quando assobia na floresta intrincável. A orquestra da procela rompia sonora e esplêndida, como a retrata Virgílio num incomparável hemistíquio (versos alexandrinos).

—Por San-Thiago, disse Fernão Ximenez, saindo da mudez do espanto em que o deixara a longaminidade (
generosidade) do irmão; —adivinhava-o o diabo do gajeiro, pois já as ondas guiam os castelos de proa, e lambem a ponta do gurupé (mastro oblíquo na proa). Diabo! que se tivesse mando no timão amurava mais para sotavento, e talvez que escapássemos à fúria da tormenta.

Continuava o enovelar das vagas como grandes cordilheiras sacudidas por um vulcão subtérreo (
subterrâneo). Instantes depois, o moço descia para o porão, e as marés gigantes em vagalhões, salvavam o baixel (embarcação). Soltos, desencontrados dos quatro pontos, os ventos caem de estouro sobre o galeão.

—Que San-Thiago, o bom apóstolo das Espanhas, esteja conosco, murmurou o homem do leme, ao apagar-lhe uma maré a luzinha da bitácula (
caixa onde está a bússola). Que o bom Jesus dos marinheiros nos ampare nesta tribulação, Ave Maria!

A tempestade recrudescia surda à voz do pobre homem de quarto, que não sabia já o rumo que levava. Pouco depois, as ondas envolveram-no no seu marulho, e o sorveram no pélago insondável.

Sem governo, o galeão altivo, cruzando-se sobre duas ondas que rebentaram sobre ele, estremeceu como aluído (
abalado) pelo cavername (cavernas do navio) e costado; o mastro grande, gemendo sobre si, estalou, e sumiu-se na corrente das águas. Por instantes ninguém respirou. Só o capitão Fernão de Mendonça, conhecendo que o temporal amainara, gritou com intrepidez:

—Salta arriba!

A tempestade amansara consideravelmente; via-se espelhado em todos os semblantes um sorriso de esperança, iluminado ao clarão diáfano do santelmo, que reluzia no topo dos mastros.

— Salve! salve, oh Corpo Santo!—gritaram todos possuídos de um regozijo expansivo.

— Podemos agora contar com a bonança, — disse a voz animadora do padre capelão — que o sacro fogo de Santelmo se nos mostra risonho e mensageiro de paz. Oxalá que sem mais desgraças possamos dizer como o mal aventurado soldado das Índias, o bom Luiz de Camões:

Vi nos céus claramente o lume vivo,
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.

—Mestre Fernão de Mendonça!—interrompeu o gajeiro,—o galeão tem um enorme rombo na proa, e daqui a meia hora estaremos todos no fundo, se vos não apraz lançar esta lancha ao mar.

E foi-se cantarolando aquelas trovas do Auto da barca do Inferno, do popular Gil Vicente:

À barca, à barca, boa gente,
Que queremos dar a vela;
Chegar a ela, chegar a ela.

O tom frio com que dissera a má nova fazia julga-lo filho da rajada, como se cria nas encarnações da mitologia grega. Ouvida a fala do capitão, foram saltando todos para o batel. Pouco depois a não soberba da Índia começara a afundar-se. Ao vê-la sumir-se, o padre capelão lançou-lhe a bênção, e proferiu uns versículos da oração dos mortos. A mudez tornava mais sublimes estes instantes. Era como na morte de um herói, que baqueia ferido no auge da luta. As lágrimas borbotavam dos olhos dos velhos marinheiros ao perderem para sempre aquele companheiro das refregas. O batel não podia com a tripulação toda; o mar estava braseiro e a cada momento entrava-lhe pela borda.

Assim foram andando à mercê das correntes, sem que transluzisse no horizonte escuro um clarão de esperança. O ranger dos remos fazia lembrar de hora em hora o estertor de uma veemente agonia. O mar e a fome infundiam na alma o tédio da vida.

O mar continuava roleiro (
manso). A este tempo uma onda encapelada rebentou quase de choque sobre o batel. Era preciso alijar para alivia-lo. O capitão deitou sortes, para ver os que iriam ao mar. Caiu a sorte sobre o intrépido gajeiro. Pero Gutierrez, um velho marinheiro, atirou-se de livre vontade. Fernão Ximenez parecia de tal modo embebido na dor funda que alentava na alma, que não sabia o que se passava em volta de si. A sorte fatídica caíra também sobre o irmão. Despertou da abstração dolorosa, ao abraço fraterno extremo. Repentinamente compreendeu tudo com a lucidez de que o espírito se apossa nos momentos solenes da vida. Deteve-o um instante:

—Uma vez sacrificaste ao meu amor todas as tuas esperanças! É bem que o reconheça; agora estimo a vida só para dá-la por ti.—E desprendeu-se dos braços do irmão, com a resolução do desespero, e arrojou-se à voragem.

Gaspar Ximenez permaneceu atônito, paralisado ante o estranho heroísmo. O sol ia já alto, o céu tornava-se límpido e sereno, o horizonte abria-se imenso, como a expansão de um pensamento de alegria. Depois de haverem remado bastante ainda, descobriram-no à distancia seguindo extenuado o batel. A energia sublime do seu heroísmo e dedicação comovera todos os corações. Quiseram unânimes recebê-lo, estava já sem forças, quase imóvel. O amor fraternal resplandecera com espanto. Os membros enregelados começaram de novo a sentir vida com a reação do calor.

O mar ia amansando progressivamente, e antes do cair da noite viram com pasmo e alegria doida alvejar uma vela. Saudaram-na com a celeuma do regozijo. Quando passados dias chegaram a beijar a terra de seus pais, Fernão Ximenez foi professar, cumprir o voto num mosteiro, para não tornar o amor do irmão impossível.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894.
Português atualizado por J. Feldman

Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LVI


SOSSEGA, CORAÇÃO! NÃO DESESPERES!
 
 Sossega, coração! Não desesperes!
 Talvez um dia, para além dos dias,
 Encontres o que queres porque o queres.
 Então, livre de falsas nostalgias,
 Atingirás a perfeição de seres.
 
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

SOU O ESPÍRITO DA TREVA
 
Sou o Espírito da treva,
A Noite me traz e leva;

Moro à beira irreal da Vida,
Sua onda indefinida

Refresca-me a alma de espuma...
Pra além do mar há a bruma...

E pra aquém? Há Coisa ou Fim?
Nunca olhei para trás de mim...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

SOU UM EVADIDO
 
Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TALVEZ QUE SEJA A BRISA
 
Talvez que seja a brisa
Que ronda o fim da estrada,
Talvez seja o silêncio,
Talvez não seja nada...

Que coisa é que na tarde
Me entristece sem ser?
Sinto como se houvesse
Um mal que acontecer.

Mas sinto o mal que vem
Como se já passasse...
Que coisa é que faz isto
Sentir-se e recordar-se?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TÃO VAGO É O VENTO QUE PARECE
 
Tão vago é o vento que parece
Que as folhas fremem só por vida.
Dorme um calar em que se esquece.
Em que é que o campo nos convida?

Não sei. Anônimo de mim,
Não posso erguer uma intenção
Do saco em que me sinto assim,
Caído nesse verde chão.

Com a alma feita em animal,
A quem o sol é um lombo quente,
Aceito como a brisa real
A sensação de ser quem sente.

E os olhos que me pesam baixo
Olham pela alma o campo e a estrada.
No chão um fósforo é o que acho.
Nas sensações não acho nada.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TENHO ESCRITO MUITOS VERSOS

Tenho escrito muitos versos,
muitas coisas a rimar,
dadas em ritmos diversos
ao mundo e ao se olvidar.
            
Nada sou, ou fui de tudo.
Quanto escrevi ou pensei
é como o filho de um mudo
– "amanhã eu te direi".
            
E isto só por gesto e esgar,
feito de nadas em dedos
como uma luz ao passar
por onde havia arvoredos.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TENHO PENA ATÉ... NEM SEI. . .
 
Tenho pena até... nem sei. . .
Do próprio mal que passei
Pois passei quando passou.
 = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TENHO SONO EM PLENO DIA.
 
Tenho sono em pleno dia.
Não sei de que, tenho pena.
Sou como uma maresia.
Dormi mal e a alma é pequena.

Nos tanques da quinta de outrem
É que gorgoleja bem.
Quanto as saudades encontrem,
Tanto minha alma não tem.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TODAS AS COISAS QUE HÁ NESTE MUNDO
 
Todas as coisas que há neste mundo
Têm uma história,
Exceto estas rãs que coaxam no fundo
Da minha memória.

Qualquer lugar neste mundo tem
Um onde estar,
Salvo este charco de onde me vem
Esse coaxar.

Ergue-se em mim uma lua falsa
Sobre juncais,
E o charco emerge, que o luar realça
Menos e mais.

Onde, em que vida, de que maneira
Fui o que lembro
Por este coaxar das rãs na esteira
Do que deslembro?

Nada. Um silêncio entre juncos dorme.
Coaxam ao fim
De uma alma antiga que tenho enorme
As rãs sem mim.